V.20 nº 43 / set-dez (2022) ISSN: 1808-799 X
Universidade Federal Fluminense
Faculdade de Educação
NEDDATE - NÚCLEO DE ESTUDOS, DOCUMENTAÇÃO E DADOS SOBRE TRABALHO E EDUCAÇÃO
REVISTA TRABALHO NECESSÁRIO: http://periodicos.uff.br/trabalhonecessario
Redação: R. Professor Waldemar Freitas Reis, s/n°, bloco D, sala 525, Gragoatá - São Domingos, Niterói -
RJ, CEP 24210-201 - revistatrabalhonecessario@gmail.com
EDITORES
Lia Tiriba, Jacqueline Botelho e Regis Arguelles da Costa
EDITORAS ADJUNTAS
Sandra Morais e Mahalia Aquino
CONSELHO EDITORIAL
Caridad Perez García (UCPEJV Cuba), Celso Ferretti (UNISO - Brasil), Gaudêncio Frigotto (UFF / UERJ-
Brasil), José Claudinei Lombardi (UNICAMP Brasil), Maria Ciavatta (UFF - Brasil), Roberto Leher (UFRJ -
Brasil), Tomás Rodrigues Villasante (UCM Espanha), Sonia Maria Rummert (UFF - Brasil) e Virgínia
Fontes (UFF / EPJV / Fiocruz - Brasil).
COMITÊ CIENTÍFICO
Alexandre Maia do Bomfim (IFRJ), Ana Motta (UFF), André Feitosa (EPSJV/FIOCRUZ), André Martins
(UFJF), Andrea Araújo Vale (UFF), Anita Handfas (UFRJ), Angela Siqueira (UFF), Angela Tamberlini (UFF),
Claudio Fernandes da Costa (UFF), Célia Regina Vendramini (UFSC), Daniela Motta (UFJF), Dante Moura
(IFRN), Deise Mancebo (UERJ), Domingos Leite Lima Filho (UTFPR), Dora Henrique da Costa (UFF),
Doriedson do Socorro Rodrigues (UFPA), Edison Oyama (UFRR), Edson Caetano (UFMT), Eneida Oto
Shiroma (UFSC), Eraldo Leme Batista (UNIVAS-MG), Eveline Algebaile (UERJ), Filippina Chinelli
(EPSJV/FIOCRUZ), Flávio Anício (UFRRJ), Francisco José Lobo Neto (FIOCRUZ), Guadelupe Teresinha
Bertussi (UNAM e UFSC), Hajime Nozaki (UFMS e UFJF), Henrique Tahan Novaes (UNESP), Ivo
Tonet (UFAL), Jacqueline Botelho (UFF), Jaqueline Ventura (UFF), João dos Reis da Silva Jr. (UFSCar), José
dos Santos Souza (UFRRJ), José Luiz Cordeiro Antunes(UFF), Júlio Cesar França Lima (FIOCRUZ), Justino
de Souza Junior (UFC), Kátia Lima (UFF), Laura Souza Fonseca (UFRGS), Lea Calvão (UFF),Lia Tiriba (UFF),
Lígia Klein (UFPR), Luciana Requião (UFF), Marcelo Lima (UFES), Maria Clara Bueno Fischer (UFRGS),
Maria Cristina Paulo Rodrigues (UFF), Maria Inês do Rego Monteiro Bomfim (UFF), Maria de tima Félix
Rosar (UNICAMP), Marcia Alvarenga (UERJ), Mariléia Maria da Silva (UDESC), Marisa Brandão (CEFET-RJ),
Marise Ramos (UERJ,FIOCRUZ), Marlene Ribeiro (UFRGS), Myriam Feldfeber (UBA - Argentina), Ney Luiz
Teixeira Almeida (UERJ), Olinda Evangelista (UFSC), Ramon de Oliveira (UFPE), Raquel
Varela (Universidade Nova de Lisboa- Portugal), Roberto Leher (UFRJ), Ronaldo Lima (UFPA), Rosilda
Benacchio (UFF), Rui Canário (Universidade de Lisboa Portugal), Sandra Maria Siqueira
(UFBA), Sandra Morais (UNIRIO), Sérgio Lessa (UFAL),, Susana Vasconcellos Jimenez (UFC), Tatiana
Dahmer (UFF), Valdemar Sguissardi (UFSCar), Vania Motta (UFRJ), William Kennedy do Amaral Souza
(IFRO) e Zuleide Silveira (UFF).
ORGANIZAÇÃO DA TN 43 (2022)
Alexandre Maia do Bomfim - Grupo de Pesquisa em Trabalho-Educação e Educação Ambiental
(GPTEEA-IFRJ)
ASSISTENTES/COLABORADORES DE EDIÇÃO
Daniel Tiriba, José Luiz Cordeiro Antunes (UFF), Lândhor Borges Camello (UFF)e William Kennedy do
Amaral Souza (IFRO)
FOTO DA CAPA
“Espantalho” Cândido Portinari, 1959, pintura a óleo / madeira compensada, direito de reprodução
gentilmente cedido por João Cândido Portinari (PORTINARI LICENSING LTDA e ASSOCIAÇÃO CULTURAL
CANDIDO PORTINARI).
MONTAGEM DA CAPA
Daniel Tiriba
V.20 nº 43 / set-dez (2022) ISSN: 1808-799 X
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Apoio:
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá/SDC/UFF Bibliotecária:
Mahira de Souza Prado CRB-7/6146
V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
Editorial
DITADURA NUNCA MAIS! FASCISMO JAMAIS!1
No meio jornalístico, - o que não é diferente quando se trata de um periódico
científico -, os leitores/as e autores/as esperam que um Editorial expresse, na sua
essência, a postura política daqueles que veiculam as informações e/ou socializam
resultados de pesquisa sobre diversas áreas do conhecimento. No horizonte de um
“jornalismo integral”, na concepção de Gramsci (2006), a linha editorial da Revista
Trabalho Necessário é clara: “nas sociedades cindidas em classes sociais
antagônicas, a produção do conhecimento está sempre vinculada a uma
determinada concepção da realidade”2. As ciências não são neutras, constituindo-se
como parte integrante de projetos societários em disputa, o que requer de nós o
embate político teórico e prático, entendido como trabalho necessário para
superação da sociedade capitalista. Esta disputa esteve fortemente presente na
atual campanha eleitoral para presidente do Brasil.
Foi por menos de dois pontos percentuais que Luiz Inácio Lula da Silva
venceu Jair Bolsonaro no dia 30 de outubro de 2022. O resultado do segundo turno
das eleições levou caminhoneiros adeptos ao projeto neofascista da extrema-direita
a interditar rodovias no país, e pedir intervenção militar.
Em seu pronunciamento, Lula reafirmou compromissos da campanha
eleitoral, sendo o mais urgente, acabar com a fome de 32 milhões de brasileiros. “A
roda da economia vai voltar a girar, com geração de empregos, valorização dos
salários e renegociação das dívidas das famílias que perderam seu poder de
compra”. Ressaltou que, além de comida, o povo quer “liberdade religiosa''. Quer
livros em vez de armas. Quer ir ao teatro, ver cinema, ter acesso a todos os bens
culturais, porque a cultura alimenta nossa alma”. Disse ainda o presidente eleito que,
2https://periodicos.uff.br/trabalhonecessario/about.
1Editorial recebido em 06/11/2022. Aprovado pelos editores em 07/11/2022. Publicado em
10/11/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.56434.
1
ao invés de perpetuar as desigualdades, o crescimento econômico deve ser
repartido entre toda a população.
Afirmando não existir “dois brasis” e que “a constituição rege a nossa
convivência coletiva”, ressaltou que “este pais precisa se reencontrar consigo
mesmo”, enfrentando “sem tréguas o racismo e o preconceito”. Diante de milhares
de pessoas que foram comemorar na Avenida Paulista e em outros cantos do país e
do mundo, também assegurou ser “possível gerar riqueza sem destruir”. Falou em
“pacificação ambiental”, em “desmatamento zero”, sugerindo a criação de um
“ministério dos povos originários”, o que levou o Ministro do Meio Ambiente da
Noruega a se posicionar sobre a retomada da ajuda ao governo brasileiro para
combater o desmatamento na Amazônia, ajuda esta que foi interrompida em 2019
no governo Bolsonaro. Para Lula,
Uma árvore em vale mais do que toneladas de madeira extraídas
ilegalmente por aqueles que pensam apenas no lucro fácil, à custa
da deterioração da vida na Terra. Um rio de águas límpidas vale
muito mais do que todo o ouro extraído à custa do mercúrio que mata
a fauna e coloca em risco a vida humana.
Quando uma criança indígena morre assassinada pela ganância dos
predadores do meio ambiente, uma parte da humanidade morre junto
com ela. O Brasil está pronto para retomar o seu protagonismo na
luta contra a crise climática, protegendo todos os nossos biomas,
sobretudo a Floresta Amazônica.
O novo presidente assegurou que “as grandes decisões não serão tomadas
em sigilo”. Mas, frente a um Congresso Nacional deveras conservador, seria
ingenuidade acreditar que, para poder governar e combater o fascismo, não seria
necessário fazer concessões aos homens de negócio. E é onde mora o perigo!
Como diz E.P. Thompson (1981), as experiências de classe não são apenas para ser
vividas, mas para ser percebidas e modificadas; assim, frente ao neoextrativismo e
agronegócio, como frear a produção destrutiva do capital e as políticas econômicas
genocidas que avançam sobre os territórios dos povos e comunidades tradicionais?
Em que medida a classe trabalhadora do campo e da cidade será capaz de se
manter mobilizada para fazer valer suas reivindicações? Que novas estratégias de
luta poderão nos levar à construção da hegemonia do trabalho sobre o capital?
No que diz respeito às lutas pela educação pública voltada para as
necessidades da classe trabalhadora, o resultado das eleições presidenciais foi um
2
passo fundamental, e que possibilita a abertura de um amplo leque de demandas.
Sem querer esgotar a agenda progressista e democrática da educação, ressaltamos
algumas questões incontornáveis e de caráter estrutural: revogação do Teto de
Gastos, rediscussão do Novo Ensino Médio e da BNCC, bem como da
BNC-Formação. Por último, devemos organizar o combate a todo entulho
reacionário e fascista na educação pública, representado pelas escolas
cívico-militares e pela influência de fundamentalistas religiosos no governo federal.
Para tanto, faz-se necessário reafirmar o caráter democrático, plural e popular da
escola pública. Afinal, conforme nos lembra Adorno (2011), o objetivo crucial da
educação após a barbárie fascista deve ser impedir que ela se repita.
Vivemos um processo crescente de mercantilização e sucateamento da
saúde, da cultura, da educação e dos demais espaços/tempos das relações sociais.
Ainda em relação à educação, como costuma dizer Gaudêncio Frigotto - um dos
criadores e membros do conselho editorial desta Revista -, ao invés de preparar
para o mercado de trabalho, a escola pública gratuita e laica, bem como os
processos educativos em geral deveriam contribuir para o entendimento da lógica
perversa da sociedade produtora de mercadorias, que mercantiliza tanto a força de
trabalho como as demais forças da natureza.
Odeio os indiferentes, assim dizia o filósofo Antonio Gramsci, em La Città
Futura, em 11 de fevereiro de 1917, referindo-se aqueles homens e mulheres cujas
lamúrias nos provocam tédio. Por representar “abulia, parasitismo, covardia e,
portanto, não ser vida”, a indiferença à política é um “peso morto na História”. Ao
ganhar o status de fatalidade, a indiferença atua poderosamente na história. Atua
passivamente, mas atua”. Assim, por não estar “à janela a olhar enquanto um
pequeno grupo se sacrifica” (s/d, p. 88), importante registar que nossa Revista refuta
o ‘negacionismo científico’, o qual contribui para a produção de pós-verdades,
asseguradas, dentre outras coisas, por fake news que assolam as redes sociais (e
antissociais). Em última instância, o negacionismo configura-se como concepção de
mundo e, ao mesmo tempo, como estratégia para fugir das verdades que são
desconfortáveis para os grupos sociais que, hoje, se apresentam (e/ou se
confundem) com a extrema direita no Brasil, e que caminha rumo à construção da
hegemonia cultural do fascismo, em detrimento da democracia socialista e, inclusive
da democracia liberal-burguesa.
3
Gramsci foi preso na Itália no dia 08 de novembro de 1926, vindo a morrer no
dia 27 de abril de 1937, o que significa dizer que, dos 46 anos vividos, passou quase
onze anos nos cárceres fascistas. No Brasil, nas eleições presidenciais de 2022,
criamos a frente pela democracia, pela vida e contra a utilização da máquina
administrativa em nome da ganância do capital. Depois de bradar ‘ditadura nunca
mais’ e correr o risco de acelerar o processo de instalação de ditadura fascista, é
preciso seguir lutando! Mesmo com a vitória de Lula, o fascismo continua batendo à
nossa porta.
É no contexto das eleições presidenciais e dos 30 anos da Eco-92, ocorrida
no Rio de Janeiro, que a Revista Trabalho Necessário apresenta aos leitores e
leitoras a TN 43 (setembro a dezembro/2022). O número temático sobre Trabalho,
natureza e educação ambiental crítica foi organizado pelo Prof. Dr. Alexandre Maia
do Bomfim (GPTEEA-IFRJ), com quem tivemos o prazer de viver uma rica
experiência de construção coletiva. A coletânea de textos se constitui como grande
contribuição para que possamos analisar as relações seres humanos e natureza
mediadas pelo trabalho, bem como as lutas de classe, formas de resistência e
processos educativos que apresentam perspectivas antagônicas à produção
destrutiva do capital.
Desejamos a todos uma boa leitura e muita disposição para a luta!
Lia Tiriba, Jacqueline Botelho e Regis Argüelles da Costa (Editores)
Sandra Morais e Mahalia Aquino (Editores Adjuntos)
Referências
ADORNO, T. Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
GRAMSCI, A. Indiferentes. In: CAVALCANTI, Pedro Uchoa; PICCONE, Paolo.
Convite à leitura de Gramsci. Rio de Janeiro: Edições Achiamé, s/d, p 86-88.
GRAMSCI, A. Jornalismo. In Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo.
4ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 195-214
LULA DA SILVA, L. I. Pronunciamento em 30 de outubro de 2022.
4
V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL CRÍTICA AO ECOSSOCIALISMO: ENTRE A
CONCILIAÇÃO COM O SISTEMA DO CAPITAL E A CONSTRUÇÃO DE UM
NOVO HORIZONTE1
Alexandre Maia do Bomfim2
Goreng: [Todos] Precisam racionar a comida! (...)
Trimagasi: Ei, ei, ei... Você é comunista?
Goreng: Sou razoável. Racionamento seria justo...
Trimagasi: Os de cima não escutam comunista!
[Diálogo entre os personagens principais do filme
“O Poço” (El Hoyo)].
Antes de fazer a Apresentação deste número temático sobre Trabalho,
Natureza e Educação Ambiental Crítica, editado pela Revista Trabalho Necessário
(TN), vale registrar o momento histórico dessa escrita. poucos dias tivemos a
eleição presidencial mais acirrada de todos os tempos no Brasil. Acabamos de
eleger Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 30 de outubro de 2022, para mais um
mandato de quatro anos, que será seu terceiro. Lula derrotou o presidente Jair
Bolsonaro, primeiro presidente que não se reelege no Brasil por meio do voto
democrático. Lula obteve 60.345.999 (50,90%) de votos, enquanto Bolsonaro obteve
58.206.354 (49,10%), quer dizer, menos de 2% foi a distância entre os dois
adversários3. É um Brasil profundamente polarizado, como nunca se viu. Vale
compreender que estar polarizado é mais do que estar dividido. Dividido, o Brasil
sempre foi. A diferença é que as divisões anteriores traziam mais frações da
sociedade para o momento do pleito, ao menos para o primeiro turno, mas não foi
assim nessa eleição, porque desde o primeiro momento houve dois candidatos,
3Disponível em: https://resultados.tse.jus.br/oficial/app/index.html#/eleicao/resultados. Acesso em
novembro de 2022.
2Doutor em Ciências Humanas-Educação. Professor Associado III do Programa de Pós-graduação
em Ensino de Ciências (Propec) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de
Janeiro (IFRJ) E-mail: alexandre.bomfim@ifrj.edu.br. lattes http://lattes.cnpq.br/9426535856477661.
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-5617-2229.
1Recebido em 08/11/2022. Aprovado pelos editores em 09/11/2022. Publicado em 10/11/ 2022.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.56449.
1
de fato. Dessa forma, deu-se margem também para as polarizações conceituais
para apreender (ou até orientar) a disputa política que foi se observando. Utopia ou
barbárie? Neofascismo ou democracia? Comunismo ou conservadorismo? Direita ou
esquerda? Na maior parte das vezes, debates postos para serem superficiais, sem
esforço de reflexão, sem leitura, sem pesquisa, sem lastro de realidade. E a arena
principal desses debates ocorrendo nas redes sociais digitais. Uma arena política
muito diferente de outros tempos, porque nela os debates não são resolvidos, não
vencedores (ou relativamente depois do pleito), os temas não se
desenvolvem, os preconceitos são mantidos, as diferenças não são postas frente a
frente; os lados opostos até tangenciam um ao outro, mas somente para que os
conceitos possam retornar para seus próprios grupos (bolhas) de forma
subordinada.
É nesse contexto sociopolítico-digital que entregamos esse número 43 da
Revista Trabalho Necessário para uma reflexão urgente sobre a relação que
precisamos obter com o meio ambiente, sobre a relação metabólica que nós, seres
sociais e políticos, possuímos com a natureza. Aqui estamos considerando a tríade
“Trabalho, Ambiente e Educação”, viemos fazer essa reflexão tendo sempre como
pano-de-fundo a crítica ao sistema do capital e subsidiados pela teoria marxista.
Nosso propósito aqui é trazer nossa trajetória e ter um pouco de ousadia, no caso
reconstruir a esperança e indicar o futuro. Desde o título desta Apresentação
queremos demonstrar que acumulamos na Educação Ambiental Crítica e, sem
subterfúgios, tentar puxar o futuro para nós, ensaiando a utopia de uma sociedade
ecossocialista.
algum tempo trabalhamos com a Educação Ambiental (EA), algum
tempo estamos na busca de teorizar e praticar uma educação intencionalmente
crítica, que fosse capaz inclusive de convergir com nossa trajetória anterior,
marxista, pertencente à área de Trabalho e Educação. Inevitavelmente tivemos que
adjetivar nossa EA, um pouco para distingui-la de “outras educações”, mas
sobretudo para salientar as nossas características: ser crítica ao sistema do capital
(MÉSZÁROS, 2002) e considerar a perspectiva do conflito, a luta de classes. Dessa
forma que aqui estamos, com nossa compreensão de Educação Ambiental Crítica
(EA-crítica), a que nos filiamos e para onde tentamos constituir nossas leituras,
nossas pesquisas, nossa prática... E nos distinguir de “outras educações” significa
2
nos diferenciar, evidentemente, daquelas alinhadas ao sistema do capital, nos
diferenciar também das que se pretendem reformistas porque entendem ser possível
um grau de crítica desassociado da meta inegociável de transformar a sociedade.
Certamente que esse nosso percurso, ainda que busque constituir sua própria
massa crítica, não é linear, tem suas idas e vindas, porque é dialético. É um
percurso feito dentro de um grupo de pesquisa4, receptivo às pessoas que passaram
por nós (discentes, docentes, pesquisadores) e nada imune aos momentos
históricos. Se em alguns momentos podemos reivindicar uma crítica de vanguarda
que reivindique o socialismo e que nos permita dizer inclusive que “desenvolvimento
sustentável” é um termo insuficiente; noutro momento, precisamos realizar o mais
básico dos posicionamentos, como lutar pelos direitos sociais básicos, reivindicar a
democracia, defender a ciência contra o obscurantismo. De qualquer maneira, nossa
reflexão sempre procurou estar próxima da escola:
Quando pensamos neste [estudo], não pressupomos que a “Questão
Ambiental” estivesse fora da Educação Básica, como também não
pressupomos que fosse suficiente sua entrada e permanência. Ao
contrário, pressupomos que precisávamos nos contrapor a algo
estabelecido, em termos de “Educação em Ciências”, em termos de
“Educação Ambiental”... Propomos uma ciência politizada! Nossa
prática ideológica é buscar o conhecimento. Cada vez mais, vamos
entendendo que a Educação Ambiental Crítica (EA-crítica) é aquela
que quer conhecer até o fim, que quer o aprofundamento das
questões, enquanto a educação conservadora quer exatamente
camuflar ou simplesmente manter-se na superfície. Esta é nossa
definição mais básica para a EA-crítica... (Contracapa do livro “A
Questão Ambiental na Educação Básica, BOMFIM et al, 2015).
O contexto atual está mais adverso, os conceitos estão sendo disputados em
novas bases, como exemplo, agora nos vemos na luta contra o fascismo ou
neofascismo5. Neste momento, o simples ato de educar e fazer ciência se tornou um
ato subversivo. Nessa hora, talvez nem fosse estratégico dizer que nossa Educação
Ambiental Crítica nos leva ao Ecossocialismo.
Isso não nos impede de ter a esperança de que no futuro nossas reflexões
encontrem mais ressonância na sociedade. No final deste texto, faço a apresentação
5No momento que estamos fechando este texto, poucos dias após a vitória de Luiz Inácio Lula da
Silva no pleito eleitoral (que ocorreu no dia 30 de outubro de 2022), no Brasil assistimos
manifestações de pessoas identificados com o fascismo que reivindicam intervenção militar contra o
resultado das eleições.
4Grupo de Pesquisa em Trabalho-Educação e Educação Ambiental (GPTEEA) do IFRJ.
3
dos trabalhos desta TN 43, mas posso adiantar que são, de maneira geral, também
críticos à sociedade capitalista. Mas, é bom não aprisioná-los ao posicionamento
que assumimos aqui com o Ecossocialismo; esse é nosso, recente e ponto
culminante de nossa caminhada teórica. Essa caminhada que encontrou
oportunidade e acolhimento aqui na Revista Trabalho Necessário, periódico do
Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação
(NEDDATE), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação e à
Faculdade de Educação, da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Aqui, trazemos um pouco do nosso percurso teórico-político, de como
saímos de um “ecologismo correto”, passando pela crítica ao conceito economicista
de Desenvolvimento Sustentável, indo pela incorporação da luta de classes,
reivindicando a análise dos conflitos socioambientais, apreendendo outras
possibilidades e sociabilidades com os povos originários, considerando atividades
contraditórias no interior do capitalismo (como a agroecologia), até chegar ao
horizonte do ecossocialismo.
Por que a EA não vem dando certo?
Fazemos aqui um encadeamento de reflexões, a partir de nossas leituras e
nossas pesquisas (BOMFIM, 2021). Comecemos com Michael Löwy (2005) que
tentou convergir a pauta da luta dos socialistas (os vermelhos) com a dos
ambientalistas (os verdes) para criticar o “sistema do capital” (MÉSZÁROS, 2002).
Ele distinguiu os próprios ambientalistas e mostrou que alguns estão em militância
ineficaz quando defendem “desenvolvimento sustentável” porque propõem uma
conciliação com o capital. Por outro lado, Löwy mostrou aos vermelhos que a
preocupação com o meio ambiente deveria ser incorporada, pois não é
importante, mas central, apontando que além da luta pela tomada do Estado,
deve-se garantir que se torne ecológico. Não obstante, o primeiro Löwy
ecossocialista não conseguiu ir muito além disso, obteve algumas críticas
importantes que identificamos em duas vias. A primeira crítica que recebeu (ainda
que tenha sido apenas uma ressalva), foi a de que ele poderia ter percebido que no
próprio materialismo histórico-dialético havia os pressupostos para se considerar a
4
questão ambiental, porque o método proporciona isso e não deveria ter se detido
aos momentos que essa reflexão ainda era incipiente.
(...) Michael Löwy criticou (...) passagem [do Manifesto Comunista]
como uma manifestação da atitude ingênua de Marx em relação à
modernização e ignorância sobre a destruição ecológica embutida no
desenvolvimento capitalista (...).
Mesmo que sua interpretação reflita com precisão o pensamento de
Marx à época, a crítica de Löwy dificilmente pode ser generalizada
para toda a obra de Marx, uma vez sua crítica ao capitalismo se
tornou cada vez mais ecológica a cada ano que passou. (...) a
evolução de seu pensamento subsequente (...) mostra que, em seus
últimos anos, Marx ficou seriamente preocupado com o problema o
desmatamento (...). (SAITO, 2021, p. 316).
A segunda crítica, que consideramos mais grave, ocorreu quando Löwy
tangenciou uma ideia que pode ter descaracterizado a “luta de classes”:
(...) O combate para salvar o meio-ambiente, que é necessariamente
o combate por uma mudança de civilização, é um imperativo
humanista, que diz respeito não apenas a esta ou àquela classe
social, mas ao conjunto dos indivíduos. (LÖWY, 2005, p. 73).
Löwy, nesse momento, marcou uma distância conceitual em relação ao
marxismo, quando complementou dizendo que a destruição da natureza seria “a
segunda contradição do capitalismo” (preservada a compreensão que a primeira
contradição é a exploração do trabalho pelo capital). Contrários a esse primeiro
Löwy, com o aporte de Chesnais e Serfati (2003), prosseguimos compreendendo
que a contradição original do capitalismo continuaria ser a necessidade de o capital
valorizar-se pela exploração do trabalho. Na verdade, a degradação da natureza não
é uma contradição para o capital, porque não se opõe às máximas da economia
capitalista (como a valorização advinda da escassez). Esse primeiro ecossocialismo
de Löwy permitiu a ideia de que as responsabilidades com a degradação ambiental
se dariam da mesma forma entre indivíduos e grupos sociais, como também assim
seriam as experimentações das mazelas.
Não obstante, um segundo Löwy emerge num texto de 2013, aparando essas
arestas, mencionando Walter Benjamin, relembra que “o capitalismo nunca vai
morrer de morte natural” (op. cit). Nesse artigo, recupera a luta de classes, alcança
que a agressão ao meio ambiente não é contradição para o sistema do capital e
recupera a urgência da revolução. E mais, esse texto acertou profeticamente o que
viria ocorrer no capitalismo contemporâneo, ao indicar que: “(...) o sistema
5
continuará a explorar o planeta, até que a própria vida humana se encontre
ameaçada” (LÖWY, 2013, p. 79).
Depois disso, reajustadas essas ideias de Löwy, vale registrar para todos nós
que: se a degradação da natureza não é contradição para o capital, é para o ser
humano!6Vamos à crítica do conceito de “Desenvolvimento Sustentável”.
“Desenvolvimento Sustentável” (DS) é resultado de uma disputa, que na
superfície pode parecer apenas de termos, mas que no fundo traz as compreensões
e orientações para as políticas públicas (LAYRARGUES, 1997). DS é expressão de
teor economicista da perspectiva conciliatória com o capital, conceituação limitada
que remete sua preocupação às gerações futuras (o que implicaria numa
indeterminação) para não se comprometer com as gerações presentes.
Nessa recuperação de nosso percurso desenvolvimento teórico-metodológico,
vale trazer o conceito de “trabalho” enquanto categoria sociológica chave. O
trabalho, em seu sentido ontológico, é a própria mediação metabólica7entre homem
e natureza, onde se realiza a reprodução da vida e a constituição da própria cultura.
Os homens experimentam diferentes culturas, caracterizam-se pela diversidade, ou
seja, não precisamos ter respostas únicas para relação com a natureza. E mais,
podemos considerar que culturas que elevaram à vida num momento inicial, no seu
devir podem se tornar “culturas de morte”
(...) Nós não devemos nos vangloriar demais das nossas vitórias
humanas sobre a natureza. (...) É verdade que cada vitória nos dá,
em primeira instância, os resultados esperados, mas em segunda e
terceira instâncias ela tem efeitos diferentes, inesperados, que muito
frequentemente anulam o primeiro. (ENGELS apud LÖWI, 2005, p.
22).
Povos originários, por exemplo, podem nos oferecer caminhos melhores para
nossa vida como elemento da natureza.
Mészáros (2002), nos indica: não caminho conciliatório com o sistema do
capital. É possível que por conta de uma análise de conjuntura, por conta de uma
luta política contextualizada, seja necessário fazer concessões. Não obstante, essas
7"(...) conceito de metabolismo, embora não fosse utilizado uniformemente por Marx, embasa sua
compreensão da natureza, e por consequência dos seres humanos, sob o capital. (...) (prefácio de
Sabrina Fernandes em SAITO, 2021, p. 14).
6“(...) não é possível construir o socialismo num planeta arrasado.” (prefácio de Sabrina Fernandes
em SAITO, 2021, p. 14).
6
concessões precisam ser logo reavaliadas, não podem perdurar. Esses momentos
são dificílimos de refletir, por isso que os estudos teóricos estruturais precisam
continuar, guiar-se pelo aprofundamento dos temas e análise, como desejar o
compartilhamento etc.
Mészáros (2005) até indica caminhos à Educação, mas desde que seja
inconciliável com o sistema do capital. Com esse autor, é possível constituir uma
educação com “aspirações emancipatórias” (MÉSZÁROS, 2002), exatamente numa
reconstrução em que nos colocamos absolutamente no lado antagônico à educação
formal capitalista. Isso também vale para a EA-crítica. um limite teórico-prático
para nós, a partir desse estudo de Mészáros: como buscar essas aspirações
emancipadoras no interior da escola formal, supostamente reprodutora e favorável
ao capital?
Num esforço de sintetizar a reflexão e a contribuição dos autores que nos
acompanharam (e até a militância) até aqui, instituímos “praxicamente” as “Onze
Teses para (constituir) uma EA-crítica” (BOMFIM, 2011): I) resgatar o humanismo; II)
desmitificar o capitalismo, apontando que a depredação do ambiente não é uma
contradição para o capital; III) mostrar os limites do desenvolvimento sustentável; IV)
manter-se em revisão permanente; V) criticar a perspectiva conservadora da EA; VI)
mostrar os limites das propostas comportamentalistas e individualistas da EA; VII)
problematizar ou redimensionar as ações paliativas à questão ambiental; VIII)
denunciar os principais responsáveis pela degradação ambiental; IX) mostrar quem
mais sofre com a degradação; X) mostrar que a proposta idealista de
conscientização ambiental tende a ser insuficiente à transformação; XI) buscar
aspirações e experiências emancipadoras.
Enfim, chegamos à conclusão que na relação trabalho, ambiente e educação
um ponto de interseção que une os termos, criticamente: o “conflito
socioambiental”. Pressupor o conflito socioambiental é pressupor que a luta de
classes se mantém no interior do sistema do capital, em todas as suas frentes,
desde as mais evidentes até as mais disfarçadas, desde a luta por território, desde o
que passa pela expansão de grileiros e garimpeiros sobre terras indígenas, até os
produtos camuflados por selos ecológicos (que dissimulam algumas empresas
capitalistas que se dizem preocupadas com o meio ambiente). É a perspectiva do
conflito que pode garantir o movimento da crítica, que buscará o conhecimento pela
7
investigação, pelo desvelamento, pela denúncia. Essa perspectiva também busca
aspirações e experiências emancipatórias.
O sistema do capital, em sua fração mais reacionária, promove a rejeição da
ciência, propõe mordaça aos educadores, faz proselitismo, mas até sua fração
liberal reitera propagandas que mais escondem do que mostram os interesses de
classe (como as do agronegócio). No fim das contas, no quarto dos fundos do
capitalismo se mantém o latifúndio, o desmatamento, as indústrias poluidoras, a
pilhagem da natureza, a submissão dos grupos originários etc. O capitalismo
continua pujante em suas características principais, como a exploração do trabalho,
o processo de mercantilização de tudo e o aprisionamento do Estado nas mãos de
uma minoria. A questão ambiental, exatamente por não ser uma contradição
imediata ao sistema do capital, se torna mais vulnerável. O capitalismo pode destruir
a natureza até a última folha. Essa falta de cuidado inerente do capitalismo com o
ambiente, certamente, engendrará eventos extraordinários (como uma pandemia!),
mas o curioso é que nem isso garante que a sociedade enxergue. Por isso, a
educação é urgente, a educação científica é imprescindível, a educação política
sempre. Por conta de tudo isso que dizemos que a Educação Ambiental
conciliatória, infelizmente a que mais encontramos nas escolas, não está dando
certo, porque é uma “educação até certo ponto”, não pode ir até o fim, porque fica
nos primeiros momentos, caracteriza-se como como comportamentalista,
pacificadora, reativa, paliativa, ou mesmo em atraso...
8
Imagem 1: Charge Brasil da Mostra Internacional de Humor sobre EA
(2012).
Fonte:http://cpeasul.blogspot.com/2012/09/1-selecionado-na-1-mostra-internaci
onal.html. Acesso em novembro de 2022.
Depois que fracassa, torna-se a educação das contingências e das
mitigações.
Imagem 2: Charge Uzbequistão da Mostra Internacional de Humor sobre EA
(2012).Fonte:http://cpeasul.blogspot.com/2012/09/1-selecionado-na-1-mostra-in
ternacional.html. Acesso em novembro de 2022.
9
A EA-crítica não se opõe às primeiras ações do que seria a EA “conciliatória”,
ou “conservadora”, opõe-se aos limites que esse tipo de educação se coloca. A
EA-crítica não deve ser contra a “coleta seletiva de materiais recicláveis” nas
escolas, não deve ser contra a “horta escolar ou comunitária”, mas associa essas
ações (como ponto-de-partida) para reflexões mais amplas, que vão desde a
irresponsabilidade do descarte que fazem as empresas capitalistas, até questões de
consumismo estrutural na economia. Mais de 97% das escolas brasileiras dizem
fazer educação ambiental (TRAJBER e MENDONÇA, 2007), mas que tipo de
educação ambiental fazem?
Imagem 3: Charge Indonésia da Mostra Internacional de Humor sobre EA
(2012). Fonte:
http://cpeasul.blogspot.com/2012/09/1-selecionado-na-1-mostra-internacional.ht
ml. Acesso em novembro de 2022.
E como chegamos ao entendimento que precisamos refletir sobre uma
Educação para o Ecossocialismo ou, pelo menos, para uma Educação que
considere a superação do sistema do capital? Porque entendemos que, no interior
do sistema do capital, o meio ambiente é visto exclusivamente como recurso,
mesmo quando se reconhece haver serviços ambientais, porque todo o restante do
processo de valorização do capital tende a extrair da natureza o que for necessário,
10
sem considerar qualquer risco de colapso. E porque a questão ambiental não é uma
contradição imediata e evidente ao capital e porque a escassez ajuda no processo
de mercantilização, com isso nutre-se a que as leis podem atrasar esse colapso,
assim como outras ações paliativas do Estado. Com essa compreensão, não
como garantir criticidade à educação ambiental que fica na conciliação com o capital
e dentro da ortodoxia econômica dos homens de negócio.
Imagem 4: Charge Alemanha da Mostra Internacional de Humor sobre EA
(2012).Fonte:http://cpeasul.blogspot.com/2012/09/1-selecionado-na-1-mostra-in
ternacional.html. Acessado em novembro de 2022.
O capitalismo é uma sociedade histórica que não extinguiu a luta de classes e
seu processo civilizatório não tem como se estender para maior parte da população,
da mesma forma que o homem não lhe é central, a natureza também não...
Destarte, nossa insistência com a reflexão sobre o ecossocialismo é também
possibilitar à esquerda mais um item para sua retomada, para que possa obter seu
protagonismo político em novas bases, especialmente para um país com as
características do Brasil, com enorme extensão territorial e biomas extraordinários.
11
Quem veio e de que forma veio refletir a Educação Ambiental Crítica na TN 43?
Antes de iniciarmos as apresentações dos trabalhos que aqui vieram, vale
registrar as duas datas redondas a que chegamos: os 50 anos da Conferência das
Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, em Estocolmo; e os 30 anos da
Eco-92, no Rio de Janeiro. Duas datas emblemáticas para o movimento
ambientalista, que fazem com que as reflexões aqui sejam ainda mais oportunas.
Não obstante, vale dizer que elas ficaram um pouco desapercebidas dentro de um
ano eleitoral tão importante para o Brasil. Não poderia ser diferente, porque os
projetos políticos dos dois candidatos à presidência da República se mostraram tão
antagônicos que preponderam em relação a esses eventos. Agora, com a
confirmação da vitória de Luiz Inácio Lula da Silva no dia 30 de outubro, retomar as
Conferências de Estocolmo e do Rio podem se dar sobre novas bases, no mínimo
sobre as bases da esperança...
Para compor esta edição da TN 43 fizemos uma chamada pública para que
professores-pesquisadores viessem nos ajudar nessa reflexão, outros convidamos
diretamente. Vale reproduzir a chamada:
O número temático acolherá pesquisas e estudos teóricos e
empíricos que contribuam para análise da historicidade das relações
entre seres humanos e natureza, e para a explicitação dos
fundamentos teórico-metodológicos de uma Educação Ambiental
Crítica (EA-Crítica). Serão reunidos artigos sobre a crítica à
sociedade capitalista e que tenham em conta, entre outros, os
processos de mercantilização da natureza, de degradação e
devastação antrópicas; a análise do avanço do agronegócio,
especialmente da monocultura e do neoextrativismo sobre os
territórios dos povos e comunidades tradicionais. Será dado
destaque às políticas do sistema do capital que têm gerado crimes
socioambientais e conflitos, sejam no campo, sejam nas cidades e
periferias. Serão consideradas as lutas de classe, formas de
resistência, os processos formativos dos movimentos sociais no
contexto da educação do campo e da agroecologia, e outras
perspectivas antagônicas às do capital, impostas ao meio ambiente.
Desejam-se trabalhos calcados em concepções e práticas de
Educação Ambiental Crítica (EA-crítica) que se distingam de uma EA
acrítica, conservadora e mantenedora da ordem do capital. Destarte,
a proposta desse número é publicar estudos que considerem as
relações entre trabalho, natureza e ambiente, tendo em conta suas
implicações à educação8.
8Cf. https://periodicos.uff.br/trabalhonecessario/announcement/view/604.
12
É, sem dúvida, uma chamada forte. Claro que desejou atrair trabalhos que
possuíssem suas “implicações à educação”, listamos o que esperávamos encontrar
e convidar, não exatamente fechamos no referencial teórico no marxismo, mas
confirmamos que viessem somar para “crítica à sociedade capitalista” e constituir
uma Educação Ambiental que se distinguisse da que fosse “conservadora e
mantenedora da ordem do capital”... E foi isso que encontramos nos textos que
virão, a seguir.
Vale dizer que não seguirei a ordem dos textos como aparece no Sumário e
que apresentarei cada um dos trabalhos de forma breve, como sinopses, porque a
ideia principal é chegar logo até eles...
Primeiramente, registramos à Homenagem à Eunice Trein, nossa
queridíssima professora, precisamente a pessoa que fez, de forma pioneira, o que
vamos tentando fazer aqui: o encontro da teoria, dos pesquisadores, dos
professores e dos militantes da área de “Trabalho e Educação” com a teoria, os
pesquisadores, os professores e militantes da área de “Educação Ambiental”. Dentro
da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) isso
corresponde aos GT 09 e ao GT 22, os dois em que a professora Eunice atuou
efetivamente. Para complementar essa homenagem reproduzimos um texto antigo
da professora intitulado Educação Ambiental Crítica: crítica de quê? Nesse texto,
a professora Eunice marca sua elegância em dialogar com diferentes visões sobre a
Educação Ambiental, no mesmo momento que vai trazendo essa criticidade para o
terreno do marxismo, para terminar com atenção à luta de classes.
No texto do professor Philippe Pomier Layrargues, intitulado Ecologia
Política da Sociedade de Consumo e a ‘Produção Destrutiva’ no Limiar do
Colapso Ambiental, percebe-se todo esforço de síntese para associar leituras e dar
conta do período expressivo do capitalismo da segunda metade do século XX,
especialmente para compreender como chegamos à sociedade atual e aos ricos
ambientais iminentes. Relações Seres Humanos-Natureza: trabalho, cultura e
produção de saberes, dos professores Maria Clara Bueno Fischer e Doriedson do
Socorro Rodrigues, é um dos textos que nos ajuda teoricamente a entender esse
encontro da área Trabalho e Educação com os temas da relação homem e natureza.
O artigo tem também um item a mais, quer é oferecer atenção a outros modos de
vida que resistem no interior das contradições capital-trabalho. Nessa mesma
13
perspectiva, o texto Educação Ambiental e outros Modos de Vida, de Marcela de
Marco Sobral, Mauro Guimarães e Ana Moura Arroz marca a urgência de se
observar comunidades que possibilitem outros “modos de vida”, como alternativas
concretas à sociedade, diante da constatação inquestionável que sob o capitalismo
temos uma crise civilizatória e um sistema ambientalmente insustentável.
De Gustavo Soares Iorio, Lucas Magno e Guilherme Barbosa de Faria
Umbuzeiro temos o texto Mercantilização da Natureza e Acumulação Capitalista:
o licenciamento ambiental em Minas Gerais. O artigo traz uma constatação grave:
as alterações no processo de licenciamento ambiental em Minas Gerais
corresponderam às expectativas do bloco de poder alinhado com acumulação
capitalista. Inevitavelmente faz com que relacionemos isso com as recentes
tragédias socioambientais que assolaram o estado de Minas Gerais nos últimos
anos. O trabalho Extensão Rural, Agronegócio e Conservadorismo: os limites
de uma política pública para o campo, de José Carlos de Amaral Júnior e Caroline
Becher, discute como a extensão rural pública se encontra, atualmente,
impossibilitada de lidar com a diversidade de sujeitos e modos de vida no campo.
Esta reflexão é indispensável para entender como o agronegócio se instala e como
constrói seu projeto conservador à sociedade.
De Rosa Gouvea de Sousa, Isabela Saraiva de Queiroz e Celso Sánchez
Pereira temos o texto A Proteção e a Promoção das Condições da Saúde
Humana Dispostas na Eco-92 em giro pela Educação Crítica Ambiental. Estudo
imediatamente importante porque se atentou à data comemorativa da Eco-92, em
certa medida é uma avaliação dessa Conferência que alcança 30 anos de sua
realização. O trabalho, especificamente, retoma o debate da saúde enquanto
elemento constitutivo da proteção ambiental, a partir do olhar da educação ambiental
crítica.
O trabalho Movimiento Agroecológico “Campesino a Campesino”:
Experiencias, Participación Popular y Cuestiones Socioambientales en CUBA,
de Jesús Jorge Pérez García, é um artigo internacional que nos acesso a uma
reflexão para além do solo brasileiro, apresenta resultados de uma pesquisa
realizada em comunidades rurais em Cuba (2010 2015). O artigo de Ellen
Rodrigues da Silva Miranda e Maria Jacqueline Girão Soares de Lima intitula-se
Experiências e Aproximações Teórico-Práticas de Mulheres Quilombolas da
14
Amazônia Paraense com o Ecofeminismo. É uma pesquisa sobre mulheres
quilombolas, sobre suas experiências de luta, especialmente contra as
“privatizações” dos rios, florestas e animais. Em síntese, é um estudo sobre
ecofeminismo e sobre feminismo latino-americano.
O artigo Ecopedagogia na Relação Capital-Natureza, de Ivo Dickmann e
Ana Maria de Oliveira Pereira trata a questão da formação humana e da práxis
docente relacionado aos princípios da Ecopedagogia, para repensar uma nova
mentalidade socioambiental, como fundamento crítico radical para repensar a
construção de uma nova civilização, mais justa, solidária e sustentável. Thiago
Vasquinho Siqueira nos brinda com A “Questão Ambiental” na obtenção da
Hegemonia e o Compromisso Ético-Político dos Educadores. Trata-se de um
texto teórico, crítico à apropriação da “questão ambiental” como artifício de obtenção
do consenso realizado pela burguesia.
O ensaio Agronegócio Acima de Tudo, Agronegócio Acima de Todos:
desconstruindo a educação antiambiental dos homens de (agro)negócio é
parte de nosso relatório de pós-doutoramento, uma crítica necessária à educação
midiática realizada pelo agronegócio, que através de campanhas publicitárias tenta
estabelecer uma imagem em que se apresenta como sustentável, mas para velar os
momentos em que suas ações são degradadoras e precarizam a vida da classe
trabalhadora. Ainda na seção Ensaio, dois trabalhos com fotografias participam
deste número para mostrar o que o sistema do capital é capaz de destruir . Um
deles é de Mahalia Aquino com o título Viagem de Campo: a extensão do crime
ambiental na bacia do Rio Doce. O segundo é de Denise Belo, em certa medida é
também homenagem ao cineasta e escritor Carlos Pronzato, cujo título é Braskem
e Brumadinho: o cinema e a poesia em Carlos Pronzato. Considerando que
muitas vezes as “imagens falam mais que as palavras”, esses trabalhos com
fotografias reiteram a denúncia que a maior parte dos textos dessa TN 43 trouxe:
o sistema capitalista, especialmente com suas empresas, é originalmente
degradador da natureza, por isso precisa ser freado em sua lógica
desenvolvimentista.
No meio desta edição houve espaço também para receber outros quatro
textos (na seção outras temáticas), que embora não tratem diretamente do que foi
indicado para esta TN 43, estão super próximos para refletir conosco o que
15
anunciamos desde o início: a perspectiva de uma educação anticapitalista que
possa ser exercitada no horizonte de uma outra sociedade. O primeiro trabalho é de
Marilei Leal da Cruz e Franciele Soares dos Santos, intitulado A Escola Única do
Trabalho e a Experiência Educacional de Moisey M. Pistrak: reflexões sobre o
legado da Pedagogia Socialista Soviética. O segundo texto é o Educação
Integral: uma concepção em disputa de Débora Spotorno Moreira Machado
Ferreira. E o terceiro de Monique Nunes Fiuza Dias é o trabalho intitulado O Olhar
do Agente Comunitário de Saúde para a sua Prática Profissional:entre o
trabalho real e o trabalho prescrito. O quarto artigo dessa seção tem o título
Migração, Trabalho e Experiência na Ocupação Contestado, em São José - SC
de Lyn Silva e Célia Regina Vendramini.
E agora, na seção Entrevista, destaquemos as duas entrevistas deste número
temático da Revista Trabalho Necessário. De alguma forma, também é uma
homenagem. Trouxemos dois nomes emblemáticos para entrevistar. Um dos
entrevistados é certamente uma das principais referências da Educação Ambiental
do país, Carlos Frederico Bernardo Loureiro. A outra entrevistada é um nome
emblemático para pensarmos a militância ambiental no Brasil, Dercy Teles,
ex-presidente que antecedeu Chico Mendes no Sindicato Rural de Xapuri Acre. Os
dois foram entrevistados de forma remota e com a participação do meu grupo de
pesquisa (GPTEEA). Patrícia Maria Pereira do Nascimento e Juliana Rodrigues me
ajudaram também com a transcrição e organização do texto em que entrevistamos
Loureiro, cujo título ficou: A Educação Ambiental Crítica em Pessoa: Entrevista
com Carlos Frederico Loureiro. Para a entrevista de Dercy Teles, estiveram
comigo Thiago da Silva Oliveira e Juliana Rodrigues de Souza (também na
transcrição e organização) e com o título: A Luta dos Trabalhadores é a Luta
Ambiental e vice-versa: entrevista com Dercy Teles.
Vamos agora apresentar os documentos relacionados a publicações feitas
noutras mídias, noutras referências bibliográficas, mas que também deram
identidade a esta TN 43: a resenha da obra Pedagogia das Águas em Movimento:
experiência de educação popular em saúde ambiental feita por Alexandre
Pessoa Dias, Maria Emélia Costa e Leonardo Maggi. A resenha do Dicionário de
Agroecologia e Educação: a denúncia e o anúncio de práxis que visem à
emancipação humana realizado por Anakeila de Barros Stauffer, Alexandre Pessoa
16
Dias e Maria Cristina Vargas. Acrescentem-se o texto clássico A assim chamada
Acumulação Flexível (Cap.24 de O capital) de Karl Marx com a apresentação
intitulada Contradições entre Trabalho, Capital e Vida: a assim chamada
acumulação primitiva” e sua atualidade histórica por Mahalia Aquino e Lia Tiriba.
Na seção Teses e Dissertações a Dissertação de Mestrado A Educação
Profissional diante da Educação Ambiental Crítica: um estudo interdisciplinar
de um curso técnico em segurança do trabalho numa unidade de conservação
de Patricia Nascimento; e a Tese de Doutorado Educação para permanecer no
Território: a luta dos povos caiçaras frente à expansão do capital em Paraty-RJ
Vanessa Marcondes de Souza. ainda a memória do documento Tratado de
Educação Ambiental com a apresentação Tratado de Educação Ambiental para
Sociedades Sustentáveis trinta anos depois: haverá mais 30? de Marcelo Stortti,
Michelle Sato e Celso Sanchez.
Por fim, por fim mesmo, não posso deixar de agradecer muito, mas muito
especialmente à Lia Tiriba, à Sandra Morais, à Jacqueline Botelho, ao José Luiz
Antunes e ao Regis Argueles pelo convite que me fizeram para integrar à
organização deste número 43 da Revista Trabalho Necessário. Foi um trabalho
antes de tudo coletivo, com uma participação intensa de cada um, mas com um
processo compartilhado e pensado em conjunto. Sou um egresso do Neddate, fui
aluno de alguns dos que participaram e ainda participam desse grupo, então
imaginem a emoção de voltar aqui para contribuir, trazer outras interlocuções, trazer
outros pesquisadores para o diálogo... É um reencontro, semelhante aos imigrantes
que retornam às suas origens para rever e ser revisto. Assim, chego ao término
dessa apresentação ampliando minha homenagem à professora Eunice Trein, quem
me passou esse bastão, e em nome dela estendo aos outros professores e amigos
da UFF... Obrigado e que todos tenham boas leituras!
Referências
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sobre trabalho-educação e ambiente na perspectiva da luta de classes. Relatório de
Pesquisa de pós-doutorado. Programa de Pós-graduação em Educação.
Universidade Federal de Pernambuco. 2022.
17
BOMFIM, A. M. Trabalho, Ambiente e Educação: onde está localizado o
vanguardismo dessa relação? Resumo Expandido. Anais da 40ª Reunião Nacional
da ANPED (2021). GT09 - Trabalho e Educação. ANPEd - Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, 2021. Disponível em:
http://anais.anped.org.br/sites/default/files/arquivos_39_23.
BOMFIM, A. M. Educação Ambiental (EA) para além do capital: estudos e
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entre os conceitos de cultura e trabalho. Revista Eletrônica Mestrado Educação
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em: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/publicacao5.pdf.
18
V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
Homenagem
EUNICE TREIN E A DEFESA DA ESCOLA PÚBLICA E
DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL CRÍTICA1
Sandra Maria Nascimento de Morais2
Inny Accioly3
3Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora Adjunta da
Universidade Federal Fluminense. E-mail: innyaccioly@hotmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-00027726-4536. Lattes: http://lattes.cnpq.br/73197450344922288.
2Mestrado e Doutorado em Educação pela Universidade Federal Fluminense. Professora de História
pela Universidade Santa Úrsula. Atualmente é Vice coordenadora do Núcleo de Estudos,
Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação NEDDATE UFF. É editora adjunta da Revista
Trabalho Necessário, nº 43. E-mail: sandramorais1409@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cupq.br/9809541460730084. ORCID: https://Orcid.org/0000-0001-9778-7257.
1Texto recebido em 27/10/2022. Aprovado pelos editores em 28/10/2022. Publicado em 10/11/2022.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.56327.
1
É uma honra e um desafio homenagear a filósofa e educadora Eunice Trein.
Uma mulher com uma rica trajetória profissional, acadêmica e, em particular, na
produção do conhecimento; sempre preocupada com uma educação pública de
qualidade para todos, atuando não no campo de pesquisa Trabalho e Educação,
como também no campo da Educação Ambiental Crítica (EAC). Por isso, é mais que
merecida essa homenagem da Revista Trabalho Necessário que, no número 43,
busca reunir questões importantes relativas a Trabalho, Natureza e Educação
Ambiental Crítica.
Gostaríamos de deixar registrado que, você Eunice, sempre deixou em nós e
em todos os seus alunos, o rigor da aprendizagem, a importância de pesquisas que
buscam apreender o real nas suas múltiplas determinações. Mas também nos deixa
o carinho e o amor demonstrados em todo esse longo caminho de ‘idas e vindas’,
por 25 anos ou mais, pela Ponte Rio-Niterói, de ônibus, mostrando sua grandeza e
potência como educadora. Afirmamos isso, porque, às vezes, na volta para o Rio de
Janeiro, você dava carona a Sandra Morais (vizinha de bairro e uma das autoras
dessa homenagem), quando vinha conversando sobre as questões
teóricos-metodológicas, mas também sobre a vida. Foram momentos de grande
privilégio, nesses e em outros momentos. Para os graduandos, mestrandos e
doutorandos, também é um privilégio nos ter tornado amigos e amigas.
Mulher, mãe, filha, avó, professora, pesquisadora, sindicalista. E
ambientalista, quando muitas pessoas ainda nem pensavam nisso! Sempre junto do
seu companheiro e amor da vida, o também filósofo Franklin Trein, especialista em
Hegel, Marx, Althusser e outros tantos autores. Temos certeza que os ensinamentos
de Eunice e Franklin seguem dando frutos para muitos e muitos estudantes e
pesquisadores do nosso país (e por que não dizer da América Latina e do mundo?).
Trabalhando 25 anos como professora na UFF, Eunice lecionou para mais de
quatro mil estudantes da graduação, pós-graduação “lato sensu” e pós-graduação
“stricto sensu”. Na graduação em Pedagogia de Niterói, ministrava “Trabalho,
Educação e Produção do Conhecimento; Em Angra dos Reis, ministrava “Trabalho
Cultura e Escola. Entre os diversos componentes curriculares dos cursos de
mestrado e doutorado, foi responsável por Epistemologia e Educação; Seminário
Permanente de Produção do Conhecimento, Teoria I, Estudos Independente
2
Supervisionado, Tópicos Especiais em Trabalho e Educação, entre outros. Cumpriu
a responsabilidade da produção e sistematização do conhecimento, trazendo não
a dimensão científica, como também a dimensão política. Nesse período, construiu
relações de confiança, respeito e afeto com os alunos, o que se manifesta nas
diversas vezes que foi escolhida como professora homenageada, paraninfa e
patrona de turma.
Eunice Trein nasceu em Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, em uma família
de italianos, alemães e franceses. Ainda criança, se mudou para Porto Alegre.
Nessa família tão diversificada, aprendeu, entre outras coisas, a independência do
‘saber fazer’. Em seu Memorial para concurso de professora titular da UFF,
publicado na Revista Trabalho Necessário (n. 29 - ano 2018), destaca três lições
importantes que aprendeu com seu pai Mário e que as acompanham até hoje: “não
temer os poderosos; o conhecimento liberta; nosso trabalho manual ou intelectual
deve sempre ser orientado por uma função social”. Da mãe herdou, entre outras
coisas, o gosto de ter sempre flores em casa.
Eunice se orgulha em dizer que é filha da escola pública. Logo após o
término da Escola Normal, ingressou na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) para cursar Licenciatura
em Filosofia, onde participava ativamente da vida política estudantil. O ano de 1966
foi difícil politicamente, devido ao golpe civil-militar que instaurou a ditadura em
1964. Considerava-se “filha” do AI5 (O mais duro de todos os atos institucionais
durante o regime militar, após o golpe de 1964) e do Decreto-Lei no. 477, de 26 de
fevereiro de 1969 (que definia infrações disciplinares praticados por alunos,
funcionários ou empregados de estabelecimentos de ensino público ou particulares).
Casa-se com Franklin Trein, colega de Faculdade e grande companheiro, com
quem se afasta do país por sete anos, para escapar da forte repressão instalada no
nosso país. Eles escolhem a Alemanha. Aprendem a língua e estudam os autores
do Materialismo Histórico como: Hegel, Karl Marx, Engels, entre outros. No
existencialismo francês: Sartre. Foram anos de muitos estudos. Conhecem a
literatura latino-americana e espanhola como Cortázar, García Márquez, Vargas
Llosa e Lorca. Ambos retornam ao Brasil em 1977.
O Mestrado foi realizado no Instituto de Estudos Avançados em Educação da
Fundação Getúlio Vargas (IESAE -FGV) em 1980. Sua Dissertação de Mestrado foi
intitulada “Educação Popular: instrumento de fortalecimento da sociedade civil
3
desafio dos anos 80”. Sua banca de Mestrado foi formada por Zilá Xavier (nova
orientadora, com a morte precoce de Durmeval Trigueiro), Gaudêncio Frigotto e
Moacyr de Góes.
Eunice começa a participar de projetos coletivos inspirada em Gramsci e nos
conceitos de Estado Ampliado, Intelectual Orgânico e Hegemonia, e em seus
ensinamentos sobre “o pessimismo da razão, mas com o otimismo da ação”. Estuda
também Jurgen Habermas, filósofo da Escola de Frankfurt. Os autores brasileiros
deste período que ela destaca são Carlos Rodrigues Brandão, Celso Beisiegel,
Vanilda Paiva, Álvaro Vieira Pinto, Paulo Freire, entre outros.
Podemos distinguir algumas fases da sua produção intelectual. No final dos
anos 1970 e nos anos 1980 participa do Projeto dos Centros Integrados de
Educação Pública CIEPS. Os CIEPS foram criados na década de 1980 por Darcy
Ribeiro, então Secretário de Educação no Rio de Janeiro, no governo Leonel Brizola,
ecuja proposta pedagógica era de uma escola de horário integral pela rede de
ensino pública do Estado. Nesse período, lutava-se por direitos políticos e sociais
que se materializaram na expansão do acesso à saúde, educação, moradia, cultura
e lazer direitos afirmados na Constituição Federal de 1988. Era também o contexto
das Conferências Brasileiras de Educação, em que se reafirmava a importância de
uma educação democrática para o conjunto da população brasileira, também para a
classe trabalhadora.
Como segundo momento de sua produção acadêmica, podemos ressaltar é o
Projeto de Formação Continuada para o ensino de Ciências, na qual ela foi
coordenadora. No projeto, foi utilizada a estratégia pedagógica da ‘Estações
Geradoras’ (floresta, mar, campo, indústria e serviços urbanos). Começando assim,
ao nosso ver, seu envolvimento com a questão ambiental.
Ainda em relação à Educação Ambiental, um importante trabalho foi o Projeto
Managé, o qual partiu inicialmente da situação ambiental da Bacia do Itabapoana.
Participaram desse projeto, vários grupos de trabalho de diferentes áreas de
conhecimento. É importante destacarmos a inserção cada vez mais intensa de
Eunice nas questões relativas ao meio ambiente. O objetivo principal do Projeto
Managé era desenvolver propostas institucionais para melhorar o ambiente e a vida
da população, em consonância com o Plano Diretor da Reserva da Biosfera da Mata
Atlântica.
4
Em relação ao campo da Educação Ambiental, a obra de Eunice é referência
na consolidação de uma perspectiva de investigação à luz do materialismo histórico.
O seu profundo conhecimento da obra de Marx e de autores da tradição marxista
tem fundamental importância para o avanço do debate sobre questões
epistemológicas na educação ambiental, especialmente no desvelamento das
contradições na relação entre ontologia e epistemologia nas pesquisas do campo.
Eunice ressalta que:
Nossa maneira de entender o mundo é de crucial importância porque
é com base nessa compreensão que se derivam tipos conflitantes de
epistemologia em ação no campo científico. [...] Compreende-se,
assim, que distintas noções de mundo estão na base das disputas
teóricas e que não podemos adotar uma postura adequada aos
diferentes tipos de epistemologia que compõem atualmente o campo
de pesquisa crítica em educação ambiental se ignorarmos as
concepções ontológicas que lhes dão suporte.” (TREIN, 2019, p.7,
tradução nossa).
Eunice aporta para a educação ambiental o acúmulo teórico desenvolvido
pelo campo Trabalho-Educação, trazendo à luz importantes elementos para a
compreensão do sentido de criticidade. Com grande precisão conceitual, Eunice
levanta a indagação “A Educação Ambiental Crítica: Crítica De Que?”, título do seu
artigo que acompanha esta edição deste número 43 da Revista Trabalho
Necessário.
Ler a realidade de forma crítica nos ajuda a explicitar as relações
sociais mercantilizadas e alienantes que perpassam a forma
homogênica de organizar a sociedade. Por isso entendemos que
incorporar a dimensão ambiental na educação é expressar o caráter
político, social e histórico que configura a relação que os seres
humanos estabelecem com a natureza mediada pelo trabalho
(TREIN, 2012, p. 307).
A trajetória de Eunice tanto na docência, quanto na pesquisa e extensão, é
marcada por estas duas linhas temáticas: Trabalho-Educação e Educação e Meio
Ambiente, mantendo sempre a centralidade na categoria Trabalho.
Foi no ano de 1992, que passou a trabalhar na Universidade Federal
Fluminense - UFF, sendo aprovada em concurso público para a disciplina Trabalho e
Educação, do Curso de Pedagogia que, depois da revisão curricular, passou a ser
denominada Trabalho, Educação e Produção do Conhecimento. A partir daí,
5
também participa ativamente da implementação do Curso Pedagogia, em convênio
com a Prefeitura de Angra dos Reis, município do Estado do Rio de Janeiro.
De 1995 a 1998, Eunice assumiu a coordenação do Programa de
Pós-Graduação em Educação da UFF. Passa a valorizar os desafios presentes no
interior dos Estados, cujas comunidades são formadas por pequenos agricultores,
pescadores, quilombolas e populações indígenas. Vai incorporar, ao longo do tempo,
a Educação e o Meio Ambiente nas suas aulas e pesquisas não no curso de
Pedagogia, mas também na pós-graduação. Começa a oferecer disciplinas
optativas, eletivas, sobre meio ambiente e educação nas demais licenciaturas.
Também atuou em cursos de formação continuada e extensão, em convênio
com o Sindicato dos Professores, com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e
em parceria com o Núcleo de Educação do Jardim Botânico no Rio de Janeiro,
realizando cursos de extensão para professores e servidores de órgãos públicos,
responsáveis por políticas ambientais. Ressaltando sempre o tripé: Docência,
Pesquisa e Extensão, articulando com os seus componentes administrativo e
político.
Participou ativamente nos Fóruns da Associação Nacional de Pós-Graduação
e Pesquisa em Educação ANPED, expondo trabalhos e participando de mesas
redondas. Ministrou também minicursos encomendados no GT 09 (Trabalho e
Educação) e no GT 22 (Educação Ambiental), apresentando trabalhos
encomendados nos dois GTs. Foi coordenadora do GT 09, no período de 1994
-1996. Além disso, participou da Associação Nacional pela Formação dos
Profissionais da Educação ANFOPE, dos Conselhos Municipais de Educação, nos
Grupos de Trabalhos - GTs da Associação de Docentes da Universidade Federal
Fluminense ADUFF e do Sindicato Nacional dos Docentes dos Instituições de
Ensino Superior – ANDES.
Foi em 2003 que fez seu pós-doutorado na Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ, vinculada ao LIEAS - Laboratório de Investigação em Educação,
Ambiente e Sociedade, com o projeto “A educação ambiental na escola: novos
desafios à educação ambiental crítica”. Eunice procurava com esse projeto,
aprofundar o entendimento sobre educação e relações seres humanos-natureza
,considerando as crises estruturais do capitalismo. Neste período, fez um estudo em
algumas escolas do Município do Rio de Janeiro, tentando compreender como as
escolas têm incluído no currículo as temáticas socioambientais.
6
Em 2007, em Licença Capacitação, desenvolve um novo projeto de pesquisa
intitulado “A contribuição do pensamento crítico para a educação ambiental: a ilusão
do desenvolvimento sob o modo de produção capitalista”. Neste período, participa
do Laboratório de Investigação em Educação, Ambiente e Sociedade
(LIEAS/FE/UFRJ). Este Laboratório discutia a Educação Ambiental Crítica, formando
mestres e doutores para atuarem nas escolas e universidades, em diversos órgãos
públicos, como o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (IBAMA), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICM-Bio), Jardim Botânico e órgãos ambientais.
vinha, muito tempo, participando dos debates epistemológicos, teóricos
e práticos, no campo da Educação Ambiental. Coordenou, por exemplo, junto com a
Prof. Dra. Rosa Feitero Cavalari o “Grupo de Discussão: Pesquisa em Educação
Ambiental e Questões Epistemológicas”. As reuniões bianuais dos Encontros de
Pesquisa em Educação Ambiental EPEA, são importantes espaços de discussão
da Questão Ambiental Crítica e a perspectiva conservadora que tem forte influência
no pensamento empresarial. Faz também a articulação entre o EPEA e com a nova
denominação do GT 22 – Educação Ambiental da ANPED, antes denominado GT-7.
Participa de debates tanto no GT Trabalho e Educação da ANPED, com
questões de cunho mais teórico-conceitual, e também discutindo as questões
socioambientais, sempre baseada no materialismo histórico, dialogando com autores
como Roberto Leher, Virgínia Fontes, Atílio Boron, Aníbal Quijano, Carlos Frederico
Loureiro (entrevistado nesse número temático da TN 43), Philippe Layrargues (com
um artigo também nesse mesmo número temático), dentre outros pesquisadores
que discutem as temáticas ambientais no contexto brasileiro e latino-americano.
Em toda a sua trajetória de pesquisa e docência, Eunice Trein buscou
temáticas relativas ao mundo do trabalho, suas transformações e consequências
socioambientais. Em seus trabalhos, procurou incorporar e discutir em que medida a
educação pública, laica e gratuita, deve ter uma perspectiva unitária e politécnica, e
estar comprometida não com a construção integral do ser humano, mas também
com a construção de uma sociedade emancipada.
Não menos importante é ressaltar sua participação no Núcleo de Estudos,
Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação NEDDATE, criado em 1985
pelos professores Gaudêncio Frigotto e Maria Ciavatta, e vinculado ao Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. Assim como a
7
Revista Trabalho Necessário, na qual Eunice compõem o Conselho Científico, o
Núcleo elege o materialismo histórico como eixo orientador, com o objetivo de
evidenciar as contradições e mediações em uma dada totalidade do real. Ele é
composto por estudantes da graduação, mestrandos e doutorandos, bolsistas de
Iniciação Científica, bolsistas de Apoio Técnico, além de professores da graduação e
da pós-graduação da Educação e de outras unidades da Universidade. Nesse ano
de 2022, o NEDDATE completou 37 anos, sendo o coletivo de pesquisa em
Trabalho-educação mais antigo do Brasil.
O então Boletim NEDDATE acabou se desdobrando, em 2003 , na publicação
on-line da Revista Trabalho Necessário. A Revista é uma publicação quadrimestral
do NEDDATE que publica resultados de pesquisas e estudos sobre o mundo do
trabalho, formação humana e relações históricas entre trabalho e educação. Este
número temático (TN 43), especificamente, é denominado Trabalho, Natureza e
Educação Ambiental Crítica. Contém pesquisas e estudos teóricos e empíricos que
contribuem para a análise da historicidade das relações entre seres humanos e
natureza e para a explicitação dos fundamentos teórico-metodológicos de uma
Educação Ambiental Crítica. Por isso, a nossa mais que merecida homenagem à
querida Eunice.
Destacamos também que nossa homenageada na TN 43 foi e, mesmo como
aposentada, continua filiada ao Sindicato de Docentes, atuando de forma
contundente na defesa do trabalho docente, de pesquisa e extensão e da viabilidade
social e econômica da Universidade Pública. Sua importante trajetória política e
acadêmica é marcada por métodos de investigação do real, apoiada nos
fundamentos do materialismo histórico e dialético, destacando a centralidade do
trabalho como categoria fundamental dos processos de formação humana, e
também categoria fundamental para compreensão das relações sociais,
historicamente datadas e situadas. Eunice entende que a teoria, assim como Marx
apregoa, pode se converter em força material, e por meio da educação, possibilitar a
construção social do conhecimento. Tem sido importante o diálogo com Gaudêncio
Frigotto, Dermeval Saviani e Paolo Nosella, entre outros filósofos da educação
brasileira, que junto com ela, serviram para análises da relação entre educação e o
mundo trabalho, a formação profissional, as questões onto-epistemológicas
contextualizadas ao longo da história da humanidade e, em particular, em tempos de
acirramento dos projetos neoliberais em contraposição dos interesses da classe
8
trabalhadora. As políticas formativas para o Mundo do Trabalho, como bem salientou
Eunice, trazem a dimensão ambiental, parte construtiva de uma abordagem crítica
sobre a atividade humana e sua relação metabólica com a natureza.
Eunice Trein é Professora Titular aposentada da Faculdade de Educação da
Universidade Federal Fluminense- UFF, no Departamento de Sociedade, Educação
e Conhecimento. O seu Memorial, escrito em 2017, para o concurso público de
professora Titular tem como título “Um tributo à escola pública”. Como marca da sua
trajetória de vida e do seu percurso acadêmico, ela expressa um forte compromisso
com a educação pública, especialmente na forma coerente com a qual articula a luta
política com uma rica produção teórica nos campos trabalho-educação, educação
ambiental e formação de professores. .
No Memorial, expressa: “reconstruir uma trajetória é uma tarefa difícil, pois
envolve razão e sentimento, memória e fantasia” (TREIN, 2017, p. 5). Para nós que
fazemos essa singela homenagem na TN 43, também foi uma tarefa difícil, mas
muito prazerosa!. E é isso que Eunice faz ao longo de todo o seu memorial,
desnudando-se e narrando os momentos marcantes da sua rica trajetória de
docência, pesquisa, extensão e de práxis política. Ao longo de sua vida, não tem
esquecido a importância de partilhar o conhecimento. E nunca deixar de continuar
aprendendo. Gostaríamos de agradecer a sua produção em nome do NEDDATE e
da Revista Trabalho Necessário.
Agora como aposentada, entre outras coisas, Eunice passa a dedicar parte de
seu tempo, no Sul do país, à criação de Abelhas Polinizadoras que, “graças ao seu
trabalho de coleta de pólen e néctar, voando de flor em flor, as abelhas polinizam as
flores e promovem a sua reprodução cruzada. Além de permitir a reprodução das
plantas, esse trabalho também resulta na produção de frutos de melhor qualidade e
maior número de semente” (https://abelha.org.br, visto em 03/10/2022).
Muito obrigada por tudo. A Natureza e nós, como parte integrante da
Natureza, agradecemos pelo seu lindo e importante trabalho.
Para finalizar, convidamos todos e todas para a leitura do texto em anexo, de
autoria da Prof.Dra. Eunice Trein, denominado Educação Ambiental Crítica: Crítica
de que? Link: https://revistas.ufrj.br/index.php/rce/article/view/1673
Um grande abraço a Eunice, a Fraklin e aos leitores e leitoras
9
Referências
TREIN, E. S. A Educação Ambiental Crítica: Crítica de que? Revista
Contemporânea de Educação, vol. 7, n. 14, 2012.
TREIN, E. S. Um tributo à escola pública, Memorial, Faculdade de Educação.
Departamento de Sociedade, Educação e Conhecimento, Professora Titular, Niterói,
Rio de Janeiro, Primavera de 2017.
TREIN, E. S. An argument for vindicating a Marxist ontology in environmental
education research. Environmental Education Research, 2019.
10
295
Revista Contemporânea de Educação, vol. 7, n. 14, agosto/dezembro de 2012
A EDUCAÇÃO AMBIENTAL CRÍTICA: CRÍTICA DE QUE?
Eunice Schilling Trei
n
1
Introdução
Este texto aborda a temática da educação ambiental crítica num momento em que as
discussões sobre o tema do desenvolvimento sustentável e da economia verde se fizeram
presentes de maneira intensa tanto na sociedade brasileira quanto na sociedade mundial, em
grande parte, motivada pela realização da Conferência das Nações Unidas RIO+20.
Neste contexto também tivemos uma nova rodada de discussões que ocorreram durante o VIIo
Fórum Brasileiro de Educação Ambiental, realizado em Salvador de 28 a 31 de março de
2012, sobre a proposta de diretrizes curriculares nacionais para a educação ambiental. O texto
elaborado retornou ao Conselho Nacional de Educação para converter-se em orientação
normativa de maneira a reforçar a obrigatoriedade das EA em todas as modalidades de
ensino.
É oportuno, portanto, discutir em que contexto mundial e nacional os diversos
posicionamentos sobre a EA ocorrem e quais são seus desdobramentos no ambiente escolar.
Contemporaneamente, a escola está marcada por uma cultura do desempenho, pela
precariedade do trabalho docente e pela fragilização do compromisso ético-político que
sentido à identidade profissional dos professores que exercem uma educação crítica.
Assim, entendemos que a primeira questão a ser trabalhada é a relação que podemos
estabelecer entre a crise econômica, que marca as duas primeiras décadas do século XXI, a
crise que se abate sobre o mundo do trabalho em escala planetária e a crise ambiental.
Talvez devamos buscar a primeira tentativa de resposta na definição materialista histórica do
conceito de trabalho. Marx, analisando a sociedade europeia do século XIX apontou que, em
todos os tempos, a marca distintiva entre os seres humanos e os demais seres vivos, é dada
pelo trabalho. Ou seja, os homens satisfazem as suas necessidades do corpo e do espírito
através de uma atividade intencional, ou seja, antes de realizarem uma atividade estabelecem
uma intenção e uma finalidade.
1 Professora associada da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Contato:
eunicetrein@ig.com.br
296
Revista Contemporânea de Educação, vol. 7, n. 14, agosto/dezembro de 2012
O trabalho é a transformação material da natureza, do ambiente em que estamos inseridos, de
forma a garantir a nossa sobrevivência individual e de nossa espécie. Nessa medida, também
transformamos as nossas relões sociais e a nós mesmos. Por isso hoje podemos nos
interrogar sobre o que há de comum entre as questões que afetam o mundo do trabalho e as
que afetam o ambiente. Interrogamo-nos também de que forma articulamos historicamente os
processos crescentes de dominação da natureza e em que medida estabelecemos uma estreita
relação entre esses processos e a exploração dos próprios seres humanos, sob o modo
particular de organização material e social da vida que se conformou como o modo de
produção capitalista.
Podemos situar essas questões de forma mais aguda a partir dos anos 70 do século XX quando
a crise econômica, social e ambiental agudizou-se e foi percebida como articulada em todas
estas dimensões o que não nos permitia mais tentar superá-la em apenas um aspecto.
Naquele momento as certezas da modernidade foram postas em dúvida, tanto as que se
referiam à crença no poder da ciência e da técnica que nos permitiriam a vida boa com
que sonharam os iluministas quanto à crença na possibilidade de que seres mais civilizados,
mais educados, tornariam-se melhores. As duas grandes guerras já haviam demonstrado o
quanto o uso do conhecimento cienfico-tecnológico poderia servir a propósitos destrutivos
nas lutas pelo poder econômico e político.
Até aquele momento a dimensão ambiental era pouco avaliada, pois a humanidade ainda
acreditava numa natureza inesgotável, o que nos permitia a sua exploração tanto como objeto
de pesquisa quanto como parte de matérias primas para alimentar um projeto de
desenvolvimento econômico, baseado na produção industrial e no consumo.
Essa forma específica de relação dos seres humanos com a natureza embasou a percepção de
que pertencíamos cada vez menos à natureza, na medida em que construíamos, por assim
dizer, a nossa segunda natureza, social e cultural em uma oposição de sujeitos que dominam o
seu objeto.
Os avanços cienficos e tecnológicos incorporados ao sistema capitalista ampliaram as
possibilidades de mercantilizar progressivamente tanto os bens da natureza quanto o trabalho
humano, subsumindo ambos à necessidade de reprodução do capital, vale dizer, ao lucro.
As possibilidades que os seres humanos desenvolveram ao longo da história de transformar a
natureza, de maneira a satisfazer suas necessidades e assim, ampliar relativamente seu tempo
297
Revista Contemporânea de Educação, vol. 7, n. 14, agosto/dezembro de 2012
de liberdade, propiciou a compreensão de que somos cada vez menos natureza e somos cada
vez mais cultura. Essa visão já foi criticada por Marx em sua obra Manuscritos Econômicos e
Filosóficos de 1844 quando nos diz:
A natureza é o corpo inorgânico do homem. O homem vive da natureza, ou
também, a natureza é o seu corpo, com o qual tem de manter-se em
permanente intercâmbio para não morrer. Afirmar que a vida sica e
espiritual do homem e a natureza são interdependentes significa apenas
que a natureza se inter-relaciona consigo mesma, que o homem é uma
parte da natureza (Marx, 2010, p.84).
Assim, o trabalho como atividade humana transformadora se exerce sobre a matéria e usa
instrumentos para executar essa transformação. Resulta dessa ação a produção de um bem que
tem um valor de uso social. Por isso o trabalho tem o potencial de, agindo no mundo da
necessidade, nos levar ao mundo da liberdade, onde podemos exercitar nossas capacidades
para além da produção de bens necessários apenas à nossa sobrevivência física, para satisfazer
outras necessidades próprias da sociabilidade humana como a arte e a cultura em geral.
Ora, quando o trabalho é reduzido a um bem de troca, a uma mercadoria, bem privado, ele
perde seu caráter autônomo e tudo e todos a que ele se refere são contaminados pela
mercantilização e pela alienação. As relações sociais que os homens estabelecem entre si e a
que estabelecem com a natureza mediada pelo trabalho assumem essa face heterônoma, com
grande poder destrutivo do ambiente e da vida humana.
Vários teóricos filiados à tradição marxista (Altvater 1995/2010; Chesnais, 1996; Leff, 1994)
nos ajudam a fazer a crítica ao modelo de produção capitalista-industrial que, dependente de
forma crescente do uso de energias não renováveis e da utilização do solo e da água de forma
cada vez mais predatória, chegou aos seus limites tanto materiais quanto sociais. Como nos
alerta Altvater (2010), os limites do capitalismo precisam ser denunciados. No entanto, deve
se seguir à denúncia o anúncio, pois os processos sociais, que fazem parte do mundo real, se
movem em alguma direção, o que justifica que continuemos a construir utopias como
horizontes sociais pelos quais valha a pena lutar. Os limites e possibilidades destas vies de
futuro, construídas com as análises cienficas sobre a realidade, serão sempre verificadas no
âmbito da pxis social.
Sabemos que a construção de utopias, que impliquem em profundas transformões sociais, é
influenciada, permanentemente, por forças externas, que buscam ajustar a realidade em
direção à conservação do existente. Nesse sentido, o peso do passado, do conhecido,
298
Revista Contemporânea de Educação, vol. 7, n. 14, agosto/dezembro de 2012
oferece uma segurança, que muitas vezes arrefecem o ímpeto das ações com potencial
transformador.
A história recente tem demonstrado o quanto o capital tem sido capaz de emergir sempre
renovado das crises, o que mostra que seu decnio e o seu fim não são inexoveis e a sua
superação não se da, necessariamente, em direção a um mundo melhor”. Pom, o que
observamos é que os limites do desenvolvimento do capitalismo se agudizaram para além da
contradição fundamental entre capital e trabalho. A crise ambiental interdita caminhos para o
desenvolvimento econômico capitalista de forma ainda não vivenciada, pois hoje atinge
dimensões planetárias. A chamada crise do petróleo” dos anos 70 de século passado ronda o
presente. O encarecimento do transporte de mercadorias ao redor do globo, o pado de
produção e consumo baseado no uso de combusveis fósseis estão apontando para o
esgotamento destes recursos. Atualmente o capital transfere para a sociedade pesados custos
para por em marcha novas pesquisas e desenvolver novas tecnologias que alterem a matriz
energética necessária à manutenção de um pado societário baseado na expansão do
consumo, sempre desigual e predatório.
A expansão do modo de produção capitalista, como aponta Mézáros (2007), tem seus limites
cada vez mais concretizados e, expressam-se no grau crescente de pauperização da infância,
na concentração de renda, no desemprego estrutural, nos conflitos bélicos e a decorrente
migração de populações. Esses, que parecem fenômenos exclusivos dos chamados países
periféricos, hoje afetam também os Estados Unidos e os países europeus, como ficou evidente
durante a crise econômica e social que se espalhou por todas as sociedades a partir de 2007.
Mézáros nos fala do fracasso de solução para todos esses problemas pelo desenvolvimento”
e a modernização que os meios cienficos e tecnológicos, pretensamente poderiam
oferecer. Ele nos lembra, por exemplo, que:
A “revolução verde” na agricultura deveria ter resolvido de uma vez por
todas o problema mundial da fome e da desnutrição. Ao contrário, criou
corporações monstro, como a Monsanto, que estabeleceram de tal forma
seu poder em todo o mundo, que será necessária uma grande ação popular
voltada às raízes do problema para erradicá-lo (Mézáros, 2007, p. 189).
Na esteira da discussão sobre a revolução verde”, que se instaurou na segunda metade do
século XX, temos agora a revolução verde industrial ou simplesmente a “economia verde,
um dos eixos centrais da Conferência RIO+20.
Uma questão a assinalar é a disputa entorno do termo desenvolvimento. Loureiro (2012)
retoma o termo desenvolvimento sustentável e o examina de forma crítica explicitando a
299
Revista Contemporânea de Educação, vol. 7, n. 14, agosto/dezembro de 2012
contradição entre os dois conceitos, desenvolvimento e sustentabilidade. Ele aponta que a
promessa integradora de desenvolvimento, na medida em que se baseia na perspectiva de um
crescente industrialismo voltado para o consumo, tendo como modelo, o capitalismo urbano-
industrial praticado nos EUA, intensivo em uso de energia e matérias primas, não pode ser
expansível para toda a humanidade, sob pena do pido esgotamento das fontes de energia e
recursos materiais. Nessa medida, fica evidente a insustentabilidade de uma sociedade
marcada pela desigualdade social e que não respeita os ciclos da natureza.
Nessa mesma direção, Mézáros busca qualificar o conceito de desenvolvimento sustentável
em outros termos quando afirma:
... Sustentabilidade significa estar realmente no controle dos processos
sociais, econômicos e culturais vitais, pelos quais os seres humanos não
apenas sobrevivem, mas também encontram realização, de acordo com os
desígnios que estabeleceram para si mesmos, ao invés de ficarem à mercê de
foas naturais imprevisíveis e determinações socioeconômicas quase naturais
(Mézáros, 2007, p.190).
O autor reitera suas preocupões quanto às bases materiais e sociais em que se assenta o
atual modelo socioetário de conflito entre capital e trabalho. Ele nos diz:
Mas a maneira significativamente economizadora de regular nosso
processo de reprodução sociometabólica, com base no controle
interno/autodirigido, como oposto ao controle externo/de cima para baixo,
que prevaleceu hoje, é radicalmente incompatível com a desigualdade e a
conflitualidade/adversidade
estruturais, . (Mézáros, 2007, p.191).
O que procuramos expressar até aqui é o contexto de crise socioambiental em que as práticas
educativas se realizam ao considerar o compromisso social de que se revestem, no sentido de
problematizar as relões que temos estabelecido historicamente com a natureza. Como temos
construído conhecimentos sobre a realidade, que leituras de mundo temos feito e em que
medida elas se constituem em leituras crítico-reprodutoras ou se convertem em crítico-
transformadoras?
A educação ambiental crítica e a superação da alienação do trabalho
O período histórico da Modernidade europeia impulsionou a consolidação do campo
cienfico e tecnológico ao delimitar o conhecimento produzido pela razão humana e
distingui-lo da revelação oriunda da . A confiança ilimitada na razão humana permitiu o
desenvolvimento das ciências da natureza e das ciências humanas onde o homem passou a
reinar todo-poderoso sobre uma natureza-objeto dessacralizada-antropocentrismo”
300
Revista Contemporânea de Educação, vol. 7, n. 14, agosto/dezembro de 2012
(Haesbaert; Porto-Gonçalves, 2006, p. 107). O rigor no uso do método cienfico para estudar
cada vez mais profundamente a natureza, dominar seu funcionamento e estabelecer suas leis,
com cater de conhecimento universalmente lido, se ampliou também em direção aos
estudos da sociedade e da mesma forma buscou compreender de forma cientifica e,
pretensamente neutra, as relões sociais.
A apropriação privada dos meios de produção que se generalizava no culo XVIII, com a
expansão do capitalismo comercial e industrial aliada ao desenvolvimento cienfico e
tecnológico, consolidou o donio da natureza em todas as regiões do planeta e naturalizou”
a dominação dos seres humanos num processo crescente de mercantilização da natureza na
forma de matérias primas e dos homens na forma do trabalho assalariado.
O materialismo histórico, tal como formulado por Marx e Engels, no século XIX, contém
elementos críticos a essas relões sociais e históricas entre os seres humanos e a natureza.
Marx (1988) no livro IIIº do Capital mostrou como o modo de produção capitalista gerou
relões destrutivas com consequências para os seres humanos e o meio ambiente onde
aqueles exercem seu trabalho de forma alienada. Suas palavras ganham grande sentido de
realidade no Brasil do século XXI quando o Estado e o Capital se unem em torno de um
projeto de desenvolvimento e modernização cada vez mais predador de natureza e da classe
trabalhadora.
Grande indústria e grande agricultura, exploradas industrialmente, atuam
conjuntamente. Se, originalmente, elas se diferenciam pelo fato de que a
primeira devasta e arrna mais a foa de trabalho e por isso a foa natural do
homem, e a última, mais diretamente a foa natural da terra, mais tarde, ao
longo do desenvolvimento, ambas se dão as mãos, ao passo que o sistema
industrial na zona rural também extenua os trabalhadores e, por sua vez, a
indústria e o comércio proporcionam à agricultura os meios para o
esgotamento da terra (Marx, 1988, p. 250).
Se vivemos em condições de exploração e alienação tanto da natureza quanto dos seres
humanos, como forma necessária de reprodução do capital, se faz necessário para a superação
destas uma ação consistente dos sujeitos. Isso implica em uma mudança radical, em uma nova
forma de ser no mundo, reestruturando o metabolismo da reprodução material e social da
vida. Por isso não é suficiente que a crítica se faça apenas enquanto negação do existente, mas
é importante que ele se fa também como anuncio de uma outra direção.
Essa tarefa histórica, como nos adverte Mézáros (2007), pode nos conduzir a uma atitude
meramente reformista, quando se propugna a realização de mudanças pontuais onde se omite
que as reformas, sob as condições dadas do modo de produção capitalista são irrealizáveis. A
301
Revista Contemporânea de Educação, vol. 7, n. 14, agosto/dezembro de 2012
postura reformista alimenta as atitudes pragmáticas tanto pticas quanto teóricas da validade
atemporal dos conhecimentos cienfico-tecnológicos a serviço do capital em uma forma de
organização social naturalizada, o reconhecida como criação histórica e, portanto,
superável.
No marco dessas reflexões nos parecem inseparáveis o trabalho e a educação. Se é necessário
que se transforme a reprodução material e social da vida de forma radical e não apenas em
suas manifestões isoladas, também as vies de mundo que dão sustentação política e
ideológica, cienfica e tecnológica ao sistema que mercantiliza todas as dimensões da vida
deve ser transformado. A educação como espaço concreto de ação-reflexão, com potencial
para a formação integral dos sujeitos sociais, desempenha papel fundamental.
Segundo Mézáros (2007) para o desenvolvimento de uma consciência transformada
...o papel da educação é soberano, tanto para a elaboração de estratégias
apropriadas e adequadas para mudar as condições objetivas de
reprodução, como para a automudança consciente dos indivíduos
chamados a concretizar a criação de uma ordem social metabólica
radicalmente diferente. É isso que se quer dizer com a concebida
“sociedade de produtores livremente associados. Portanto, não é
surpreendente que na concepção marxista a efetiva transcendência da
auto-alienação do trabalho seja concretizada como uma tarefa inevitavelmente
educacional (záros, 2007, p. 217).
Em Carvalho (1995, 1997, 2004) e Tozoni-Reis (2004) encontramos importantes
questionamentos a respeito do papel da educação e da educação ambiental crítica
particularmente. Carvalho (2004) procura explicar os motivos que nos levam a adjetivar a
educação de “ambiental, porque não nos satisfazemos apenas com o substantivo educação.
Toda a educação já não será ambiental?
Se pensarmos que o processo formativo sempre se relaciona com o mundo do trabalho, então
a educação reflete a interação entre os seres humanos e a natureza.
Com a crescente complexificação do mundo do trabalho e das relões sociais ampliou-se a
divisão social do trabalho e consequentemente também a educação especializou-se, em certa
medida. Assim, a compreensão de que tudo o que os seres humanos produzem, para satisfazer
suas necessidades do corpo e do espírito, é mediado pelo trabalho, portanto pela relação com
a natureza, foi se tornando menos visível. Este processo culmina no período de
desenvolvimento do capitalismo urbano-industrial quando a separação entre os seres humanos
e a terra se torna preponderante.
Marx sintetiza este processo quando diz:
302
Revista Contemporânea de Educação, vol. 7, n. 14, agosto/dezembro de 2012
Por um lado, a grande propriedade rural reduz a população agrícola a um
mínimo em decréscimo constante e lhe contrapõe uma populão industrial
em constante crescimento, amontoada em grandes cidades: gera, com isso,
condições que provocam uma insanável ruptura no contexto do
metabolismo social, prescrito pelas leis naturais da vida, em decorrência da
qual se desperdiça a foa da terra e esse desperdício é levado pelo
contrário muito além das fronteiras do próprio país (Liebig) (Marx, 1988, p.
250).
Essa ruptura do metabolismo social que ocorre no trabalho humano se reflete na ciência
moderna, na produção do conhecimento com finalidades cada vez mais pragmáticas e de
subsunção da natureza aos interesses do capital industrial.
Portanto nos parece pertinente a advertência de Carvalho (2004) quando ela se interroga sobre
o porque de adjetivarmos a educação. Que concepções teóricas, concepções de mundo e
projetos pedagógicos estão subjacentes a variadas vertentes da educação ambiental crítica? Ao
defender o atributo ambiental à educação ela esclarece que:
Trata-se, assim, de destacar uma dimensão, ênfase ou qualidade que,
embora possa ser pertinente aos princípios gerais da educação, permanecia
subsumida, diluída, invisibilizada, ou mesmo negada por outras narrativas
ou versões predominantes (Carvalho, 2004, p.16).
Segundo a autora a educação que se praticou nos últimos séculos se apoiou numa concepção
de homem essencialista, genérica, sonegando os diferentes saberes produzidos em diversas
culturas, diferentes dimensões singulares de exigências humanas” que se está buscando
resgatar na educação ambiental. Nesta medida ela reivindica uma dimensão ético-política
transformadora para as pticas educativas de maneira a influir na forma como as atuais e
futuras gerações se relacionam com a natureza e com os demais sujeitos sociais.
em Tozoni-Reis (2004) a defesa de uma educação ambiental crítica se situa no próprio
debate do campo da educação. Ela discute o conceito de educação para evidenciar que,
enquanto prática social construída historicamente, a educação é espaço de disputa entre
diferentes concepções de mundo, de homem e de sociedade. Para a autora:
... a educação e a educação ambiental instrumentalizam o sujeito para a
prática social, inclusive em sua dimensão ambiental; instrumentalização que
poderá ser tão democrática quanto for democrática a sociedade que a
constrói e que é construída pelas relações sociais. O princípio educativo
não é a ideologia da harmonia, nem o fetiche do conhecimento cienfico,
mas as efetivas necessidades hisrico-concretas da sociedade, expressas pela
atividade essencial, o trabalho compreendido em sua amplitude
filosófica tomando como síntese da produção da vida individual e coletiva
(Tozoni-Reis, 2004, p. 145).
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No momento em que as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Ambiental se
instituem como política pública e que a EA deve ocorrer em todos os níveis de ensino, novos
desafios estão postos para os educadores ambientais críticos.
Se, como nos ensinou Carvalho (1995), durante sua participação no III Fórum de Educão
Ambiental, houve no Brasil, motivado pela ECO-92, uma ampliação significativa das
discussões sobre meio ambiente, tema que foi sendo integrado às bandeiras de luta dos
movimentos populares, “essa ecologização dos movimentos sociais representou igualmente
uma maior politização dos movimentos ecológicos (Carvalho, 1995, p.61).
A autora também afirma a importância que assumiu a compreensão de que as questões sociais
e ambientais fossem abordadas sob o primado da política”. Sua argumentação enfatiza o
“ambiental como elemento estragico para uma educação que dialoga com os movimentos
sociais empenhados no processo de democratização da sociedade em bases ético-políticas e
socioambientais sustentáveis.
Já Tozoni-Reis (2004), ao centrar sua abordagem na educação para pensar nas transformões
necessárias aos sujeitos que atuam material e socialmente no ambiente, prioriza as questões
relativas à educação formal dando ênfase a seus aspectos específicos.
Ambas destacam a disputa de projetos societários em que os movimentos sociais e a escola
estão envolvidos. Essa nos parece ser a questão central a qual devemos nos dedicar se
pensamos em qualificar o que estamos chamando de educação ambiental crítica. No momento
da formalização das DCNs para a educação ambiental que deve ser incluída em todos os
níveis e modalidades de ensino, nos perguntamos: quais são os projetos sociais em disputa?
No Brasil, tardiamente a educação ambiental se incorporou ao campo educativo. Por ter
sua origem no campo ambiental e no âmbito dos movimentos sociais a articulação com o
campo educacional se deu de forma gradual. Isso aparece nas pesquisas que transitam de um
momento em que a ênfase se na apresentação mais descritiva de pticas de atividades
educativas, realizadas em espos formais e informais, voltados para a solução de problemas
mais imediatos, em direção ao aprofundamento dos aspectos teórico-metodológicos, que
dêem suporte a essas práticas na busca de ações de mais longo prazo.
Ainda assim, nos parece que, ao afirmar o ambiental, o campo da EA assume uma perspectiva
limitada. É como se a EA olhasse a educação desde um outro campo. Em consequência, ela
adquire um cater prescritivo, enfatizando tarefas que entende que deverão ser cumpridas
pela escola e pelos professores. Dessa forma, a EA parece desconsiderar o acervo de
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conhecimentos produzidos e sistematizados pela área da educação. Em outras palavras,
aqui cabem alguns questionamentos, tais como:
- Será que podemos pleitear políticas de educação ambiental em todos os níveis de
ensino sem fazer menção ao histórico das políticas públicas para a educação que tem
configurado o sistema educacional brasileiro?
- Quando nas pesquisas, debates, grupos de discussão conclui-se que os professores
não estão preparados para exercer uma educação ambiental crítica, estamos
considerando o acumulo de formulações teóricas do campo educacional sobre a
formação de professores?
- Quando afirmamos o caráter interdisciplinar da EA estamos percorrendo as
diferentes contribuições que os estudiosos do currículo e da didática elaboram e
continuam elaborando e que são debatidos décadas na ANPEd, no ENDIPE e
outros fóruns acadêmicos?
- Em que medida os aportes das teorias da aprendizagem e da história das disciplinas
vem sendo exploradas pela pesquisa em EA?
Com esses exemplos queremos apenas sinalizar que, talvez muito do que constatamos como
dificuldades na implantação, ou melhor dizendo, no enraizamento da questão ambiental no
campo educacional, se deva a esse paralelismo que estabelecemos onde, entendemos, todos
perdem. Não nos apropriamos adequadamente da vasta produção consolidada no campo
educacional e, na outra direção, não fertilizamos o campo educacional com os desafios que o
campo ambiental enseja na abordagem crítica da relação homem-natureza.
Em nossas reflexões apontamos para a necessária articulação entre o ambiental e o
educacional, sob pena de vivermos a contradição de ser prescritivos para aquilo que o
conhecemos a fundo: a educação e, mais especificamente, a escola. Por outro lado, se
almejamos que a produção material e social da vida se em outras bases
ontoepistemológicas não podemos prescindir de uma educação ambiental crítica que
contribua para transformar as relões sociais de produção em direção a um outro projeto
civilizatório.
Assim, concordamos com Tozoni-Reis (2007) quando afirma:
A formação de sujeitos ambientalmente responsáveis, comprometidos com a
construção de sociedades sustentáveis, fundamento filosófico-político e
teórico-metodológico da educação ambiental crítica, é uma ão política
intencional e que, portanto, necessita de sistematização pedagica e
metodológica. (Tozoni-Reis, 2007, p. 217)
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Por fim, pensamos que não podemos esquecer como nos advertiu Marx (1999) que os
homens realizam suas atividades sob determinadas condições sociais e históricas que não o
de sua livre escolha. Hoje, quando olhamos para o trabalho docente, mesmo aquele realizado
por educadores que se pretendem críticos da sociedade em que vivemos, tão desigual e
predadora dos próprios seres humanos e da natureza, esbarramos nas limitões a uma ptica
transformadora.
Apontaremos apenas duas questões que nos parecem exemplares dos problemas a serem
enfrentados pelos educadores.
A primeira diz respeito a como vamos incluir no currículo a temática da educação ambiental e
a segunda é o tema da avaliação. Ambas são espos de possibilidade, mas também de
cerceamento, de controle do fazer pedagógico.
Vamos nos ater a uma primeira aproximação ao termo currículo que encontramos em Lopes e
Macedo (2011), quando as autoras apontam para a dificuldade em conceituar o termo e como
historicamente ele assumiu diferentes definições. Para o nosso propósito, no entanto, é
suficiente que usemos suas palavras para descortinar a complexidade de algo que para muitos
parece ser simples. Dizem elas:
...currículo tem significado, entre outros, a grade curricular com
disciplinas/atividades e cargas horárias, o conjunto de ementas e os
programas das disciplinas/atividades, os planos de ensino dos professores, as
experiências propostas e vividas pelos alunos. Há, certamente, um aspecto
comum a tudo isso que tem sido chamado currículo: a ideia de organização,
prévia ou não, de experiências/situações de aprendizagem realizada por
docentes/redes de ensino de forma a levar a cabo um processo
educativo (Lopes, Macedo, 2011, p.19).
As autoras ainda nos advertem que mesmo esta exaustiva definição” não conta de tantas
outras questões.
Contentemo-nos, no momento, em esmiuçar esta definição proviria, ou seja, quantas
questões os educadores ambientais críticos devem se colocar em sua ptica. Como enfrentar
a disciplinaridade da grade curricular, como compatibilizá-la com tempos, vivências,
atividades e reflexões atravessadas pelo mundo do trabalho humano em seu permanente
intercâmbio com a natureza? O que, como educadores ambientais, queremos ajudar a
construir na escola e fora dela, inseridos em um espaço de ptica social que não é neutro?
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Que, historicamente, é constituído por disputas de interesses de toda a ordem e que projeta a
formação humana ancorada em uma visão hegemônica de mundo?
Retomamos agora a questão dos limites que estão dados na ptica educativa que ocorre nos
sistemas formais de ensino. Vemos, cada vez mais, a cultura do desempenho, instalar-se no
ambiente escolar através de pticas de gestão e avaliação hauridas do mundo empresarial e
materializadas em técnicas e procedimentos, pretensamente neutros, que afetam toda a prática
na escola. A busca de resultados mensuveis, como nos adverte Ball (2005) conduz o
trabalho dos professores ao que ele identifica como pticas inautênticas” onde as relões
que os docentes estabelecem com o seu próprio trabalho, com os seus alunos e com os seus
colegas no cotidiano da escola. Instala-se a alienação na medida em que
...escolhemos e julgamos nossas ações, e elas são julgadas por outros,
com base na contribuição que fazem para o desempenho organizacional,
apresentado em termos de resultados mensuráveis (Ball, 2005, p.554).
O autor apresenta questões que nos parecem hoje entraves à ptica de uma educação
ambiental crítica, onde temas como as relões interpessoais, a transversalidade dos temas, a
interdisciplinidade, a superação da ruptura das relões homem-natureza parecem subjugadas
a processos onde
Existem pressões sobre os indivíduos, formalizados por meio de avaliações,
revisões anuais e bancos de dados, para que deem sua contribuição à
performatividade da unidade (Ball, 2005, p.556).
Numa outra dimensão, os processos avaliativos são legitimados pelo discurso neoliberal como
expressões de uma necessária prestação de contas à sociedade - uma perspectiva onde os
professores são muitas vezes responsabilizados pelo fracasso de seus alunos, numa tentativa
de singularização do espo escolar - ou seja, desatrelada de sua inserção cio-histórica mais
ampla, aquela da produção material e social da vida (Afonso, Esteban, 2010).
Ao mencionar, brevemente, problemas que dizem respeito ao currículo e à avaliação
queremos apenas apontar exemplos de questões que ainda não foram suficientemente
tematizadas pelos educadores ambientais. Pensamos que, ou será de dentro do campo
educacional que emergirá um vigoroso campo da EA, ou alimentaremos a perplexidade de
que as políticas públicas para a EA continuem sem saber qual é o seu verdadeiro lócus de
pertencimento.
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Nesse texto buscamos articular nossos questionamentos sobre o mundo do trabalho e a
educação afirmando o papel mediador e formador que ela desempenha na sociedade. Ler a
realidade de forma crítica nos ajuda a explicitar as relões sociais mercantilizadas e
alienantes que perpassam a forma homogênica de organizar a sociedade. Por isso entendemos
que incorporar a dimensão ambiental na educação é expressar o cater político, social e
histórico que configura a relação que os seres humanos estabelecem com a natureza mediada
pelo trabalho.
Para concluir, retornamos à pergunta inicial: a educação ambiental crítica é crítica de que?
Para além de invocarmos as diversas epistemologias, que embasam diferentes vertentes do
que se convencionou chamar de campo da educação ambiental crítica, se faz necessário
compreender, como diz Layrargues (2009), os diferentes efeitos sobre a reprodução social que
cada uma dessas vertentes produz. Pois, é parte do compromisso ético-político do pensamento
crítico explicitar que a produção do conhecimento, enquanto produção social, não se separa de
sua dimensão ideológica e de seu compromisso de classe.
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Submissão: Setembro de 2012
Publicação: Dezembro de 2012
V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
ECOLOGIA POLÍTICA DA SOCIEDADE DE CONSUMO E A ‘PRODUÇÃO
DESTRUTIVA NO LIMIAR DO COLAPSO AMBIENTAL1
Philippe Pomier Layrargues2
Resumo
Abordamos o perfil da Sociedade de Consumo pela perspectiva da Ecologia Política, para, a partir da análise
histórica da constituição desse modelo societário, (a) construir um entendimento de quais foram as
transformações que passaram a defini-la, (b) compreender a influência dos Anos Dourados do Capitalismo; e a
partir daí, (c) pensar a questão das necessidades ante o padrão de produção e consumo sustentável. Efetuar tal
caracterização ganha relevo no contexto da disputa ideológica da constituição do imaginário sobre qual
comportamento de consumo adotar na sociedade orientada pelo American Way of Life.
Palavras-chave: Ecologia Política; Educação Ambiental; Sociedade de Consumo; Anos Dourados do
Capitalismo; Produção-Destrutiva
ECOLOGÍA POLÍTICA DE LA SOCIEDAD DE CONSUMO Y LA 'PRODUCCIÓN DESTRUCTIVA' EN EL
UMBRAL DEL COLAPSO AMBIENTAL
Resumen
Abordamos el perfil de la Sociedad de Consumo desde la perspectiva de la Ecología Política, con el fin de, a
partir del análisis histórico de la constitución de este modelo de sociedad, (a) construir una comprensión de
cuáles fueron las transformaciones que llegaron a definirla, (b) comprender la influencia de los años dorados del
capitalismo; ya partir de ahí, (c) pensar el tema de las necesidades a la luz del patrón de producción y consumo
sostenible. Llevar a cabo tal caracterización cobra importancia en el contexto de la disputa ideológica de la
constitución del imaginario acerca de qué comportamiento de consumo adoptar en la sociedad guiada por el
American Way of Life.
Palabras clave: Ecología Política; Educación Ambiental; Sociedad de Consumo; Años Dorados del Capitalismo;
Producción-Destructiva
POLITICAL ECOLOGY OF THE CONSUMER SOCIETY AND 'DESTRUCTIVE PRODUCTION' ON THE
THRESHOLD OF ENVIRONMENTAL COLLAPS
Abstract
We approach the profile of the Consumer Society from the perspective of Political Ecology, in order to, from the
historical analysis of the constitution of this societal model, (a) build an understanding of what were the
transformations that came to define it, (b) understand the influence of the Golden Years of Capitalism; and from
there, (c) thinking about the issue of needs in light of the pattern of sustainable production and consumption.
Carrying out such characterization gains importance in the context of the ideological dispute of the constitution of
the imaginary about which consumer behavior to adopt in the society guided by the American Way of Life.
Keywords: Political Ecology; Environmental Education; Consumer Society; Golden Years of Capitalism;
Destructive-Production
2Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas. Professor Associado do
Programa de Graduação em Gestão Ambiental e do Programa de Pós-Graduação em Gestão e
Regulação de Recursos Hídricos da Universidade de Brasília. Pesquisador do Laboratório de
Investigações em Educação, Ambiente e Sociedade da UFRJ.
E-mail: philippe.layrargues@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5998489922535561.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7684-7334.
1Artigo recebido em 25/05/2022. Primeira Avaliação em 17/07/2022. Segunda Avaliação em
21/07/2022. Aprovado em 02/08/2022. Publicado em 10/11/2022.
DOI:https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.54650.
1
“Eu uso o necessário
Somente o necessário
O extraordinário é demais
Eu digo necessário
Somente o necessário
Por isso é que essa vida eu vivo em paz”
Trazer a Sociedade de Consumo para o campo da Educação Ambiental?
Assim como o estímulo à Coleta Seletiva e Reciclagem dos Resíduos Sólidos,
as atividades de Educação Ambiental voltadas à promoção do Consumo Sustentável
também são bastante frequentes. Esses são dois temas interligados e recorrentes
nas práticas educadoras nas escolas, empresas e mídia. Contudo, não é comum
encontrar ações de Educação Ambiental, que mesmo que abordem o Consumo
Sustentável e a Coleta Seletiva, problematizem a Sociedade de Consumo. É neste
contraditório contexto de incompletude temática, que examinaremos esta mediação
pedagógica que incentiva comportamentos de consumo ecologicamente orientados,
mas que não analisa a própria sociedade que se caracteriza como ‘de consumo’.
Partimos do pressuposto de que existem dois tipos de abordagens da
Educação Ambiental no âmbito do Consumo Sustentável: um de natureza moral,
que promove novos hábitos de consumo, como mecanismo capaz de minimizar os
excessos do ‘consumismo’ ‘descontrolado’ e ‘compulsivo’, tacitamente
compreendido como o problema a resolver3; e outro, de natureza política, que
adverte à insuficiência do estímulo ao Consumo Sustentável como objetivo único da
mediação pedagógica, denunciando haver ali um processo de manipulação
ideológica para fins de reprodução da ordem socioeconômica capitalista, camuflado
por uma pretensa intencionalidade de mudar a realidade socioambiental. Enquanto
uns entendem que a Educação Ambiental é um caminho para difundir o hábito do
‘consumo verde’, outros entendem que é preciso problematizar a premissa de que o
caminho da sustentabilidade deva passar necessariamente pelo Mercado.
3Como exemplo, citamos Silva e Flain (2017), que clamam por campanhas publicitárias com o
objetivo de levar ao consumidor informações que propiciem uma postura mais sensata do cidadão no
mercado de consumo. Observa-se a repetição do discurso da responsabilização individual para
que o sujeito ecológico assuma a responsabilidade para moderar o seu consumo exagerado;
ignorando-se a determinante e incessante influência da esfera da produção induzindo exatamente o
padrão de consumo que se pretende alterar.
2
A aceitação tácita da premissa de não haver necessidade de debater
pedagogicamente a Sociedade de Consumo no contexto da Educação Ambiental e o
Consumo Sustentável, acarreta em profundas implicações políticas, porque o
recorrente estímulo ao Consumo Sustentável de forma acrítica contribui com a
naturalização da Sociedade de Consumo, reproduzindo no imaginário coletivo uma
idealização que a torna inquestionável e não suscetível a sofrer mudanças
estruturais. No fluxo da naturalização desse imaginário, molda-se um argumento que
aponta os ‘padrões de produção e consumo’ tidos como ‘insustentáveis’, como os
elementos que precisam ser modificados em busca da sustentabilidade, ao mesmo
tempo em que se mantém a ordem capitalista inalterada; porque numa Sociedade
de Consumo, tudo pode ser transformado, exceto o Consumo, jamais refreado; no
máximo, adaptado.
Esta premissa pertence ao currículo oculto da sociabilidade capitalista
presente no campo da Educação Ambiental, transmissora de um ethos societário
que não compromete a essência da Sociedade de Consumo; ao contrário, torna o
sujeito ecológico funcional à ordem capitalista, consolidando o Ambientalismo de
Mercado no lugar de hegemonia nas relações de poder no campo ambiental. Esse
currículo oculto se encarrega da difusão subliminar de duas idealizações
combinadas em torno do exercício do Poder: o papel determinante da demanda do
consumidor para influenciar um modo de produção comprometido com a
sustentabilidade; e a importância da responsabilização individual em que cada um
faz obedientemente a sua parte mudando seus comportamentos pessoais, atitude
que somada na humanidade, faria toda diferença para resultar na transformação da
economia em uma Economia Verde. Nessa perspectiva, a Educação para o
Consumo Sustentável não passaria de uma cartilha orientadora para ensinar a cada
um fazer a escolha certa nas compras.
Mas o que caracteriza esse padrão insustentável de produção e consumo?
Como distinguir objetivamente o padrão de produção e consumo insustentável
daquele que carrega a promessa de sustentabilidade? Sobre isso, a Política
Nacional de Resíduos Sólidos (BRASIL, 2010), diz que é sustentável a produção e
consumo de bens e serviços de forma a atender as necessidades das atuais
gerações e permitir melhores condições de vida, sem comprometer a qualidade
ambiental e o atendimento das necessidades das gerações futuras”.
3
Se fala sobre ‘Necessidades’ que precisam ser atendidas, mas não se
qualifica o que é essa categoria analítica absolutamente central e estratégica para
definir um padrão de produção e consumo. De acordo com o dicionário Houaiss da
língua portuguesa, o ‘necessário’ denota a qualidade daquilo que seja
absolutamente indispensável; são as exigências fundamentais capazes de satisfazer
rotineiramente as condições materiais básicas da vida; deixando de fora do
cotidiano, a satisfação ilimitada e insaciável dos desejos e prazeres hedônicos, estes
da ordem do extraordinário. A definição aponta para a existência de um limite, não
necessariamente rígido e inflexível, mas que demarca uma linha divisória da
‘necessidade’, circunscrita pelo parâmetro do que seja ‘essencial’ e ‘indispensável’,
conotação diferente daquilo que seja ‘supérfluo’ e ‘exagerado’. Nem sempre aquilo
que queremos é o que precisamos. Assim, nessa fluida fronteira entre o necessário
e o desnecessário, qualquer coisa que além do básico e torne o que seja
dispensável ou extraordinário como rotina cotidiana, excede o sentido original de
‘Necessidade’.
Em tese, um padrão de produção e consumo sustentável é aquele alinhado
com a justiça geracional. Mas quais são essas necessidades que precisam ser
atendidas hoje e amanhã? As necessidades humanas sempre foram as mesmas ou
sofreram mudanças que a transfiguraram ao longo do tempo? Quais critérios
caracterizam esse modelo de produção e consumo marcado pela justiça geracional?
Sabendo definir o que sejam tais necessidades que precisam ser atendidas tanto
agora como no futuro, é possível fundar esse outro modelo que se pretende
sustentável sem alterar a Sociedade de Consumo? Ou ao contrário, é preciso
superá-la para efetivamente se fundar um novo padrão de produção e consumo de
fato sustentável?
Mas na prática, um acordo implícito na ordem do discurso ambiental
acerca da ‘produção e consumo sustentáveis’, que a questão a levantar seja a busca
abstrata dos ‘padrões sustentáveis’, partindo do pressuposto de que não é preciso
definir o que são essas necessidades que nos referimos quando falamos delas
precisarem ser atendidas no consumo, hoje e amanhã.
É neste debate que pretendemos agregar um exame conjuntural da
Sociedade de Consumo, especialmente agora, no limiar do Colapso Ambiental;
reflexão que faremos pela ótica da Educação Ambiental Crítica e da Ecologia
4
Política (LOUREIRO; LAYRARGUES, 2013), a fim de subsidiar novas abordagens
da Educação para o Consumo Sustentável.
Partimos da premissa de Foladori (2001) onde a historicidade é central para
se compreender as origens da realidade socioambiental e como ela foi socialmente
construída ao longo do tempo. A crise ambiental não brotou espontaneamente de
um vazio estéril sem que tenha sido gestada por determinações bem específicas:
A análise da crise ambiental contemporânea deve partir das próprias
contradições no interior da sociedade humana, contradições que não
são biológicas, mas sociais, que não se baseiam na evolução
genética, mas na história econômica, que não têm raízes nas
contradições ecológicas em geral, mas naquelas que se estabelecem
entre classes e setores sociais em particular (FOLADORI, 2001, p.
45, grifo nosso).
É preciso compreender como a sociedade moderna chegou a esse padrão
insustentável de produção e consumo, que não por acaso, também demarca o
tempo histórico do Colapso Ambiental, para se obter uma real medida da
envergadura daquilo que é preciso mudar. Mas é preciso também entender como é
contada a história da degradação ambiental global e a proposição de soluções para
mitigá-la. Será mesmo que fazer a ‘escolha certa’ nas compras é o caminho para
a sustentabilidade?
Os Anos Dourados do Capitalismo e a criação da Sociedade de Consumo
De acordo com Glyn et al (1988), Trintin e Rossoni (1999), Mattos (2005),
Baruco (2005), Palmieri Júnior (2012), entre outros, logo após o término da Segunda
Guerra Mundial, ao longo de apenas duas décadas, 1950 e 1960, ocorreu uma
profunda transformação na estrutura produtiva e no estilo de vida dos países
capitalistas - especialmente nos Estados Unidos, que como informa Arrighi (1996),
foi o país que ao suplantar o imperialismo britânico, inaugurou o quarto ciclo
histórico de acumulação do capital, após os ciclos genovês, holandês e britânico -,
como resultado do esforço político para recuperar a economia devastada pela
guerra. Foi um período de paz que se testemunhou impressionantes recordes de
crescimento econômico e de altas taxas de empregabilidade. Esse acontecimento
virtuoso envolveu significativas mudanças de caráter tecnológico, político,
5
econômico, social e cultural, que resultaram num período sem precedentes de
prosperidade econômica e abundância material entre os países capitalistas.
Essa transformação foi de tal envergadura que culminou no surgimento da
Sociedade de Consumo, substituta da Sociedade Industrial, definindo as
características fundamentais da sociedade contemporânea nos últimos setenta
anos: aquela que se constitui não em torno do capital, mas especialmente em
torno do consumo, posto no lugar de alavanca propulsora do novo ritmo produtivista.
É quando o pilar de sustentação do processo de acumulação do capital se funda no
consumo de forma tão profunda, que podemos reelaborar a máxima de Descartes,
“Penso, logo existo”, para “Consumo, logo existo”. A configuração do capitalismo ali
naquele momento histórico passou a ser intimamente dependente da capacidade de
consumo instalada na sociedade. A expansão produtiva passou a englobar a esfera
do consumo como parte fundamental da engrenagem econômica exponencialmente
acelerada, estabelecendo-se uma relação determinada da produção ao consumo,
mas dialeticamente estruturada, posto que a capacidade de produção e (rápido)
escoamento da mercadoria na fábrica passa a depender da (rápida) capacidade de
consumo instalado na sociedade: o consumo, enquanto hábito cultural, haveria de
ser transformado.
Esse acontecimento histórico caracterizou o emblemático período dos Anos
Dourados do Capitalismo: a Sociedade de Consumo nasce precisamente na época
de ouro do capitalismo, não deixando dúvidas o quanto essa sociedade que se
orienta pelo consumo está correlacionada com o modelo econômico que se orienta
pelo capital. Oliveira e Apóstolos (2020) reconhecem que esse novo estágio de
acumulação do capital inaugurou um novo modo de pensar e de viver, em que o
consumismo foi a alavanca que recuperou a sofrida economia da Crise de 1929 até
o fim da Segunda Guerra Mundial. Isso significa que não é possível compreender a
natureza da Sociedade de Consumo sem compreender os mecanismos da
reestruturação produtiva que ocorreu nessas duas décadas decisivas para marcar
profundamente um novo estilo de vida na modernidade.
O pano de fundo em que ocorreu essa transformação é de natureza
ideológica; e se enquadra no contexto geopolítico da Guerra Fria com a bipolaridade
capitalismo x socialismo, ante o fantasma da União Soviética que assombrava as
combalidas economias capitalistas na Europa e Estados Unidos no pós-guerra. É
nessa conjuntura bélica que a ordem capitalista norte-americana altera sua
6
orientação tática: deixa de ser uma autêntica economia de livre mercado, passando
a combinar-se com a intervenção econômica do Estado para alavancar a
prosperidade econômica como meio para assegurar a estabilidade da ordem social
capitalista.
Esta onda de prosperidade foi conquistada com o alto crescimento econômico
ao longo de duas décadas nos países capitalistas (América do Norte, Europa
Ocidental e Japão), com políticas públicas distributivas e de pleno emprego, com a
elevação salarial que reduziu significativamente a pobreza permitindo à classe
trabalhadora acessar o mercado consumidor (resultante tanto do barateamento dos
bens de consumo fruto dos avanços na produtividade, como da política social
Keynesiana). A mensagem ideológica anunciada foi de que o capitalismo teria
conseguido superar a contradição de classes, oferecendo abundância material para
todos, não apenas para as elites acostumadas a viver na afluência (BALANCO;
PINTO, 2007). Dessa forma, ao contrário da austeridade que caracterizava a
economia soviética, a economia capitalista norte-americana estruturou sua
identidade no tabuleiro da Guerra Fria no reino da prosperidade, seduzindo a classe
trabalhadora para esse imaginário social tão atraente.
É nesse sentido que Saes e Saes (2013) sublinham que a prosperidade
econômica dos Anos Dourados não se deu apenas por razões econômicas, mas
também por razões geopolíticas da polarização entre capitalismo e socialismo, onde
os Estados Unidos buscaram consagrar a superioridade na ordem mundial na
capacidade de promover o Bem Estar da população, para afastar o risco de uma
revolução comunista em solo norte-americano ou europeu; o que explica muito
acerca da opção por um Estado intervencionista e não liberal para fundamentar a
nova ordem capitalista no pós-guerra.
A aplicação do Keynesianismo4e do Estado de Bem-Estar Social, onde o
governo interveio na economia para investir no interesse público garantidor da
ampliação dos direitos à classe trabalhadora (seguro desemprego, crédito ao
consumidor, salário mínimo digno, aposentadoria; permitindo o planejamento do
4Martins (2014) esclarece que a formulação teórica do Neoliberalismo surgiu logo após a Segunda
Guerra Mundial, em 1944, quando Friedrich Hayek publicou “O Caminho da Servidão”, como uma
crítica ao Estado Intervencionista. Contudo, ante o espetacular desempenho do Keynesianismo nas
décadas de 1950 e 1960, o Neoliberalismo se tornaria a nova doutrina ideológica do capitalismo
somente a partir do início dos anos 1970, com o fim dos Anos Dourados. É importante salientar a
distinção que ocorrerá a partir do momento em que o Estado de Bem-Estar Social for substituído pelo
Neoliberalismo, porque este ideário elimina toda possibilidade da domesticação do capital, e nunca
mais se veria um crescimento econômico sustentado e com pleno emprego como naqueles anos.
7
endividamento das famílias que começaram a acessar os bens duráveis de
consumo), representou um poderoso estímulo no ritmo do crescimento econômico.
O Estado Keynesiano atuou na direção da conciliação de classes, apoiando o
fortalecimento dos sindicatos dos trabalhadores e mediando os conflitos entre capital
e trabalho, o que resultou num período de notável crescimento econômico com
distribuição de renda. Não por acaso, Sousa e Sousa (2013) lembram que o Estado
de Bem-Estar Social foi possível por ter havido uma aliança de classes
sustentada pela ampliação dos direitos de cidadania, da seguridade social e do
acesso ao mercado consumidor.
Afinal, a ampliação da estrutura produtiva no pós-guerra dependia
diretamente do robustecimento da classe trabalhadora para alavancar a produção, e
o Estado norte-americano precisou garantir a reprodução de sua força de trabalho
(TRINTIN; ROSSONI, 1999; ARDENGUI; SILVA; BURMANN, 2014). Hobsbawm
(1995) inclusive, frisa que os Anos Dourados não teriam acontecido sem a política
intervencionista do planejamento estatal da economia, o que foi capaz de
democratizar o mercado. O Estado de Bem-Estar Social organizou a economia
naqueles anos de modo a evitar que ela fosse dirigida exclusivamente pelas forças
de mercado, exatamente para evitar a concentração de renda. Przeworski (1989)
enfatiza que a conciliação de classes foi um aspecto central nos Anos Dourados:
assim que os trabalhadores tiveram a oportunidade de melhorar suas condições
materiais de vida, bastando para isso cooperar com a burguesia; a hegemonia
cultural da ordem capitalista na social democracia se estabeleceu firmemente ante o
fantasma comunista, o que em última análise corresponde à idealização do fim das
ideologias e o triunfo do capitalismo, porque a classe trabalhadora pactuou com a
reforma ao invés da revolução. A aliança com o capital se mostrou mais adequada à
classe trabalhadora do que a mudança radical de regime, e o tom de conciliação de
classe permitiu toda abundância e prosperidade características do período dos Anos
Dourados. O capitalismo domina a batalha ideológica quando convence a classe
trabalhadora a se manter fiel à sua ordem socioeconômica.
Nesse sentido, na esteira do New Deal, com a Doutrina Truman para bloquear
a expansão soviética no continente europeu, com o Plano Marshall para alavancar a
recuperação econômica europeia, e junto da inauguração de um novo regime
monetário para regular o sistema financeiro internacional - baseado no Acordo de
Bretton Woods -, essa foi a fórmula implementada pelos Estados Unidos para
8
reerguer a economia dos países europeus e do Japão, ao mesmo tempo
assegurando a conquista da hegemonia do poder imperialista norte-americano na
nova configuração da ordem mundial emergente no tabuleiro da Guerra Fria,
evitando-se a temida adesão da Europa Ocidental ao socialismo (GASPAR, 2015;
SAES; SAES, 2013).
Por não ter sido palco da guerra, os Estados Unidos detinham uma vantagem
estratégica que lhe garantiu ocupar esse espaço de hegemonia no poder político e
econômico do pós-guerra: seu parque industrial e sua infraestrutura logística
estavam intactos, ao contrário da Europa e Japão que tiveram seus meios de
produção e força de trabalho severamente impactados. Dessa condição desigual se
estabeleceu o imperialismo norte-americano.
Em 1965, no bojo do movimento geopolítico dessa época de ouro do
capitalismo, foi criado o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento,
reforçando a ideologia do progresso que associa desenvolvimento com crescimento
econômico, estabilidade social e bem-estar material e disseminando a versão
imperialista do American Way of Life para o resto do mundo, notadamente o
hemisfério sul, onde predominavam os ‘subdesenvolvidos’.
A teoria econômica do Desenvolvimento, que teve seu auge nos anos 1950 e
declinou depois dos anos 1970 com a chegada do Neoliberalismo, contava com o
principal formulador do conceito Ecodesenvolvimento, Ignacy Sachs, um teórico
entusiasta da capacidade do Estado desenvolvimentista conduzir adequadamente
os rumos da ‘nave espacial Terra’. Segundo Bresser-Pereira (2013), Sachs dizia que
o fracasso das economias socialistas na rivalidade da Guerra Fria se deu entre
outras coisas, porque falharam em se tornar uma “alternativa viável aos padrões de
consumo e ao estilo de vida ocidental”, evidenciando a poderosa força simbólica que
representa a riqueza material individual.
As inovações tecnológicas introduzidas no pós-guerra aumentaram
incrivelmente a produtividade industrial, e toda uma nova gama de produtos
eletrônicos domésticos foi criada; a eficiência gerencial do Fordismo se disseminou
amplamente, a formação de grandes corporações e oligopólios deu economia de
escala aos negócios globais. Além disso, o petróleo estava com preços baixos
tornando a energia fóssil barata, resultando em mercadorias produzidas a baixo
custo. Ao mesmo tempo, ocorreu um expressivo aumento na urbanização e no grau
9
de escolaridade. A televisão, o rádio e a geladeira se popularizaram, o acesso ao
crédito para o consumo foi enormemente facilitado.
É neste território que se hasteou a bandeira do American Way of Life,
indicando o caminho da prosperidade e da felicidade, desde que seguido o modelo
estadunidense então aplicado em direção ao sonhado progresso e sua riqueza
material. A magnificência desse modelo pode ser medida quando, em 1960, Rostow
(1978) publica o livro “Etapas do Desenvolvimento Econômico” em que a quinta e
última etapa desse processo civilizatório seria nada menos que a própria “Era do
Consumo em Massa”, iniciada com o Fordismo e concluída nos Anos Dourados do
Capitalismo. para perceber também a importância do estilo de vida
norte-americano defendido com unhas e dentes, quando em 1992, no âmbito da
Conferência do Rio, George Bush asseverou que “o American Way of Life não é
negociável, e ponto”, ao não submeter os Estados Unidos à política global de
contenção de emissão de gases de efeito estufa, negando-se a assinar o Protocolo
de Kyoto.
A consagração do American Dream, idealizado por James Truslow Adams em
1931 em The Epic of America”, como um ethos estadunidense de uma sociedade
capaz de combinar liberdade, prosperidade, oportunidades iguais e mobilidade
social, onde cada um pode gozar de uma vida melhor por meio do próprio trabalho -
algo de fato ensaiado com as políticas Keynesianas nos Anos Dourados -,
pavimentou solidamente o imaginário da classe trabalhadora, de que ela poderia
desfrutar desse fascinante estilo de vida que antes era exclusivo da elite. Com o
sonho americano, começou-se a acreditar ser possível tornar-se uma Very Important
Person, um termo que não coincidentemente se torna comum exatamente após a
Segunda Guerra, para designar a pessoa com alto prestígio na escala social e que
goza de privilégios exclusivos.
Contudo, Aziz e Guendouzi (2019) advertem que a obra de Adams se presta a
difundir uma ideologia sem história para estabelecer a sociabilidade capitalista como
o aspecto mais central da identidade estadunidense. A mensagem ideológica à
classe trabalhadora, no contexto da Guerra Fria, era clara: permanecer no
capitalismo significava a garantia de usufruto dos privilégios da ‘primeira classe’,
porque na prosperidade do capitalismo havia abundância para todos. Implicitamente,
significava também que no capitalismo no lugar da exploração do trabalhador havia
liberdade de escolha individual. Groppo (2005) sublinha que a construção simbólica
10
da identidade nacional suplantou a construção da própria consciência de classe no
capitalismo norte-americano; dissolvendo a luta de classes e manipulando os
interesses da classe trabalhadora, seduzida por essa idealização de uma Sociedade
de Consumo materialista; onde o Fordismo, que combina produtividade com
disciplina no trabalho, desempenhou um papel fundamental no hábito do controle da
classe trabalhadora no cumprimento de seus deveres.
Fato é que os Anos Dourados inauguraram um novo ciclo de acumulação do
capital, pautado pelo fenomenal desenvolvimento das forças produtivas, atingindo
um inédito patamar na capacidade de produção de bens duráveis de consumo: a
produção industrial simplesmente teria alcançado uma produtividade ilimitada, sem
precedentes. Essa é a conjuntura que propiciou às forças produtivas ultrapassarem
o limiar de produtividade jamais visto na história do industrialismo. Que fique claro
que foi precisamente na conjuntura político-econômica dos anos 1950, com a
reestruturação produtiva do capitalismo norte-americano no pós-guerra, que a
produção industrial se tornou ilimitada.
Arendt (2007), considerando que enquanto o produto do trabalho se destina a
ser usado e o produto do labor se destina a ser consumido; afirma que as coisas
modernas após a Revolução Industrial se tornaram produtos do labor; pontuando
que:
A interminabilidade da produção pode ser garantida se os seus
produtos perderem o caráter de objetos de uso e se tornarem cada
vez mais objetos de consumo ou, em outras palavras, se a taxa de
uso for acelerada a tal ponto que a diferença objetiva entre uso e
consumo, entre a relativa durabilidade dos objetos de uso e o rápido
surgimento e desaparecimento dos bens de consumo, for reduzida
até se tornar insignificante. Em nossa necessidade de substituir cada
vez mais depressa as coisas mundanas que nos rodeiam, não
podemos nos dar ao luxo de usá-las, de respeitar e preservar sua
inerente durabilidade; temos que consumir, devorar, por assim dizer,
nossas casas, nossos móveis, nossos carros (...). Os ideais do homo
faber fabricante do mundo, que são a permanência, a estabilidade e
a durabilidade, foram sacrificados em benefício da abundância, que é
o ideal do animal laborans. (ARENDT, 2007, p. 138).
Se por um lado essa mudança resultou na coroação do sistema capitalista e
no ‘fim das ideologias’; por outro lado, foi exatamente este mesmo cenário de êxito
das forças produtivas que propiciou a emersão de outra contradição do capitalismo,
que agora se nas relações mercantis. Desatado o da contradição das forças
produtivas, que opunha em lados antagônicos o Capital e o Trabalho nas relações
11
produtivas; agora o correu para outro lugar de tensionamento, antagonizando as
esferas da Produção e do Consumo.
Alves (2019) e Cruz (2013) assinalam que o motor desse novo regime de
acumulação do capital reside exatamente na intensificação da produção em massa
de bens duráveis de consumo. A Sociedade de Consumo tem o poder de produzir
mais bens de consumo do que existe de humanos para consumir todas essas
mercadorias. E nessa condição de hiperprodução de mercadorias, o alto
desempenho alcançado com a nova configuração produtiva passou a ficar
comprometido com o surgimento de um gargalo nas relações mercantis: não faltou
mercadoria para as pessoas, faltou pessoas para consumir tantas mercadorias
produzidas5. Foi esse sucesso que se tornou a encruzilhada: essa alta eficiência
produtiva se expandiu até alcançar seu limite, quando saturou a demanda do
consumidor pela satisfação das suas necessidades básicas, e foi necessário abrir o
consumo para toda a sociedade. Esse novo patamar produtivo sem limites foi capaz
de gerar um excedente de bens de consumo inimaginável, e evidentemente esse
cenário intolerável precisava ser contornado.
O compromisso dos governos com uma política keynesiana de pleno
emprego e com o Estado de Bem-Estar, ao criar uma expectativa de
manutenção do emprego e alguma distribuição de renda, ampliou o
mercado para bens de consumo, principalmente os duráveis, que até
então eram vistos como bens de luxo (caso dos automóveis,
eletroeletrônicos etc.) (SAES; SAES, 2013, p. 452).
Não foi fácil abrir o moderno mercado de consumo de massa para toda a
sociedade, porque algumas classes sociais excluídas do mundo consumerista, não
detinham as ‘competências ideais’ para exercitar o consumismo enquanto ideologia:
a parcimônia e moderação eram determinantes no comportamento de consumo, que
se restringia aos bens materiais básicos. Se num primeiro momento a solução
encontrada foi ampliar o consumo às classes populares, inaugurando o Consumo de
Massa, não tardou para que essa estratégia também se mostrasse insuficiente para
sanar a contradição entre Produção e Consumo desacoplados em ritmos diferentes.
5E é por essa perspectiva, de que faltou consumidores para mercadorias, que se compreende que
neste momento em diante o consumidor passou a fazer parte integrante da mercadoria, como
Bauman (2008) assinala em “Vidas para Consumo”, que literalmente quer dizer que as vidas
humanas passaram a ser destinadas a seguir um único propósito: o consumo de mercadorias.
Evidentemente que esta condição não se resolve com a satisfação das necessidades básicas,
aquelas essenciais e indispensáveis; a força determinante das vidas orientadas para o consumo
impõe o consumo supérfluo como uma necessidade: uma necessidade fictícia para o consumidor,
mas uma necessidade real para a reprodução do capital.
12
O Consumismo é um parâmetro ideológico definidor de quando o padrão de
consumo de uma sociedade se transforma culturalmente, a ponto de caracterizar a
Sociedade de Consumo, que ocorre quando o sistema produtivo é robusto o
suficiente para inaugurar o Consumo de Massa: afinal de contas, como afirma
Latouche (2015), para uma produção em série, um consumo também em série e
operando no ritmo equivalente; para poder escoar ininterruptamente a produção.
Foi preciso remodelar o imaginário social para interferir no estilo de vida, e
assim, redefinir o antiquado padrão de consumo, influenciando-o de forma a torná-lo
compatível com o novo ritmo da economia produtiva em escala industrial: criou-se
então, um padrão de consumo também em escala industrial, que se mantivesse em
compasso com o padrão de produção. Não bastava à acumulação do capital
produzir mais e mais mercadorias, se elas ficassem estocadas nos depósitos, era
preciso engatar o consumo nesse novo ritmo produtivo; e para isso, foi crucial
estimular o consumidor a ir às compras enfeitiçado e sem culpa pelos excessos,
com prazer, como um ato em busca mais do que da satisfação das necessidades
básicas, da conquista da felicidade.
Este engate conecta dialeticamente a produção e o consumo, a partir desse
momento passando a ser reciprocamente influenciadas a relação entre oferta e
demanda. É a partir daí que se constrói a ideia da demanda de um consumidor que
deve ser satisfeita pelo mercado, conferindo uma autonomia que ele não possui. É
dessa perspectiva que desponta a percepção distorcida de que a escolha do
consumidor-cidadão no mercado possui o poder de influenciar a produção. Essa
dialética se completa visceralmente quando o consumo de bens materiais passa a
representar o preenchimento do vazio existencial deixado pelo abandono do
indivíduo à sua própria sorte na indiferente sociedade de massa (BITTENCOURT,
2011), distante do laço de pertencimento comunitário, a fonte primária de bem-estar
e felicidade; e próximo da identificação com objetos de consumo que possam
distingui-lo da multidão.
A popularização do fast food’, que ocorreu nos anos 1950, é a representação
perfeita da transformação da esfera de consumo que também foi industrializada no
mesmo compasso da produção acelerada. Não é a preparação da refeição que
se conformou ao padrão industrial fordista, mas seu próprio consumo que se tornou
imediato, para entrar em sintonia com o novo ritmo de produção. Consumir fast food
representa o consumo alinhado com a produção de uma mercadoria que deve ser
13
rapidamente consumida. Nada mais simbólico também para qualificar uma
Sociedade de Consumo, do que o conhecido ‘Mc Lanche Feliz’, que explicitamente
associa o consumo de um sanduíche industrializado com felicidade. A Sociedade de
Consumo6parece ser uma sociedade onde até a felicidade precisa ser comprada.
Além dessa ampliação horizontal do consumo na sociedade, o Consumismo é
caracterizado também pela ampliação vertical do consumo, que é quando a decisão
individual de compra de uma determinada mercadoria não se mais apenas por
necessidade, mas também por desejo. Essa talvez seja a maior mudança cultural
realizada no espírito do American Way of Life, a deformação do significado de
necessidade, ampliando sua fronteira para além daquela linha divisória
compreendida pela moral, incorporando os insaciáveis desejos e prazeres hedônicos
nessa reconfiguração do que sejam as necessidades humanas. Dentro do contexto
desta era de prosperidade, foi preciso investir muito trabalho ideológico para
ressignificar a própria ideia de ‘necessidade’, justificada em função do novo regime
de abundância de mercadorias disponíveis: assim se desfaz a sua característica
fundamental, daquilo que é entendido como absolutamente indispensável, para
então aceitar-se rotineiramente o extravagante, o supérfluo, até mesmo o
descartável, como parte das infinitas necessidades humanas. Eis a liberdade de
escolha individual da Sociedade de Consumo.
Do consumo liberto de sua restrição cultural e orientado pelo desejo, nasce o
consumo compulsivo, o vício consumista desenfreado, ou em termos técnicos, a
‘Oniomania’, caracterizada por um consumo patológico, encarado pelo senso
comum como situação crônica de desvio comportamental de um sujeito que precisa
de tratamento psiquiátrico para esse ‘transtorno de compra compulsiva’; como se
não fosse uma condição derivada da abusiva influência da indústria da publicidade
para estimular exatamente essa reação compulsiva, exacerbada, descontrolada. Por
isso é desejável compreender as políticas públicas de restrição da publicidade como
uma questão de saúde pública e mental. Não basta ‘tratar os pacientes
6Aqui é adequado chamar atenção à importante sinalização que Zacharias (2009) fez, de que a
Sociedade de Consumo no Neoliberalismo é mais uma ilusão ideológica do que uma realidade
palpável, pois esse padrão de consumo atualmente é acessível a cerca de 30% da população
mundial. A sociedade moderna seria na verdade, uma sociedade ideologizada pelo consumo e
tremenda injusta, porque mal consegue atender significativa parcela da população com bens de
consumo de primeira necessidade; imagina-se então, o custo de se comprar felicidade nessa
realidade de desigualdade social. Entendemos, porém, que no esforço da conciliação de classes que
se deu com o Keynesianismo nos Anos Dourados, era coerente haver uma narrativa ideológica que
diluísse as fronteiras de classe, moldando o imaginário de uma sociedade de classe indistinta,
amalgamada numa identidade unificada em torno do consumidor.
14
individualmente, sem ao mesmo tempo sanar a própria sociedade forçada a conviver
com o incessante bombardeio publicitário, que tem como propósito confundir
consumo com felicidade como engrenagem do sistema produtivo que visa produzir
para acumular capital. A exposição ao estresse permanecerá presente na vida dos
portadores da Oniomania, como ‘efeito colateral’ do necessário bombardeio
publicitário.
Assim, foi exatamente nos Anos Dourados do Capitalismo, que essa
extraordinária força produtiva do modo de produção (ilimitado) encontrou sua
fronteira. Segundo Cruz (2013), esse novo padrão de produção se chocou com o
antigo e limitado padrão de consumo. Um padrão pautado pela moral da sobriedade
e parcimônia na satisfação do ego pessoal, onde não tinha lugar a possibilidade do
consumo impulsivo por desejo sobrepujar o consumo por necessidades. Como o
ethos das relações mercantis herdado das décadas anteriores de penúria econômica
condenava o exagero, seria preciso estimular as pessoas a ir às compras para
movimentar a economia segundo o novo ritmo imprimido pelas forças produtivas.
Cohen (2004) sublinha que nos anos do pós-guerra, foi necessário empreender um
enorme esforço político-ideológico de ressignificação para convencer a sociedade
norte-americana a cooperar com o crescimento econômico baseado numa economia
de consumo em massa. O tabu de um consumo perdulário e portanto condenável,
precisou ser derrubado, e isso aconteceu quando esse novo regime de abundância
material passou a garantir as necessidades básicas da classe trabalhadora. A partir
daí foi possível fundar uma nova ‘necessidade’, agora livre de freios, e a existência
humana finalmente poderia ser dedicada à busca da felicidade. A Sociedade de
Consumo produziu um novo sujeito, com amor próprio, dono de si, narcísico, liberto
de tabus restritivos de uma moral austera e comedida que cerceou sua plena
felicidade, que passou a ser associada a sentidos identitários distantes da
simplicidade. O hedonismo se torna o valor cultural por excelência da Sociedade de
Consumo. E o consumo, enfim, se modernizou inaugurando o prazer como estilo de
vida.
15
Indústria da propaganda e a expropriação simbólica do senso de parcimônia
do trabalhador: a redefinição das ‘necessidades’ pelo capitalismo
Na mesma medida que o capitalismo e seu processo de acumulação se
define pela expropriação da natureza e do trabalho humano, esse modo de
produção também se define pela expropriação da cultura da parcimônia no
inconsciente coletivo dos novos consumidores na classe trabalhadora. Esse modo
de produção, no âmbito da extração dos recursos naturais, na transformação da
matéria-prima e na comercialização da mercadoria, é um modo de produção
pautado pela expropriação. No compasso da acumulação do capital, consumidores
se transformaram em acumuladores, muitos, compulsivos; porque foram
ideologicamente influenciados a compreender de forma distorcida o que são as
necessidades que devem ser satisfeitas no consumo.
É nesse contexto que se insere a indústria da propaganda, que se acoplou
como uma engrenagem da máquina produtiva, atuando na produção ideológica
conformadora de uma nova identidade consumerista no imaginário social
(BRONSZTEIN; MARGOLIS, 2013). A propaganda é uma ramificação da máquina
produtiva que inseriu um novo componente na mercadoria, sua embalagem
simbólica: a indústria da propaganda surge da necessidade da reconfiguração
cultural do consumo ajustada à nova fase de expansão do capital. Forjando a ideia
da imprescindibilidade da mercadoria para a vida do consumidor, sua função na
Sociedade de Consumo é distorcer a noção de necessidade e naturalizar o
consumismo hedônico.
Acompanhando as mudanças nos Anos Dourados, a propaganda mudou
radicalmente nos anos 1950, com a criação de um novo olhar que viria a se tornar o
paradigma, superando a mera descrição das características intrínsecas da
mercadoria e convertendo a mensagem em algo mais conceitual e subjetivo. Uma
campanha publicitária da empresa alemã Volkswagen marcou a época com sua
inovadora forma para vender o Fusca no mercado norte-americano, um desafio para
uma empresa de uma nação inimiga na Segunda Guerra, mas que soube explorar
os signos do momento de uma classe trabalhadora que sonhava com o American
Way of Life, lançando-o como a opção econômica aos faustuosos automóveis das
marcas norte-americanas.
16
A propaganda passou a representar a voz da mercadoria, que se apresenta
agora pelas suas qualidades sutis para além da sua função essencial. Não se
adquire mais uma geladeira apenas pela sua qualidade enquanto Valor de Uso,
como um eletrodoméstico capaz de preservar alimentos em um ambiente
refrigerado; adquire-se pelo seu Valor de Troca, a representação do estilo de vida do
consumidor. Se inaugura a era dos ‘modelos’ da mercadoria em suas infinitas
representações alinhadas às subjetividades do consumidor, mas constante e
interminavelmente renovadas e descartadas.
A mensagem ideológica da indústria da propaganda consistia em negar a
racionalidade da razoabilidade da parcimônia, e convencer a classe trabalhadora
que o consumismo não era algo indecoroso; ao contrário, era um ato altruísta
derivada de uma racionalidade patriótica de responsabilidade civil7; porque sob o
capitalismo no pós-guerra, teria ocorrido um giro completo entre a penúria e
opulência, entre escassez e abundância material. Comprar passou a significar
contribuir com o progresso, crescimento e prosperidade econômica.
A questão era de que não fazia sentido um padrão de consumo austero no
novo mundo da prosperidade; abrindo caminho para o discurso implícito que
enaltece o moderno em detrimento do passado, na distinção entre os novos e
‘melhores’ produtos em relação aos produtos velhos e ‘ultrapassados’, para essa
nova era que começa a se organizar em torno da dialética entre abundância e
desperdício, com a progressiva aceitação social da ideia da descartabilidade. Essa
idealização da jovialidade estabelece uma nova fronteira definidora para a satisfação
das necessidades, cujo limiar agora se define pela dicotomia entre o velho e o novo
e sua contínua renovação. A Sociedade de Consumo valoriza o novo e despreza o
velho, como efeito do discurso ideológico da vinculação da modernidade como signo
de inovação tecnológica, que significaria ‘melhoria’ implícita. O resultado dessa
artimanha retórica é a naturalização do abandono da mercadoria em plena condição
de uso, pelo consumidor que não mais interesse naquilo que comprou muito
como um espelho de sua identidade, porque o que importa é que ele em outra
7A respeito do consumo como ato patriótico, Oliveira e Bomfim (2020) inclusive fazem alusão a um
“Consumismo Estrutural”, ao analisar o discurso do então Presidente Lula rebatendo uma fala de um
trabalhador que afirmava que não se sentia seguro em fazer uma compra por medo de perder o
emprego, ao que Lula retruca exatamente o contrário; que se esse trabalhador não comprar, sim é
que ele corre o risco de perder o emprego. A ênfase na importância do trabalhador consumir bens
duráveis, porque assim ele assegura que a economia floresça, é um traço distintivo da relação
visceral de dependência que a produção em massa deposita no consumo de massa, e por isso, o
Consumismo “Estrutural”.
17
mercadoria uma representação mais fiel às suas expectativas de satisfação da
felicidade.
É nesse contexto simultaneamente para movimentar a produção em massa e
para manter o interesse da classe trabalhadora ao espírito capitalista, que foi preciso
ensinar à classe trabalhadora buscar felicidade no consumo. É na fabricação de uma
massa de consumidores que floresce a indústria da propaganda, que ganha a
decisiva contribuição da psicologia do consumidor, para entender cientificamente os
instintos primários, os desejos inconscientes e os anseios do consumidor, para
desvendar as melhores formas de seduzi-lo e influenciá-lo (JUSTO; MASSIMI,
2017). Essa ferramenta fabricou imaginários e ensinou de forma subliminar os
trabalhadores recém ingressos na classe média, os novos valores e
comportamentos desejáveis nas relações de consumo orientadas pelo prazer. A
psicologia do consumidor subsidiou a indústria da propaganda a criar o consumo
‘desnecessário’, que não se pauta mais exclusivamente pelas necessidades básicas,
mas também pelas supérfluas.
Antes de 1950, havia uma clara demarcação que separava o consumo por
necessidades básicas, do consumo supérfluo; e era o corte de classe social que
distinguia a rotina entre os dois padrões de consumo. A classe trabalhadora, por
razões óbvias derivadas da relação Capital e Trabalho, se restringia ao consumo por
necessidade, enquanto a elite se via em condições de também consumir por prazer,
ostentação e diferenciação na hierarquia social. Enquanto a classe trabalhadora
comprava mercadorias pelo seu Valor de Uso, a elite podia comprar mercadorias
também pelo seu Valor de Troca, caracterizando o consumo de luxo. E a partir de
então, a fronteira de classe no âmbito do consumo que separava os trabalhadores
da elite, o limiar que separava ideologicamente o consumo por necessidades do
consumo por desejo, foi desfeito.
E dessa forma, o ato do consumo é imaginariamente convertido em um
instrumento de lazer contínuo e para todos: os novos consumidores deveriam
aprender que lugar de ‘passear é no shopping center, o lugar tão comum da
convivialidade em qualquer cidade, que na língua inglesa significa literalmente
‘compras’, porque os trabalhadores merecem usufruir dos bens materiais por eles
próprios produzidos. Os novos consumidores devem aprender também a celebrar a
segunda data mais importante para o comércio, o Dia das Mães, mas não
exatamente como idealizava Anna Jarvis em 1914, a criadora da data comemorativa
18
para valorizar as mães trabalhadoras (que de tão amargurada com o desvirtuamento
da comemoração da data, passou a lutar pela remoção do feriado do calendário
norte-americano). A Sociedade de Consumo é aquela que desenvolveu, por
influência da indústria da propaganda, um novo modo de vida que associa lazer com
consumo, consumo com felicidade. Que melhor fórmula para induzir docilmente as
pessoas a viver para consumir, e não mais consumir para viver?
Enfim, a solução da contradição entre as esferas da produção e do consumo
advinda dessa reconfiguração produtiva, foi adicionar a indústria cultural no circuito
produtivo, cuja produção agora é a de um novo imaginário social, para que o
consumo deixasse de ser orientado pela necessidade para ser orientado pelo
desejo;aética da parcimônia fosse substituída pelo hedonismo; a cultura da
durabilidade desse lugar à descartabilidade; o Valor de Uso ficasse desfocado em
segundo plano em detrimento do Valor de Troca. Foi criada a demanda artificializada
porque induzida pela indústria cultural e da propaganda para sintonizar com a
oferta. Afinal, era imperativo equiparar o ritmo do consumo ao ritmo da produção.
A satisfação das necessidades unicamente pelo Valor de Uso da mercadoria,
ou seja, pelo seu valor inerente relacionado à utilidade material do produto, se
tornou impeditiva à expansão da força produtiva. A influência da indústria da
propaganda foi precisamente no deslocamento do consumo de bens de primeira
necessidade para os bens considerados como supérfluos e banalmente
descartáveis: mais importante do que o próprio bem de consumo, aquilo que ele
passa a representar na subjetividade identitária do consumidor. Assim, ao comprar
uma certa modelo de mercadoria, não se está apenas adquirindo um bem de
consumo material, está se adquirindo também um símbolo de identificação com um
determinado estilo de vida enunciado pela propaganda, do qual o consumidor se
reconhece por representação. Aquela mercadoria representa a sua identidade ante
seu círculo de pertencimento social. As forças produtivas alavancaram uma
dinâmica cultural que maximizou o Valor de Troca em desfavor ao Valor de Uso,
onde o simbólico dissolve a materialidade da mercadoria; constituindo uma
transmutação das relações mercantis que passam a ser relações de consumo.
Assim age a indústria da propaganda: a produção da mercadoria se completa
com a produção dos signos subjetivos que embalam a mercadoria nas relações de
consumo. Brito (2012), lembrando que o mercado de uma economia industrial
altamente desenvolvida depende da propaganda, sinaliza que publicidade e
19
ideologia andam juntas, posto que a publicidade produz ideologia que serve à ordem
capitalista. Amparada pela psicologia do consumidor, a publicidade normatiza
valores, define uma ordem social, conforma estilos de vida, molda comportamentos,
influencia a sociabilidade.
Esse modo de produção contemporâneo não criou a mercadoria, criou
também o desejo livre de qualquer restrição moral pautada pela sobriedade
característica da classe trabalhadora. A psicologia do consumidor esteve a serviço
do capital, e a indústria da propaganda efetuou uma educação para o consumo
desregrado, liberta dos freios culturais da parcimônia. Com esta perversão moral, o
capitalismo resolveu de uma forma singularmente radical essa contradição entre a
produção que se tornou ilimitada e o consumo incapaz de absorver toda a
quantidade de mercadorias que não poderiam ficar estocadas.
O modo de produção ultrapassa a esfera produtiva propriamente dita da linha
de montagem industrial, e alcança a dimensão sociocultural que começa a fazer
parte constituinte da engrenagem produtiva. É quando se estabelece definitivamente
a determinação da produção sobre o consumo: não existiria um consumo qualificado
como ‘desmesurado’, se não houvesse, antes, uma produção massificada que
precisa escoar rapidamente para maximizar a rentabilidade do capital. Esse padrão
de consumo que se expressa pela Oniomania é resultado da alienação ideológica
proporcionada pelos meios de produção cujo propósito residia no falseamento da
ideia de felicidade que passou a ser associada ao falseamento da ideia de
necessidade. O atual padrão de consumo é diretamente determinado pelo padrão de
produção; então, inclusive a própria ideia de um consumidor ‘descontrolado’ e por
sua própria culpa, representa o falseamento ideológico da realidade que passa a ser
apresentada de forma invertida. Isso significa que a escolha do consumidor não é
tão livre como se imagina no American Dream.
outro aspecto importante a sinalizar. A propaganda ideológica do consumo
inocula um estilo de vida que se baseia na aspiração de um alto padrão de
consumo, onde impera a premissa de que felicidade se compra em detrimento da
aspiração por serviços públicos de qualidade para atender aos direitos humanos de
saúde, educação, segurança, etc. Esse é um imaginário corrompido pela
mercantilização da vida, único de um sistema econômico que se orienta pelo capital
e pelo interesse privado e que se realiza no âmbito do mercado. Tudo se torna
mercadoria, tudo se resolve nas relações de consumo. Nos tornamos uma
20
Sociedade de Consumo quando preferimos ir às compras ao invés de lutar por
direitos assegurados no Estado de Bem-Estar Social. É quando o interesse privado
se sobrepõe ao interesse público, que se na esfera do consumo. O
consumidor-cidadão que diz querer ‘qualidade’, passa a preferir comprar educação
privada, saúde privada, transporte privado, segurança privada; ao invés de cobrar o
direito a ter educação, saúde, transporte, segurança pública e de qualidade. O
interesse público desaparece do cotidiano de uma Sociedade de Consumo
mercantilizada, criando o solo fértil para vingar o Neoliberalismo.
Foi precisamente quando a capacidade ilimitada das forças produtivas
encontrou limites ‘naturais’ no consumo, que tudo mudou nas relações mercantis.
Foi dessa encruzilhada que a sociedade se transformou, moldada pela sociabilidade
capitalista. Por isso a Sociedade de Consumo se constitui no exato momento em
que se tornou mais difícil vender do que produzir mercadorias e bens de consumo. E
frente a essa contradição entre as esferas da produção e do consumo limitadora da
acumulação do capital, que se fundou essas duas mudanças essenciais que foram
capazes de reestabelecer o equilíbrio entre os ritmos de produção e de consumo,
para que a velocidade do consumo entrasse em compasso sincronizado com o novo
e acelerado ritmo de produção: a indústria da propaganda e a Obsolescência
Planejada.
Os velhos bens de consumo duráveis que precisavam ficar rapidamente
obsoletos: a inauguração da descartabilidade e do desperdício
Mesmo com o ingresso da classe trabalhadora na esfera do consumo, o ritmo
do consumo ainda era lento para o novo padrão acelerado de produção. A
acumulação do capital ainda estaria condenada caso essa contradição não fosse
resolvida: os bens materiais ‘duráveis’ duravam tempo demais para essa forma
apressada demais de produzir mercadorias. Nesse novo regime, eles
necessariamente precisavam ser substituídos, contribuindo assim com a
desconcertante ideia de que no reino da abundância, as coisas ‘ultrapassadas’ pela
modernidade, precisam ser descartadas, condenando a ideia da durabilidade de um
produto como equivalente de qualidade. A percepção da abundância material do
American Way of Life, como uma visão ideológica distorcida da realidade, perverteu
um imaginário social que passou a banalizar o desperdício, algo que foi
21
especialmente desafiador para a cultura europeia do pós-guerra, por ter vivenciado a
escassez. Deixar de se incomodar com o desperdício, foi um esforço cultural
descomunal que precisou ser realizado pela indústria da propaganda para colocar
em marcha essa reestruturação produtiva.
E assim, a necessidade imperativa da descartabilidade do bem ‘durável’, para
que a esfera do consumo mantenha o passo com o ritmo incessante de compras na
proporção equivalente à produção em massa; encontrou materialidade na prática da
Obsolescência Planejada, com o encurtamento intencional da vida útil de uma
mercadoria, como engrenagem essencial de um plano de negócios empresariais
idealizado para acelerar a circulação da produção de bens de consumo. A essa
altura dos Anos Dourados, a sociedade norte-americana estava se acostumando
com as mercadorias descartáveis. Foi nos anos 1950 que a produção de isopor e de
materiais plásticos baratos, leves, versáteis e descartáveis -, começou a se
popularizar.
Na medida que as mercadorias são planejadas para ter um tempo de vida útil
reduzido, essa estratégia cria o padrão do consumo repetitivo, como outra
característica definidora da Sociedade de Consumo. Aqui também a indústria da
propaganda precisou atuar com seu currículo oculto, valorizando o novo e
condenando o antiquado, naturalizando o desperdício.
O significado da Obsolescência Planejada deixa claro que a intenção de
produzir bens de consumo definitivamente não é a satisfação das necessidades do
consumidor, mas sim da acumulação do capital. Para Mészáros (2011), o novo ciclo
de acumulação inaugurou a era da ‘Produção Destrutiva’ do capitalismo, agora
baseado na redução programada da taxa de uso de qualquer mercadoria, para
diminuir a sua vida útil permitindo assim sua rápida substituição para acoplar
definitivamente o ritmo do consumo ao da produção. Diz o autor:
Além de um certo ponto, entretanto, as mercadorias destinadas ao
‘alto consumo de massa’ deixam de ser suficientes para manter
longe da porta os lobos da crise de expansão da produção (devido à
ausência de canais adequados à acumulação de capital). Torna-se,
desse modo, vital divisar meios que possam reduzir a taxa pela qual
qualquer tipo particular de mercadoria é usada, encurtando
deliberadamente sua vida útil, a fim de tornar possível o lançamento
de um contínuo suprimento de mercadorias superproduzidas no
vórtice da circulação que se acelera. A notória ‘obsolescência
planejada’ em relação aos ‘bens duráveis’ produzidos em massa (...)
para compelir os clientes a comprar dispendiosos produtos ou
22
componentes novos, quando os objetos descartados poderiam
facilmente ser consertados (...). Tudo isso pertence a essa categoria,
dominada pelos imperativos e determinações subjacentes para
perdulariamente diminuir as taxas de utilização praticáveis
(MÉSZÁROS, 2011, p. 670).
Mészáros (1996, p. 31) afirma ainda que:
É pois, extremamente problemático o fato de que a ‘sociedade
descartável’ encontre o equilíbrio entre produção e consumo,
necessário para sua contínua reprodução, somente se ela puder
artificialmente ‘consumir em grande velocidade (isto é, descartar
prematuramente) grandes quantidades de mercadorias, que
anteriormente pertenciam à categoria de bens relativamente
duráveis. Desse modo, ela se mantém como sistema produtivo
manipulando até mesmo a aquisição dos chamados ‘bens de
consumo duráveis’, de tal sorte que esses necessariamente tenham
que ser lançados ao lixo (...) muito antes de esgotada sua vida útil.
Criados no bojo do American Way of Life, o Consumismo e a Obsolescência
Planejada se completam e são efeito direto da indústria da propaganda, que inculca
incessantemente intermináveis necessidades fictícias, além da indecente cultura da
descartabilidade, rompendo o freio cultural da parcimônia e moderação dos impulsos
humanos. Inegavelmente, esse é um modo de produção fundado na percepção da
abundância material e calcado na lógica do desperdício dos recursos naturais.
Bernard London8e Victor Lebow são dois dos fundadores da Sociedade de
Consumo, por serem autores da formulação teórica da Obsolescência Planejada e
da indústria da propaganda (LAYRARGUES, 2018). Em ambos se verificam as
ideias centrais que vão definir o perfil da Sociedade de Consumo, e as engrenagens
da reestruturação produtiva dos Anos Dourados: a indústria da propaganda e a
Obsolescência Planejada, como os fatores indutores da aceleração do consumo,
que se torna desmedido e repetitivo.
Isso quer dizer que a raiz do desperdício de recursos naturais está na lógica
do modo de produção baseado na aceleração produtiva, na transfiguração das
necessidades e na descartabilidade da mercadoria, invenções adotadas nessa fase
de acumulação do capital. Entre outros fatores, deve-se muito à lógica do
desperdício, elemento impregnado na Sociedade de Consumo, a relação causal com
a atual aceleração da geração de resíduos de modo desproporcional em relação ao
8Bernard London ensaiou a teoria da Obsolescência Planejada ainda em 1932, no contexto da Crise
de 1929, como uma estratégia para recuperar a economia da Grande Depressão, elevando os níveis
de consumo, muito embora a sociedade norte-americana ainda não estava psicologicamente
preparada para tamanha desmesura no hábito de consumo.
23
crescimento populacional: a taxa de geração de lixo per capita tem se mostrado
crescente ao longo do tempo.
Enfim, o que resulta como padrão de produção e consumo insustentável, foi
criado como modelo societário nos Anos Dourados do Capitalismo, encarnado no
espírito do American Way of Life, característico da Sociedade de Consumo. Um
modo de produção muito específico, baseado na ideia da abundância material,
desenhado para atender ao processo de acumulação do capital no momento
histórico de uma reestruturação produtiva, fundamentada na aceleração exponencial
da produção industrial como exercício de poder geopolítico imperialista, que resultou
na disseminação de um plano de negócios empresariais essencialmente orientados
pela redução da vida útil da mercadoria; característica que demandou o
desenvolvimento de uma nova engrenagem produtiva agora na esfera do consumo
a indústria ideológica da propaganda indutora da desejabilidade de fruição
hedônica no ato do consumo. Tudo isso para manter o compasso acelerado entre
demanda e oferta de bens de consumo.
A nave espacial Terra e o desfazimento da abundância cornucopiana
O início dos anos 1970, momento que demarcou o fim dos gloriosos Anos
Dourados9, coincidiu com duas novas mudanças de dimensões societárias,
curiosamente contraditórias: a reorientação do Estado Mínimo, quando a doutrina
9A Era de Ouro do Capitalismo termina com a desaceleração do crescimento econômico, a falência
do acordo de Bretton Woods, a crise do petróleo e a quebra da bolsa de valores norte-americana,
acarretando numa recessão econômica. Ante o acirramento da competitividade entre os EUA
imperialista e Japão e Europa Ocidental que conquistaram mais espaço no mercado global,
esgotou-se a capacidade financeira do Estado capitalista continuar sustentando políticas distributivas;
dando lugar, então, ao Neoliberalismo. Barros (2020) sustenta também que as altas taxas de
emprego por tanto tempo acabaram sendo desfavoráveis aos capitalistas, que passaram a pressionar
pelo fim da política de pleno emprego como meio de enfraquecer a classe trabalhadora e poder voltar
a extrair o máximo de valor sobre o trabalho; sustentando então que o conflito distributivo esteve na
base do colapso dos Anos Dourados. Havia chegado a hora de interromper o pacto entre capital e
trabalho da reforma capitalista. Oliveira e Apóstolos (2020) explicam que a acumulação do capital
implica inexoravelmente na diminuição da força de trabalho; e foi exatamente nisso que o Estado de
Bem-Estar Social atuou, tentando artificialmente evitar que o ciclo econômico do pós-guerra
resultasse naturalmente no aumento do desemprego e na decorrente criação do exército de
mão-de-obra reserva, que é uma regra geral da acumulação do capital: a política de pleno emprego
foi uma exceção à regra da economia capitalista, que floresceu nessa conjuntura geopolítica muito
particular e abreviada na história do capitalismo. O novo ciclo de acumulação do capital a partir de
1970, regido pelo Neoliberalismo, retirou parte da classe trabalhadora do circuito produtivo, e o
desenvolvimento tecnológico da robótica foi um dos principais fatores da onda de desemprego
estrutural, acompanhada das políticas de ‘austeridade’ e precarização do trabalho. Inclusive, é nesse
contexto das ‘sobras do sistema’, que se o encontro entre os ‘resíduos sólidos’ da sociedade de
consumo e os catadores de materiais recicláveis.
24
neoliberal passa a determinar a política econômica mundial; e o surgimento do
ambientalismo moderno, quando a ecologia se torna um assunto político e se
desenham os primeiros contornos das políticas ambientais públicas.
A origem do ambientalismo moderno está em função da crítica ecologista aos
impactos ambientais advindos do desenvolvimentismo-economicista desde os Anos
Dourados, que pleiteava a adoção de políticas regulatórias da economia em nome
da prudência ecológica. Um marco significativo dessa época foi a realização da
Conferência de Estocolmo, em 1972, precedida pela publicação do emblemático
relatório intitulado “Limites do Crescimento”, fundando a disputa por uma nova
ordem mundial, pautada pela prudência ecológica ante o Colapso Ambiental
derivado de uma economia crescimentista. A mensagem ecologista era muito clara:
aquela ordem de acontecimentos que vieram a definir uma civilização, não poderia
continuar mais por muito tempo, porque cedo ou tarde a sociedade da abundância e
do desperdício não seria mais sustentável. Assim, as forças ambientais conseguem
se impor numa relação de poder exatamente no momento histórico em que o Estado
regulador é substituído pelo ideário neoliberal. A regulação ambiental pública nasce
e se afirma a partir do momento que se inicia o Estado Mínimo e a desregulação
estatal, mas que contraditoriamente não chega a influenciar as políticas ambientais
nos países capitalistas. Desde então, se erige todo um universo de política e gestão
ambiental pública, com a manutenção do Estado regulando a economia.
Ao mesmo tempo que se celebrava o reino da abundância nos países centrais
do capitalismo globalizado, enquanto os trabalhadores no hemisfério norte se
tornavam classe média desfrutando dos privilégios do consumo moderno,
testemunhou-se um debate que viria a renovar a preocupação malthusiana com o
perigo do crescimento populacional desenfreado, especialmente no hemisfério sul.
Os Anos Dourados foram marcados também pelo período que abrangeu a
descolonização, e a extrema pobreza acrescida da explosão populacional em muitos
países do Terceiro Mundo se tornou uma questão de grande proporção a mobilizar
acalorados debates sobre o desenvolvimentismo (SAES; SAES, 2013).
Em sintonia com o momento e afinado com a ideologia mainstream, Paul
Ehrlich publicou em 1968 The Population Bomb”, correlacionando o ritmo
exponencial do crescimento populacional a uma bomba relógio prestes a detonar,
caso não fosse desarmada. Com a revisão ecologista do postulado malthusiano, o
efeito explosivo da bomba populacional afetaria não a segurança alimentar
25
global, mas comprometeria também outras dimensões da existência humana no
planeta: não faltaria apenas alimento, mas também água, energia, recursos naturais
renováveis e não renováveis. A natureza teria sua capacidade de suporte
ultrapassada, e não seria mais capaz também de absorver o lixo e diluir toda ordem
de poluentes e contaminantes antrópicos. Contudo, e coerente ao espírito
imperialista, a fórmula apresentada para conter a explosão populacional, repousou
justamente na disseminação do desenvolvimentismo nos países do hemisfério sul: a
compreensão era de que à medida que o país se desenvolvesse e propiciasse
progresso e crescimento econômico, a taxa de natalidade cairia e a pressão humana
sobre os recursos naturais diminuiria.
E foi nesse contexto histórico girando em torno do progresso e florescimento
da ideologia desenvolvimentista, da expansão do industrialismo, e da preocupação
neomalthusiana - mas também da própria Guerra Fria com o investimento espacial
na disputa entre Estados Unidos e União Soviética -; que entra em cena o planeta
Terra, com seus recursos naturais agora percebidos como finitos, desafiando o
otimismo cornucopiano10 com o cenário da escassez dos recursos naturais.
A partir do momento que a humanidade foi confrontada com a realidade de
que o mundo era um pequeno planeta no universo, ocorreu uma decisiva mudança
no imaginário social capaz de alterar o paradigma vigente da abundância e infinitude
dos recursos naturais. Um ‘pálido ponto azul’ vagando no Cosmos como anos
mais tarde, sabiamente denominou Carl Sagan (1996), com a visão da Terra obtida
pela sonda Voyager 1 na borda do sistema solar, a seis bilhões de quilômetros de
distância daqui. Foi em 1966 que foram feitas as primeiras imagens da Terra inteira
a partir do espaço (captadas antes pelo satélite soviético Molnia a 40.000 km de
altitude; e três meses depois, pela sonda norte-americana Lunar Orbiter, enquanto
10 Diz a mitologia greco-romana que a cabra Amaltheia amamentou Zeus quando era bebê. Sua
representação é a de um cifre repleto de frutos, simbolizando abundância e riquezas sem fim. Remete
à ideia do Paraíso, onde a natureza seria dadivosa e providente, fonte gratuita e eterna de recursos
ilimitados para os humanos. Os Cornucopianos são aqueles que carregam uma visão extremamente
otimista quanto ao crescimento econômico ilimitado e sem apresentar quaisquer consequências
negativas ao meio ambiente. O que os faz carregar essa confiança, se contrapondo frontalmente com
os profetas do apocalipse e suas previsões catastrofistas do colapso ambiental, seria a capacidade
da tecnologia superar certeira e continuamente todos os desafios e contradições que o
crescimentismo da economia pudesse acarretar. Para eles, naturalmente a evolução tecnológica
caminha na direção da eficiência produtiva e redução da degradação ambiental. Acreditando que a
pobreza é responsável pela degradação ambiental, os Cornucopianos carregam o mito da
infalibilidade tecnológica para resolver qualquer situação de escassez de recursos naturais, confiam
na força reguladora do mercado e rechaçam veementemente as propostas de limitar o crescimento
econômico (CHANG, 2001).
26
orbitava a Lua para fazer as primeiras imagens de sua superfície, a 350 mil km de
distância da Terra).
Essa é uma tomada de distância considerável para provocar a mudança de
perspectiva da abundância e prosperidade do American Way of Life, que se tinha
construído sobre um mundo que subitamente se converte em planeta. Até então não
se tinha clara a percepção de que ele seria tão pequeno. Tendo como palco a
vastidão do Cosmos, a Terra foi percebida como equivalente a um inexpressivo grão
de areia. Com essa nova e desconcertante percepção, ante o fantasma
neomalthusiano a assombrar o desenvolvimentismo, ecologistas tomam consciência
da existência de limites planetários, fazendo despertar a noção de escassez e
finitude dos recursos naturais. Entra em cena uma inquietante realidade, a dúvida da
capacidade do planeta suprir os recursos naturais necessários para a população em
rápido crescimento demográfico, e sobretudo, se desenvolvendo de acordo com o
ideário da Sociedade de Consumo e seu modo acelerado de produção-destrutiva.
Nesse imaginário modificado sobre o mundo, foi inevitável surgir a analogia
comparativa entre a Terra e uma nave espacial. A essa altura da história, a Guerra
Fria estava no seu auge, com as demonstrações do poderio tecnológico e militar
norte-americano e soviético. Esse ‘pálido ponto azul’ no espaço foi correlacionado
de imediato a uma nave espacial vagando pelo Cosmos, sem qualquer possibilidade
de parada em algum ponto do Universo para se abastecer de recursos necessários
para seguir adiante a viagem.
A concepção do planeta como equivalente a uma nave espacial havia sido
formulada anteriormente, mas nada comparável com a poderosa influência da
visualização das primeiras imagens da Terra vista a partir do espaço. Spaceship
Earth de Barbara Ward, em 1966; The economics of coming spaceship Earth de
Kenneth Boulding11, também em 1966; Operating manual for spaceship Earth, de
Buckminster Fuller em 1969; How to be a survivor: a plan to save spaceship Earth de
Paul Ehrilch, em 1971, são algumas das produções literárias de cunho ecologista
que tiveram origem a partir do despertar da noção de finitude de recursos naturais
que se confrontou com a lógica do desperdício. O paradigma cornucopiano da
inesgotabilidade ruiu ante os alertas catastrofistas dos ‘profetas do apocalipse’, com
a percepção de que o planeta Terra equivale a uma nave espacial vagando pelo
espaço, despertando a preocupação ecologista com o uso racional e parcimonioso
11 O autor já havia publicado um pequeno paper um ano antes, intitulado “Earth as a space ship”.
27
dos recursos naturais, para que eles tenham sua vida útil estendida por toda a
viagem indefinidamente; ou seja, para que a viagem ao futuro seja ‘sustentável’, ou
como dizem os ecologistas franceses, ‘durável’. Foi um distanciamento astrofísico
que proporcionou a ruptura paradigmática que inaugurou toda ordem ambiental
vinculada à questão da finitude dos recursos naturais ante o signo do desperdício.
Foi essa primeira imagem da Terra que produziu um efeito simbólico sem
proporções para o momento histórico de constituição do ambientalismo moderno,
fazendo aflorar a ideia de finitude de recursos naturais, organizando a pauta
estrutural do movimento de defesa da natureza em torno do uso racional dos
recursos naturais. O signo da abundância material, erigido em cima da prosperidade
econômica dos Anos Dourados viria a ser ressignificado pelo ambientalismo,
caracterizado agora com uma conotação negativa. No contexto da preocupação com
o uso racional dos recursos naturais, emergiu a intolerância ecologista com relação
ao desperdício e o enaltecimento da simplicidade.
A percepção da finitude dos recursos naturais é uma ideia central do
movimento ambientalista, porque ela se ancora no princípio da sustentabilidade
considerando o direito das gerações futuras seguirem a viagem terráquea pelo
Cosmos sem risco de esgotamento dos recursos; não por acaso, aspecto que
passou a orientar o desenvolvimentismo a partir do relatório Brundtland ‘Nosso
Futuro Comum’, quando faz alusão ao direito geracional ser a pedra fundamental do
Desenvolvimento Sustentável.
Os ecologistas foram os estraga-prazeres que fizeram ruir a doce ilusão de
que seria possível viver usufruindo dos intermináveis privilégios de um mundo de
abundância material e prosperidade econômica da Sociedade de Consumo. A
mensagem ecologista, na época entendida e rejeitada como um estapafúrdio convite
ao passado, aludia ao retorno do sentido original da necessidade básica, regida pela
ética da parcimônia, caso realmente haja algum compromisso da geração presente
com as gerações futuras. A ecologia da nave espacial Terra havia ensinado
parcimônia ante a escassez, como contrapeso à economia que esbanja desperdício
ante a abundância; e que por duas décadas, os anos 1970 e 1980, conseguiu
domesticar a economia capitalista, impedindo que a doutrina neoliberal exercesse
sua influência contra a regulação ambiental pública.
Até que tudo muda em 1992, no contexto da Conferência do Rio, quando
desponta o Ambientalismo de Mercado e sua promessa da Economia Verde de
28
proteger os direitos das gerações futuras herdarem um planeta sustentável. Dali em
diante, assiste-se a um franco processo de desregulamentação ambiental pública
nas economias capitalistas, onde se substituíram os mecanismos de comando e
controle por mecanismos de mercado na gestão ambiental, marcando um tempo
histórico de retrocessos nas institucionalidades de defesa ambiental pública no
capitalismo. Tardou mas não falhou: finalmente a doutrina neoliberal se impôs na
agenda ambiental da Sustentabilidade.
Pensar a questão ambiental nos anos 1970, era pensar no controle da
poluição industrial e do esgotamento dos recursos naturais, especialmente os não
renováveis. Era pensar em combater o desperdício do voraz metabolismo do
sistema industrial moderno. O lixo foi o elemento denunciador de um modelo
produtivo que explicitava o grau de desperdício da Sociedade de Consumo; e assim,
não tardou para que o combate ao desperdício se voltasse na direção da
reciclagem, como uma tentativa de recuperar a vida da mercadoria abreviada. O
volume de lixo que começou a ser produzido era de tal envergadura, que se tornou o
testemunho ‘morto’ do impacto mais imediato da dialética entre produção acelerada
e consumo desenfreado. Quando a retórica da reciclagem ganhou vigor, o lixo se
tornou ‘resíduo sólido’, e essa conversão nomenclatural se deu em função da
factibilidade do caminho a seguir, na conversão do lixo em nova matéria-prima, na
perspectiva de se ‘poupar a extração de mais recursos naturais para a fabricação de
novos produtos, em função da reinserção dos resíduos sólidos no metabolismo
industrial como uma ‘matéria-segunda’: a ideia era oportunizar o reaproveitamento
dos materiais descartados como ‘inservíveis’ na produção industrial. A essência do
uso racional dos recursos naturais passa, antes de tudo, pelo combate ao
desperdício; mas isto, na lógica da economia de mercado, passa pela reciclagem. A
fórmula ideal do Ambientalismo de Mercado como sua compreensão do ‘uso racional
dos recursos naturais’ repousa na ideia do ciclo de vida da mercadoria dentro do
sistema industrial, passando a pavimentar o caminho da Economia Circular.
A noção de finitude dos recursos naturais poderia ter sido um fator limitador
da prática da Obsolescência Planejada. Ocorre que essa constatação encontrou um
ambiente industrial viciado na Produção-Destrutiva com o encurtamento
programado da vida útil da mercadoria. O retorno da durabilidade da mercadoria não
era mais uma questão. Assim, a solução apresentada pelo Ambientalismo de
Mercado ante o desperdício dos recursos naturais não foi na direção da
29
regulamentação política da Obsolescência Planejada para limitar essa prática de
encurtamento intencional da vida útil da mercadoria; e sim na direção da
recuperação das mercadorias descartadas precocemente como inservíveis. É nessa
direção que se cria a proposta do mercado da indústria da reciclagem e se estrutura
a lógica da Economia Circular, um certo malabarismo conveniente para não se
interferir no acelerado ritmo de produção em massa.
Sim, em tese a reciclagem e a Economia Circular apontam o caminho correto,
apesar de incompleto e portanto, inócuo. Além disso, quanto falta para o modelo
produtivo atual se converter de fato no ecossistema produtivo prometido pela
Economia Circular? Porque mais de 40 anos depois que se começou a praticar a
reciclagem, apenas 2% do lixo brasileiro ainda é reciclado?
A Grande Aceleração, o Capitaloceno e o Colapso Ambiental
A nova ordem estabelecida nos Anos Dourados fomentou a prosperidade
econômica e alguma equidade social dentro desse regime socioeconômico, mas em
detrimento da qualidade ambiental que ainda não havia se mostrado claramente
como um problema fulcral derivado daquela época de desmesura e desperdício.
Contudo, quatro décadas depois dessa reconversão produtiva do capitalismo, o
impacto antrópico planetário era tão evidente, que chegou a ganhar um marco
geo-histórico representativo dessa ruptura, em que a espécie humana se tornou uma
força geológica em escala planetária interferindo exponencialmente nos sistemas
geoecológicos: o Antropoceno, para definir uma nova época que veio interromper
bruscamente um período de estabilidade climática, o abreviado Holoceno com seus
parcos dez mil anos de duração.
Entretanto, Colacios e Andrade (2021) advertem que o sentido ideológico do
termo oficial ‘Antropoceno’ está alinhado ao projeto de manutenção da ordem
capitalista, onde a narrativa dominante inclui versões que imputam genericamente à
espécie humana o ônus dessa ruptura sociometabólica, até visões triunfalistas da
capacidade de controle humano sobre o planeta. No limite, todas subtraem a
responsabilidade direta do capitalismo, e o Antropoceno aparece como uma
estratégia ideológica de ocultação das contradições do capitalismo. E o repertório
das soluções oferecidas por tal perspectiva conservadora vai da introdução da
geoengenharia até a desgastada, mas resistente fórmula ideológica da reorientação
30
moral dos comportamentos individuais de consumo direcionadas agora a um
consumo Eco-Friendly rotulado como ‘sustentável’ como efeito da modernização do
antigo ‘consumo patriótico’ dos anos 1950. Para os autores, contudo, o Antropoceno
nada mais é do que a manifestação histórica dos imperativos da reprodução social
capitalista atingindo proporções bíblicas. Advertem ainda, que o próprio momento
em que se funda o termo Antropoceno é revelador do caráter ideológico; quando
finalmente pessoas ‘civilizadas’ começaram a perceber aquilo que povos e classes
subjugadas pelo desenvolvimentismo já sentiam há tempos.
O marco histórico estabelecido por Crutzen [a Revolução Industrial]
tem um apelo maior que das demais propostas, pois é abrangente,
apresenta justificativas para humanistas e cientistas naturais, aborda
o problema da produção e das suas emissões de poluentes. Porém
não aponta o sistema do capital como responsável, não o historiciza
e, portanto, não atribui ao mesmo a sua devida centralidade na
conformação do problema do Antropoceno; ao contrário, encerra a
culpa em uma humanidade indeterminada e geral, protegendo-se
assim, de eventuais críticas liberais e progressistas (COLACIOS;
ANDRADE, 2021, p. 47, grifo nosso).
Na era do Antropoceno, a mensagem ideológica diz que a ‘humanidade’ teria
se tornado uma força de expressão geológica equivalente aos processos
geomorfológicos planetários. Mas quando começou o Antropoceno, onde está a
fronteira definitiva que demarca a mudança de época geológica? Essa periodização
pode ter vários pontos de partida, e cada um deles disputa uma determinada visão
ideológica da realidade12. Alguns atestam que no Paleolítico com a domesticação do
fogo teríamos o início do Antropoceno, outros pontuam que o Antropoceno teve
início no Neolítico, com a agricultura. Outros creem que foi a partir da Revolução
Industrial com o industrialismo13 baseado na energia fóssil; outros, entretanto,
apontam que foi quando começaram os primeiros testes nucleares que deixou uma
13 O industrialismo capitalista não é o mesmo do socialista. Resistimos ao argumento a-histórico de
que o socialismo, se fosse hegemônico, também teria as mesmas implicações causais que o
capitalismo na origem do Colapso Ambiental, porque a Obsolescência Planejada e o Consumismo
foram invenções do Capitalismo e na sociedade norte-americana. A idealização da abundância como
sintoma de felicidade, a cultura do desperdício foram invenções do Capitalismo. A manobra cultural
para criar uma Sociedade de Consumo foi feita pelo Capitalismo. Afinal, estamos falando do
American Way of Life, e não do Soviet Way of Life.
12 Acreditamos que seja um processo em curso, sem que seja possível reconhecer a exata fronteira
entre um ‘antes’ e um ‘depois’. Assim como não anoitece verão e amanhece inverno, porque um
intervalo de três meses chamado outono; o Antropoceno pode ser entendido como um processo
pontuado por várias etapas, partindo da dinâmica de instauração do paradigma Antropocêntrico até a
constituição moderna da Sociedade de Consumo.
31
assinatura radioativa no planeta, e outros ainda, afirmam que foi quando ocorreu a
chamada 'Grande Aceleração’.
Görg et al (2020) advertem para a necessidade de se esclarecer o conteúdo
ideológico do termo Antropoceno, e reconhecem que o estudo histórico do
desenvolvimento do capitalismo ajuda bastante nessa tarefa, porque permite
entender os acontecimentos da Grande Aceleração14 que aconteceu no modo de
produção e consumo e seu respectivo impacto com as mudanças no estado e
funcionamento do sistema ambiental planetário.
Santos (2009) adverte que as mudanças dramáticas e exponenciais ocorridas
no período da Grande Aceleração levaram o planeta ao esgotamento ambiental,
enquanto Syvitski et al (2020) enfatizam que a correlação entre os acontecimentos
sócio históricos a partir de 1950, é muito consistente com a resposta biofísica,
ambiental e climática do planeta; para com base nisso, estabelecer o marco
temporal da nova época. No próprio título do artigo assinado por dezesseis
pesquisadores de diversas partes do mundo (HEAD et al, 2021), os autores afirmam
que ‘a Grande Aceleração é real, e fornece a base quantitativa necessária para a
proposta do Antropoceno’.
Figueiredo, Marquesan e Imas (2020) reconhecendo o marco da Grande
Aceleração como momento de ruptura com o Holoceno, enfatizam que ela
compreende o surgimento e difusão da ideologia desenvolvimentista, e se
perguntam se, pela perspectiva decolonial, não seria mais apropriado nomear a
nova época geológica como Desenvolvimentoceno’, porque esse termo se
correlacionaria melhor com o neo-desenvolvimentismo predatório que ocorreu a
partir do início do século 21 no hemisfério sul, para atender o estilo de vida
consumista erigido nos países centrais do capitalismo globalizado.
Pessis, Topçu e Bonneuil (2013), sem remeter a Grande Aceleração à
questão do Antropoceno, advertiam que um lado pouco visível quando se
enaltece os gloriosos Anos Dourados: na contramão do progresso da modernidade e
da consolidação do capitalismo que trouxeram a notável melhoria nas condições de
vida dos países avançados, ocorreu um enorme custo socioambiental, embora
ignorado.
14 Head et al (2021) destacam que o termo “A Grande Aceleração” representa uma homenagem a
Karl Polanyi e sua magistral obra que decifra o capitalismo durante a Revolução Industrial, intitulada
“A Grande Transformação”.
32
Silva e Arbilla (2018) afirmam que o termo a Grande Aceleração foi criado
pelo grupo de trabalho da Comissão Internacional de Estratigrafia encarregado de
definir o período geo-histórico do surgimento do Antropoceno (STEFFEN, et al,
2015; McNEILL; ENGELKE, 2016). O grupo escolheu esse termo para definir o que
de fato ocorreu a partir dos Anos Dourados: uma grande aceleração exatamente
desde 1950, quanto à produtividade industrial, crescimento econômico e
populacional, adensamento urbano, uso de energia, extração de petróleo, produção
de plástico e de cimento, uso de fertilizantes químicos, construção de barragens,
edificação de infraestrutura de comunicação e de transporte, entre outros fatores. E
ao mesmo tempo, constata-se uma mudança drástica em vários indicadores da
qualidade ambiental planetária subsequente a esse fenômeno da modernidade
desenvolvimentista.
De todas as propostas de datar o início do Antropoceno, Steffen et al (2015) e
Görg et al (2020), embora rejeitem o termo Capitaloceno, assinalam que a Grande
Aceleração é a marca que apresenta a melhor correlação dos acontecimentos que
culminaram naquilo que a ciência do sistema Terra pontua como as evidências da
mudança de época geológica: a Grande Aceleração estaria diretamente vinculada
ao surgimento do modo de produção e consumo em massa e do American Way of
Life. Pádua (2015), que trata o assunto de forma desideologizada, sem correlacionar
a Grande Aceleração ao Capitalismo, também reconhece a brutal mudança de
escala ocorrida exatamente a partir dessa data, entendendo-a como um dos
aspectos mais importantes para se estabelecer esse marco referencial do
Antropoceno na escala geológica.
Na medida que a Grande Aceleração surge nos anos 1950, ela corresponde
aos acontecimentos dos Anos Dourados do Capitalismo. É precisamente no
contexto da fundação da Sociedade de Consumo, que o grupo pretende datar o
início do Antropoceno, não como domínio humano da modernidade sobre a
natureza, mas como um fracasso retumbante em conduzir a espaçonave Terra. Se
as digitais da luta de classes (MOORE, 2022) ou do capitalismo estão presentes nas
evidências da mudança de época geológica, então estamos falando pelo menos
implicitamente de um Capitaloceno, como entendem Altvater (2014), Moore (2016),
Barcelos (2019), Riechmann (2019), Colacios e Andrade (2021); quando
empreendem a leitura pela perspectiva marxista para analisar o Antropoceno; entre
33
outros que também aceitam o termo Capitaloceno mas com algumas ressalvas,
como Carvalho (2015).
Se a Grande Aceleração nos leva ao Antropoceno, este nos traz aos
indicadores ambientais para mensurar o estado de saúde planetária e o nível de
suprimentos de suporte à vida na espaçonave Terra. Assim é que o caráter
expansionista da acumulação do capital parece finalmente ter encontrado seus
limites mais desafiadores a lidar, as “fronteiras planetárias”, a contradição definitiva
do capital que compromete a capacidade suporte ecossistêmica e a vida na biosfera
(ROCKSTROM, 2009). está a resposta à dúvida de como seria possível haver
uma economia crescimentista num planeta finito.
Resta agora, lembrar que esse projeto civilizatório foi criado a partir de uma
conjuntura historicamente determinada por uma conjunção de fatores manejados a
partir da social democracia Keynesiana aplicada a um Estado de Bem-Estar Social
dentro de uma reconversão estrutural do modo de acumulação do capital no
pós-guerra nos anos 1950; um Estado interventor da economia a título de garantidor
de uma inédita conciliação de classe, distribuindo a riqueza para a classe
trabalhadora, enquanto era conveniente mostrar que o capitalismo era o território da
prosperidade material. Essa mesma Sociedade de Consumo, fundada na lógica do
desperdício e que inventou a Produção-Destrutiva conduzindo a espaçonave Terra
velozmente na direção do Antropoceno, que agora tenta encontrar os padrões de
produção e consumo sustentáveis, mas que ainda não parece ter muita clareza de
como pactuar a conciliação da ordem capitalista com a natureza; com o
neoliberalismo que nos deixa reféns das forças fundamentalistas de mercado e
que desde a Rio 92 não cumpriu a promessa de ter mudado o rumo da
insustentabilidade.
Ainda dentro dos Anos Dourados, era possível encontrar críticas à
Sociedade de Consumo, como por exemplo, a canção “Somente o Necessário”,
escrita por Terry Gilkyson para a animação cinematográfica de 1967 de Walt Disney,
“Mogli, o Menino Lobo”. se notava descontentamentos com o consumismo. A
letra é explícita e inequívoca de seus sentidos: “Procure as necessidades básicas /
As necessidades básicas simples / Esqueça suas preocupações e seus conflitos /
Quero dizer as necessidades básicas / Receitas da velha Mãe Natureza / Que traz
as necessidades básicas da vida”, na tradução literal da versão original em
34
inglês15que possui algumas diferenças em relação à versão brasileira, e que
destacadamente menciona a Natureza como o lugar de encontro com as reais
necessidades humanas. Uma poderosa mensagem de prudência e parcimônia para
aquela sociedade que segue uma arriscada viagem terráquea em direção ao centro
da ‘antropofilia’.
Schmidheiny (1992), autor de uma clássica publicação ecocapitalista,
“Mudando o Rumo”, uma clara alusão ao universo produtivo ter desenvolvido o
Ambientalismo Empresarial, inicia a sua obra com uma citação de Theodore
Roosevelt, em discurso proferido ao Congresso norte-americano em 1907:
Desperdiçar e destruir os nossos recursos naturais, despojar e exaurir a terra, ao
invés de usá-la de modo a aumentar a sua utilidade, arruinará a única prosperidade
que temos o dever e o direito de legar ampliada e desenvolvida a nossos filhos”. Não
resta dúvida a preocupação moral com o desperdício dos recursos naturais, e o que
isso poderia significar como direito das gerações futuras, passageiras da
espaçonave Terra, terem suas necessidades atendidas.
No final das contas, talvez o maior desafio da Sociedade de Consumo seja
aprender a lição de Mogli, o menino-educador, de viver com “somente o necessário”
dentro da espaçonave Terra. Mas quem vai ensinar isso, se essa não é uma
questão moral, mas sobretudo política?
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V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
RELAÇÕES SERES HUMANOS-NATUREZA: TRABALHO, CULTURA E
PRODUÇÃO DE SABERES1
Maria Clara Bueno Fischer2
Doriedson do Socorro Rodrigues3
Resumo4
O presente texto traz, a partir do materialismo histórico-dialético, uma contribuição à análise do intercâmbio seres
humanos-natureza mediados pelo trabalho como crítica do modo de produção capitalista, que impõe uma ruptura
dessa relação nesse intercâmbio. Contudo, contrapondo-se a essa perspectiva, é possível identificar outros
modos de vida que resistem a isso no interior das contradições capital-trabalho. As reflexões propostas almejam
colaborar com o aprofundamento de análises sobre as relações entre trabalho e educação, em particular o
trabalho como princípio educativo, a partir do enfoque do tema relações entre seres humanos e natureza.
Palavras-chave: Relações entre seres humanos-natureza; Trabalho como princípio educativo; Modos de vida.
Povos e comunidades tradicionais.
RELACIONES SERES HUMANOS-NATURALEZA: TRABAJO, CULTURA E PRODUCCIÓN DE SABERES
Resumen
El siguiente texto trae, partiendo del materialismo histórico-dialéctico, una contribución a el análisis de
intercambio seres humanos-naturaleza por medio de el trabajo como crítica de el modo de producción capitalista,
que impone una ruptura de esa relación en ese intercambio. Sin embargo, y en oposición a esa perspectiva, es
posible identificar otros modos de vida que resisten a eso en el interior de las contradicciones capital-trabajo. Las
reflexiones propuestas buscan colaborar con la profundización de análisis sobre las relaciones de trabajo y
educación, en particular el trabajo como principio educativo, enfocando en el tema relaciones entre seres
humanos y naturaleza.
Palabras-llave: Relaciones entre seres humanos y naturaleza; Trabajo como principio educativo; Modos de vida;
Pueblos y comunidades tradicionales.
HUMAN-NATURE RELATIONS: WORK, CULTURE AND KNOWLEDGE PRODUCTIO
Abstract
The present text brings, from the historical-dialectical materialism, a contribution to the analysis of the
human-nature interchange mediated by labor as a criticism of the capitalist production mode, which imposes a
rupture of this relation in this interchange. However, in opposition to this perspective, it is possible to identify other
ways of life that resist this within the capital-labor contradictions. The proposed reflections aim to collaborate with
the deepening of analyses about the relations between labor and education, in particular labor as an educational
principle, from the focus of the theme relations between human beings and nature.
Keywords: Relations between human beings and nature; Labor as an educational principle; Ways of life;
Traditional peoples and communities.
4Este artigo é uma síntese do conteúdo do minicurso “Relações Seres Humanos-Natureza: trabalho, cultura e
produção de saberes”, ministrado pelos autores nos dias 14 e 16 de setembro de 2021, pelo GT 09 Trabalho e
Educação - no contexto da 40ª Reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
(ANPED).
3Doutor em Educação. Docente da Universidade Federal do Pará, Campus Universitário do Tocantins/Cametá -
Pará, Brasil. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação (GEPTE/UFPA) e do Grupo
de Pesquisa História, Educação e Linguagem na Região Amazônica (GPHELRA/UFPA). Bolsista CNPQ PQ2.
E-mail: doriedson@ufpa.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1127076028303549. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5120-2484.
2Doutora em Educação pela Universidade de Nottingham, Inglaterra. Professora da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, na linha de pesquisa Trabalho, Movimentos Sociais e Educação. Grupos de Pesquisa: Trabalho
Educação e Conhecimento (GPTEC/UFRGS) e Trabalho, Movimentos Sociais e Educação (TRAMSE/UFRGS).
Bolsista CNPq - PQ1. E-mail: mariaclara180211@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3835786000876089.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2289-5282.
1Artigo recebido em 17/08/2022. Primeira avaliação em 17/08/2022. Segunda avaliação em 18/08/2022.
Aprovado em 17/09/2022. Publicado em 10/11/2022.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.55637.
1
Introdução
“Minha comunidade não consegue viver sem peixe e o rio
Xingu é o que o peixe pra gente. Então, morreu o Xingu pra
gente, a gente também morre junto. O rio é nossa vida. Se o rio
secar, a gente morre junto, porque o rio é nossa vida”
(Watatakalu Yawalapiti, 2009)5.
Essa afirmação é contundente de ações do capital contra povos e
comunidades tradicionais e seus processos de resistência, considerando-se que tem
sido um imperativo desse sistema o estabelecimento de uma ruptura do vínculo
entre a humanidade e a natureza, comprometendo, drasticamente, a vida no planeta
em suas diferentes dimensões, como as decorrentes das relações entre trabalho e
educação.
Em termos investigativos e de lutas a favor da vida, trata-se de uma ruptura
que vem sendo problematizada por um conjunto de pesquisadores e pesquisadoras
do campo Trabalho-Educação6, a partir da análise sobre modos de vida em oposição
ou resistência ao capital. Referimo-nos a pesquisas sobre experiências que
acontecem em:
[...] espaços/tempos que se inter-relacionam, constituindo-se no
cruzamento das determinações do capital e da auto atividade de
mulheres e homens trabalhadores que insistem em afirmar modos de
vida fundados em formas não capitalistas de organização social. São
eles: a) espaços/tempos revolucionários–quando são produzidas
mudanças estruturais na sociedade. Verifica-se a dualidade de
poderes, ou o confronto entre capital e trabalho que se manifesta por
meio de revoltas e rebeliões ; b) espaços/tempos da atual crise do
capital e do trabalho assalariado– nos quais as estratégias
associativas de trabalho se configuram como parte integrante da
economia popular, da economia popular solidária, dos movimentos
de ocupação de fábricas e moradias, do MST, das experiências de
agroecologia fundadas no trabalho coletivo e nos laços de
solidariedade estabelecidos no conjunto da comunidade; c)
espaços/tempos das economias e culturas dos povos e
comunidades tradicionais–comunidades indígenas, quilombolas,
seringueiros, caiçaras, ribeirinhos, pescadores artesanais,
pantaneiros, pequenos produtores rurais, entre outros grupos
vinculados à agricultura ou à pecuária, aos rios ou aos mares, ao
agroextrativismo e a ecossistemas específicos (FISCHER;
CORDEIRO; TIRIBA, 2022, p. 5).
6Considerem-se, a esse respeito, os trabalhos de Fischer, Cordeiro e Tiriba (2022), Souza (2020),
Tiriba e Fischer (2015), Santos (2021), dentre outros.
5Trechos de fala de Watatakalu Yawalapiti no Filme - Povos do Xingu contra a construção de Belo
Monte (2009). Link de acesso: https://www.youtube.com/watch?v=Vqo2MZzYPHU.
2
Sob essa perspectiva investigativa, realizou-se o minicurso cujo objetivo foi
contribuir com o aprofundamento das análises sobre as relações entre trabalho e
educação, em particular o trabalho como princípio educativo, a partir do enfoque do
tema relações seres humanos-natureza, partindo-se da compreensão do trabalho
como categoria ontológico-histórica e que é princípio educativo. Teoricamente,
dialogamos com textos de Marx (1962; 1984), especialmente, mas também de
Engels (2020), com a mediação de leituras de pesquisadores, teóricos, estudiosos
da obra de Marx como Löwy (2014), Saito (2021), entre outros.
Num primeiro momento buscamos articular reflexões sobre: a) a ideia que o
ser humano é parte da natureza; b) o trabalho, nas suas dimensões
ontológico-históricas, enquanto mediação central da relação ser humano-natureza;
c) como tem se dado o metabolismo entre seres humanos e natureza é tema central
para entender a crise socioambiental no contexto do capitalismo bem como para
apreender modos de vida que a ele se opõem; d) as categorias mediações de
primeira ordem, que promovem nexos íntimos entre seres humanos e natureza, e as
mediações de segunda ordem do capital que tornam hegemônico o modo de
produção capitalista.
Na sequência, refletimos sobre modos de vida de povos e comunidades
tradicionais cuja investigação demanda discutir e problematizar,
epistemologicamente, as relações entre os seres humanos mediadas pelo trabalho
e, por conseguinte, o trabalho como princípio educativo. Decorre daí a análise sobre
processos de produção de saberes, considerando a relação intrínseca entre
economia e cultura, oriunda da relação entre seres humanos e natureza mediada
pelo trabalho, e os desafios da integração desses saberes no interior de processos
formativos em contextos formais e não formais. Como fio condutor empírico-teórico,
partimos da análise das tecnologias de produção da vida e saberes do trabalho da
pesca em comunidades ribeirinhas. A seguir, ensaiamos alguns desafios para o
aprofundamento do tema em tela para estudiosos e ativistas do campo
Trabalho-Educação.
3
Relações seres humanos-natureza mediadas pelo trabalho
Analisar as relações seres humanos-natureza mediadas pelo trabalho é de
fundamental importância para pesquisadores e pesquisadoras do Campo
Trabalho-Educação dada a centralidade que a categoria trabalho tem para o Campo.
O materialismo histórico-dialético é um dos referenciais que nos ajuda a entender
processos sócio-econômico-culturais atuais de aprofundamento de rupturas
naquelas relações no capitalismo; e, ao mesmo tempo, de identificar e analisar
outros processos que, na contracorrente, resistem à destruição da natureza,
incluindo o próprio ser humano.
Partimos da assunção marxiana de que o ser humano é parte constitutiva da
natureza e o trabalho é central no metabolismo estabelecido na relação entre o ser
humano e a natureza. Na lógica do capital, uma ruptura radical desse
metabolismo, o que nos leva à convicção da imperativa necessidade de identificar e
analisar, como parte da historicidade desse fenômeno, outras lógicas existentes, no
tempo presente, dessa relação em que grupos sociais lutam para preservar
perspectivas de complementaridade e não promover ruptura destrutiva entre ser
humano e natureza.
O tema em questão, portanto, assume centralidade para entender, “para além
das aparências”, a crise ambiental e ecológica que temos vivido, como nos mostram
estudos do campo do marxismo. Isto posto, citamos e comentamos aqui algumas
referências teóricas que contribuíram significativamente para nos conduzir, em
diálogo com algumas de nossas pesquisas, a reflexão realizada no minicurso e aqui
apresentada: a obra de Kohei Saito (2021), intitulada O Ecossocialismo de Karl
Marx; o livro de Michael Löwy (2005), Ecologia e Socialismo; o verbete Ecologia e
Meio Ambiente de Barbara Harris-White (2020); Dicionário da Educação do Campo,
organizado por Roseli Caldart, Isabel Brasil Pereira, Paulo Alentejano e Gaudêncio
Frigotto (2012) e o livro História, Natureza, Trabalho e Educação - Karl Marx e
Friedrich Engels, organizado por Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta e Roseli Salete
Caldart (2020). A seguir, alguns comentários acerca desses textos.
As análises do livro O Ecossocialismo de Karl Marx (Saito, 2021) foram
particularmente importantes na construção de nossos argumentos. Saito (2021), que
apresenta uma reflexão densa, resultante da sua tese de doutorado defendida em
4
2016, busca reconstruir de forma sistemática a presença de uma crítica de Marx ao
capitalismo no que diz respeito às relações entre ser humano e natureza. Para Saito
(2021) não é possível compreender de forma plena o escopo da crítica da economia
política de Marx se for ignorada a dimensão ecológica presente na obra marxiana,
o verbete 'Ecologia e Meio Ambiente', de Barbara Harris-White (2020), traz
uma contribuição relevante ao apresentar uma síntese de alguns autores, como
John Bellamy Foster, que o próprio Saito também comenta, que têm feito esse
percurso de analisar em que medida a dimensão ecológica está presente na obra de
Marx.
A referência ao Dicionário da Educação do Campo de Caldart, Pereira,
Alentejano, Frigotto (2012) nos parece fundamental por apresentar um conjunto de
verbetes que tratam do tema da relação Ser Humano-Natureza, como os seguintes:
agroecologia, agrobiodiversidade, meio ambiente, agrotóxicos, agricultura
camponesa, entre outros. A obra incorpora elementos teórico-práticos sobre o tema,
“encarnando-os” nos fundamentos da Educação do Campo. À época do minicurso
não estava disponível o Dicionário da Agroecologia e Educação de Dias, Stauffer,
Moura, Vargas (2022), cujos verbetes, praticamente todos eles, permitem ter uma
visão sintética e precisa de vários temas que desdobram e materializam elementos
teórico-práticos referentes às análises e proposições contemporâneas de religação
emancipatória entre seres humanos e natureza.
História, Natureza, Trabalho e Educação - Karl Marx e Friedrich Engels
(FRIGOTTO, CIAVATTA e CALDART, 2020), é uma seleção de vários de seus textos;
sendo que alguns deles remetem mais diretamente à relação Ser Humano-Natureza.
Em síntese, a realidade da crise ecológica que temos experimentado e o
diálogo com esses trabalhos teóricos e de pesquisa nos levou a destacar, para a
reflexão no minicurso, os seguintes aspectos: a) ser humano como parte da
natureza; b) o processo de trabalho como realização do metabolismo entre ser
humano e natureza; c) o capitalismo e as relações ser humano-natureza como
ruptura desse metabolismo; d) pensar as relações ser humano-natureza para além
do capital.
5
O trabalho como mediação da interação metabólica seres humanos-natureza
Nos Manuscritos Econômicos-filosóficos, Marx (1962, p. 84) afirma que o
homem é parte da natureza: “O homem vive na natureza significa que a natureza é
seu corpo, com o qual deve permanecer em intercâmbio contínuo, caso contrário ele
morre [...] homem é parte da natureza”. A natureza é parte do “seu corpo” com o
qual deve permanecer em intercâmbio contínuo: homens e mulheres vivem da e na
natureza. Do contrário, o ser humano morre. Dizer, como o faz Marx, que a vida
psíquica e intelectual do homem está indissoluvelmente ligada à natureza não
significa outra coisa senão dizer que a natureza está indissoluvelmente ligada
consigo mesma e, portanto, a nós, homens, mulheres. Isso quer dizer que refletir
sobre a relação seres humanos-natureza é imprescindível para analisar o presente e
projetar o futuro. Neste sentido, é essencial, ao pensarmos sobre as características
do intercâmbio seres humanos-natureza, mediado pelo trabalho, reconhecermos que
elas são condicionadas pelas mediações de primeira e de segunda ordem, de
acordo com Mészáros (2006), presentes nas manifestações históricas da relação ser
humano-natureza.
Ao produzir, o homem pode apenas proceder como a própria
natureza, isto é, pode apenas alterar a forma das matérias. Mais
ainda: nesse próprio trabalho de formação ele é constantemente
amparado pelas forças da natureza. Portanto, o trabalho não é a
única fonte dos valores de uso que ele produz, a única fonte da
riqueza material. Como diz William Petty: o trabalho é o pai, e a terra
é a mãe da riqueza material. (MARX, 1984, v.1, p.167).
Assim [...] o trabalho não é a fonte de toda a riqueza. A natureza é
fonte de valores de uso (que são, de qualquer forma, a riqueza real!)
tanto quanto o trabalho, que não é em si nada além da expressão de
uma força natural, a força do trabalho do homem. (MARX, 2010, p.
128).
Tais compreensões são centrais porque nos alertam para o fato que a
natureza é fonte de valores de uso, tanto quanto o trabalho humano. Nos indicam
que ser humano-natureza se constituem numa unidade.
Para Marx (1984), o trabalho é uma “atividade orientada a um fim para a
produção de valores de uso”, por meio da apropriação de outros elementos da
natureza “para a satisfação das necessidades humanas”, sendo condição universal
do metabolismo entre ser humano e natureza, dos processos de transformação
6
econômico-culturais que nos constituem como seres sociais sendo “condição natural
da vida humana”, independentemente “de qualquer forma particular dessa vida”,
sendo “comum a todas as suas formas sociais” (MARX, 1984, p. 290).
Saito (2021, p. 131) salienta, então, que “o trabalho como mediação
metabólica é essencialmente dependente e condicionado pela natureza”. Nesta
perspectiva, é preciso analisar criticamente que, como seres humanos, temos
dominado a natureza como um conquistador domina um povo estrangeiro e o
submete ao seu controle; como alguém que se encontra fora dela e dela se apodera
e não como quem é parte dela. Somos parte da natureza com a vantagem de, diante
de todas as outras criaturas, podermos conhecer as suas leis e, as conhecendo,
interferirmos para dominá-la ou com ela nos relacionarmos no sentido do
estabelecimento ou restabelecimento de formas de metabolismo de equilíbrio e
não de ruptura. Pensando como equilíbrio, o desenvolvimento das forças produtivas
teria como fundamento principal a produção de valores de uso, de bens necessários
à satisfação das necessidades humanas. No entanto, aquilo que é vantagem do ser
humano sobre os outros seres da natureza tem se tornado, contraditoriamente,
desvantagem, porque tem promovido a destruição do planeta e, portanto, de si
mesmo.
A ruptura do metabolismo nas relações seres humanos-natureza
A relação seres humanos - natureza, mediada pelo trabalho, assume
determinada forma histórica no capitalismo. No processo de acumulação,
concentração e centralização da riqueza, próprio do modo de produção capitalista, a
forma como se tal relação, que é de ruptura, é produtora de um conjunto de
mazelas que pode levar à extinção de todas as formas de vida. A título de ilustração,
na Amazônia, hidrelétricas do Rio Madeira7foram responsáveis por uma enchente
em Rondônia que chegou a São Carlos, comunidade de trabalhadores ligados à
pesca, e destruiu modos de produzir a vida na região, cujas populações tinham uma
7No minicurso, apresentamos o documentário “A cheia levou: os abandonados do rio Madeira”
(2017), que reúne relatos de como projetos hidrelétricos, a exemplo dos presentes no Rio Madeira,
destroem modos de vida de povos e comunidades tradicionais, tal o que ocorreu em 2014. Acesso
pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=RhKenVw54-w.
7
relação antagônica ao modo de produção capitalista. A lógica do capital é de
exploração e privatização da existência em todas as escalas.
Marx analisa como o processo de trabalho concreto, como um metabolismo
incessante entre seres humanos e natureza, é radicalmente modificado pela lógica
do capital. O trabalho, que é um recurso natural, no interior do modo de produção
capitalista torna-se mercadoria que produz outras mercadorias. É um processo de
alienação do trabalho e, portanto, é um processo de alienação da natureza. Na
produção de mercadorias para troca, matéria e energia são transformadas
continuamente. O trabalho é alienado das condições de produção e, portanto, o
equilíbrio físico e biológico é interrompido. Se o caráter do trabalho, que realiza o
metabolismo ser humano-natureza, é transformado pelo capital, segue-se que todo
metabolismo e todas as ações que transformam outros elementos e natureza e nós
mesmos são radicalmente alteradas. O “desejo” insaciável do capital de produção de
mais valor, condição de sua própria existência e manutenção, produz sua própria
“vocação” destrutiva da natureza e, portanto, do próprio ser humano. Através dos
processos de reificação, o capital transforma o que é desejo do capital em desejos
dos humanos e coloca toda a natureza em prol da sua valorização máxima. O modo
de produção capitalista produz uma subjetividade do mercado que conduz a
humanidade ao extremo nos processos de ruptura na relação com a natureza.
Reproduzimos, na sequência, uma passagem do livro I d’O Capital, a
conclusão que trata da grande indústria e da agricultura, em que o tema da ruptura
do metabolismo é tratada. Segundo Löwy (2005), é um dos textos em que Marx
coloca explicitamente a questão das devastações provocadas pelo capital sobre o
ambiente natural.
Com a preponderância sempre crescente da população urbana, que
amontoa em grandes centros a produção capitalista, acumula, por
um lado, a força motriz histórica da sociedade. Mas perturba, por
outro lado, o metabolismo entre homem e terra. Isto é, o retorno dos
componentes da terra consumidos pelo homem sob forma de
alimentos e vestuários. A terra, portanto, é eterna condição natural
da fertilidade permanente do solo. Com isso, ela destrói
simultaneamente a saúde física dos trabalhadores urbanos e a vida
espiritual dos trabalhadores rurais. Mas, ao destruir as condições
desse metabolismo desenvolvidas espontaneamente, obriga-o
simultaneamente a restaurá-lo, de maneira sistemática, como lei
reguladora da produção social. E numa forma adequada ao pleno
desenvolvimento humano.
8
E cada progresso da agricultura capitalista não é um progresso da
arte de saquear o solo, pois cada progresso no aumento da
fertilidade por certo período é simultaneamente um progresso na
ruína das fontes permanentes dessa fertilidade. Quanto mais um
país, como por exemplo os Estados Unidos da América do Norte, se
inicia com a grande indústria como fundamento desse
desenvolvimento, tanto mais rápido é o processo de destruição. Por
isso, a produção capitalista desenvolve a técnica e a combinação
do processo de produção social ao minar simultaneamente, a terra e
o trabalhador. (MARX, 1984, apud LÖWY, 2005, p. 28-29).
Percebe-se, então, que apreender a ruptura do metabolismo entre seres
humanos-natureza nos permite entender um conjunto de problemas sociais,
ambientais, culturais, que assolam a humanidade no interior das relações sociais
capitalistas.
O capital luta, constantemente e incansavelmente, pela superação de suas
limitações de expansão por meio do desenvolvimento de forças produtivas. Mas,
precisamente como resultado de tais tentativas contínuas de expandir sua escala,
reforça sua tendência incontrolável de explorar os recursos naturais à exaustão
(SAITO, 2021), incluindo a força de trabalho humana como no desmatamento
massivo da região amazônica e na poluição das águas. Na lógica do capital parece
que a natureza é inesgotável; mas não o é.
Pelo exposto até aqui, pode-se afirmar que entender criticamente e prospectar
relações Seres humanos-natureza não é uma escolha, mas um imperativo de
sobrevivência de todos os seres da Terra. Neste sentido, é necessário conhecer e
entender outras formas de relação com a natureza, como a de povos e comunidades
tradicionais que são atravessados pelas ordens do capital, e também como lutam
para manter e também construir outras possibilidades de metabolismo com a
natureza, em que a maximização do lucro não é a tônica nos permitindo “na busca
de um reino da liberdade diante do abismo” (FERNANDES, 2021, p. 14).
Seres humanos-natureza, povos e comunidades tradicionais da Amazônia,
territórios e saberes do trabalho
Para refletirmos sobre o tema em questão, entendemos a necessidade
teórico-metodológica de considerar as categorias (i) povos e comunidades
tradicionais, (ii) territórios e (iii) saberes do trabalho, partindo-se do pressuposto de
que esses saberes nos dão evidências sobre experiências econômico-culturais
9
pautadas na solidariedade, no trabalho coletivo, na valorização da vida em
desproveito das relações de mercado, auxiliando-nos na busca de um reino da
liberdade distante do abismo imposto pelo modo de produção capitalista, sendo
necessário, para tanto, entender os territórios, para além da perspectiva geográfica,
dos povos e comunidades tradicionais, a partir dos quais os saberes são produzidos.
Quanto à categoria Povos e Comunidades Tradicionais, ela diz respeito a uma
territorialidade econômico-sócio-antropológica-cultural e política (CRUZ, 2012;
TIRIBA; FISCHER, 2015), considerando-se suas lutas a favor da vida em oposição
às materialidades e subjetividades de mercado contra seus territórios, em que
homens e mulheres plasmam a natureza em prol do atendimento de suas
necessidades, como mediações de primeira ordem e com atravessamentos por
mediações de segunda ordem do capital8. De acordo com Cruz (2012, p. 596), essa
categoria abarca:
[...] os Povos Indígenas;Quilombolas;Populações agroextrativistas
(Seringueiros, Castanheiros, Quebradeiras de Coco de Babaçu);
Grupos vinculados aos rios ou ao mar (Ribeirinhos; Pescadores
artesanais; Caiçaras; Varjeiros; Jangadeiros; Marisqueiros); Grupos
associados a ecossistemas específicos (Pantaneiros; Caatingueiro;
Vazanteiros; Geraizeiros; Chapadeiros) Grupos associados à
agricultura ou à pecuária (Faxinais; Sertanejos; Caipiras;
Sitiantes-Campeiros; Fundo de Pasto; Vaqueiros.
Ainda conforme Cruz (2012, grifos do autor), esses diferentes grupos
possuem, dada a relação com a natureza, uma racionalidade ambiental com forte
relação com território e com o sentido de territorialidade, bem como uma
racionalidade econômico-produtiva que se contrapõe ao modo de produção
capitalista, embora possam ter relações parciais de atravessamentos, vendendo o
excedente da produção e comprando produtos manufaturados e industrializados.
Atualmente, entretanto, é preciso considerar, para além dessas parcialidades, as
subjetividades9capitalistas, a partir das mediações de segunda ordem do capital,
que vão sendo forjadas no interior da produção da existência de povos e
9Quanto à categoria Subjetividade numa perspectiva marxista, tomamos considerações a partir de
Sève (1989).
8No decorrer do minicurso, apresentamos o vídeo “As dificuldades dos quilombolas”, presente no
Canal Preto, com evidências da luta pelos territórios quilombolas, considerando suas ancestralidades,
oposição ao modo de produção capitalista. Link de acesso:
https://www.youtube.com/watch?v=gDXPK49-FAM.
10
comunidades tradicionais, como o empreendedorismo e as práticas produtivas de
individualização em oposição às ações coletivas e solidárias de trabalho.
Porém, mesmo diante dessas contradições, entendemos que esses diversos
grupos possuem processos de organização social, materializados em saberes com
amplas dimensões (política, cultural, econômica, social, técnica, dentre outras), que
consubstanciam processos de autoidentificação, com “[...] um sentido
político-organizativo [...] como alternativa ao modo de produção e ao modo de vida
capitalista” (CRUZ, 2012, p. 597), constituindo-se o território como espaços-tempos
de reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, conforme o disposto
pelo Decreto Presidencial 6.040/2007, ao destacar que os povos e comunidades
tradicionais:
[...] são grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem
como tais, que possuem formas próprias de organização social, que
ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para
sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica,
utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e
transmitidos pela tradição (BRASIL, 2007).
Nessa perspectiva, o território experienciado10 por povos e comunidades
tradicionais, enquanto “[...] base de reprodução e fonte de recursos [...]”, em termos
materiais, mas também com “[...] forte valor simbólico e afetivo [...]”, coloca-se como
“[...] referência para a construção dos modos de vida e das identidades dessas
comunidades [...]” (CRUZ, 2012, p. 597), também instituídas suas ações no
interior de lutas de classes, “[...] como uma espécie de identidade sociopolítica
mobilizada por esses diversos grupos na luta por direitos” (CRUZ, 2012, p. 597).
Trata-se de uma perspectiva teórica que nos permite considerar os territórios
de povos e comunidades tradicionais como condição importante para as discussões
sobre saberes do trabalho, concordando com o disposto por Fischer, Cordeiro e
Tiriba (2022, p. 203, grifo nosso), ao discutirem premissas político-epistemológicas
voltadas para investigações sobre relações seres humanos-natureza e saberes do
trabalho associado, para quais o “Apreender como os saberes do trabalho associado
se manifestam requer apreender mediações, contradições, particularidades e
singularidades dos espaços/tempos onde eles se constroem [...]”, a partir do que
10 Tomamos a categoria experiência a partir de Thompson (1981).
11
podemos interrogar como os saberes do trabalho são construídos, materializados,
decorrentes dos territórios de vida das experiências de trabalho.
Nesse sentido, entendemos, com base em Santos (2002, p. 8), que o
território “[...] não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas de
coisas superpostas [...]”, mas os diferentes usos que os sujeitos dele fazem, nele se
constituindo suas diferentes identidades, entendidas como “[...] o sentimento de
pertencer àquilo que nos pertence [...]”, sendo o “[...] fundamento do trabalho, o lugar
da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida”, também
compreendidas suas lutas por direitos, opostas aos interesses de mercado, “[...] o
lugar em que desembocam todas as ações, todas as paixões, todos os poderes,
todas as fraquezas, isto é, onde a história do homem plenamente se realiza a partir
das manifestações da sua existência [...]”.
É, pois, a partir dessa compreensão de território, como espaços-tempos de
contradições, de experiências de classe efundamento do trabalho, conforme Santos
(2002), também com conotações políticas, que podemos entender a categoria
analítica saberes do trabalho, como a materialidade objetiva-subjetiva da unidade
trabalho-educação, a partir da qual homens e mulheres socializam suas
experiências políticas, organizativas, tecnológicas, identitárias, dentre outras
perspectivas experienciais sentidas, percebidas e modificadas, a partir de suas
materialidades econômico-culturais, considerando o disposto por Thompson (1981).
O exame, portanto, dos territórios de povos e comunidades tradicionais é
crucial para a análise dos saberes do trabalho, de modo a compreender diferentes
realidades plasmadas [como as econômicas, culturais, sociais, políticas, afetivas,
identitárias, classistas] por seus sujeitos, a partir da categoria trabalho (MARX,
2008), considerando as mediações de primeira ordem e os atravessamentos das
dimensões de segunda ordem do capital (MÉSZÁROS, 2006), conforme o disposto
por Fischer, Cordeiro e Tiriba (2022).
De acordo com Mészáros (2006, p. 213), as mediações de primeira ordem
dizem respeito às “determinações ontológicas” estabelecidas pelo trabalho, que
permitem a reprodução da existência humana, a partir da relação de
complementaridade entre o ser social, que é natureza, com outros elementos da
natureza. Por outro lado, as mediações de segunda ordem do capital alteram:
12
[...] cada uma das formas primárias [...], [...] de modo a se tornar
quase irreconhecível, para adequar-se às necessidades
expansionistas de um sistema fetichista e alienante de controle
sociometabólico, que subordina absolutamente tudo ao imperativo da
acumulação de capital [...] se interpõem, como ‘mediações’, em
última análise destrutiva da ‘mediação primária’, entre os seres
humanos e as condições vitais para a sua reprodução, a natureza.
Nessa perspectiva, os saberes do trabalho podem expressar as mediações de
primeira ordem como as de segunda ordem do capital, sendo produzidos nos
territórios de povos e comunidades tradicionais e entendidos, a partir de Rodrigues
(2012), como materialidades objetivas-subjetivas do trabalho, quer em sua dimensão
abstrata como concreta, expressos em tecnologias, mas também em relações
econômico-culturais vividas, percebidas e modificadas por esses sujeitos, não se
constituindo, uma realidade abstrata, como que deslocada na existência cotidiana,
mas “[...] uma evidência da unidade entre pensamento e prática, expressão do ato
único do homem que na ação elabora a realidade, recriando, transformando-a”
(DAMASCENO, 1995, p. 21). E como resultado “[...] do trabalho e da luta [...]”, sendo
“[...] a expressão concreta da consciência de um grupo social, um saber que é útil ao
trabalho, aos enfrentamentos vividos cotidianamente [...]” (DAMASCENO, 1995, p.
25).
Em termos analíticos, o exame dos saberes do trabalho decorrentes desses
territórios pode contribuir com as discussões sobre as relações trabalho,
conhecimento e educação (TIRIBA; FISCHER, 2015), considerando o trabalho como
princípio educativo (GRAMSCI, 1988) e os processos de integração saberes e
conhecimentos na formação de trabalhadores e trabalhadoras, numa perspectiva de
luta de classes (RODRIGUES, 2020),bem como sobre as relações de produção
econômico-culturais e os metabolismos nas relações seres humanos-natureza, no
interior das contradições capital e trabalho.
Em síntese, consideramos que a compreensão de modos de produção da
vida de povos e comunidades tradicionais encontra-se integrada à de territórios, de
onde resultam diferentes saberes do trabalho, neles podendo haver, conforme
Marañón (2012), evidências de relações de produção e reprodução de uma
solidariedade econômico-cultural opostas as de natureza capitalista (fundadas na
sempre extração da mais-valia e da implementação-intensificação da racionalidade
de valores de troca), porque buscam, de acordo com Tiriba e Fischer (2015, p. 409),
13
“[...] a preservação das funções vitais de reprodução individual e da totalidade dos
seres humano [...]”, constituindo-se, de acordo com as pesquisadoras:
Modos de estar no mundo, em que o metabolismo entre ser humano
e natureza pressupõe a regulação do processo de trabalho em
sintonia com a natureza [...], [...] a organização, coordenação e
controle das múltiplas atividades, materiais e culturais, visando um
sistema de reprodução social cada vez mais complexo.
Na sequência analisamos experiências de trabalho de pescadores e
pescadoras artesanais do município de Cametá11, situado na região do baixo
Tocantins12, Pará, Brasil.
OModo de produção da vida de pescadores artesanais da Amazônia entre
saberes
Entendemos que os modos de produzir a vida de povos e comunidades
tradicionais, como os modos de vida de pescadores e pescadoras artesanais da
Amazônia Paraense, têm muito a dizer sobre relações seres humanos-natureza
voltadas para a complementaridade em oposição à ruptura do metabolismo, nelas
atuando as mediações de primeira ordem, atravessadas por mediações de segunda
ordem do capital.
Em termos metodológicos, entendemos que esse campo empírico permite
analisar, a partir de suas territorialidades, processos de produção da vida, em termos
econômico-culturais e políticos, plasmados em saberes do trabalho e em processos
formativos opostos à fragmentação da formação humana, porque voltados para uma
perspectiva formativa que considera a integração saberes do trabalho e
conhecimentos como prática pedagógica, nos moldes propostos por Rodrigues
(2020).
Correlacionado a tais questões, defendemos, a partir de Tiriba e Fischer
(2015, p. 423), a necessidade de compreender as relações entre economia e cultura
presentes na produção da vida de povos e comunidades tradicionais,
(re)conhecendo os saberes e valores daí decorrentes, ampliando nossos horizontes
sobre o trabalho como princípio educativo, por meio de “[...] inventários e análises
12 Para um conhecimento sobre o baixo Tocantins, indicamos a leitura de Rodrigues e Castro (2022).
11 Para um conhecimento sobre o município de Cametá, indicamos a leitura de Rodrigues e Castro
(2022).
14
dos processos de produção e transmissão desses saberes da experiência de
produzir a vida em comunidade”, sendo necessário, para tanto, “[...] descrever como
se dá a organização da própria vida”, a partir de seus territórios.
A partir de tais considerações, destacamos, a seguir, elementos de pesquisa
sobre saberes do trabalho da pesca, decorrentes de modos de produzir a vida de
pescadores e pescadoras artesanais do baixo Tocantins, estado do Pará,
considerando o contexto do município de Cametá.
Isto posto, destacamos, inicialmente, que ribeirinhos(as)13 do município de
Cametá, pescadores e pescadoras artesanais, produzem a vida na relação com
outros elementos da natureza, sem a ruptura do metabolismo seres
humanos-natureza, ao plasmarem, por exemplo, a partir do trabalho, tecnologias de
pesca, a fim de atender suas necessidades de alimentação, mas também com
atravessamentos das mediações de segunda ordem do capital. Nessa perspectiva
encontra-se, por exemplo, o paredão, consistindo, em termos de saberes do
trabalho, de acordo com Castro e Rodrigues (2020, p. 166-167):
[...] em uma enorme parede feita de caule de açaizeiro (paxiba) ou de
paxiubeira (árvores nativas da região), trançada com cipó de timbuí,
vegetal da região. Esse equipamento tem o objetivo de capturar o
pescado nas margens próximas das ilhas. Esse paredão é construído
nas praias ou próximo das ribanceiras para dentro do rio. Possui 2 ou
3 gaiolas posicionadas no meio e nas extremidades, construídas com
uma tecnologia nativa onde as entradas das mesmas são feitas em
forma de “V”, por onde os peixes entram e não conseguem sair. Esse
equipamento de pesca, por ter grande porte, é normalmente
construído para durar anos, não sendo removido pelos pescadores.
Trata-se de uma tecnologia de pesca como valor de uso, não estando
destinado à captura de peixes em grande escala, mas relacionado à garantia do
alimento familiar, mantendo um equilíbrio na relação ser humano e outros elementos
da natureza [podendo durar anos em contato com as águas], embora o excedente
da captura possa ser vendido em prol da compra de produtos manufaturados e
industrializados.
13 Entendemos a categoria ribeirinhos a partir das discussões de Rodrigues e Castro (2022) e Neves
(2009). Com base em Corrêa (2017), compreendemos que, atualmente, os ribeirinhos, para além das
mediações de primeira, têm seus modos de vida atravessados por mediações de segunda ordem do
capital, com as relações de mercado determinando a coleta de frutos da região, como a indústria do
açaí e de produtos para a indústria de cosméticos, como a Natura.
15
Outra tecnologia de pesca produzida por pescadores artesanais do baixo
Tocantins, no contexto do município de Cametá, é o matapí, consistindo, de acordo
com Castro e Rodrigues (2020, p. 267-268):
[...] em uma gaiola em formato cilíndrico que possui, nas
extremidades, entradas em formato cônico; no meio, possui uma
portinhola que serve para a coleta do pescado. O matapí é utilizado
para a captura de camarão. O crustáceo é capturado quando entra
por uma das extremidades cônicas do equipamento, em busca do
alimento (isca geralmente de babaçu), o qual é previamente colocado
no interior do apetrecho; uma vez dentro, o camarão não consegue
encontrar a saída.
Trata-se de uma tecnologia de pesca que, em termos de saberes do trabalho,
demonstra a engenhosidade humana expressa no e pelo trabalho, envolvendo
múltiplos saberes, desde os relacionados à sua construção até àqueles que dizem
respeito aos locais de rios, em suas margens, onde e como pode ser colocado em
prol da captura de camarões. Todavia, de se destacar que, em decorrência de
produção em larga escala, essa tecnologia vem sendo atravessada por outras
mediações, sendo produzida com fibras de nylon, embora ainda persista a
produção com base no disposto por Castro e Rodrigues (2020, p. 268), sendo “[...]
confeccionado comumente com talas retiradas da palmeira jupati [...]”, ou com o “[...]
caule da palmeira marajá [...], [...] trançado por fibras de jacitara (cipó espinhento
comum na região) ou fibras de buritizeiro e arumã (vegetais da região)”.
Além dessas tecnologias de pesca, aqui tomadas como exemplos,
processos de captura de peixes em Cametá, no baixo Tocantins, como a pesca do
mapará, que nos fornecem evidências sobre como o processo de organização de
pescadores e pescadoras acontece, contra as investidas do capital na região, ao se
construir, por exemplo, uma hidrelétrica, partindo-se do pressupostos de que a
constituição de classe, em seu sentido amplo, ocorre quando os homens, “[...] como
resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a
identidade de seus interesses entre si [...]” (THOMPSON, 1981, p. 10).
Nessa perspectiva, os trabalhadores se organizam, por exemplo, na época da
captura do mapará14, direcionando-se em grandes coletivos para diferentes setores
do Rio Tocantins, com um saber experiencial sobre os locais de pesca. Trata-se de
14 No minicurso, apresentamos o vídeo sobre a captura do pescado mapará (CASTRO, Toninho.
Pesca do Mapará 2021 em Cametá). Acesso em:
https://www.youtube.com/watch?v=Am2_mFKHQhw.
16
um conjunto de sujeitos com diferentes tarefas para a captura: os responsáveis
pelo saber onde está o cardume com o auxílio de uma comprida tala nisto um
saber da percepção; os responsáveis pelo mergulhar e pelo amarrar a rede no
fundo do rio, para que o peixe possa ser trazido à tona, não sendo qualquer
pescador capaz de realizar essa ação; e os responsáveis por retirar o pescado do
rio.
Além disso, de se considerar que a produção resultante da captura do
mapará é partilhada entre os pescadores e membros da comunidade a que estão
ligados, podendo ser vendida a produção excedente. Contudo, esse modo de
produzir a vida, no contexto de ribeirinhos e ribeirinhas de Cametá, vem sendo
impactado pelos interesses de mercado. Grandes redes de supermercados
começam a entrar na região, a fim de comprar a produção, encarecendo o preço
local dos produtos, dada a pouca presença do mapará para os habitantes do
município, implicando, contudo, a venda com preços um tanto baixos em outros
territórios, comprometendo as relações econômico-culturais de quem vive na região.
Isto posto, salientamos que as necessidades de manutenção da vida
impulsionam processos de organização, voltados também para uma perspectiva de
classe (THOMPSON, 1981), considerando o trabalho coletivo na captura do mapará
e do camarão, por exemplo, oportunizando uma cultura de organização, de
companheirismo nas comunidades ribeirinhas, constituindo-se elementos
potencializadores de suas organizações, em termos de colônias de pescadores, de
sindicato, de mobilizações.
Todavia, esses povos e comunidades tradicionais, pescadores artesanais e
também agricultores, vêm sofrendo a ruptura de suas relações metabólicas com
outros elementos da natureza, dada a presença de grandes projetos de interesse do
capital na região, como os ligados ao plantation de dendê e da pimenta-do-reino, por
exemplo, que tomam os territórios dos agricultores para a alta produção dessas
culturas, tornando-os, posteriormente, improdutivos para as necessidades da
agricultura familiar, favorecendo, por consequência, a constituição de saberes, não
como experiências vividas, mas sim como territórios onde resultam as práxis
produtivas orientadas pela lógica capitalista e não mais pelas práticas produtivas
ligadas aos interesses da vida de povos e comunidades tradicionais.
17
Além dessa questão, outras ações do capital na região vêm também
contribuindo para a ruptura do metabolismo seres humanos-natureza em Cametá,
como a construção da Hidrovia Araguaia-Tocantins (ZUKER, 2019) e a Hidrelétrica
de Tucuruí (RODRIGUES, 2012), além da substituição do extrativismo com valor de
uso pelo extrativismo com valor de troca, dados os interesses do mercado mundial
pela produção do açaí e por outros frutos, destinados às indústrias alimentícia e de
cosméticos (CORRÊA, 2017).
Some-se a isso a crise estrutural de desemprego que produz a base para as
subjetividades de empreendedorismo individual, em detrimento das ações coletivas
e solidárias de trabalho. Isso acaba provocando, por exemplo, a criação individual de
peixes em cativeiro, associada também à diminuição de pescados na região,
consequência direta da presença da Hidrelétrica de Tucuruí. Tudo isso conduz a
relações moldadas pela intensificação de valores de troca em desproveito de valores
de uso, em virtude das intensas desigualdades sociais intensificadas mais ainda
pelas ações atuais do capital na região.
Trata-se, enfim, de um modus operandi nada neutro, que destrói as bases do
trabalho coletivo, em prol do individualismo, tão necessário aos interesses do capital.
Esse mesmo capital precisa fragmentar os processos de organização dos
trabalhadores, desterritorializando-os, desenraizando-os de suas subjetividades
(MARAÑÓN, 2012), silenciando os territórios, como fundamentos do trabalho
(SANTOS, 2002), uma vez que desterritorializar os povos e comunidades
tradicionais é importante para dominar, ocupar e produzir a exploração da riqueza na
sua totalidade a riqueza enquanto força de trabalho; a riqueza enquanto outros
elementos da natureza.
A esse respeito, acrescente-se a intensificação de tecnologias de produção
aligeiradas plasmando novos saberes em tecnologias, como a construção de barcos
mais rápidos e ligados à indústria naval, operando novas relações de
tempos-espaços na região, dadas as necessidades de mercado e as alterações do
fluxo do rio, proveniente da construção da Hidrelétrica de Tucuruí (POMPEU, 2017).
São tempos-espaços de povos e comunidades tradicionais que vêm sendo alterados
pelos tempos-espaços do mercado, parafraseando Thompson (1998),
manifestando-se na produção de barcos mais velozes ou na produção de
tecnologias que coletam o peixe em quantidades e numa maior rapidez, incluindo
18
tipos de redes que capturam indiscriminadamente todo tipo de pescado, inclusive
filhotes de peixes e os que ainda estão em período de reprodução.
Com base em Pompeu (2017), entendemos que a produção de saberes do
trabalho vem sofrendo, assim, mudanças significativas, em decorrência de grandes
projetos na região, em virtude das subjetividades de mercado, como o
empreendedorismo, e também em razão da destruição dos territórios desses povos
e comunidades tradicionais, alterando suas identidades de pescadores, que passam
a se constituírem como sujeitos detentores-produtores de saberes de mediações de
primeira ordem e também de mediações de segunda ordem do capital, sendo
detentores dos meios de produção, deles o capital requerendo, por enquanto, a
força de trabalho e os meios de produção (a terra e os produtos nela produzidos
como a produção do açaí –, que ainda pertencem a homens e mulheres de povos e
comunidades tradicionais), pagando apenas um valor pelos dois elementos, nos
moldes descritos por Marx (2011).
Gostaríamos ainda de destacar que, na produção de tecnologias de pesca,
como trabalho não alienado, seja na produção de paredões, matapis, barcos,
processos de captura do peixe mapará, a engenhosidade, a criatividade, o
planejamento e a execução pelo ser humano, num processo formativo por inteiro,
em que os sujeitos dominam a totalidade do processo produtivo, podendo alguns
sujeitos realizarem determinadas ações diferentes de outros. Mas não se trata de
uma lógica imposta pelo modo de produção capitalista, senão pela lógica do trabalho
coletivo, da produção da vida, constituindo-se situações de trabalho saturadas de
normas de vida, indicadores de processos importantes para a constituição de classe,
como o viver coletivo e o sentir-se membro de uma totalidade social, constituindo o
trabalho associado como princípio educativo. Não estamos dizendo com isso,
contudo, que não haja normas de trabalho saturadas por interesses de mercado,
conforme já aludido.
No mais, está o fato de que povos e comunidades tradicionais em seus
territórios fomentam o trabalho como princípio educativo (GRAMSCI, 1988), pois,
parafraseando Marx (2008), à medida que vão moldando a natureza às suas
necessidades, vão também aprendendo materialidades objetivas e subjetivas de sua
relação com aquela e com outros homens, tendo os saberes como produtos desse
processo formativo.
19
É um processo educativo, nos moldes propostos por Ciavatta (2009), mediado
pelo e no trabalho, de onde emergem os saberes do trabalho da pesca, em que
homens e mulheres, em termos pedagógicos, assumem a função de mediadores
“[...] entre o mundo do trabalho, com os conhecimentos dele resultantes, e os
sujeitos que nele iniciam um processo de participação” (RODRIGUES, 2012, p. 173),
atuando a família como “[...] unidade de cooperação e socialização de aprendizados
[...]” (RODRIGUES, 2012, p. 174), considerando-se ainda “[...] que o trabalho de
produção da social é em si educativo” (ALVES; TIRIBA, 2018, p. 137).
Considerações finais
- A primeira coisa que precisamos é a terra. A gente planta hoje, na
terra dos outros, e paga terça. Então, se eu tirar três sacas de
mandioca, de farinha, eu vou dar uma ao fazendeiro e ficar com
duas. A terra é o suporte pra gente viver.
- Assim, quando tiver terra, eu vou parar de ser ameaçada, a
comunidade vai parar de ser ameaçada.
- Sim, sofre muita ameaça.
- Os fazendeiros. Os fazendeiros ameaçam muito a gente. Tem
tempo que a gente nem consegue dormir sossegada porque... As
ameaças do fazendeiro. Os fazendeiros invadem reuniões; a gente
está na reunião, eles chegam na reunião, invadem reunião.
- No fim de dezembro fomos a uma reunião e quando foi chegando a
boca da noite, por cima da gente tinham dois drones. A gente não
sabe de quem é o drone. A gente não sabe de quem é. Então, é de
se preocupar.
- Eu tenho dezesseis milhões de negros e negras vivendo nas
comunidades quilombolas. Eu tenho mais de cinco mil comunidades
quilombolas no Brasil. E as pessoas vivem dali, vivem da sua política
agrícola, vivem da sua manifestação cultural. Então, a gente precisa
virar nossos olhos para um Brasil do tamanho de Portugal, que está
sendo violentado.
- É muito perigoso a gente viver aqui. Mas Zumbi dos Palmares foi, a
gente está aqui para fazer o que ele fez; completar as coisas.
- Em meio às dificuldades, em meio aos ataques de fazendeiros, em
meio a discussões e derrubamentos de plantações, de casas. Mas a
gente gosta de ser quem a gente é, a gente gosta de viver como a
gente vive.
20
- Meu modo de vida aqui é muito bom. E eu não quero sair daqui por
nada.
- Você imaginou eu, com as minhas mãos sujas de dendê, que
sei cavar cova, sei correr o braço para arrancar caranguejo, eu
vou me embora para Salvador com meus filhos, eu vou encontrar
lugar bom na cidade grande? Não vou encontrar, vou encontrar
as periferias. E lá, o que vai ter é nossos filhos aprender o que eles
não sabem aqui. Porque aqui eles sabem arrastar a rede de noite,
cavar a cova e ele vai aprender o tráfico; ele não vai ter emprego e
ele vai aprender a roubar.
- Por exemplo, eu sou Eliete. Eu sou Eliete, filha de Xica, neta de
Guilherme; beleza. Mas eu, na capital, eu sou Elite. Então,
quando uma pessoa negra, sem muito estudo vai para a capital ela é
mais um número e ninguém te vê, ninguém te enxerga o que você
é.
- Pra quê eu sair daqui? Não tem como eu sair daqui, não. Nem eu
nem ninguém quer sair daqui, não. Mesmo com ameaça, eu estou
aqui dizendo ao seu governo: Eu quero a terra. Porque no dia que
tiver essa terra aqui eu estou garantindo que os meus netos, os
meus filhos vivam num lugar sossegado.
- A gente gosta do jeito que a gente vive e levou um certo tempo até
que todo mundo tivesse consciência disso, de que a gente não quer
viver de outra maneira.
- Mesmo tendo esses impactos todos que a gente tem, as
comunidades quilombolas conseguem sobreviver. E com o pouco
que se tem a gente entende que a gente vive bem. Ah, é difícil? É
difícil. Mas a gente gosta de viver aqui.
- Foi a coisa melhor da nossa vida, foi receber a certidão quilombola.
- Vou para a minha roça todo dia, vou para a maré todo dia, planto
mandioca todo dia
- A gente tem o que comer, tem uma terrinha ali que não é da gente,
a gente planta na terra dos outros. Na terra do estado, a gente tem
aqui uma terra do estado, a gente planta na terra do estado.
- A gente precisa de terra, é no território que se desenvolve a cultura,
os saberes, os fazeres. É no território que eu desenvolvo a minha
religião.
- Se a gente tem um projeto de cultura que fale sobre o cabelo do
negro, maquiagem do negro, dança do negro, a música, os costumes
que gente tem, eu acho que isso vai dar uma importância ao jovem e
é uma maneira dele se sentir valorizado e querer ficar.
- A gente também quer ser visto. Não é ser visto no sentido de se
amostrar. Mas no sentido de que as outras pessoas entendam que
21
vocês existem, entendam que existe esse modo de vida e aprendam
a respeitar que a gente existe, que é um povo que tem dificuldades,
mas que também é muito feliz e que quer permanecer dessa
maneira.
(Falas presentes no documentário As dificuldades dos Quilombolas
Canal Preto15)
Inspirados nesta fala tão profunda, concluímos nosso texto nos perguntando:
que desafios o estudo do tema das relações seres humanos-natureza, mediadas
pelo trabalho humano, traz ao Campo Trabalho-Educação e à luta de classes?
Identificamos alguns:
a) Aprofundamento, do ponto de vista teórico-prático, do significado
político-epistemológico e as consequências da assunção, aparentemente óbvia, de
que somos parte da natureza e que participamos dos processos sociometabólicos
da relação seres humanos-natureza. Que consequências têm este pressuposto para
nos questionarmos sobre os polêmicos e polissêmicos conceitos de progresso e
resistência, considerando as experiências históricas do capitalismo e das lutas
socialistas em diferentes partes do mundo, incluindo a América Latina?
b) O (re)conhecimento e a análise da complexidade da realidade atual do
trabalho - dos mundos do trabalho. Como as dimensões ontológico-históricas do
trabalho humano se materializam no espaço-tempo das culturas milenares de
comunidades e povos tradicionais? Que lugares ocupam e como se articulam a
categoria trabalho e outras como território, comunidade, identidade? O que essas
formas de trabalho e de vida nos indicam sobre sociedade de produtores livremente
associados?
c) Aprofundamento da categoria trabalho como princípio educativo, a partir de
diálogos profícuos entre análises sobre experiências de trabalho distintas, do ponto
de vista dos atravessamentos das mediações de primeira e segunda ordem, que
coexistem no modo de produção capitalista. O que temos a aprender sobre trabalho
como princípio educativo considerando as experiências de povos e comunidades
tradicionais? O que temos a aprender sobre trabalho como princípio educativo em
experiências atuais de trabalho associado nas periferias urbanas? O que temos a
aprender com os movimentos sociais que têm produzido experiências de
organização da produção e do consumo em princípios agroecológicos?
15 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gDXPK49-FAM.
22
d) Ampliação do repertório de leituras de teóricos marxistas latino-americanos
que discutem o trabalho a partir da experiência histórica da América Latina, em
especial sobre a experiência de trabalho nas comunidades e povos tradicionais e
das periferias urbanas e suas implicações para pensar as relações entre trabalho e
educação.
e) Aprofundamento e/ou ampliação do repertório de categorias teóricas para
leituras sobre as relações entre trabalho e educação, como por exemplo as
categorias território, o comum e o comunal, modos de vida, as relações entre
singularidade, particularidade e totalidade na configuração de territórios e modos de
vida.
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26
V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
EDUCAÇÃO AMBIENTAL E OUTROS MODOS DE VIDA1
Marcela de Marco Sobral2
Mauro Guimarães3
Ana Moura Arroz4
Resumo
A partir da crise civilizatória resultante de um modo de produção que demonstra sua
insustentabilidade socioambiental, propomos refletir sobre a formação de educadores ambientais que
estejam aptos a contribuir na transformação dessa realidade. Acreditamos na necessária radicalidade
do ambiente educativo para a formação desse Educador, portanto, baseado na proposta formativa da
“ComVivência Pedagógica”, buscamos investigar as possibilidades imersivas em comunidades
intencionais (alternativas) como ambiente educativo propício.
Palavras chaves: Educação Ambiental Crítica; Formação de educadores; ComVivência Pedagógica.
EDUCACIÓN AMBIENTAL Y OTROS ESTILOS DE VIDA
Resumen
A partir de la crisis civilizatoria producto de un modo de producción que demuestra su insostenibilidad
socioambiental, proponemos reflexionar sobre la formación de educadores ambientales que sean
capaces de contribuir a la transformación de esta realidad. Creemos en la radicalidad necesaria del
ambiente educativo para la formación de este Educador, por eso, a partir de la propuesta formativa de
la “ComVivência Pedagógica”, buscamos investigar las posibilidades inmersivas en comunidades
intencionales (alternativas) como ambiente educativo propicio.
Palabras clave: Educación Ambiental Crítica; Formación de educadores; ComVivencia Pedagógica
ENVIRONMENTAL EDUCATION AND OTHER LIFESTYLES
Abstract
From the civilizational crisis resulting from a mode of production that demonstrates its
socio-environmental unsustainability, we propose to reflect on the training of environmental educators
who are able to contribute to the transformation of this reality. We believe in the necessary radicality of
the educational environment for the formation of this Educator, therefore, based on the formative
proposal of the “ComVivência Pedagógica”, we seek to investigate the immersive possibilities in
intentional communities (alternatives) as a conducive educational environment.
Keywords: Critical Environmental Education; Educator training; ComVivência Pedagógica
4Doutora em Psicologia pela Universidade dos Açores. Professora Auxiliar do Departamento de
Psicologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Integrante dos centros de investigação
GBA - Grupo da Biodiversidade dos Açores (www.gba.uac.pt) e cE3c Centre for Ecology, Evolution
and Environmental Changes. http://ce3c.ciencias.ulisboa.pt/team/IERS.
E-mail: ana.mm.arroz@uac.pt. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8279-4470.
3Doutor em Ciências Sociais pela UFRRJ; Professor Associado da UFRRJ.
E-mail: guimamauro@hotmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5382444630321221.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4158-313X.
2Doutora em Educação pela UFRRJ, consultora independente. E-mail: marcelasobral@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6687068379557223. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0695-1272.
1Artigo recebido em 29/07/2022. Primeira avaliação em 30/07/2022. Segunda avaliação em
17/08/2022. Aprovado em 13/09/2022. Publicado em 10/11/2022.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.55413.
1
Introdução
O isolamento social imposto pelo advento da pandemia do COVID-19 tornou
ainda mais evidente o atual momento de incertezas que vivemos e as
incongruências do atual paradigma da humanidade. A crise em que estávamos foi
amplificada e requer reflexões mais profundas sobre o nosso modelo de sociedade.
Em diferentes dimensões temos sofrido impactos, e os problemas ambientais,
econômicos, políticos, tecnológicos, institucionais e educacionais tem tornado ainda
mais visíveis a incapacidade dos seres humanos diante do pensamento e realidade
que reina na nossa estrutura social.
Uma estrutura pavimentada sobre uma base estruturante filosófica,
psicológica, existencial, cultural e espiritual que vem orientando histórica e
progressivamente o sistema pelo qual a sociedade humana se organiza no planeta
Terra e condiciona as relações com a natureza, com as outras espécies, com os
outros seres humanos em suas variadas esferas compartilhadas. Ou seja, o
paradigma comum em que estamos mergulhados, uma propriedade coletiva da
humanidade ocidental (Kuhn apud BOEIRA; KOSLOWSKI, 2009).
A noção fundamental de paradigma, desenvolvida por Kuhn (idem), tem valor
pela grande contribuição de ter evidenciado um pano de fundo coletivo que embora
oculto, determina os pressupostos e os postulados científicos. Este conceito central
foi utilizado na compreensão da sociedade, confirmando que um campo
subjacente aos saberes coletivos, que comandam e controlam os esquemas do
pensamento social, das crenças e que tem uma imensa força e domínio sobre as
teorias e compreensão de determinada sociedade, ao mesmo tempo em que é
difuso, porque permeia todo o tecido social, por meio de diversos sentidos, não
identificáveis, vagos, mas que gera a adesão (até inconsciente) a uma determinada
visão de mundo (PELEGRINI, 2012).
Esta compreensão é importante, porque um dos maiores problemas da
humanidade tem sido o de lidar com a crise ecológica, no fundo, uma crise
paradigmática em que o desafio é desconstruir e superar os modelos vigentes
(GUIMARÃES, 2004, 2011). Porém, a possibilidade real de que nossos governantes
levem a sério a crise civilizatória e ajam firmemente para alterar esse rumo é pouco
ou quase inexistente.
2
Uma crise que funciona na lógica da imposição do sistema sobre o ambiente,
da acumulação do capital em um modo de produção e consumo crescente, baseada
na dominação e exploração socioambiental, alimentada por uma racionalidade
moderna, instrumental e condicionada por uma mais-valia global (SOUZA SANTOS,
2002). O problema é que esse contexto opera uma naturalização de suas
consequências no indivíduo, onde a maior parte dos seres humanos, não está ciente
ou pensa ser normal as externalidades do capitalismo, tornando-se, agentes e
vítimas dessa crise, em seu próprio cotidiano (NEPOMUCENO, 2015).
Encontramo-nos nos limites da sociedade atual, porque vivemos em um
modelo de organização social que vem sendo criado ao longo da nossa história,
fruto do aprendizado cultural de centenas de gerações anteriores, com suas
práticas, crenças, valores e utopias pregressas. Se por um lado, esse modelo
permitiu que sobrevivêssemos e nos tornássemos dominantes enquanto espécie,
construímos sociedades baseadas na exploração e na submissão de quem tem
“menos valor” (classes subalternas, populações marginais, outros modos de vida e
natureza). Coloca-se assim uma noção de importância hierárquica, determinada pelo
antropocentrismo e sua constelação de poder, dinheiro, estrato social, genitália, cor
da pele, e tradições ditas “primitivas”, às custas da subordinação das culturas outras
e dos demais seres vivos, alçando a modernidade (a cultura ocidental) como modelo
hegemônico que se projeta ao suposto altar dos seres representantes do mundo
globalizado.
Como se atualmente, as práticas humanas estão fundamentadas, cada
uma, num imaginário que despreza a diversidade, e que, constitui e reproduz o
paradigma da sociedade, nos diferentes ambientes e circunstâncias. Um imaginário
que se manifesta também na escola e nos diversos ambientes educativos. Daí que,
fomentar processos criticamente efetivos para que os paradigmas sejam
transcendidos e superados é um papel importante a ser considerado para a
Educação e a Educação Ambiental (EA).
As mudanças climáticas que despontam como um espelho da crise
civilizatória, reforçam a necessidade de se ter em conta, nas reflexões sobre a
Educação, as amarras do paradigma que nos envolve, visando contribuir na
formação de seres sociais que possam transcender os limites estruturais e
condicionadores do pensamento coletivo e individual.
3
Desde a ECO-92 o movimento ambientalista se enraizou e se expandiu no
Brasil, e a EA, ganhou mais fôlego e embora sem muito apoio político, se instaurou
nos recantos do país. Sem nenhuma pretensão de resgatar a sua trajetória histórica
ou as suas vertentes, tão bem relatada por outros autores (LAYRARGUES; LIMA,
2011; SAUVÉ, 2005; SORRENTINO, 2000) cabe aqui nesse contexto, ajudar a
refletir em como repensar a formação de educadores que, muitas vezes não tem
formação em educação ambiental, para torná-la mais efetiva na formação do
cidadão.
Não se trata apenas de estabelecer novos métodos, pedagogicidades ou de
se enfronhar criticamente nos debates culturais para a superação das falhas e
despreparos dos educadores. O que inquieta é que a EA, vem hegemonicamente
também se limitando pelo paradigma vigente e pela mentalidade colonial que orienta
a sociedade atual.
Apesar de fazer confrontos políticos, econômicos e sociais, a criticidade de
uma EA, pode estar contida no campo de uma intelectualidade e racionalidade
hegemônica e ter dificuldade em se converter em práxis, ou seja, mesmo com toda a
contraposição ao sistema e o esforço em superar as contradições, ao possuir como
parâmetro o paradigma atual condicionante mantém como origem de seu ponto de
vista crítico, a referência materialista e dicotômica, que se traduz nas relações
sujeito-objeto; humano-natureza; eu-outro (TARNAS, 2009), desconsiderando outras
perspectivas.
O educador, Ser mais ambiental
Uma abordagem crítica da EA reflete-se em uma prática coerente com o
discurso crítico e que busque superar as limitações do paradigma vigente. Para isso,
o educador ambiental tem uma importância crucial, pois é a sua atuação pedagógica
que demarcará os limites e as possibilidades de fomentar a reflexão dos alunos e
educandos.
Atuar como educador ambiental não é apenas transmitir conhecimentos,
informações ou procedimentos que possam colaborar na preservação ambiental e
com isso transformar o comportamento de cada indivíduo. Esta perspectiva é
discutida entre os vários autores da EA como sendo conservadora, justamente
porque se limita em transitar pela esfera privada da vida, sob a égide privatista do
4
modelo capitalista neoliberal vigente, sem propor reflexões que ampliem para a
esfera pública (estruturada pelas relações de poder de dominação e exploração) a
compreensão que corrobore em processos de transformação social. Ou seja, pela
falta da criticidade disruptiva “ajusta-se à reprodução do status quo” (GUIMARÃES,
2004, p. 20) mantendo uma visão conservadora para realizar educação ambiental.
Os atos educativos e seus processos dependem de um educador, daquele
que media processos capazes de fomentar o aprendizado pelo sujeito (educando).
Na EA, esse educador precisaria ter feito um percurso de ação que o tenha formado
com as habilidades, reflexões e, principalmente, convicções necessárias a fomentar
transformações desejadas em termos de sociedade e paradigmas existentes.
A questão é que estes elementos não são claros, que se constroem
subjetivamente, e não a partir de conteúdo(s) determinado(s) ou processos
mensuráveis, controláveis, técnicos ou procedimentais acerca do meio ambiente.
Contudo, a premissa de que o educador ambiental é uma figura-chave como
mediador no processo educativo em prol de uma sociedade melhor, mais equânime,
ultrapassa em muito a lógica ao qual nos debatemos, porque exige ampliar os
pressupostos atuais da modernidade ao qual estamos submersos e o
entrelaçamento das questões socioambientais à uma visão mais complexa,
imbricada na teia da vida, cuja ignorância se reflete em diversas facetas e nos
desequilíbrios pelos quais passa a sociedade humana.
Na investigação que sustenta este artigo, provocada pelo anseio de atuar e
contribuir para um mundo melhor, mais sustentável, coube levantar aspectos
embutidos em sujeitos que buscaram viver de forma mais sustentável para perceber
se essas experiências poderiam trazer contribuições para a formação de educadores
ambientais. Para isso, buscou-se avançar em outras possibilidades e em outras
proposições de modos de vida, no intuito de perspectivar como a ação pedagógica
do educador ambiental, poderia, de fato, contribuir para uma transição paradigmática
na construção de uma outra sociedade mais sustentável.
Cada educador, enquanto sujeito que educa, tem a sua práxis diretamente
relacionada às suas características pessoais, determinadas pela sua história de
vida, formação institucionais e informais, constructos relacionais, vivências e
aprendizados com/na natureza, e as visões de qual mundo “novo”, ou novo
paradigma, se quer, se é que se quer. Dessa forma, o educador ambiental seria não
somente um representante fiel do que Isabel Carvalho (2004) denomina como
5
“sujeito ecológico”, mas também um sujeito capaz de planejar processos que
influenciem, pela prática educativa, outros seres humanos em uma nova
organização e modos de vida.
Parafraseando Paulo Freire, o educador ambiental seria antes de tudo uma
liderança, alguém que teve em sua formação a possibilidade de criar a partir de si
mesmo a produção e a construção do seu conhecimento (FREIRE, 1987) ou ainda
que tenha vivenciado situações e ambientes educativos “impregnado por uma práxis
pedagógica que busque a ruptura do pensar e agir hegemônico.” (GUIMARÃES,
2004, p. 26).
Neste sentido, a construção de práticas conscientes, oriundas de reflexão e
concretizadas em uma coerência de vida e em seus posicionamentos políticos,
sociais, ambientais etc., são em realidade reflexos de toda uma complexidade
humana à qual é preciso se ter em conta ao pensar em processos formativos, para
compor uma formação/forma de ação. Para que ocorra o impulso a uma possível
transformação social pesa também as características do educador e não apenas a
quantidade de conteúdos e informações que ele é capaz de organizar ou dinamizar.
Não regras e nem procedimentos prontos ou fáceis, e nem que se ter.
Na realidade, podemos elaborar parâmetros, reflexões, provocações, procedimentos
éticos, nortes, guias de ação e outros, mas ainda assim, pode se questionar se
todos estes aparatos pedagógicos, constituídos dentro desse mesmo sistema que
queremos transformar e que inconscientemente reproduzimos em nosso dia a dia,
possibilitariam desenvolver um pensamento disruptivo, crítico, reflexivo, atuante,
interventivo e, principalmente, efetivo para a EA. Para que ela seja realmente
emancipatória e transformadora, não para o educando individualmente, mas no
coletivo, afim de reposicionar as bases de nossa sociedade em outras premissas.
Historicamente, a EA crítica é uma abordagem que se diferencia justamente
por buscar aprofundar as contradições da sociedade, as relações de poder
estruturante de uma realidade desigual (JACOBI, 2005; LIMA, 2009). Enquanto
campo de estudo, critica e se contrapõe às tendências conservadoras que muitas
vezes individualiza e comportamentaliza o processo pedagógico. Em seus
pressupostos estão a reflexão crítica, a emancipação transformadora e a
problematização do ambiente, bases de uma práxis que provoque a compreensão e
a ruptura de estarmos sendo levados pela correnteza do rio, ao mesmo tempo em
6
que questiona se seria esse o “caminho único” a seguir, como ilustra a “metáfora do
Rio” em Guimarães (2004).
Para tanto, a EA crítica se coloca como uma estratégia que revele as relações
de poder e exploração, e fomente criar nexos que permitam a superação do senso
comum, sincrético, difuso e reduzido, em prol da racionalidade coerente em tecer a
transformação dos sujeitos, pelo discernir da complexidade presente no tecido
social. Assim, tem um papel fundamental em estimular inferências (relações
complexas) capazes de contextualizar as partes, entre si e com a totalidade, e dessa
totalidade com suas partes, num movimento recíproco de ir e vir, uma interação
indispensável em relações complexas.
No presente momento, uma grande importância social e planetária, de que
essas inferências ocorram e se consolidem no contexto da humanidade. Entretanto,
à parte de serem ainda poucos os educadores ambientais, tendo em vista a
dimensão da crise civilizatória, o que temos visto é que mesmo por mais
problematizadora e crítica que a EA possa ser, sua prática também não tem
efetivado mudanças no rumo em que a sociedade vem tomando ao longo dos
tempos. A sensação é similar a de estarmos num trem desgovernado em que os
educadores ambientais, embarcados nesse contexto, podem até discernir com
nitidez os problemas que causam o descarrilamento, porém não parecem possuir
maiores ou menores recursos para atuar, de forma efetiva, a evitar que o trem caia
no abismo. Isto porque como educadores e seres sociais que somos, também temos
o nosso pensar e fazer, conduzido por este mundo dicotômico, que nos enlaça na
“armadilha paradigmática” (GUIMARÃES, 2004).
Neste sentido, a inserção consciente do educador no coletivo, que atua em
processos de transformações sociais é essencial, que transformado pela
experienciação pode vislumbrar a construção de novas realidades. Esta relação
indivíduo-sociedade é dialética, simbiótica, dialógica e horizontal daí que, pode ser
uma trilha a ser traçada para gerar aprendizagens potentes para a transformação da
sociedade e dos sujeitos que a compõem, ao torná-la um processo consciente e
intencional de cada sujeito.
Esta não é uma tarefa fácil, é hercúlea e não exclusiva de educadores, porém
de grande importância, pois fomentar a potencialidade humana e a inteligência (não
a cognitiva), presente em cada ser vivo e também no planeta, para ir além da
reflexão crítica e ousar traçar novos caminhos, sobretudo com coerência e com a
7
convicção de que, se não agirmos conjuntamente como sociedade, numa lógica de
cooperação coordenada para sair da crise civilizatória e minimizar as suas
consequências, corremos o risco da extinção em várias esferas.
Neste sentido, um dos desafios, refere-se à ampliação de visões de mundo ,
que superem a racionalidade instrumental e disjuntiva da modernidade, para
contemplar outras cosmovisões, epistemologias e a pluralidade de dimensões, no
intuito de criar alternativas em como transgredir a hegemonia cultural ocidental que
nos condiciona.
De Witt (2013) afirma que construímos uma visão filtrada da realidade pelos
nossos sistemas de crenças e valores e isso nos confronta com um desafio na
construção de um paradigma planetário sustentável; em como interromper ou
desviar a atual forma de estar e agir, totalmente imersa nos parâmetros dados por
um sistema capitalista. Para a autora, as visões de mundo perfazem os “sistemas
inescapáveis” de interpretação e atuação na realidade, com base em “uma
constelação complexa de pressupostos ontológicos, capacidades epistêmicas e
éticas e valores estéticos que convergem para organizar dinamicamente uma
apreensão sintética do mundo exterior e experiências interiores.” (DE WITT, 2013,
p.80).
Fluir rumo a outros componentes pouco valorizados, inclusive na ciência
social, que nos constituem e identificam como seres humanos, para que possamos
resgatar ou aprender processos que auxiliem a desencaixar o limitado e limitante
paradigma em nós mesmos. Afinal, mesmo que pela reflexão crítica o condenemos,
ainda assim, estamos presos em suas armadilhas, pois o que caracteriza o
paradigma é justamente o fato de estar tão presente que se torna oculto na trama
das nossas inconsciências, mas que determina a forma que incidimos no mundo,
definindo nossas ações, julgamentos, pensamentos, reflexões, ações, emoções e,
obviamente também nas práticas educativas.
Assim, uma proposta de formação educativa que fomente a criação desse
educador - sujeito ecológico, precisa descontruir o caminho “único” criado pela
modernidade e suas formas de fazer ciência, trazendo outras perspectivas de
compreensão de mundo. Busca-se assim superar as bases deterministas na
interlocução com outras cosmovisões e epistemologias, e cuja radicalidade da
experiência contribua na formação desses educadores rumo à transição
paradigmática.
8
Ao pensar em quem seria esse sujeito transformado e transformador, que
educa, em quais seriam suas bases formativas e visões de mundo, que atua junto
aos outros para que sejam atores de uma outra sociedade, nos inspiramos em
Carvalho (2004) de que esse educador ambiental precisa estar permeado pelo
“sujeito ecológico”, e tornar-se um “ser mais ambiental” (GRANIER, 2017).
Dimensões das comunidades intencionais na conexão com a ComVivência
Pedagógica
Tem-se levantado a importância de repensar as intervenções educacionais na
EA, discutindo conceitos essenciais em Paulo Freire (FREIRE, 1992, 1987) e da
necessidade de estar imerso no contexto, na prática pedagógica, para então poder
ousar o “inédito viável” na EA e impregnar suas práticas diárias com significado e
sentido.
Os processos formativos em EA tem sido objeto de estudo ao longo do tempo
e hoje é uma das linhas de pesquisa do Grupo de Estudos e Pesquisa em EA,
Diversidade e Sustentabilidade (GEPEADS) da Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro. Para propor formas de romper com a “armadilha paradigmática” na qual
os educadores se encontram mergulhados, Guimarães (2004) propôs eixos
essenciais ao planejamento de processos formativos e, de para cá, o GEPEADS
tem produzido trabalhos nesta linha, culminando na proposição teórica e
metodológica da ComVivência Pedagógica como provocadora de um processo
dinamizador para uma EA efetiva e emancipatória. Esta proposição se imbui de
propiciar uma troca de experiências significativas, pela convivência e pelas
vivências, de educadores em formação, em ambientes imersivos, caracterizados por
modos de vida por outros referenciais paradigmáticos e epistemológicos, silenciados
na hegemonia da modernidade.
A ComVivência Pedagógica se baseia pela possibilidade de educadores,
vivenciarem num ambiente educativo, dialético e dialógico, horizontal e amoroso, um
processo formativo com vistas a transcender a noção mais material do rumo a uma
dimensão mais ampla, a partir da noção de ambiente como movimento complexo e
fluído entre ser humano, sociedade e natureza, cujo constante desenvolvimento e
transformação, constituiria o pano de fundo, intrínseco e extrínseco dos educadores
para tornarem-se atores reais de transformação.
9
Guimarães (2004) propunha o ambiente educativo como movimento, em um
dos dez eixos propostos como necessários na formação de educadores ambientais.
Assim, este ambiente educativo teria o papel de provocar, mobilizar e construir uma
ativação da consciência sob uma perspectiva diversa da disjuntiva, ao propiciar, em
conjunto com outros eixos e princípios, uma experiência significativa fruto de uma
perspectiva integrativa, que considere outros espaços, tempos e saberes, com a
inclusão de outras epistemologias (FARIA, 2021).
Numa proposta mais recente, a ComVivência Pedagógica que vem sendo
construída no âmbito do GEPEADS, o ambiente educativo como eixo, torna-se algo
preparado e planejado para catalisar os processos educativos e encontra-se
subsidiado por cinco princípios formativos: intencionalidade transformadora, postura
conectiva, desestabilização criativa, reflexão crítica e indignação ética; que, em
conjunto, potencializariam uma ruptura com as certezas e com a perspectiva
disjuntiva, em uma mentalidade que opera comportamentos padronizados e que
fragmenta as potencialidades dos seres humanos.
A ComVivência Pedagógica, seria então, uma base para formar coletivamente
o educador-sujeito ecológico, em um ambiente educativo intencional, radical, a partir
de outras referências, constituindo-se numa imersão de reflexão pela
desestabilização interna dada por estes diferentes espaços, para que na ação e
reflexão da práxis pedagógica possibilite transformar e ser transformado no intuito
de se tornar um Educador “mais ambiental”.
Dessa forma, a ideia do educador como um ser mais ambiental emerge da
reciprocidade entre a desconstrução do “caminho único” pelo ser natural que se
emancipa, se potencializa e se torna “mais”, se tornando um sujeito mais consciente,
inteiro, íntegro e integrado com a multidimensionalidade do mundo (GRANIER,
2017). Este conceito sintetiza a restauração do sujeito na teia complexa da vida, em
que as premissas de conexão com o mundo natural, em que o todo é uno (Um), e os
outros ritmos, estão contemplados, e na qual pela práxis concretiza a possibilidade
de atuar pela Educação, em processos emancipatórios.
Contudo, no sentido de complementar à proposição inicial, em que o ambiente
pedagógico é selecionado previamente, reconhecido e preparado como fundante
para que ocorra o processo educativo numa ComVivência Pedagógica; na pesquisa
que sustenta este artigo, não foi planejada ou organizada uma ação educativa em
um ambiente preparado. Outrossim, se priorizou conhecer mais acerca de uma
10
realidade existente, o das comunidades intencionais , que assim como outros
espaços, cujas diferentes epistemologias estão presentes, foi priorizado a partir do
pressuposto de que seria um local onde os sujeitos que ali convergem, estariam
mais próximos do “ser mais ambiental”. Esse pressuposto guiou a investigação, na
busca de emergir as subjetividades dessas pessoas, a partir de suas próprias
percepções sobre aspectos de sua interioridade e das práticas que elegem para
colaborar na promoção de seus processos de desenvolvimento pessoal, conquanto
serem indivíduos integrados em uma coletividade carregada de propósitos e utopias,
e cientes da conexão que vivenciam com os outros e com a natureza; numa
perspectiva coletiva, de se estabelecer outras relações, estruturantes de outros
modos de vida, em suas formas de produzir, consumir e se relacionar com a
Natureza.
A mudança pessoal, a valorização do autoconhecimento, o desenvolvimento
espiritual, uma alimentação com base ética, a interioridade, seriam então dimensões
essenciais, constatadas em membros de comunidades intencionais (ROYSEN,
2018) e que poderiam ser também contempladas na trajetória formativa de
educadores ambientais.
Estes componentes da interioridade dos sujeitos poderiam ser fomentados
para provocar, por uma intencionalidade transformadora, a necessária
desestabilização criativa e a reflexão crítica geradoras de uma postura conectiva ,
consigo e com o todo, capaz de permear o sujeito individual e coletivo, por todos os
lados e em todas as direções, para reestruturar conscientemente, novas atitudes e
uma nova visão de mundo integrativa , consolidadoras de possibilidades para novos
e diversos caminhos.
Outros autores (CARVALHO, 2016; ROYSEN, 2018) haviam revelado a
existência de antecedentes com preocupações ecológicas e ambientais nos
comunitários, aquando da decisão de ir morar em uma comunidade intencional, um
processo identificado por Borelli (2014) como completamente natural. Porém, o olhar
mais apurado sobre estas motivações, revelou que esse “processo natural”, foi
resultado de situações desencadeadas por decisões importantes, onde essas
pessoas se sentiram numa espécie de encruzilhada, com variados gatilhos, que
inflamaram a indignação ética que culminou em edificar uma intencionalidade
transformadora de viver com maior coerência com princípios internos e externos. Por
11
isso, enveredar em alguns elementos das subjetividades dos comunitários,
estimulou a reflexão das ausências no espectro da EA.
Convictos de que vale a pena aprofundar-se em sujeitos “mais conscientes”
numa perspectiva integral, para que contribuam na caracterização de como se
estrutura, interiormente, a indignação e a intencionalidade nos comunitários, pode
subsidiar a inclusão de outros elementos no processo formativo do Educador
Ambiental. Numa investigação realizada na base de que pessoas que buscam por
uma vida mais sustentável, são guiadas muito mais por valores intrínsecos do que
extrínsecos (HEDLUND-DE WITT, 2013), que parecem culminar em consciência,
numa espécie de “despertar interior” (MARDACHE, 2017).
Nesse despertar interior relacionam-se desde experiências espirituais ou
insights obtidos a partir da superação das dificuldades enfrentadas, instigadas por
diferentes objetivos nos sujeitos das comunidades, mas com interfaces que suscitam
como um potencial para expandir outras dimensões a serem trabalhadas na
formação de educadores ambientais.
A investigação mostrou que a escolha em romper e transgredir com a
sociedade limitada e renunciar aos seus embustes para ousar construir uma vida
mais coerente, equilibrada, com vínculos amorosos, em uma postura conectiva com
a natureza, com os outros, com o sagrado e com o todo, juntamente com a
indignação ética, consolidou a perspectiva de vivenciar a sustentabilidade e
mobilizou diferentes pessoas se deslocarem de cidades para ir viver em uma
comunidade intencional (VICDAN; HONG, 2018), num vislumbre significativo de que
“um outro modo de vida é possível”, o de uma boa vida.
Aliás, a aposta em um “buen vivir” são dimensões pouco consideradas no
alienante modelo hegemônico e tampouco nos processos formativos, contudo, são
construções internas importantes e mobilizadoras dos sujeitos, e possivelmente
fundantes da tentativa de ser feliz, mas que atualmente se expressa no consumo
desenfreado, em um tipo de felicidade externa e egocêntrica, construída pela
modernidade.
De certa maneira, a escolha feita nesta investigação, em percorrer um
caminho que mergulha no particular, em conhecer aspectos específicos de
moradores de comunidades intencionais, pode suscitar críticas, por parecer estar
desconectada da visão global que a complexidade ambiental exige. Entretanto, esta
particularização em determinadas variáveis da pesquisa, longe de fragmentar o
12
sujeito pela lógica reducionista ou de considerar que uma parte do ser humano se
sobreporia ao ser integral, pretendeu revelar aspectos nem sempre claros ou fáceis
de captar em seres humanos, que foram considerados presentes nos comunitários
em outros estudos, e que se alinham nas bases da proposta da ComVivência
Pedagógica, por parecer estar mais próximo do que seria um Ser Mais Ambiental
(GRANIER, 2017).
As experiências nas comunidades intencionais podem ser consideradas
pequenas, mas podem nos ensinar práticas divergentes do modelo hegemônico
atual, expressadas por sujeitos com uma visão de mundo integrativa (DE WITT,
2013), que buscam criar espaços coerentes, mais condizentes com a realidade
complexa planetária, ao inserir na vida cotidiana a necessidade urgente de agir em
prol da vida e do planeta. Assim, são experiências que nos remetem à utopia, a um
outro paradigma e podem servir, portanto, como uma referência interessante para
observar, refletir e transformar o mundo em que vivemos.
As interfaces com uma experiência significativa
As percepções dos comunitários sobre suas próprias vidas, pretendia
conhecer suas caraterísticas e poder captar, sob suas perspectivas, aspectos
subjetivos que os orientaram na decisão de ir viver em uma comunidade intencional;
a avaliação que fazem da importância dessa experiência em suas vidas, suas
causas desencadeadoras, os impactos e as mudanças que obtiveram como
resultado desta escolha.
Os estudos focavam nos indivíduos e nas comunidades como unidades de
análise e pretendia identificar preditores relacionados aos aspectos pessoais, ao
estilo de vida, às práticas realizadas coletivamente e individualmente por seus
membros; também avaliar os valores e ideologias presentes, os fatores que
impulsionaram/condicionaram a adesão; o cotidiano da comunicação sobre
sustentabilidade entre os pares; as mudanças percebidas ao longo dos tempos,
entre outras.
Nos indivíduos, a investigação se concentrou em compreender o bem-estar,
estilo de vida, satisfação e qualidade de vida; e as percepções das diferentes
temáticas que os comunitários têm como prioridade em suas vidas na comunidade
intencional, além de buscar compreender melhor quem eram os comunitários: perfil,
13
níveis de estudo, escolhas alimentares; visões de mundo, sentido da vida,
espiritualidade e desenvolvimento interior; afim de detectar determinantes da
escolha por este modo de vida e subsidiar reflexões que contribuam no processo
formativo de educadores ambientais.
Os resultados apontam que as cosmovisões dos comunitários estão inseridas
numa visão de mundo integrativa que considera a multiplicidade da realidade e sua
interdependência tanto de fatores extrínsecos, baseados no pensamento cognitivo,
racional e científico, como de fatores intrínsecos que percebe e insere o imanente, o
divino, as emoções, a espiritualidade (DE WITT, 2013). Uma visão que rompe com a
dicotomia e integra o pensamento racional com o sentido de conexão com o
cosmos, com a natureza e com o divino, se reconciliando com os todos os seres
vivos.
Os investigados também consideram sua vida satisfatória e possuem forte
relação com uma espiritualidade elevada, mais personalizada, não dependente de
instituições religiosas, caracterizada por englobar primariamente, a dimensão da
consciência ecológica e de um poder superior, e a dimensão dos relacionamentos,
secundariamente.
Em termos de práticas espirituais, as atividades nas comunidades como a
meditação, a contemplação e outras de fruição interior são frequentes, tanto em
conjunto como individualmente.
Quanto as motivações que os fizeram optar por viver na comunidade
intencional foram elencadas como principais, aspectos relativos à promoção da
sustentabilidade e do desenvolvimento pessoal (contemplando desde a alimentação,
até ser uma pessoa melhor e mais desenvolvida espiritualmente). Buscar viver
próximo à natureza, se relacionar com pessoas convergentes e o pertencimento
também foram motivações determinantes. Como causas geradoras para a decisão,
apareceram: o sentido de conexão consigo mesmo, a desestabilização por conflitos
sociais e ou cognitivos, a necessidade de viver com um disciplinamento ético,
(seguir regras ou práticas) e, fazer parte de processos e dinâmicas que
propulsionam a transformação social.
Os inquiridos atribuíram uma grande importância à vida comunitária tanto na
transformação percebida em suas vidas pessoais, pela oportunidade de
autodesenvolvimento e ampliação do sentido de conexão (em quatro dimensões:
14
capacidades, autoconsciência, habilidades e emoções); como na esfera coletiva, por
legitimar a viabilidade de um modelo social alternativo e uma práxis cooperativa.
Estes resultados parecem demonstrar uma possível associação entre a
sensibilidade para as causas ambientais e uma postura conectiva, que considera o
todo e a espiritualidade. Provavelmente pelo fato de estarem sensíveis a causas
ambientais e planetárias.
Foi verificado ainda, que os comunitários vivenciam a espiritualidade de forma
intensa no cotidiano. Vale notar que em tais práticas encontram-se atividades que
expandem suas percepções sobre si mesmos e sobre os outros, e incluem a
meditação, a vida em sintonia com o meio natural e seus ritmos, até a constante
necessidade de superação conjunta de desafios, sejam estruturais ou relacionais.
Em suas perspectivas, os comunitários revelam que é no cotidiano da
comunidade que se pode criar a coerência entre a teoria e a prática, do interno com
o externo, algo que pode ter grande relevância na elaboração de estratégias de EA
que cooperem para superar o paradigma disjuntivo.
Em alguma medida os comunitários ousaram, romper com a “armadilha
paradigmática” em suas vidas diárias, buscando uma conjugação mais coerente com
a complexidade ambiental, seja gerando menos impactos e/ou confiando numa certa
Inteligência que subjaz os ritmos e movimentos naturais do planeta.
As pessoas, mesmo quando confrontadoras da realidade, estão limitadas se
operarem apenas pelo pensamento racional e crítico, como caminho único de
superação. Daí a importância de se considerar outras categorias da transformação
interior, como as que vem sendo construídas pelos comunitários nas reciprocidades
de suas relações com os outros, com o meio, com os sentidos, com a natureza, com
o sagrado e com o todo, em uma dimensão informal, mas sem dúvida, educativa.
Uma pretensão presente na proposição da ComVivência Pedagógica, que pode
fomentar um salto nos processos formativos ao contemplar o sujeito como ser
integral, o coletivo como espaços de crescimento exponencial e a sociedade
saudável, utópica, como resultante do “inédito viável” (FREIRE, 1987).
Nepomuceno (2015) afirma a importância de integrar a dimensão da
espiritualidade e do sagrado no campo da EA crítica, uma natural vocação espiritual
arraigada em uma das origens do ambientalismo, sem com isso abandonar o
percurso social, político ou de engajamento que faz parte de seu DNA. Porém,
expandir o seu escopo no diálogo crítico com as multidimensionalidades da vida e
15
da sociedade, sem ingenuidades ou alinhamento conservadores, é afirmar a
humanidade presente em nós, como sujeitos, como coletivos e como sociedade.
Entretanto, cabe reconhecer que a complexidade ambiental fica facilmente contida
na capacidade racional humana condicionada e muitas vezes, desconsidera na
prática, a complexidade humana e suas nuances holísticas, subjetivas, criativas,
emocionais, espirituais, relacionais etc.
Os resultados demonstraram que muitos dos componentes fundantes da
abordagem teórico-metodológica da ComVivência Pedagógica, são elementos ativos
na vida dos comunitários e que podem ser potencializados como experiência
significativa da comunidade intencional, se coadunando com os princípios formativos
e os eixos provocadores desta proposição (FARIA, 2021), para fomentar a formação
dos educadores.
As motivações, subjetividades e visão de mundo integrativa, presentes nos
comunitários, são consonantes com a intencionalidade transformadora da proposta;
que desencadeia uma postura conectiva na constância cotidiana de desestabilização
criativa presente na comunidade, aspectos inerentes desta proposição pedagógica.
Estes achados não se descolam dos outros dois princípios formativos da
ComVivência Pedagógica, o da reflexão crítica e indignação ética, corroborando
outros estudos do GEPEADS, em que todos os princípios formativos se
inter-relacionam, possuem sinergia e são impulsionadores de uma dinâmica
importante na criação do ambiente educativo.
Na perspectiva de transição paradigmática, a radicalidade é também um outro
pressuposto dessa proposta teórico-metodológica para a EA. Com base em uma
postura aberta e conectiva, comporia o caminho de formação do educador
ambiental, ativo socialmente, que se posiciona, ao mesmo tempo, como sujeito a se
transformar, e como facilitador da transformação, no outro, para os outros. Para isso,
esse sujeito educador mais ambiental, precisa ter passado por experiências e
processos que possibilitaram uma construção crítica da realidade; a aquisição de
conteúdo, informações, ou métodos de como agir no ambiente; e também ter
vivenciado em sua formação situações reais, experiências profundas na natureza,
significativas, criadoras de choques de realidade, de outras vivências
epistemológicas e outros sentidos.
Para contribuir na transformação das práticas educativas que estão na base
da nossa sociedade, precisamos ampliar a percepção das ciências sociais e
16
considerar o sujeito multifacetado, não como parte (de uma comunidade ou de
uma sociedade), mas como um ser inteiro e integrado num todo que está
intrinsecamente relacionado com tudo e todos, se opondo à atual perspectiva
cartesiana.
Nos comunitários desse estudo, este ambiente coletivo, de relações mais
próximas, imbuídas de ações e propósitos, tem sido altamente impactante em suas
vidas, e os tem transformado enquanto os possibilita viver de forma mais
sustentável, exaltando a potência presente da reflexão em consonância com a ação
sobre o mundo, afirmada em Freire (1992), e com intencionalidade para a sua
transformação.
A experiência significativa de uma comunidade intencional não incentiva a
refletir com criticidades sobre o mundo em que vive, seu contexto social, os
interesses dominantes, as forças de poder, a realidade presente etc., como traz
sentido e significado construídos nos momentos vividos por meio das relações,
afetos, laços solidários, empatia, amor e conexão.
Por todos estes elementos, considera-se que as comunidades intencionais
são um ambiente educativo profícuo, onde se concretizam utopias, e relações
humanas, cuja práxis no meio ambiente se estabelece, numa força conjunta e
criativa inerente a estes pequenos grupos ausentes (SOUZA SANTOS, 2002), mas
se ancoram na simplicidade voluntária, na renúncia com o estabelecido e na ruptura
com o paradigma disjuntivo.
Ao estabelecer convergências da relação da comunidade intencional com a
proposição teórico-metodológica da ComVivência Pedagógica, buscou-se
representar as potencialidades das inter-relações entre os elementos constituintes
dos princípios formativos e a experiência significativa, para os sujeitos, pela vivência
em uma comunidade intencional sustentável e utópica.
Assim, as características inerentes ao ambiente educativo que foram
identificadas na revisão sistemática, vinculam-se às categorias dos eixos
provocadores (FARIA, 2021) e permeia o cotidiano das comunidades intencionais
em diversas interfaces: na ruptura com a modernidade e seu modelo paradigmático,
no reencontro com a natureza, nas dinâmicas diversas do espaço e suas
temporalidades, no sentimento de pertencimento, na construção de sentidos, no
choque de realidade, no conhecimento intuitivo e com o estabelecimento de relações
17
outras. Eixos estes, importantes a serem contemplados para ampliar as dimensões
usuais encontradas nos processos formativos da EA.
De forma inversa às outras investigações acerca da ComVivência Pedagógica
em curso no GEPEADS, este trabalho se baseia a partir da conjectura de que nas
comunidades intencionais, está potencialmente presente um “ser mais ambiental” e
que estas teriam sido iniciadas (ou fundadas) como locais disruptivos e
decoloniais (apesar de estarem mais presentes no Hemisfério Norte).
Nestas comunidades intencionais uma própria dinâmica, mobilizadora,
inclusive, de processos educativos estruturados como o Gaia Education, por
exemplo, o que não anula o seu perfil de ambiente educativo, como conceituado na
ComVivência Pedagógica, pois são espaços carregados de significados
diferenciados e epistemológicos, capazes de gerar experiências significativas,
também para educadores ambientais em formação, que possam se inspirar nessas
comunidades como laboratórios de novas relações de um porvir.
Considerações Possíveis
Uma das principais motivações para elaboração deste estudo perpassou pelo
intuito de investigar o que leva determinados grupos de pessoas a mudar seu estilo
de vida, a ponto de se afastar do paradigma hegemônico e viver em comunidades
intencionais. Ressalva-se a importância das referências ao modo de vida das
populações tradicionais originárias, que baseadas em outras formas de relação entre
humanos, sociedade e natureza, relações mais integrativas e equilibradas que se
sustentam a milhares de anos, inspiram e influenciam a constituição de
comunidades intencionais.
A relevância desse tema pode ser percebida em diversas áreas, entretanto
destacam-se algumas, pensando do ponto de vista tanto acadêmico como social. O
primeiro se relaciona ao fato de que as pesquisas em torno de comunidades
intencionais são raras no mundo e mais ainda em nosso país. O segundo é a
possibilidade de compreender como moradores destas comunidades estruturam
suas vidas e se, em seus cotidianos, indícios que possam repercutir na
construção de um modo de vida que possa referenciar a construção de relações
socioambientalmente sustentável. Outro ponto é que se por um lado, essa
investigação não pretende dar uma visão completa sobre todas as práticas
18
subjetivas comunitárias existentes, a análise parcial feita da realidade do
público-alvo desse estudo pode vir a ampliar o conhecimento atualmente existente,
sobre os comunitários, sobre ser sustentável e possíveis implicações educativas,
assim como sugerir questionamentos para novas investigações.
Nesse cenário, é interessante observar que a vida nas comunidades oferece
vários atrativos para os sujeitos que procuram maior proximidade com a natureza e
o menor impacto ao ambiente, o que inclui a produção orgânica de alimentos e de
outros itens necessários, geração de energias por sistemas renováveis, partilha de
bens comuns e ter hábitos mais saudáveis. Assim, as comunidades intencionais se
sobressaem no quesito sustentabilidade.
A possibilidade de entrelaçar objetivos comuns no próprio cotidiano,
adicionados por afetos, aprendizados, outros sistemas de governança comunitária
participativas que considera as afinidades (a sociocracia ou decisões por consenso
ou consentimento, por exemplo) e a espiritualidade, enquanto se atua objetivamente
para minimizar o impacto de suas próprias ações no mundo são alguns dos
aspectos visíveis no estudo realizado.
A maneira como as comunidades se organizam e se autogovernam, a partir
de afinidades culturais, éticas, crenças, práticas espirituais, ideologias, utopias e
senso de lugar, as distanciam do mainstream e coloca seus membros em maior
conexão consigo mesmos, e com os outros, minimizando a individuação e
aumentando o compromisso coletivo com o todo. Assim, o 'sentido de vida'
compartilhado é algo que poderia ser potencializado em iniciativas de EA.
O “bem viver” é também um aspecto importante expressado no alto nível
obtido de satisfação com a vida, manifestado na simplicidade das inter-relações com
os outros seres e com a natureza, a partir de uma cosmovisão de interdependência
com a Terra, Gaia. Uma conexão com o senso de lugar, que valoriza a sabedoria
ancestral, a solidariedade, a harmonia e o desenvolvimento pessoal, propiciando
uma vida plena e inovadora rumo à autossuficiência e sustentabilidade, que rejeita a
perspectiva do planeta como sinônimo de mercadoria.
A possibilidade de expressar outra cosmovisão no cotidiano é um aspecto
interessante que os moradores de comunidades intencionais têm vivenciado, ainda
que ocultos e silenciados pelo sistema, as suas práticas procuram transcender o que
a humanidade moderna e pós-moderna, têm feito até agora. Afinal, a leitura de
mundo a partir de uma única cosmovisão, materialista, é inconsistente e se
19
caracteriza pela inconsciência de seguirmos o “caminho único” sem perceber que
estamos totalmente imbricados nesse paradigma, o que limita nossas ações,
pensamentos e sentimentos por estarmos contaminados/inseridos/imersos
inconscientemente nesta mesma visão de mundo hegemônica que partilhamos.
Neste sentido, a expectativa utópica e a ação cotidiana dos comunitários pode
nos dar pistas e trazer à luz outras referências, daí que
descobrir/inventar/criar/inovar com outros modelos é essencial, pois instiga outros
fazeres e inspira um outro mundo possível, manifestando a utopia no cotidiano em
relações desafiadoras, mas que visam união, respeito, empatia, amor,
pertencimento, nas quais a espiritualidade e o autoconhecimento são elementos
cruciais. Ou seja, as comunidades intencionais articulam um leque de práticas
sustentáveis com o desenvolvimento pessoal afetando positivamente a qualidade de
vida de todos eles, seja no bem-estar ou nas relações sociais.
Vivenciar o cotidiano de uma comunidade assim é uma experiência não
alternativa, mas criativa, na busca e encontro com outros referenciais, mais
humanos, para se relacionar com a realidade mundial. Por isso, é constituição
embrionária de um novo modo de organização social em seu modo de produção,
consumo e relações com o outro: humano, seres vivos e natureza. Daí que inquirir e
conhecer mais estes sujeitos, pode ser de grande interesse para pensar a formação
de sujeitos educativos.
ainda que se valorar o papel da meditação, por ter se destacado como
prática importante dos investigados. A meditação propicia a expansão da mente na
conexão com todos os seres e pode colaborar na superação da armadilha
paradigmática, especialmente no desenvolvimento da postura conectiva, por possuir
como horizonte o reconhecimento do significado existencial e de direito à vida em
todos os representantes encontrados no Universo, podendo vir a ser também uma
prática fundamental na elaboração de propostas pedagógicas.
Aqui entrelaçamos o que está sendo desenvolvido e denominado por
ComVivência Pedagógica, que tem o intuito de formar educadores ambientais numa
perspectiva mais radical; em dois movimentos: reflexão (teoria) e imersão (prática);
em ambiente significativo, educativo, intencional, com base em outras
epistemologias, temporalidade, espaços e dinamizado por princípios formativos
provocadores para a formação de um Educador Ambiental transformado e
transformador.
20
Dessa forma, os resultados obtidos podem colaborar na reflexão sobre a
práxis dos educadores, possibilitando uma qualificação dos processos formativos em
EA e propiciando o fomento a novos estudos científicos na área. Pode também, em
longo prazo, subsidiar a concepção, elaboração e implementação de políticas
públicas, considerando que a EA pode se revelar como possibilidade real no
desenho de um novo modelo de relações sociopolíticas e econômicas (impacto
social e cultural), que o esgotamento planetário é eminente e a necessidade de
inovação para superação desses problemas deve ser prioritário.
Sob a égide dos princípios formativos da ComVivência Pedagógica,
analisamos que a comunidade intencional pode ser um exemplo do que se
denomina “experiência significativa”, pois opera com o princípio da desestabilização
criativa, oriunda da tentativa de romper com a “armadilha paradigmática”,
impulsionada por motivações diversas de uma indignação ética, geradora da
intencionalidade transformadora.
Neste sentido, a experiência em uma comunidade pode proporcionar uma
experiência imersiva aos educadores e estimular uma postura conectiva, de conexão
consigo mesmo, com os outros, com a natureza e o sagrado, potencializando outras
dimensões do sujeito, em uma visão de mundo integrativa, superadora do padrão
dominante, (estritamente focado no científico-racional cujo cérebro é na realidade, o
centro de poder) que inclui fatores subjetivos, espirituais, de bem-estar e
desenvolvimento pessoal e coletivo como referenciais importantes de processos
formativos. E assim, contribuir para romper com as barreiras inconscientes,
subjetivas e objetivas, da “armadilha paradigmática”; a partir do “reencontro com o
natural”, base da Convivência Pedagógica.
Concluindo, os resultados encontrados podem ser pertinentes para pensar
percursos educativos em formação de educadores ambientais, pois os comunitários
ao viverem de forma alternativa, em harmonia com a natureza, a partir de ideologias
próprias, rompem com o paradigma hegemônico, possibilitando novas referências de
um ambiente educativo propício a uma experiência imersiva significativa. Espera-se
que essas observações possam contribuir e potencializar a formação de educadores
que sejam em sua radicalidade, dinamizadores de uma Educação Ambiental crítica,
efetiva, transformadora e emancipatória.
21
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24
1
V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
MERCANTILIZAÇÃO DA NATUREZA E ACUMULAÇÃO CAPITALISTA: O
LICENCIAMENTO AMBIENTAL EM MINAS GERAIS
1
Gustavo Soares Iorio
2
Lucas Magno
3
Guilherme Barbosa de Faria Umbuzeiro
4
Resumo
As recentes alterações no processo de licenciamento ambiental no estado de Minas Gerais chamam a atenção,
dado o contraste com as recentes tragédias socioambientais que assolaram o estado. Neste texto, buscamos
entender como as mudanças no marco regulatório ambiental (Lei nº. 21.972/16, os Decretos Estaduais
46.953/16 e 47.042/16 e a Deliberação Normativa (DN) 217/17 do Conselho Estadual de Política Ambiental
[COPAM]) ensejaram formas mais intensas de apropriação da natureza no processo de acumulação capitalista.
Palavras-chave: Política ambiental; Licenciamento Ambiental; Minas Gerais; Mercantilização; Natureza.
MERCANTILIZACIÓN DE LA NATURALEZA Y ACUMULACIÓN CAPITALISTA: EL LICENCIAMIENTO
AMBIENTAL EN MINAS GERAIS
Resumen
Los cambios recientes en el proceso de licenciamiento ambiental en el estado de Minas Gerais llaman la atención,
dado el contraste con las recientes tragedias socioambientales que asolaron el estado. En este texto, buscamos
comprender cómo los cambios en el marco normativo ambiental (Ley 21.972/16, Decretos Estatales
46.953/16 y N° 47.042/16 y Deliberación Normativa (DN) n° 217/17 COPAM]) dieron lugar a formas más intensas
de apropiación de la naturaleza en el proceso de acumulación capitalista.
Palabras-clave: Política de medio ambiente; Licenciamiento Ambiental; Minas Gerais; Mercantilización;
Naturaleza.
COMMODIFICATION OF NATURE AND CAPITALIST ACCUMULATION: ENVIRONMENTAL LICENSING IN
MINAS GERAIS
Abstract
Recent changes in the environmental licensing process in the state of Minas Gerais draw attention, given the
contrast with the recent socio-environmental tragedies that devastated the state. In this text, we seek to understand
how changes in the environmental regulatory framework (Law No. 21,972/16, State Decrees No. 46,953/16 and
No. 47,042/16 and Normative Deliberation (DN) 217/17 COPAM]) gave rise to more intense forms of
appropriation of nature in the process of capitalist accumulation.
Keywords: Environmental policy; Environmental Licensing; Minas Gerais; Commodification; Nature.
1
Artigo recebido em 29/04/2022. Primeira avaliação em 28/06/2022. Segunda avaliação em
17/07/2022. Aprovado em 23/09/2022. Publicado em 10/11/2022.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.54260.
2
Doutor em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Departamento de
Geografia da Universidade Federal de Juiz de Fora e do Programa de Pós-Graduação em Geografia
da Universidade Federal de Viçosa. E-mail: iorio@ufv.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0977036613684187. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0079-9647.
3
Doutor em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor do Núcleo de Ciências
Humanas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais (IF
Sudeste MG - campus Muriaé) e do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade
Federal de Viçosa (PPGeo/UFV). E-mail: lucas.magno@ifsudestemg.edu.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5483158857821393. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8799-4113.
4
Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Viçosa.
E-mail: gbarbosa909@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8907779277846184.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7009-5912.
2
Introdução
O estado de Minas Gerais sofreu nos últimos anos uma significativa
reestruturação do seu processo de licenciamento ambiental. Ao contrário do que se
poderia pensar, frente aos escandalosos desastres dos rompimentos de barragens da
Samarco (2014) e Vale S.A. (2019), ao invés de fortalecer o controle público e estatal
sobre os empreendimentos e seus impactos, o que se fez foi exatamente o oposto,
como pretendemos demonstrar nesse artigo.
O licenciamento ambiental é um dos instrumentos através dos quais está
normatizada no campo jurídico a relação entre natureza e o processo econômico de
acumulação do capital. Por isso de sua extrema relevância, em particular em um país
marcado por um padrão exportador de especialização produtiva (OSORIO, 2012),
como é o caso do Brasil desde a última década do século XX, pautado pelo uso
intensivo e extensivo de recursos naturais para produção de commodities.
Este texto aborda as recentes alterações no processo de licenciamento
ambiental no estado de Minas Gerais. Buscamos entender como as mudanças no
marco regulatório ambiental (Lei nº. 21.972/16, os Decretos Estaduais nº 46.953/16 e
47.042/16 e a Deliberação Normativa (DN) 217/17 do Conselho Estadual de
Política Ambiental [COPAM]) ensejaram formas mais intensas de apropriação da
natureza no processo de acumulação capitalista.
Na primeira parte do texto, discutimos o papel da natureza no processo de
acumulação capitalista do ponto de vista dos regimes de propriedade. Na sequência,
contextualizamos a emergência das políticas ambientais, desde a escala global,
nacional e estadual para, por fim, analisarmos o processo de licenciamento ambiental
em Minas Gerais, revelando alterações e inovações advindas com a publicação da Lei
nº 21.972/16, com os Decretos Estaduais nº 46.953/16 e nº 47.042/16 e com a DN do
COPAM 217/2017. Demonstramos que a sequência de alterações legais e
institucionais sofreu forte influência de mineradoras, especialmente da Vale S.A, e
reduziu o rigor no processo de licenciamento e diminuiu a capacidade dos órgãos de
controle ambiental analisar as condições de elevação de riscos associados a grandes
empreendimentos.
3
Natureza e acumulação capitalista
Para compreendermos o significado das alterações no licenciamento ambiental
em Minas Gerais em tela, reivindicamos antes o entendimento de qual é o papel da
regulação do uso da natureza no processo geral de acumulação capitalista.
Marx (2013) começa o seu livro de O Capital com a conhecida frase: “A
riqueza das sociedades onde reina o modo de produção capitalista aparece como uma
enorme coleção de mercadorias” (p. 113). A riqueza na sociedade capitalista é
mensurada pela mercadoria que, por sua vez, é dotada de um caráter duplo. Ao
mesmo tempo que porta uma utilidade em sua forma (do contrário não poderia ser
uma mercadoria de fato), ela porta também um valor, determinado pela quantidade de
trabalho socialmente necessário e passível de se converter em um valor de troca.
No modo de produção capitalista, o sentido do processo produtivo não é
atender às necessidades através dos valores de uso; mas sim, valorizar o valor, isto
é, acumular capital. Neste sentido, do ponto de vista do capital, os valores de uso são
o suporte material para a acumulação capitalista, e não uma finalidade em si mesmo
(CARCANHOLO, 2021).
A produção e apropriação de mais-valor, finalidade última do capital, pode
ocorrer através do trabalho vivo. A natureza, que entra no processo produtivo
enquanto matéria prima, assim como o trabalho morto, não atuam sobre a criação de
valor, apenas transferem seus próprios valores às mercadorias. Ou seja, somente a
parcela do capital variável cria valor, o que não é possível para a parte constante do
capital.
No entanto, disto não se pode concluir que os preços
5
das matérias-primas
extraídas da natureza são irrelevantes para o capitalista, que estes são guiados
pela taxa de lucro. Lucro e mais-valor são a mesma coisa, em níveis de abstrações
diferentes. Enquanto a taxa de mais-valor é obtida pela razão entre o mais-valor e o
capital variável, a taxa de lucro se alcança pela razão entre o mais-valor e o capital
total adiantado
6
(MARX, 2017). Ao capitalista interessa incrementar sua taxa de lucro,
5
Preços e valores são categorias que remetem a níveis de abstrações distintos. Sobre a diferença
entre preços e valores ver seção I do Livro III de O Capital (MARX, 2017) e Carcanholo (2021).
6
“A taxa de mais-valor medida sobre o capital variável chama-se taxa de mais-valor; a taxa de mais-
valor medida sobre o capital total chama-se taxa de lucro. Trata-se de duas medições distintas da
mesma grandeza, as quais, em decorrência da diversidade dos padrões de medida, expressam
simultaneamente proporções ou relações distintas da mesma grandeza.” (MARX, 2017, p. 68).
4
sua noção mais aparente de riqueza. Deste ponto de vista, o rebaixamento do preço
da matéria-prima é fundamental: “Assim, mantendo-se constantes as demais
circunstâncias, a taxa de lucro cai e sobe em sentido inverso ao preço da matéria-
prima” (op.cit p. 136). Visando a potencialização dos lucros, o capital depende do
princípio da natureza barata (PATEL; MOORE, 2017).
A apropriação da natureza no processo de produção do capital se através
de um regime de propriedade privada. A natureza enquanto ativo econômico é
irreproduzível, não pode ser produzida pelo próprio trabalho. O proprietário ou a
proprietária de um bem natural a ser convertido em recurso econômico, dado seu
caráter exclusivo, converte esta condição em um meio de apropriação de valor,
categorizado por Marx como a renda da terra (2017)
7
. A renda é a forma pela qual a
propriedade do solo se realiza economicamente.
A renda é uma apropriação de valor, que, por sua vez, nunca é demais lembrar,
pode ser produzido pelo trabalho (ANDREUCCI; et al, 2017). Portanto, a renda é
uma forma de apropriação e não de produção de valor. Segundo Marx (2017):
Portanto, a propriedade da terra não cria a parcela do valor que se
transforma em lucro extra, apenas capacita o proprietário fundiário, o
proprietário da queda-d’água, a transferir esse lucro extra do bolso do
fabricante para seu próprio bolso. Ela é a causa não da criação desse
lucro extra, mas de sua conversão à forma da renda fundiária e, assim,
da apropriação dessa parte do lucro ou do preço da mercadoria pelo
próprio proprietário fundiário ou proprietário da queda-d’água. (p. 710).
O lucro extra é obtido por uma situação produtiva que faz com que o capitalista
arrendatário (que paga a renda ao proprietário) se beneficie do caráter exclusivo de
determinado bem natural para elevar a sua produtividade e diminuir os seus preços
de produção para aquém do capital médio regulador do preço
8
. Este lucro extra é, no
caso da renda, um mais valor socialmente produzido e apropriado por um capitalista
individual que na esfera distributiva remunera o proprietário do bem natural que lhe
proporcionou o ganho produtivo. Mais uma vez, nos dizeres de Marx (2017):
7
O conceito de renda em Marx se estende para além da terra em si: “Onde quer que forças naturais
possam ser monopolizadas e proporcionem um lucro extra ao industrial que as explora, seja uma queda
d’água, uma mina rica, águas com abundância de peixes, seja um terreno para construção bem
localizado, a pessoa cujo título sobre uma parte do globo terrestre a caracteriza como proprietária
desses objetos naturais subtrai esse lucro extra, na forma de renda, ao capital em funcionamento.”
(MARX, 2017, p. 833).
8
Para a discussão sobre preços de produção e lucro extraordinário, ver capítulo 9, seção II do Livro III
de O Capital (MARX, 2017).
5
A propriedade da terra capacita o proprietário a apoderar-se da
diferença entre o lucro individual e o lucro médio; o lucro assim
embolsado, que se renova anualmente, pode ser capitalizado e
aparece, então, como preço da própria força natural. (p. 710).
A renda enquanto realização econômica da propriedade privada só o pode ser
através de um regime de disciplinarização, de uma forma jurídica que a torna válida.
É exatamente sobre esta forma jurídica que estamos a falar quando analisamos o
licenciamento ambiental. Todo o marco regulatório que incide sobre as formas de
apropriação de um bem natural enquanto recurso econômico é um mecanismo de
distribuição do excedente econômico ou, em um nível mais elevado de abstração, uma
apropriação do mais-valor total.
O que nos leva a tomar esta forma jurídica como algo nada trivial, muito pelo
contrário, pois aí está colocada a luta de classes e a concorrência intercapitalista. No
que tange à natureza, as normas são o regulamento através do qual os regimes de
propriedade são convertidos em ativos econômicos. Assim sendo, cumprem função
importante na institucionalização das formas de dominação de uma classe e fração
de classe sobre as outras.
Na relação entre as classes, os capitalistas se apropriam da natureza
objetivada pelo trabalho concreto das classes subalternizadas num regime de espólio
(HARVEY, 2004). As classes subalternas são despojadas de seus meios de
reprodução social, como a água e a terra, sendo lançadas enquanto mão de obra para
o capital. Esta é a forma da acumulação primitiva de que nos fala Marx (2013):
Na história da acumulação primitiva, o que faz época são todos os
revolucionamentos que servem de alavanca à classe capitalista em
formação, mas, acima de tudo, os momentos em que grandes massas
humanas são despojadas súbita e violentamente de seus meios de
subsistência e lançadas no mercado de trabalho como proletários
absolutamente livres. A expropriação da terra que antes pertencia ao
produtor rural, o camponês, constitui a base de todo o processo (p.
787).
No entanto, a acumulação primitiva, ou a expropriação em um sentido mais
largo, não é um processo exclusivo de uma fase originária do capitalismo, tanto pelo
contrário, constitui-se como traço característico deste modo de produção. A separação
do campesinato e seus meios de produção configuram o que Virgínia Fontes (2010)
chamou de primeira onda de expropriações, seguida de uma segunda na qual os
trabalhadores e as trabalhadoras, despojadas de seus meios de produção, são
6
agora apartadas dos seus meios de reprodução através do avanço da
mercantilização. A natureza convertida em mercadoria é exemplo contundente deste
processo.
A partir da legislação ambiental se define qual a magnitude e o grau de
mercantilização da natureza, se definem usos e apropriações prioritários. No
enquadramento do modo de produção capitalista, os usos legítimos são pautados pelo
princípio da produção do valor, ou seja, os mais produtivos são prioritários (WOOD,
2014). Este traço está muito explícito nas alterações no marco regulatório do
licenciamento ambiental em Minas Gerais, como demonstraremos na próxima seção.
Mas a legislação ambiental não incide somente sobre as relações entre as
classes. Ela é expressão da correlação entre as frações de classe articuladas no bloco
no poder (POULANTZAS, 2019). O bloco no poder define um padrão de reprodução
do capital
9
(OSÓRIO, 2012), ou seja, como o capital vai ser posto e reposto com o fito
de dar continuidade no processo de acumulação capitalista. A continuidade da
reprodução do capital depende de normas explícitas e implícitas que materializam a
estratégia de acumulação da fração de classe hegemônica no bloco no poder. Neste
sentido, a legislação ambiental responde à institucionalização da estratégia de
reprodução do capital da fração de classe hegemônica no seio de um bloco no poder.
Em suma, a análise das alterações na legislação competente ao licenciamento
ambiental em Minas Gerais que tomamos aqui, parte do entendimento de que as
mesmas resultam das relações entre classes e frações de classe, disciplinando o uso
e apropriação da natureza no processo de acumulação capitalista. Sigamos na
apreensão destas alterações, mas cabe, antes, apreciarmos o contexto de
emergência da assim chamada “questão ambiental”.
9
“A noção de padrão de reprodução do capital surge para dar conta das formas como o capital se
reproduz em períodos históricos específicos e em espaços geoterritoriais determinados, tanto no centro
como na semiperiferia e na periferia, ou em regiões no interior de cada um deles, considerando as
características de sua metamorfose na passagem pelas esferas da produção e da circulação […],
integrando o processo de valorização […] e sua encarnação em valores de uso específicos […], assim
como as contradições que esses processos geram.” (OSÓRIO, 2012, p. 40-41).
7
A institucionalização da política ambiental
As origens de um marco regulatório ambiental remontam à década de 1970,
quando emerge uma “questão ambiental” e, junto com ela, a necessidade de um
debate sobre a constituição de instâncias supranacionais com finalidade ambiental
(DUPUY, 1980; LEFF, 1994; SACHS, 2000). A “questão ambiental” foi a expressão
de uma percepção segundo a qual um esgotamento dos recursos naturais se
avizinhava (notadamente o petróleo), e que tal processo incorreria no
comprometimento da continuidade do próprio processo de acumulação capitalista
(ALTVATER, 2010).
A questão ambiental então estimulou a formulação de vias de desenvolvimento
que pudessem evitar o colapso ambiental (ALTVATER, op. cit.), sem prejudicar a
continuidade da exploração capitalista. Para tanto, necessário seria convencionar
elementos de disciplinarização da exploração dos recursos, a serem formulados em
um patamar internacional, e incorporado nos marcos regulatórios nacionais e
subnacionais.
Este é o ponto fulcral da emergência ambiental no seio do capitalismo mundial:
como garantir a continuidade da reprodução capitalista mesmo diante de um fator
externo de instabilidade (ALTVATER, op. cit.). Portanto, conforme observou John
Foster (2005), assim como Marx (2013) entendeu que a legislação trabalhista inglesa
do século XIX respondeu não a uma complacência para com a classe trabalhadora,
mas sim à necessidade de disciplinar a exploração da força de trabalho de tal maneira
que equiparasse as condições de concorrência intercapitalista; igualmente, as
restrições ambientais e a “consciência ambiental” dos agentes capitalistas deve ser
entendida enquanto equiparação das condições de exploração da natureza.
Nesse contexto, no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), formou-
se o Clube de Roma, uma espécie de comissão internacional de especialistas que
produziu o relatório denominado “Os limites do crescimento econômico”; e, em 1972,
em Estocolmo, foi realizada a I Conferência Mundial sobre Meio Ambiente.
O debate travado nessa conferência chegou à noção de “desenvolvimento
sustentável” como uma estratégia de desenvolvimento capitalista que supostamente
seria capaz de conciliar crescimento econômico e meio ambiente. Esta noção, com
todas as suas contradições, passou a balizar a questão ambiental em todo o mundo,
8
aparecendo pela primeira vez de forma institucionalizada em 1987, no relatório “Nosso
futuro comum”, elaborado pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento. A ideia central presente neste relatório era a da compatibilização
entre “desenvolvimento”, diminuição de desigualdades sociais e preservação dos
recursos naturais; e, para isso, seriam necessárias medidas aplicadas pelos Estados
nacionais e também medidas internacionais (LEFF, 1994; SACHS, 2000).
10
Segundo Carneiro (2003), antes mesmo que a noção de “desenvolvimento
sustentável” se tornasse hegemônica internacionalmente, diferentes governos
adotaram ao longo da história uma série de medidas para regulamentar os usos das
condições naturais, ora voltadas para a gestão ambiental, ora por motivações
conservacionistas. Essas medidas, contudo, não levavam o rótulo de políticas
ambientais. No Brasil, por exemplo, tais “políticas” estavam presentes desde a década
de 1930, criadas no bojo do processo de industrialização do país. Ainda segundo
Carneiro (2003), a maior parte das normas ambientais entre 1930 e 1964 concentrava-
se nas áreas de recursos hídricos e minerais, a exemplo do Código das Águas (1934)
e do Código de Minas (1940)
11
. O aumento de demandas ambientais em diferentes
esferas governamentais influenciou uma variedade de normas e temas a serem
abordados por políticas públicas (VIOLA; VIEIRA, 1992; SANCHÉZ, 2013).
Na estrutura administrativa brasileira, a primeira vez que a pauta ambiental
ganhou uma forma estatal específica foi no âmbito do extinto Ministério do Interior,
com a criação da Secretaria Especial de Meio Ambiente (SEMA), através do Decreto
73.030/1973 (IORIO, 2015). Porém, a institucionalização das políticas ambientais
no Brasil ganharia impulso em 1981, com a publicação da Política Nacional do Meio
Ambiente (Lei nº 6.938/81), que criou o Conselho Nacional de Meio Ambiente.
Em Minas Gerais os debates e movimentações institucionais para a
constituição de uma política ambiental é anterior à publicação da Lei nº 6.938/81. Em
meados da década de 1970 já havia se formado nesse estado uma “tecnoburocracia
ambiental”, formada por engenheiros com fortes vínculos com a elite política local,
conforme apontou Carneiro (2003). O discurso presente, ainda segundo este autor,
10
Sobre a crítica à noção de desenvolvimento sustentável desde o ponto de vista crítico, ver Monerat
(2020).
11
Os recursos hídricos e minerais eram considerados estratégicos pelo Estado, seja para o potencial
de geração de energia elétrica, seja para alavancar a indústria de base. O Código de Minas, por
exemplo, se inscreve no esforço de desenvolvimento da siderurgia nacional, precedendo a criação, em
1942, da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN).
9
centrava-se na formação de um núcleo institucional capaz de planejar e gerenciar o
“desenvolvimento” de Minas Gerais no que tangia ao aproveitamento “racional” dos
seus recursos naturais, sobretudo os minerais.
A estruturação político-institucional desse processo ocorreu em 1976, através
da Lei6.953/76, que criou a Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia (SECT).
Essa secretaria, embora não incluísse em sua estrutura organizacional a pasta “meio
ambiente”, assumiu competências específicas relacionadas à “área ambiental”
(FEAM, 1998). Em 1977, no âmbito da SECT, criou-se a Comissão de Política
Ambiental (COPAM) - Decreto 18.466/77 -, órgão colegiado com poder deliberativo
a respeito de questão ambientais no estado
12
.
Nos primeiros anos de sua atuação, o COPAM deu ênfase à aplicação de
multas ambientais e não a processos de licenciamento ambiental como havia sido
planejado, o que caracterizava a atuação dessa comissão mais como fiscalizadora do
que propriamente como reguladora da política ambiental mineira. Exemplo disso é a
própria Lei 7.772/80, que fixava as diretrizes de atuação do COPAM e que se
fundamentou em uma concepção de meio ambiente que tinha como preocupação a
identificação e o controle de fontes de poluição de origem industrial (FEAM, 1998).
Em meados da década de 1980, já sob os efeitos da Política Nacional de Meio
Ambiente, o estado de Minas Gerais passou a edificar uma estrutura própria para
tratar de questões ambientais. Essa estrutura, em boa medida, foi influenciada pela
Resolução CONAMA 001/86, que normatizou o licenciamento ambiental no país. Os
sistemas preexistentes que atuavam com esses processos se modificaram. Segundo
Sanchéz (2013, p.99):
A avaliação de impactos não apenas se soma ao que havia em
termos de legislação. Associada ao licenciamento ambiental, a
Avaliação de Impacto Ambiental exigiu a estruturação de órgãos
ambientais em todos os Estados da União, e vai, paulatinamente,
impor aos empreendedores privados e públicos novos requisitos para
a planificação de projetos (...).
Assim, em 1983, foi criada a Superintendência do Meio Ambiente (Decreto
22.658/83) e, em 1988, a Fundação Estadual do Meio Ambiente (Decreto
28.163/88). Posteriormente, influenciado pelos debates da Rio-92, o governo
12
Posteriormente, em 1987, a Comissão de Política Ambiental se transformou em Conselho Estadual
de Política Ambiental (Lei nº 9.514/87).
10
mineiro criou, através da Lei nº 11.903/95, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente
e Desenvolvimento Sustentável (SEMAD) com a seguinte estrutura: i) Conselho
Estadual de Política Ambiental (COPAM) e Conselho Estadual de Recursos Hídricos
(CERH); ii) Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM), Instituto Estadual de
Florestas (IEF) e Departamento de Recursos Hídricos do Estado de Minas Gerais
(DRH) (FEAM, 1998).
Cada uma dessas estruturas administrativas era responsável pelas análises
dos impactos ambientais de empreendimentos de sua área. Por exemplo, ao IEF cabia
avaliar impactos em intervenções sobre a vegetação e a regularização de reservas
legais; ao DRH, posteriormente transformado em Instituto Mineiro de Gestão das
Águas (IGAM - Lei 12.584/97), as análises sobre as intervenções que envolviam
recursos hídricos; à FEAM, a avaliação de impactos oriundos de resíduos sólidos,
efluentes líquidos e atmosférico, além de atividades industriais, minerárias e de
infraestrutura. Todos estes órgãos são técnicos, isto é, responsáveis pelas análises
dos documentos apresentados pelos empreendedores (Estudos de Impactos
Ambientais, Relatórios de Impactos Ambientais, Planos de Controle Ambiental, etc.)
(RODRIGUES, 2010; ZHOURI, et. al., 2005).
Já o COPAM e o CERH são órgãos deliberativos da política ambiental mineira,
ou seja, as instâncias institucionais onde são tomadas as decisões acerca do modo
como se deve dar a apropriação e uso do meio ambiente pelos empreendimentos para
os quais se exigem licenciamento ambiental
13
.
A ideologia do “desenvolvimento sustentável”, construída desde a I Conferência
Mundial sobre Meio Ambiente, balizou os debates e a própria necessidade de se
institucionalizar a questão ambiental em Minas Gerais (Carneiro, 2003). Não resta
dúvida que edificar uma estrutura destinada a avaliar e a debater uma política
ambiental foi um avanço político. Entretanto, várias críticas aos procedimentos
referentes ao licenciamento ambiental no estado foram feitas (CARNEIRO, 2005;
ZHOURI, et. al., 2005; ZHOURI; ROTHMAN, 2008; CARDOSO; JUCKSCH, 2008;
13
Considerando essa estrutura, que vigorou até 2003, para que um empreendimento tivesse início ele
deveria passar por três fases de licenças ambientais, quais sejam: Licença Prévia (LP); Licença
Instalação (LI); e Licença Operação (LO). Cada uma delas deveria ser aprovada pelo COPAM. Este
conselho, à época, possuía Câmaras Técnicas Especializadas (centralizadas em Belo Horizonte - MG)
para analisar os pedidos de licença, a saber: Câmara de Atividades Industriais (CID); Câmara de
Atividades Minerárias (CMI); Câmara de Atividades de Infraestrutura (CIF); Câmara de Proteção à
Biodiversidade (CPB); Câmara de Atividades Agrosilvopastoris (CAP); e Câmara de Recursos Hídricos
(CRH) (ZHOURI, et. al., 2005).
11
VIEIRA, 2008; LASCHEFSKI, 2014; LEROY, 2014; dentre outros). Tais críticas
referem-se à oligarquizarão do campo ambiental, em especial do COPAM, à ausência
ou dificuldade de participação das comunidades afetadas por grandes
empreendimentos e a problemas procedimentais em relação às análises técnicas dos
Estudos de Impacto Ambiental e seus respectivos Relatórios de Estudos Ambientais
(EIA/RIMA).
Nesse contexto, Zhouri et. Al. (2005) argumentaram que o licenciamento
ambiental em Minas Gerais deixou de cumprir sua função de ser um instrumento de
avaliação da sustentabilidade socioambiental de um empreendimento, que deveria
levar em conta suas implicações políticas, técnicas, sociais e ambientais; e se tornou
um meio de atender as demandas que atribuem ao meio ambiente um caráter de
recurso material a ser explorado economicamente. Essa argumentação revela que os
órgãos ambientais no estado funcionam como um grande “cartório”, isto é, como um
procedimento burocrático no qual os órgãos técnicos e deliberativos apenas conferem
se a “papelada” foi entregue corretamente e se foi identificada alguma “pendência” a
ser mitigada ou compensada, não havendo, portanto, análises técnicas ou
preocupadas com aspectos socioambientais.
Ainda segundo Zhouri et. al. (2005), essa crença nos ajustes tecnológicos,
através de medidas mitigadoras e compensatórias, cumpre a função de viabilizar e
adequar o meio ambiente aos empreendimentos, o que levou esses autores a
entender que o licenciamento ambiental em Minas Gerais é regido por um “paradigma
da adequação ambiental”. Ou seja:
(...) como procedimento desenhado a partir de um paradigma de
desenvolvimento sustentável que, depositando nos arranjos
tecnológicos como soluções para os problemas ambientais, busca
adequar sociedades e meios ambientes à lógica econômica
acumulativa (ZHOURI, et. al., 2005, p. 112).
Entre a Lei 11.903/95, que de fato institucionalizou o licenciamento ambiental
em Minas Gerais, até a presente data, muita coisa mudou, tanto em termos de
organograma da SEMAD, como no que se refere aos tipos e procedimentos para
licenciar um empreendimento potencialmente poluidor/degradador do meio ambiente.
E, concordando com Zhouri et. al. (2005), podemos dizer que essas mudanças
acentuaram o paradigma da adequação ambiental na política ambiental mineira,
12
flexibilizando ainda mais o licenciamento ambiental no estado aos anseios da
acumulação capitalista.
Alterações e “inovações” institucionais no licenciamento de grandes
empreendimentos em Minas Gerais
A organização da SEMAD descrita no tópico anterior vigorou até 2003, quando,
através da Lei Delegada nº 62/2003, se estabeleceu a regionalização das avaliações
de impacto ambiental e da concessão das licenças, através das Unidades Regionais
Colegiadas (URC) do COPAM com o assessoramento das Superintendências
Regionais de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SUPRAM)
14
. Essa
descentralização provocou modificações na avaliação dos processos de
licenciamento em Minas Gerais (RODRIGUES, 2010; SANTOS; BORGES, 2017).
Nesse contexto, à SUPRAM caberia subsidiar tecnicamente e juridicamente as
análises da URC correspondente. À esta caberia o poder deliberativo de deferir ou
não um pedido de licença ambiental feito para um determinado empreendimento no
âmbito de sua região de atuação.
Segundo Santos e Borges (2017), esse processo de descentralização dos
procedimentos de análises e deliberações a respeito do licenciamento em Minas
Gerais se destacou no cenário nacional por ser considerado democrático e
participativo, garantindo a representatividade da sociedade civil local nas URC’s
15
.
Entretanto, conforme Zhouri et. al. (2005), mesmo sendo pioneiro e, certa maneira,
referência para outros estados, os problemas referentes à participação social nessas
instâncias deliberativas que são de ordem procedimental e político-estrutural
persistiram. Assim, para estes autores, o licenciamento ambiental com essas
alterações continuava hierarquizado, prevalecendo determinadas representações
hegemônicas sobre o meio ambiente.
14
Ao todo, haviam nove SUPRAM distribuídas de acordo com as regiões administrativas do estado de
Minas Gerais e com sedes nos seguintes municípios: Belo Horizonte (SUPRAM - Central
Metropolitana), Divinópolis (SUPRAM - Alto São Francisco), Diamantina (SUPRAM - Jequitinhonha),
Governador Valadares (SUPRAM - Leste Mineiro), Montes Claros (SUPRAM - Norte de Minas),
Varginha (SUPRAM - Sul de Minas), Uberlândia (SUPRAM - Alto Paranaíba), Ubá (SUPRAM - Zona
da Mata) e Unaí (SUPRAM - Noroeste de Minas).
15
A composição das UCR’s seguia a proporção de 50/50, a mesma do COPAM, ou seja, 50%
representantes do estado e 50% da sociedade civil.
13
Essa estrutura “descentralizada” da SEMAD no que se refere à análise e
deliberação de procedimentos referentes ao licenciamento ambiental e às concessões
de licenças no estado vigorou até 2016, quando, através da Lei 21.972/16, dos
decretos estaduais nº 46.953/16 e 47.042/16 e da Deliberação Normativa (DN) do
Conselho Estadual de Política Ambiental de Minas Gerais (COPAM) nº 217/17 muita
coisa mudou novamente.
Com os decretos, em especial o nº 46.953/2016, a composição dos conselhos
deliberativos da política ambiental de Minas Gerais se alterou. No COPAM, por
exemplo, o decreto retirou a cadeira do Ministério Público do Estado de Minas Gerais
(MPMG), cabendo a ele apenas um assento na Câmara Recursal (CNR). A
representação paritária foi mantida, entretanto, foi assegurada a participação dos
setores produtivos nas Câmaras Técnicas Especializadas (CTE)
16
, que, junto com os
representantes governamentais, têm maioria numérica (MILANEZ et. al., 2019a).
Essa modificação retirou o poder de participação das populações atingidas por
grandes empreendimentos, uma vez que, além de garantir apenas um assento no
COPAM que pode as representar, sua participação in loco em reuniões ficou
comprometida, que a capital mineira, não raro, fica a mais de 400 km de
determinadas localidades ameaçadas por grandes obras. Isso, com efeito,
comprometeu a participação popular e mesmo a democracia aparentemente em vigor
nos processos de licenciamento em Minas Gerais.
Outra modificação, posta com o Decreto Estadual 47.042/16, foi considerada
uma “inovação”, a saber: a criação da Superintendência de Projetos Prioritários
(SUPPRI) na Subsecretaria de Regularização Ambiental (SURAM) (figura 1).
A SUPPRI tem papel de analisar processos de licenciamento de
empreendimentos ou atividades consideradas prioritárias em razão da sua relevância
para a proteção ambiental ou para o desenvolvimento social e econômico de Minas
Gerais
17
. Essa superintendência pode, portanto, interferir no licenciamento de
16
As CTE, que haviam sido substituídas pelas URC “regionalizadas”, voltaram à cena com a Lei
21.972/16, com nova centralização em Belo Horizonte - MG.
17
Segundo Milanez et. al., 2019a, no âmbito da SUPPRI, os projetos são definidos como prioritários
pelo Grupo de Coordenação de Políticas Públicas de Desenvolvimento Econômico Sustentável
(GCPPDES), composto por cinco secretarias de governo, pelo Banco de Desenvolvimento de Minas
Gerais (BDMG), Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais (CODEMIG),
Companhia Energética de Minas Gerais (CEMIG), Instituto de Desenvolvimento Integrado de Minas
Gerais (INDI) e coordenado pela Secretaria da Fazenda. A composição do GCPPDES majoritariamente
com representantes do governo ou de órgãos ligados ao Poder Executivo estadual revela que sua
unidade é facilmente obtida “a partir de cima”.
14
empreendimentos que o governo do estado tenha interesse manifesto, “agilizando”
trâmites ou mesmo enviando pareceres técnicos sobrepostos aos da SUPRAM.
Essa “inovação” institucional, a nosso ver, criou um meio de flexibilizar o
licenciamento de grandes empreendimentos em Minas Gerais, com destaque para os
do setor minerário. Por exemplo, Bertoni (2019) mostrou que, entre 2016 e 2018, mais
de um quarto dos projetos classificados como prioritários pelo governo de Minas
Gerais eram de mineradoras, sobretudo da Vale S.A., entre eles a barragem B1 do
Complexo Minerador Córrego do Feijão em Brumadinho (MG), que veio a se romper
em janeiro de 2019
18
(MILANEZ et. al., 2019a).
A DN 217/2017 do COPAM também ensejou significativas alterações no
licenciamento ambiental em Minas Gerais. Ela colocou, entre outras coisas, novas
modalidades de licenciamento às quais estariam sujeitos os empreendimentos,
alterou as classes segundo porte e potencial poluidor/degradador e incluiu critérios
locacionais que interferem na classificação dos mesmos.
Em relação às modalidades de licenciamento, as alterações se deram na
substituição da Autorização Ambiental de Funcionamento (AAF) pelo Licenciamento
Ambiental Simplificado (LAS) para empreendimentos de pequeno porte e potencial
poluidor/degradador.
18
Conforme Parecer Único Nº 0786757/2018 SUPPRI/SURAM/SEMAD, em 10 de janeiro de 2017 foi
realizada a 18ª reunião do Grupo de Coordenação de Políticas Públicas de Desenvolvimento
Econômico Sustentável, na qual foi apresentado pelo Instituto de Desenvolvimento Integrado de Minas
Gerais (INDI), para deliberação de prioridade, o projeto Córrego do Feijão, do empreendedor Vale S.A,
conforme determinam o §1º do art. 5º da Lei 21.972/2016 e a Deliberação GCPPDES 1, DE 27 de
março de 2017.
15
Figura 1. Organograma da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e
Desenvolvimento Sustentável (SEMAD), 2016
19
.
19
IEF Instituto Estadual de Florestas; IGAM Instituto Mineiro de Gestão das Águas; FEAM
Fundação Estadual do Meio Ambiente; COPAM Conselho Estadual de Política Ambiental; CERH-
MG Conselho Estadual de Recursos Hídricos de Minas Gerais; ARSAE-MG Agência Reguladora
de Serviços de Abastecimento de Água e de Esgotamento Sanitário do Estado de Minas Gerais;
SUFIS Subsecretaria de Fiscalização Ambiental; SUGES Subsecretaria de Gestão Ambiental e
Saneamento; SURAM Subsecretaria de Regularização Ambiental; SUTAF Subsecretaria de
Tecnologia, Administração e Finanças; SUSAB Superintendência de Saneamento Básico; SUGA
Superintendência de Gestão Ambiental; SUARA Superintendência de Apoio à Regularização
Ambiental; SUPPRI Superintendência de Projetos Prioritários; SGDP Superintendência de Gestão
e Desenvolvimento de Pessoas; SUAFI Superintendência de Administração e Finanças; STI
Superintendência de Tecnologia da Informação; SUPRAMs Superintendências Regionais de Meio
Ambiente.
SEMAD
IEF
IGAM
ARSAE-MG
FEAM
COPAM
CERH-MG
SUGES
SUSAB
SUGA
SUFIS
Superintendência
de controle
processual
Superintendência
de fiscalização
SURAM
SUPPRI
SUARA
SUTAF
STI
SUAFI
SGDP
Assessoria
jurídica
Assessoria
estratégica
Assessoria de
comunicação
social
Assessoria de
gestão regional
Controladoria
setorial
Gabinete
Secretaria
executiva
SUPRAMs
16
Já o Licenciamento Ambiental Trifásico (LAT) para grandes empreendimentos,
o “licenciamento clássico”, com expedição sucessivas das licenças Prévia (LP), de
Instalação (LI) e de Operação (LO), passou a ser possível simultaneamente em
apenas uma única fase por meio do Licenciamento Ambiental Concomitante (LAC)
20
.
Além disso, foi possível, tal como descrito no PL 3.729/04, a Licença Ambiental
Corretiva (LOC), que regulariza empreendimentos que não possuem licença para
operar ou que avançaram sobre determinadas áreas e, depois, “resolveram”
licenciar, seja em função de novas necessidades de instalações, seja por conta da
fiscalização dos órgãos ambientais.
No que diz respeito às classes dos empreendimentos sujeitos ao licenciamento
ambiental, a DN 217/17 do COPAM alterou ainda os critérios de risco de alguns
empreendimentos, permitindo, inclusive, redução de etapas de licenciamento
ambiental e reclassificação dos mesmos em termos de potencial poluidor/degradador.
Assim, ao invés de passarem obrigatoriamente pelo LAT, grandes empreendedores
poderiam obter as licenças ambientais concomitantemente (MILANEZ et. al., 2019a).
Todavia, a aplicação desse arranjo está sujeita à discricionariedade da
SUPPRI. Nos termos da Lei 21.972/2016 e do Decreto Estadual 47.042/2016, caso
este órgão considere o empreendimento prioritário, a avaliação técnica é feita pela
sua própria equipe e a decisão tomada por uma das Câmaras Técnicas do COPAM,
em Belo Horizonte, independentemente de qual regional da SUPRAM foi protocolado
o Formulário de Caracterização do Empreendimento (FCEI).
Em síntese, o que estamos argumentando a partir dessa exposição é que a
sequência de alterações legais e institucionais ocorridas no estado a partir de 2016
reduziu o rigor no processo de licenciamento ambiental. Essa diminuição do poder
institucional deve ser considerada um fator importante na redução da capacidade de
os órgãos de controle ambiental analisarem mais detalhadamente condições de
elevação de riscos dos empreendimentos, e uma elevação do poder corporativo do
capital.
Nas recentes alterações do marco regulatório ambiental em Minas Gerais fica
ainda mais explícito as “relações perigosas” entre capital e normativa ambiental. Neste
20
Na modalidade LAC, segundo DN COPAM nº 217/2017, a licença é emitida conforme os seguintes
procedimentos: i) análise, em uma única fase, das etapas de LP, LI e LO da atividade ou do
empreendimento, denominada LAC1; ou ii) análise, em uma única fase, das etapas de LI e LO do
empreendimento, com análise posterior da LO; ou ainda, análise da LP com posterior análise
concomitante das etapas de LI e LO do empreendimento, denominada LAC2.
17
processo ficou evidente a atuação direta da Vale S.A. no desenho do marco
regulatório. É crescente a literatura crítica no campo ambiental brasileiro que relaciona
força econômica de grandes corporações e força política não para alterar leis e
normas ambientais, como também influenciando nos planejamentos territoriais,
assegurando condições mais favoráveis para sua produção e apropriação de valor
(MILANEZ et. al.; 2018; LASCHEFSKI, 2019).
O gráfico 1, por exemplo, mostra um aumento exponencial das licenças
concedidas à empreendimentos de mineração, justamente após a vigência das leis e
decretos analisados, em especial, a DN COPAM nº217/17. Nele, é possível ver que
foi a partir de 2018, quando a Instrução de Serviço SISEMA nº 01/2018 que definiu os
procedimentos para a aplicação da DN COPAM que houve grande aumento na
concessão de licenças ambientais para a mineração
21
.
Gráfico 1. Minas Gerais: licenças deferidas para empreendimentos de mineração, 2013-2021
Fonte: Sistemas SEMAD, 2021/Infraestruturas de dados espaciais (IDE). Data: 21/11/2021.
A atuação dessas corporações na interferência em processos de regulação
ambiental se através de lobbies e coalizões políticas, como financiamento de
campanhas eleitorais, por exemplo, mas por outras vias como a dimensão ideacional
e a própria necessidade que os governos têm de alcançar índices de desenvolvimento
econômico, o que depende do resultado econômico das próprias corporações
(MILANEZ, et. al., 2019b).
21
É importante destacar que nesse gráfico estão representados todas as licenças concedidas e todos
os tipos de empreendimentos de mineração, dos mais simples (brita, cascalho, areia, etc.) aos mais
complexos (minério de ferro, bauxita, etc.).
153
63 47 35 60
436
723 683
535
0
100
200
300
400
500
600
700
800
2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021
18
O caso da atuação da Vale S.A junto à reformulação do licenciamento
ambiental em Minas Gerais é um exemplo lapidar disso. Segundo matéria de Maurício
Ângelo (2019), no portal Repórter Brasil, quatro representantes da empresa foram
recebidos em 2014 por dois servidores da SEMAD na própria sede da empresa em
Belo Horizonte. Segundo a matéria, na oportunidade, os representantes da empresa
“sugeriram” à SEMAD algumas alterações na legislação ambiental, como um
licenciamento único, em substituição ao trifásico. Conforme se viu na seção anterior,
esta mudança se efetivou em 2017, com a publicação da DN COPAM 217/17. Note-
se que a simplificação da licença ambiental produziu efeitos imediatos e trágicos, com
o licenciamento da mina do Córrego de Feijão, no município de Brumadinho.
Considerações finais
Nas últimas duas décadas, a legislação ambiental brasileira, de modo geral, e
o processo de licenciamento ambiental, em específico, têm sido foco de intensos
debates. Tais contendas envolvem ambientalistas, pesquisadores e entidades
representativas dos setores industrial, mineral e do agronegócio, e são inflamadas,
principalmente, por Projetos de Lei (PL) que tramitam no Congresso Nacional, a
exemplo do PL 3.792/2004 conhecido como “Lei Geral do Licenciamento Ambiental”
e que foi aprovado pela Câmara dos Deputados no dia 13 de maio de 2021.
A partir do que foi visto, podemos dizer que as alterações no processo de
licenciamento ambiental em Minas Gerais deflagradas através da Lei nº. 21.972/16,
os decretos estaduais nº 46.953/16 e nº 47.042/16 e a DN nº 217/17, respondem aos
imperativos da acumulação capitalista a partir de um bloco no poder que encampa um
padrão de acumulação fortemente arraigado no uso intensivo da natureza enquanto
recurso.
Para tanto, a agilidade e facilidade que o novo marco regulatório confere ao
processo de licenciamento facilita a apropriação da natureza a preços baratos no
processo de acumulação capitalista. O estado de Minas Gerais ganha um destaque
na apreensão deste padrão de acumulação por ser, juntamente com o Pará, os dois
principais eixos da mineração no país.
19
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1
V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
EXTENSÃO RURAL, AGRONEGÓCIO E CONSERVADORISMO: OS LIMITES DE
UMA POLÍTICA PÚBLICA PARA O CAMPO
1
José Carlos de Amaral Júnior
2
Caroline Becher
3
Resumo
Esse trabalho discute como a extensão rural pública se encontra, atualmente, impossibilitada de lidar
com a diversidade de sujeitos e modos de vida no campo, pois está atrelada ao conservadorismo
histórico que converteu sua prática aos interesses do agronegócio e do capital internacional. Assim,
mesmo com as modificações ocorridas nessa política pública a partir dos anos 1990, a inadequação
teórico-metodológica impossibilitou que a diversificação de públicos fosse refletida na diversidade de
formas de trabalho dos extensionistas, mantendo intacta a perspectiva ambiental de seu passado.
Palavras-chave: Extensão Rural, Meio Ambiente, agronegócios.
EXTENSIÓN RURAL, AGRONEGOCIO Y CONSERVADURISMO: LOS LIMITES DE UMA
POLÍTICA PÚBLICA PARA EL CAMPO
Resumen
Este trabajo discute cómo una extensión rural pública es actualmente incapaz de hacer frente a la
diversidad de sujetos y formas de vida en el campo, ya que está ligada al conservadurismo histórico
que convirtió su práctica a los intereses del agronegocio y el capital internacional. Así, aún en la forma
de política pública que se dio en esa fecha de 1990, una insuficiencia teórico-metodológica imposibilitó
que la diversificación de públicos se reflejara en el trabajo de los extensionistas, manteniendo intacta
la perspectiva ambiental de su pasado.
Palabra Clave: Extensión rural; Medio ambiente; agronegocios.
RURAL EXTENSION, AGRIBUSINESS AND CONSERVATISM: THE LIMITS OF A PUBLIC POLICY
FOR THE FIELD
Abstract
This work sought to discuss how public rural extension is currently unable to deal with the diversity of
subjects and ways of life in the countryside, since it is still strongly linked to the historical conservatism
that converted its practice to the interests of agribusiness and international capital. Thus, even with the
changes that have taken place in this public policy since the 1990s, the theoretical-methodological
inadequacy made it impossible for the diversification of audiences to be reflected in the diversity of the
extension workers; ways of working, keeping intact the environmental perspective of their past.
Keywords: Rural extension; Environment; Agrobusiness.
1
Artigo recebido em 18/05/2022.. Primeira avaliação:28/06/2022. Segunda avaliação: 29/07/2022.
Aprovado em 14/09/2022 .Publicado em 10/11/2022.. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.54533.
2
Pós-doutorado em Serviço Social e Política Social na Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Doutor em Memória: Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da
Bahia(UESB). E-mail: jcamaral1987@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0581277589084312.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9983-4181.
3
Doutora em Serviço Social e Política Social pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Assistente
Social do Instituto de Desenvolvimento Rural do Paraná (IDR-PARANÁ).
E-mail: karolbecher@hotmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0781567490749607.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1221-8707.
2
Introdução
Esse trabalho busca discutir como a extensão rural pública se encontra,
atualmente, impossibilitada de lidar com a diversidade de sujeitos e modos de vida no
campo, visto que ainda fortemente atrelada ao conservadorismo histórico que
converteu sua prática aos interesses do agronegócio e do capital internacional. Para
tal, utilizaremos como exemplo profícuo os rumos trilhados pela Assistência Técnica
e Extensão Rural - ATER paranaense, demonstrando como o processo de “sojização”
da produção agrícola no estado encontrou reverberação em um modelo difusionista
produtivista de extensão rural e os limites que a construção histórica da política em
torno dessas premissas colocam à diversificação de público, na compreensão dos
distintos modos de vida e no reconhecimento do campesinato.
A extensão rural é uma política pública implementada no Brasil desde a década
de 1950, por meio de uma parceria público-privada que aproximava instituições
estadunidenses com os estados brasileiros na busca por uma “modernização do
campo” (PEIXOTO, 2008). Prevalecia uma leitura altamente evolucionista do rural
brasileiro, em que diversas “missões” pelo interior do país, muitas delas de
financiamento também estadunidense, reforçavam o campo como lugar do arcaico em
todos os sentidos: produção, vida cotidiana, hábitos e costumes (FONSECA, 1985).
A extensão rural, vista puramente por uma perspectiva estadista, pode parecer uma
política pública voltada para o campo que foi resultante de uma série de iniciativas que
ocorreram nas décadas anteriores, como as missões e semanas rurais, de origem
bastante diversa. No entanto, compreendê-la pela perspectiva crítica requer maior
cuidado.
Em primeiro lugar, deve pesar o caráter adaptado dessa política para o cenário
brasileiro, que embora tenha sido trazida sob o discurso de “semelhança com o
modelo dos EUA”, foi importada em um formato peculiar (AMARAL JUNIOR, 2020).
Aqui inicialmente a política foi construída no bojo dos acordos de cooperação
internacional pós-II Guerra, assumindo caráter mais brando e assistencialista, menos
focado na difusão tecnológica e fortemente vinculada ao crédito supervisionado. Além
disso, como também está demonstrado em Amaral Júnior (2020), vinculou-se a uma
perspectiva moralizante de promoção da mudança de hábitos e costumes, apoiando-
3
se mesmo em categorias profissionais que estavam, àquela época, em plena
decadência nos EUA.
Em segundo lugar, pelo contexto e formato em que foi implementada, é preciso
destacar que, conforme apontado por Alves e Amaral Júnior (2022), a extensão rural
é resultado de uma negação de diversas outras políticas ao campo: ela é a soma
genérica, reduzida e bastante pragmática do que o Estado preconizava como
educação necessária para o campo. Para os sujeitos do rural brasileiro, não bastava
mais do que ensinar a ler e escrever, a como produzir utilizando novas ferramentas e
a adotar hábitos mais “modernos”, quase sempre filtrados pela ideologia eugenista da
origem extensionista. Portanto, a extensão rural é uma política pública voltada ao
campo já marcada desde sua gênese por ser, dialeticamente, o símbolo da presença
pragmática do Estado e sua consequente negação, afirmando sua ausência em
diversas outras áreas como a assistência social, a saúde, a previdência social, a
educação escolar e etc.
No entanto, a vertente “humanista assistencialista” da extensão rural foi, depois
de mais ou menos duas décadas, substituída por um modelo focado na difusão de
insumos e tecnologias agrícolas, atrelada a uma proposta desenvolvimentista de
geração de superávit que tinha como base a tecnificação e a “modernização” do
campo (RODRIGUES, 1997). O autor demonstra como, no bojo dos interesses do
capital e acompanhando os eventos da Revolução Verde, o positivismo adentrou as
agências de extensão, abandonando um projeto educativo mais amplo focado na
mudança de hábitos e costumes para debruçar-se especificamente no aumento da
produção de culturas específicas. Esse movimento não era necessariamente novo,
como demonstra Pinheiro (2016), uma vez que desde sua origem a extensão rural
estava pautada na introdução de hábitos de consumo e produção da realidade
estadunidense. No entanto, a conversão importante ocorrida foi na compreensão de
que a extensão tinha um papel exclusivamente difusionista, em que seus agentes se
tornariam representantes do Estado para promover o “desenvolvimento”. Não por
acaso, é no contexto do modelo autocrático burguês pós-Golpe de 1964 que o projeto
desenvolvimentista da ATER ganhou fôlego, encontrando solo rtil, sobretudo, nos
estados da federação marcados pelo domínio dos interesses da burguesia agrária
São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Espírito Santo, Santa Catarina e Rio Grande do
Sul, principalmente.
4
É sabido que, embora o processo de difusão das commodities não seja
necessariamente exclusivo desse período, a combinação pujante entre Revolução
Verde, projeto desenvolvimentista e avanço do capitalismo sobre as periferias
mundiais marcou sua introdução no Brasil. No Paraná, cujo primeiro escritório de
ATER pública foi estabelecido em 1956, esse cenário tomaria forma de maneira
bastante peculiar na década de 1970, sobretudo após a ocorrência da “geada negra”
em 1975 que, atingindo principalmente a produção de café do norte do estado, marcou
a introdução da soja como cultura difundida entre os agricultores paranaenses
(SAVIANI, 2015). Hoje a soja é a principal cultura de exportação do estado, conforme
demonstram dados do IBGE (2022). O agronegócio representou 33,9% do PIB
paranaense, segundo dados da Secretaria da Agricultura e do Abastecimento do
estado, sendo a soja o seu principal produto de exportação (2020). Esses dados
reforçam que, a partir da década de 1970, a extensão rural aliou-se aos interesses do
Estado em abandonar uma perspectiva educativa mais ampla, inclinando-se para uma
homogeneização de seu público e de suas ações com vistas à difusão de culturas
específicas. Como aponta Pinheiro (2016), a extensão rural inclinou-se aos médios e
grandes produtores, especializando sua atuação naqueles sujeitos do campo que
tinham potencialidade para a produção de commodities.
Há, portanto, uma transição bastante drástica de orientação metodológica, em
que a “família do campo” passa a ser vista apenas como variável da produção agrícola
(AMARAL JUNIOR, 2020). A extensão rural cresceu e se difundiu, em muitos estados,
segundo essa perspectiva conservadora e atrelada ao agronegócio, tendo
dificuldades históricas em se aproximar das minorias, dos movimentos sociais e das
lutas do campo (CALLOU, 2006; DIAS, 2007). A sobrevida relativamente longa do
projeto desenvolvimentista adiou por duas décadas uma reflexão crítica sobre a
política pública, que só no final dos anos 1980, com a decadência do Governo Militar
e com a crise econômica que a acompanhou, fez surgir os primeiros debates sobre o
esgotamento do difusionismo produtivista.
Esse debate acompanhou, é importante destacar, um processo de desmonte
do Sistema Brasileiro de Extensão Rural que, no decorrer da redemocratização do
país pela via do neoliberalismo, aproveitou-se da própria obsolescência percebida da
política pública em questão para justificar o corte drástico de recursos e sua
desarticulação. A extensão rural entrou os anos 1990 fortemente desestruturada,
5
deixando as instituições públicas de ATER isoladas em seus respectivos estados, sem
recursos
4
e dificultando a emergência de projetos de renovação. Alguma oxigenação
nas agências públicas de ATER viria a ocorrer somente após os anos 2000, com a
emergência da categoria “agricultor familiar” e as políticas públicas que a
acompanharam. Uma aproximação que, nos termos de Dias (2007), era oportunista
frente ao cenário caótico da extensão pública e sua incapacidade de renovação na
mesma agilidade e proporção vistas na ATER privada.
Essa aproximação pragmática inverte a situação histórica e, pela primeira vez,
coloca a extensão rural pública em contato com pautas e agendas dos movimentos
sociais e dos distintos sujeitos do campo. Prevalece a partir daí um reordenamento da
extensão rural “por dentro” da adoção da agricultura familiar, incorporando
massivamente a perspectiva do capitalismo agrário em detrimento do paradigma da
questão agrária
5
. Nessa linha, por mais que o cenário pós anos 1990 tenha colocado
novas demandas de atualização e renovação para a extensão rural, defendemos que
a herança histórica de um modelo ambiental conservador atrelado ao agronegócio
ainda se faz central para a ATER pública, incorporando mudanças mais discursivas
do que objetivas.
Para desenvolvermos melhor esse ponto, apresenta-se o artigo em duas
seções distintas: uma primeira buscando contextualizar a forma como, a partir dos
anos 1970, essa conversão ao difusionismo produtivista significou a drástica
conversão às commodities, aos interesses do capital internacional e a uma
perspectiva ambiental reducionista; e uma segunda conectando os desdobramentos
desses eventos frente ao cenário de uma extensão rural “repensada” a partir dos anos
1990.
4
Sobre isso ver Peixoto (2008).
5
Sobre os diferentes paradigmas, segundo Fernandes (2016), o paradigma do capitalismo agrário
encontra na categoria “agricultura familiar” a força necessária para reproduzir o discurso de que os
distintos modos de vida e os diferentes sujeitos do campo não inseridos completamente nos circuitos
de mercado capitalistas estariam fadados ao fracasso. Assim, justificam o abandono de políticas
públicas pautadas em demandas dos movimentos sociais e estratos excluídos do rural como a
Reforma Agrária radical e passam a priorizar programas, projetos e políticas de mercado, de
tecnificação, de difusão do crédito e etc.
6
Meio ambiente, produção agrícola e a intervenção estatal
A história ambiental começou a estruturar-se no início da década de 1970 e não
pode ser compreendida apenas como a simples proposição de influências naturais na
história humana. Emerge da necessidade de compreender as relações e as reações
dos homens para com a natureza e para ajudar a responder aos problemas
complexos que enfrentamos, como as desigualdades sociais, os desastres
ambientais, dentre outros. A história ambiental vem conquistando um espaço
significativo no campo disciplinar da História, assim como nas Ciências Humanas e
Sociais em geral. Desse modo, os estudos envolvendo a relação dos homens com o
mundo natural não humano fazem parte das reflexões não apenas dos
historiadores, mas de outras áreas do conhecimento, inclusive de uma análise sobre
as interrelações com a Questão Social e questão agrária (KLANOVICZ; ARRUDA;
BERGO, 2012).
Apresenta-se então a necessidade em estabelecer a interface entre os temas
clássicos trabalhados pelos estudos de história social e ambiental (MOSLEY, 2006).
Ressalta-se a relevância dessa aproximação da história social e história ambiental,
apresentando como justificativa as próprias experiências societárias bem como suas
escolhas no passado nos campos energético, tecnológico, industrial, urbano, agrícola
e de consumo. a necessidade da construção de leituras históricas capazes de
pensar as consequências ambientais da atualidade, considerando as relações
promovidas por coletivo de humanos e não humanos. Em linhas gerais, é como se
retomássemos um papel crucial da “natureza” na história social (MOSLEY, 2006).
Entender as políticas públicas que historicamente foram construídas para o campo
brasileiro é, portanto, entender também a história ambiental de compreensão do tripé
meio ambiente-sujeitos-agricultura.
Sobre estas escolhas, tanto brasileira, quanto paranaense, no campo da
produção agrícola, é necessário compreender a agricultura de grande escala, como
mais um dos processos de construção da ordem capitalista, a partir da racionalização
do campo e da leitura dessa racionalização, das escolhas sobre o quê, quando,
como, para quê e para quem produzir alimentos, considerando os fatores ambientais
na história das plantations.
A partir dessa interface entre a questão ambiental e os processos sociais
7
expressos na realidade objetiva dos diversos públicos existentes em território rural,
se torna indispensável compreender as relações entre agricultura e estado, entre
formas de trabalho e de propriedade da terra, entre a divisão sexual do trabalho e o
forte traço patriarcal ainda presente no campo e na cidade, entre regimes agrários,
política e acesso desigual ao “progresso”, resultante do projeto modernizante da
agricultura brasileira. A modernização da agricultura no Brasil e a ideologia do
desenvolvimento se materializaram em estratégias teórico-metodológicas que tinham
por objetivo “fazer crescer a produção e a produtividade do setor agrícola, puxada pela
demanda urbana e pela demanda externa em processo acelerado de crescimento”
(LUSTOSA, 2012, p. 58). Essa onda modernizante perpassou os aspectos produtivos,
trazendo consequências sociais e ambientais para a população. Com a expansão do
capitalismo no espaço agrário brasileiro, o processo de modernização ganhou forma
e intensidade, gerando uma nova realidade socioeconômica e espacial no campo e
na cidade.
Ao optar pelo modelo modernizante da agricultura, o Estado entendia que esse
era um projeto que renderia a expansão da produção agrícola no país e do setor
industrial, integrando os planejamentos governamentais para o Brasil desde 1930. Os
projetos políticos voltados para o desenvolvimento econômico por meio de uma
industrialização capitalista planejada originaram-se na década de 1930, tornando-se
hegemônicos nos anos 1950. Entretanto, do ponto de vista ambiental e social,
trouxeram danos a toda sociedade (BECHER, 2021).
Os estudos sobre a influência do modo de produção capitalista e as suas
consequências para a natureza aparecem de forma tangencial nas análises de
Mészáros (2011), quando o autor apresenta os limites absolutos do capital. As
determinações históricas da crise estrutural do capital precisam ser buscadas no
processo denominado por Mészáros de “ativação dos limites absolutos do capital”. O
autor traça uma relação precisa entre o desencadeamento desse processo e a
necessidade de superação histórica da ordem do capital:
[...] como a ativação dos limites absolutos do capital, enquanto sistema
de reprodução plausível, surgiu em nosso horizonte histórico, não
se poderá evitar por muito mais tempo o enfrentamento da questão de
como superar os pressupostos estruturais destrutivos do modo
estabelecido de controle sociometabólico (MÉSZÁROS, 2011, p. 387).
8
A destruição das condições naturais da reprodução sociometabólica, por sua
vez, está atrelada ao caráter irremediavelmente incontrolável da propensão do capital
à acumulação não planejada. Lembremos que estava em Marx (2017), que a
produção capitalista ocorre de modo caótico e não planejado, em que grupos isolados
de capitalistas decidem o que produzir segundo seus próprios interesses,
desconsiderando não só a relevância social das mercadorias que irão produzir, como
também seus respectivos impactos. Mészáros procura demonstrar que as unidades
de reprodução do capital (empresas) são obrigadas a considerar todos os obstáculos
externos como barreiras a serem transpostas: “a natureza e os seres humanos
poderiam ser considerados ‘fatores de produção’ externos em termos da lógica auto-
expansionista do capital” (MÉSZÁROS, 2002, p. 216). É por isso que a racionalidade
do capital, necessariamente parcial, “contradiz diretamente as ponderações
elementares e literalmente vitais da restrição racional e correspondente controle
racional dos recursos humanos e materiais globais” (MÉSZÁROS, 2002, p. 216).
O planejamento racional e abrangente de uso e aproveitamento de todos os
recursos naturais e humanos consiste em uma tarefa para a qual o capital é
absolutamente incapaz, e exige uma maneira radicalmente diferente da adotada
atualmente de utilização desses recursos. Outra contradição básica do sistema
capitalista de controle é:
que ele não pode separar ‘avanço’ de destruição, nem ‘progresso’ de
desperdício ainda que as resultantes sejam catastróficas. Quanto
mais destrava os poderes da produtividade, mas libera os poderes de
destruição; e quanto mais dilata o volume da produção tanto mais tem
de sepultar tudo sob montanhas de lixo asfixiante (MÉSZÁROS, 2011
p. 41).
O processo de modernização da agricultura brasileira teve marcas fortes
conservadoras que culminaram na manutenção da estrutura fundiária concentrada na
seletividade dos agricultores beneficiados com os incentivos e investimentos estatais,
desenhando um quadro agrário de intensas desigualdades sociais. O projeto do
Estado de modernizar a agricultura, com objetivo de dinamizar a produção agrícola do
país, se iniciou no Sul do Brasil nos anos 1950 e, rapidamente, atingiu outras regiões.
Já nos primeiros dez anos de investimento do governo para modernizar o campo, os
resultados começaram a aparecer, sobretudo, na produção de commodities, como a
ampliação das áreas plantadas de soja, que do ponto de vista da história ambiental é
um processo, denominado por Klanovicz e Mores (2017) de “a sojização da agricultura
9
moderna”
6
.
No Paraná, os autores destacam uma particularidade do ponto de vista
ambiental: um desastre ambiental
7
ocorrido na região norte paranaense, a chamada
Geada Negra, que foi determinante para o aumento da plantação de soja. Entretanto,
devemos recorrer aos estudos historiográficos para não cometermos o erro de a partir
de uma análise simplista e considerar que a geada de 1975 foi a única responsável
pelo fim da cafeicultura no Paraná. É necessário, no entanto, observarmos o contexto
em que prevalecia uma concentração de cafeeiros em apenas duas regiões e era
crescente “a substituição do café por lavouras anuais como milho, trigo e soja”
(MORES, 2017, p. 246), revelando assim a conjuntura e de que forma populações
humanas e não humanas reagem ao processo da geada no curso da história.
Ao fazer uso do conceito de desastres ambientais, compreendemos que
desastres são processos socialmente construídos, na história de ocupação humana
e nas suas relações com outros seres no espaço. Do ponto de vista meteorológico, a
geada negra é um fenômeno climático que, ao contrário da geada branca (a mais
comum) que ocorre quando presença de umidade e causa o congelamento da relva
por fora, ocorre com a presença de ar frio e seco, congelando a planta por dentro,
quando a temperatura se encontra abaixo de grau. Recebe esse nome devido à
aparência do caule da relva congelada por dentro das plantas, deixando-as com a
aparência de queimada (ZVIR; KLANOVICZ, 2013).
Dessa forma, compreendemos do ponto de vista da biologia, mais
especificamente da área da botânica, que as geadas para agroecossistemas são
eventos climáticos que provocam a morte da planta ou de suas partes (folhas e
ramos), ou que ainda podem causar congelamento dos tecidos e do líquidos internos
das plantas, gerando inclusive problemas para que essas realizem fotossíntese (IBC-
GERCA,1979)
Deve-se considerar, obviamente, que a presença massiva de produção
cafeicultora no norte do Paraná indicava a disseminação das commodities,
6
Faz referência ao título “A sojização da Agricultura Moderna no Paraná, Brasil: Uma questão de
História Ambiental. (KLANOVICZ; MORES, 2017).
7
O uso da categoria "desastre" não se refere ao fenômeno climático, mas aos eventos que de alguma
forma afetam o cotidiano de populações humanas. Logo, o uso da categoria "desastres naturais" não
passa de uma contradição, pois o desastre é um desastre a partir do momento que interfere nas
populações humanas, enquanto a referência ao natural reforça a ideia de que estes eventos não estão
relacionados com o ser humano (MORES, 2017). Para este trabalho, será utilizada a categoria de
desastre ambiental, ou ainda, socionatural.
10
sinalizando que não necessariamente as geadas em particular a Geada Negra
foram responsáveis pela implantação desse modelo agrícola no estado. Conforme
Mores (2017, p. 281) busca historicizar a plantation no estado do Paraná:
Em primeiro lugar, devemos considerar que no período entre 1963 e 1975, o Paraná
teve muitas transformações no cultivo do café, seja pelo programa de erradicação,
racionalização e replantio de cafeeiros, pela introdução da ferrugem, pela idade média dos
cafeeiros, que estava entre 20 e 30 anos, ou ainda pelo crescimento dos preços de outros
cultivos agrícolas anuais, como o trigo e a soja.
Durante o início da década de 1960, o Instituto Brasileiro de Café (IBC)
começou a elaborar projetos para a implementação de um novo monocultivo de café
no sul de Minas Gerais, com o uso de tecnologias como tratores, defensivos químicos
em larga escala e a reutilização de um espaço de antiga cafeicultura. O IBC
estimulava os produtores paranaenses a migrar para Minas Gerais, uma vez que, ao
mesmo tempo em que produzia uma revolução na escala global de produção do café,
Minas Gerais teria sido escolhida justamente por não ser uma região vulnerável à
geada (MORES, 2017), havendo o estado do Paraná passado por geadas
significativas em 1953 e 1963.
Desde 1972, o IAPAR
8
desenvolveu projetos de pesquisa sobre a soja na
região, fazendo com que o Paraná se tornasse o principal centro de pesquisas do
Brasil, demonstrando o interesse pela plantation de soja, buscando tornar o Para
um produtor permanente do cultivar. Mores (2017) considera que os esforços políticos
foram fundamentais para a expansão da sojicultura no Paraná, e em especial, pela
instalação da EMBRAPA-Soja (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) em
Londrina, em agosto de 1975, sob fortes influências políticas regionais e expressivos
investimentos das políticas públicas voltadas a esse objetivo. Logo, o cultivo de soja
teve um grande incentivo após a retirada de cafeeiros da região, tornando-se junto
com o trigo o principal cultivo agrícola, especialmente nas grandes propriedades.
Mores (2017) argumenta que a geada negra não deve ser entendida como causa
única do fim da cafeicultura, pois:
o café não desapareceu das paisagens do norte do Paraná, como a
memória e muitas reportagens querem considerar. A geada, não foi a
"morte" da cafeicultura e muito menos o final dela. Nos anos após a
8
Instituto Agronômico do Paraná , que no ano de 2019 passou a ser denominado Instituto de
Desenvolvimento Rural do Paraná (IDR-Paraná), unindo-se com o antigo Instituto Paranaense de
Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER-PR).
11
geada, especialmente em pequenas propriedades, muitos cafeeiros
tiveram que ser arrancados e outros cultivos deram lugar enquanto os
novos cafeeiros eram replantados. Em pequenas propriedades e em
famílias que não conseguiam adquirir o pacote tecnológico que a soja
necessitava, como tratores, colheitadeiras e outros inputs químicos, a
cafeicultura ainda continuava como o cultivo agrícola (MORES, 2017,
p. 293-294).
A ideia defendida por Mores (2017) é válida quando nos alerta sobre a diferença
entre a memória criada sobre o evento (dramatização em jornais e periódicos) e o
desastre ambiental em si. Para o autor
[...] a geada em 1975 foi mais um ponto importante para acelerar as
transformações que estavam ocorrendo na cafeicultura paranaense,
sob influência dos agentes de ATER, do que efetivamente um ponto
da “morte da cafeicultura” (MORES, 2017, p. 296).
A soja tomou o espaço de diversas culturas tradicionais devido à demanda
internacional, superando o café e a cana-de-açúcar em área plantada e em volume
de negócios, podendo ser considerada uma nova e diferente plantation, ocupando
espaço importante no que Frank Uekötter (2014) considera como nova dimensão
mental da agricultura em uma era de unificação biológica do mundo.
A cultura da soja é talvez “o capítulo mais recente da expansão agrícola
nacional mas também o produto agrícola que catalisa as intersecções entre
tecnologia, ecologia, e todos os riscos biológicos que a monocultura proporciona”
(KLANOVICZ; MORES, 2017. p. 242). Para os autores:
Não é forçoso pensar no contexto histórico brasileiro da segunda
metade do século XX quando falamos na permanência ou introdução
de novas formas da plantation no país, pois encontramos uma
dinâmica que perpassa vários governos democráticos ou autoritários.
Era disseminado o pensamento de que era necessário retirar o Brasil
das nações do então denominado “terceiro mundo” e racionalizar sua
produção, difundido “a ideia de desenvolvimento econômico
justificando cada ato de governo, e até de ditadura, e de extinção da
natureza. Acima de tudo, nas representações de Estado, nos meios
de comunicação e no imaginário popular. Compreendemos assim que
essa monocultura do século XX é um projeto político de controle da
natureza estimulado por sucessivas ondas desenvolvimentistas
brasileiras (KLANOVICZ; MORES, 2017, p. 246-247).
Compreendemos, portanto, que a sojicultura não apenas alterou as
características ambientais biológicas e florestais, como também as estruturas
econômicas, relações de trabalho, sociopolíticas, intensificando a pauta de programas
e projetos específicos para a modernização do campo, em especial, na segunda
12
metade do século XX. Deixou traços marcantes nos aspectos organizacionais de
instituições públicas e privadas, na formulação e execução de políticas públicas e
investimentos públicos, levando a um emparelhamento dessas políticas em torno da
difusão técnica e tecnológica para efetivação de um projeto específico de
desenvolvimento. Por outro lado, os índices de pobreza extrema aumentaram quando
a soja monopolizou os campos, em especial na região central do estado (BECHER,
2021). A emergência das commodities como plano de geração de superávit,
incentivadas pelo governo obteve crescimento rápido. Entretanto, concomitante a
esse crescimento, inicia-se um processo de qualificar o fenômeno da modernização
da agricultura, argumentando-se que a inserção de métodos e técnicas modernas não
atingiu todos os produtores, a exemplo dos menos capitalizados, caracterizando como
um processo desigual e, sobretudo, contraditório (PAIVA, 1971).
A modernização visava tão somente o binômio produção e produtividade, sem
levar em consideração todas as conformações da questão agrária. Isso significou
pensar em políticas públicas e formas de intervenção estatal com fortes
consequências sociais, ambientais e biológicas, visto que limitadas ao produtivismo
atrelado ao superávit produtivo. A exemplo das formas tardias e completamente
esvaziadas de projetos de Reforma Agrária que, conforme demonstra Mendonça
(2013), representam um Estado que foi progressivamente cooptado pelas classes
patronais do campo desde a década de 1950.
A extensão rural, representando o ápice do que, segundo essa autora, era o
interesse histórico da elite agrária do eixo sul-sudeste (o par “crédito barato e
assistência tecnológica gratuita”) foi por muito tempo o vetor e catalisador principal
desse movimento de negação das políticas públicas para o campo à diversidade de
seus sujeitos em consonância com uma intervenção puramente pautada no
conservadorismo das elites agrárias. Portanto, a combinação política pública
enviesada para o campo e interesse das elites agrárias encontrou reverberação em
um modelo de atuação focado nas commodities, na “sojificação” das culturas, na
marginalização da diversidade do campo e na consequente degradação ambiental e
exclusão de modos de vida que destoam daquele preconizado no paradigma do
capitalismo agrário.
Esse imbróglio peculiar retornou historicamente na extensão rural dos anos
1990 em diante, revelando a contraditoriedade de uma política pública calcada no
13
produtivismo e na degradação ambiental com um projeto de redesenho que apontava,
desde sua gênese para o completo oposto.
Entraves do conservadorismo: a aparente diversificação de público e
pluralidade da prática extensionista.
Pode uma política pública cujo eixo estruturante foi consolidado no bojo do
difusionismo produtivista comportar uma outra perspectiva ambiental para o
desenvolvimento do campo brasileiro? A resposta, acreditamos, está menos no
campo das potencialidades da ATER e mais no curso de seu desenvolvimento
histórico pós-1990.
O esgotamento do modelo difusionista de extensão rural chegou às agências
públicas de ATER, primeiro, pela via das crises econômicas que o mercado agrícola
de exportação fortemente fomentado na década de 1970 não foi capaz de conter.
Disso resulta uma percepção generalizada de que, embora o projeto
desenvolvimentista para o campo tenha trazido certo otimismo em seus primeiros
resultados, o rebote social, ambiental e econômico seria de grande lastro. Rodrigues
(1997) demonstra como, sendo afetada nos anos 1980 por sucessivas críticas, a
extensão rural pública buscou reorientar-se pela via de uma nova abordagem
humanista.
Paulo Freire, que direcionou duras críticas a ATER no ano de 1969 pelo seu
viés de “invasão cultural” e intencionalidade educativa plasmada por certa ideologia
em Extensão ou Comunicação (2018), foi o principal nome do redesenho desse
debate que começou a ganhar forma nas agências públicas. A primeira geração “pós-
freireana”, para utilizar os termos de Callou (2006), tomou para si a função de realinhar
a ATER aos princípios de uma educação não formal horizontalizada, que tivesse como
foco os agricultores familiares e sujeitos do campo abrindo a partir desse
movimento espaço para a diversificação de público que viria a ocorrer mais tarde, com
a adoção da categoria agricultura familiar e suas respectivas políticas públicas.
A extensão tentava livrar-se da herança difusionista e de seu projeto educativo
calcado no produtivismo promovendo um humanismo crítico, substancialmente
diferente do humanismo assistencialista da década de 1950 (RODRIGUES, 1997). No
entanto, esse projeto não logrou pouco êxito, como resultou em um hibridismo
teórico-metodológico que fez emergir certo modelo humanista-produtivista
14
instrumental (AMARAL JUNIOR, 2022). Isso quer dizer que, incorporando certas
modificações apenas no discurso sobre o método, as agências de ATER tiveram
dificuldades em abandonar os projetos historicamente consolidados em torno das
monoculturas e da agricultura convencional.
Essa dificuldade seria exponencialmente aumentada pelo desmonte do
Sistema Brasileiro de Extensão ocorrido no Governo Collor, cuja diminuição drástica
de recursos significou um aumento do poder das agências privadas e instituições
internacionais, como o Banco Mundial e empresas de defensivos agrícolas, que
passaram a ser “parceiros” importantes para a manutenção financeira das instituições.
Adentrando um período de “projetização”, a ATER pública parece ter se adaptado
retoricamente, mas objetivamente ter apenas ampliado o leque de projetos que
passaram a integrar suas estratégias de sobrevivência financeira (AMARAL JUNIOR,
2020).
Portanto, a ATER pública se estagnou por detrás de uma mudança recursiva,
não participando das principais pautas e lutas do campo que se desenrolaram pós-
redemocratização, mas aproveitando-se posteriormente das políticas delas
decorrentes (DIAS, 2007). Segundo o autor, a aproximação da extensão rural com o
PRONAF e demais políticas centradas na agricultura familiar foi puramente
oportunista, ocorrendo à margem da luta dos estratos sociais do campo diretamente
envolvidos com essas agendas. Disso decorre que, embora uma segunda geração
pós-freireana
9
tenha participado ativamente na construção de algumas agendas e
políticas, a exemplo da PNATER, a diversificação do público e dos modos de vida e
produção ali materializadas não se converteram, necessariamente, em bússola para
a prática extensionista.
A PNATER, portanto, se converteu em instrumento dúbio e paradoxal dentro
da ATER pública, escancarando que uma perspectiva ambiental substancialmente
diferente teria problemas de se efetivar pois encontraria entraves na estruturação das
agências, nas cobranças do projeto de intervenção estatal pró-agrobussiness e no
método extensionista. Sobre o método, está descrito em Amaral Júnior (2022) como
mesmo na segunda década dos anos 2000 o debate metodológico na extensão rural
era incipiente a ponto de não conseguir efeitos relevantes na prática dos profissionais,
reproduzindo uma perspectiva desenvolvimentista com elementos recursivos de uma
9
Sobre isso, ver também Callou (2006).
15
educação horizontalizada. Essa adequação instrumental do humanismo freireano
ocorreu por meio do hibridismo teórico, cuja origem diversa favorece a manutenção
de uma perspectiva focada no agronegócio, comportando sem grandes contradições
projetos ditos alternativos lado a lado daqueles de origem mais convencional como
o cultivo de commodities (AMARAL JUNIOR, 2022).
Somado a isso, o máximo de diversificação de público ocorrido pós-PNATER
se revela extremamente conservador e ainda atrelado ao produtivismo. Como exposto
em Amaral Júnior (2020), a extensão rural adotou uma abordagem a partir dos anos
1990 que apenas seccionou o público em recortes arbitrários como jovens e
mulheres sem aprofundar-se nas metodologias de trabalho com cada um deles.
Nesse contexto, ilustra a dificuldade de compreender a diversificação de público na
PNATER, uma vez que utiliza das categorias mais usuais de forma puramente
instrumental, ou seja, apenas para seccionar a qual estrato dos agricultores familiares
será destinado cada conjunto de ações. No caso da Paraná, a título de ilustração, o
relatório de 2019 do Instituto de Desenvolvimento Rural do Paraná
10
demonstra esse
abismo operacional da diversificação de público: o atendimento anual de indígenas,
quilombolas e pescadores artesanais representa apenas 1,73% do público total
atendido dentro da categoria “agricultura familiar” nem metade do número total de
agricultores patronais atendida pela agência (4.000 agricultores atendidos no ano).
O mesmo documento demonstra também que, se tratando das linhas de
atendimentos mais prevalentes, ainda ocupam o ranking de assistência técnica e
atividades diversas as commodities: em primeiro lugar o Projeto Leite, que atendeu
31,9 mil pessoas, e em segundo o Projeto Grãos Sustentável, com 29,8 mil pessoas
beneficiadas. Vale destacar que o referido relatório pontua, para esse último, a
parceria com a “Embrapa-Soja, Senar-PR, universidades, prefeituras, empresas
privadas e cooperativas” (p. 29, grifos nossos).
Um breve olhar sobre a política agrária como um todo demonstra que, no bojo
do projeto estatal para o campo, prevaleceu a lógica do agronegócio, mesmo
perpassada pela categoria da agricultura familiar. Segundo o relatório do Plano Safra
2019, do Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o número de valores
contratados em Julho/2017 a Maio /2018 referente ao custeio, somam 10 milhões 975
10
À época ainda denominado Instituto Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER-
PR).
16
mil, já em Julho/2018 a Maio/2019 o valor foi de 11 milhões e 275 mil reais. Os dados
abaixo, demonstram claramente o direcionamento dos investimentos do programa,
para as cultivares de soja e a área de bovinocultura de leite e corte.
Gráfico 1 - Pronaf Custeio (%) Partic. por produto no valor financiado
jul.2018 a mai.2019
Fonte: SICOR/banco Central Elaboração CGFAF/DFI/SPA/MAPA, dados extraídos em 03/06/2019
A partir dos dados observa-se claramente a concentração de determinados
plantios e atividade pecuária, consumindo 59% dos recursos do Pronaf... Somente 6%
são dissolvidos em outras culturas como olerícultura, fruticultura, dentre outras. Isso
demonstra uma forte tendência histórica no Brasil em financiar plantations, como a
soja. Para além da financeirização, o estado organiza programas, projetos e
instituições para ampliar as grandes lavouras. Lembre-se que o crédito sempre
esteve, desde sua origem, atrelado às agências de extensão rural, corroborando com
a perspectiva de que, mesmo depois dos eventos ocorridos após os anos 1990, a
ATER pública se manteve concentrada na difusão de culturas prevalentes em seu
período difusionista produtivista, com vistas à exportação. De certo, atrelada às
commodities e aos interesses de acumulação do capital internacional, a extensão rural
não pode mesmo converter-se em prol de um modelo agrário mais diverso, menos
predatório e que comportasse outros modos de vida e, consequentemente, de
produção no campo.
Tomate; 1%
Uva; 1%
Feijão; 1%
Cebola; 1%
Arroz; 3%
Pronaf
Soja
Bovinos
Demais
Produtos;
9%
Milho
Café
Trigo; 5%
Soja; 26%
Trigo
Café; 6%
Arroz
Cebola
Milho; 15%
Feijão
oo
Bovinos; 33%
Uva
Tomate
Demais Produtos
17
Conclusão
Para tecer uma ilustração final, basta citar a matéria divulgada pelo IDR-Paraná
em suas redes sociais acerca de um estudo realizado por uma de suas equipes em
parceria com pesquisadores da Universidade Estadual de Londrina
11
(UEL), que
constata que a maior parte dos agricultores de grãos desconhece técnicas básicas de
conservacionismo. Assim, se consideramos que um determinado modo de produzir
está dialeticamente relacionado com a perspectiva ambiental adotada pelos sujeitos
que trabalham no campo, pode-se constatar que o difusionismo produtivista da ATER,
além de prevalente, reforça uma relação predatória com o meio ambiente, altamente
dependente dos interesses do capital internacional e constantemente colocando à
margem modos de vida que se opõem, resistem e/ou se desviam dessas premissas.
Pensar, portanto, uma ATER pública que abranja os distintos modos de vida do
campo e sujeitos que dele fazem parte requer, necessariamente, repensar teórico-
metodologicamente a estrutura da extensão rural. O que pode ocorrer ao se
conhecer cada um desses sujeitos de forma qualitativamente densa e compreender a
lógica de produção e reprodução imbuídas em seus modos de vida. A extensão rural
pública pode caminhar na direção da efetivação da diversidade de existências no
campo se compreender as dinâmicas do rural brasileiro, e de que forma a ATER
precisa se adaptar e remodelar para atender aos distintos anseios de cada público.
Isso significa reordenar-se teórico-metodologicamente para abandonar uma
perspectiva histórica desenvolvimentista em que apenas “o avanço do capitalismo no
campo” é entendida como a resposta adequada para o desenvolvimento rural. Assim,
a extensão rural deve ser capaz de compreender os sujeitos do campo para além de
sua leitura produtivista e de transferência tecnológica do passado, o que significa rever
também sua própria estrutura.
Assentados da reforma agrária, indígenas, pescadores artesanais,
quilombolas, faxinalenses, e povos e comunidades tradicionais no geral não podem
ser inseridos a partir de uma perspectiva puramente de estratificação dos públicos que
mantém os mesmos contornos metodológicos. Fazê-lo é imprimir ainda, décadas e
décadas depois de sua implementação, a face do capital ao projeto de educação
11
A publicação na íntegra, de autoria de Teles et al. (2022), está disponível na Revista Brasileira de
Ciência do Solo.
18
extensionista. O que quer dizer, por consequência, fazer prosperar uma perspectiva
ambiental predatória e insustentável para o campo no Brasil.
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19
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A PROTEÇÃO E A PROMOÇÃO DAS CONDIÇÕES DA SAÚDE HUMANA
DISPOSTAS NA ECO-92 EM GIRO PELA EDUCAÇÃO CRÍTICA AMBIENTAL 1
Rosa Gouvea de Sousa2
Isabela Saraiva de Queiroz3
Celso Sánchez Pereira4
Resumo
A proteção e promoção das condições da saúde humana integram, como diretriz, o acordo assinado em 1992,
durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. O ano de 2022 marca trinta
anos desta assinatura. Este estudo propõe a retomada do debate da saúde enquanto elemento constitutivo da
proteção ambiental, a partir do olhar da educação ambiental crítica. A partir de giros pelo Sul Global, o estudo
trouxe interpretações contemporâneas sobre a diretriz, permitindo evidenciar a indissociabilidade entre a saúde e
o debate ambiental.
Palavras-chave: Educação ambiental crítica. Eco-92. Promoção da Saúde. Sistema Único de Saúde. Sul Global.
PROTECCIÓN Y PROMOCIÓN DE LAS CONDICIONES DE SALUD HUMANA PRESTADAS EN ECO-92 Y LA
EDUCACIÓN AMBIENTAL CRÍTICA
Resumen
La protección y promoción de las condiciones de salud humana forma parte, como directriz, del acuerdo firmado
en 1992 durante la ECO-92. El año 2022 marca treinta años de esta firma. Este estudio propuso la reanudación
del debate sobre la salud como elemento constitutivo de la protección ambiental, en la perspectiva de la
educación ambiental crítica. Basado en recorridos por el Sur Global, el estudio trajo interpretaciones
contemporáneas de la guía. Este ejercicio crítico permitió resaltar la inseparabilidad entre la salud y el debate
ambiental.
Palabras clave: Educación ambiental crítica. Eco-92. Promoción de la Salud.Sistema Único de Salud. Sur
Global.
PROTECTION AND PROMOTION OF HUMAN HEALTH CONDITIONS PROVIDED IN ECO-92 AND CRITICAL
ENVIRONMENTAL EDUCATION
Abstract
The protection and promotion of human health conditions is part, as a guideline, of the agreement signed in 1992
during the ECO-92. The year 2022 marks thirty years of this signature. This study proposed the resumption of the
health debate as a constitutive element of environmental protection, from the perspective of critical environmental
education. Based on tours of the Global South, the study brought contemporary interpretations of the guideline.
This critical exercise allowed us to highlight the inseparability between health and the environmental debate.
Keywords: Critical environmental education. Eco -2. Health Promotion. Unified Health System.Global South.
4Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professor do Programa de Pós
Graduação em Educação, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
E-mail celsosanchezp@gmail.com. ORCID: http://orcid.org/ 0000-0001-5634-023X.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/377797026773134.
3Doutora em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil, UFMG/ Brasil. Professora da
Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). E-mail: isabelasq@ufsj.edu.br.
ORCID: http://orcid.org/0000-0003-0839-1512. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7352265290690280.
2Mestra em Bens Culturais e Projetos Sociais pela Fundação Getútio Vargas (FGV). Professora do
Departamento de Medicina da Universidade Federal de São João del-Rei. (UFJF). E-mail: rosags@ufsj.edu.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6734-4583. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4182734342692999.
1Artigo recebido em 06/04/2022. Primeira avaliação: 01/05/2022. Segunda avaliação: 10/05/2022. Aprovado em
30/06/2022. Publicado em 10/11/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i4353976.
1
Introdução
O ano de 2022 marca trinta anos da assinatura de uma série de documentos
e marcos legais sobre a temática ambiental, tais como a Agenda 21 Global, firmadas
durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
- Rio 92. À época, os desafios que constituíam o horizonte do Século XX falavam
sobre disputas acerca de modelos de crescimento a partir de um desenvolvimento
sustentável (BRASIL, 2004). Constituindo parte do arcabouço da sustentabilidade,
estava a proteção ambiental e a justiça social (BRASIL, 2004). No entanto,
atualmente, experimentamos, em escala global, um conjunto de decisões e ações
que operam contra este arcabouço. Em curso, dentro de um sistema-mundo
organizado pelo capitalismo e pela modernidade, se constrói uma relação
assimétrica e expropriadora tanto da natureza quanto dos povos (CISNE, 2018), o
que nos coloca diante de uma situação de colapso ambiental (MARQUES, 2017).
De acordo com Manrique (2015), a privatização da terra e dos recursos da
natureza, a expulsão de comunidades, a eliminação de formas alternativas de
produção, o tráfico humano, a depredação dos fundos de pensão, entre outros
seguem em execução pelo capital global, organizando uma geopolítica que se impõe
pelo desprezo à natureza. No caso do Brasil, a expropriação da vida se explicita por
um sistemático apagamento das políticas sociais e ambientais, conforme exposto
por Arraes e Bizerril (2020).
As estruturas de mercado e de Estado realocaram a agenda de proteção
ambiental e da justiça social para setores expropriadores da natureza e adoecedores
da vida. Promove-se a flexibilização do arcabouço político-legal sobre proteção
ambiental, como um atalho às propostas neoliberais em movimento (ARRAES e
BIZERRIL, 2019). As intenções protetivas à vida registradas nas Agendas 21 Global
e Brasileira passam cada vez mais ao largo de políticas públicas, sofrendo
isolamentos e desmontes.
Dentre estas intenções, destacamos, neste ensaio, a “proteção e promoção
das condições da saúde humana”, que assume, na Agenda 21 Global, o capítulo
seis, no qual a descrição do que seja saúde a partir de correlações com o
desenvolvimento, sucedida por objetivos e atividades que possibilitariam o alcance
desta saúde:
2
Tanto um desenvolvimento insuficiente que conduza à pobreza como
um desenvolvimento inadequado que resulte em consumo excessivo,
associados a uma população mundial em expansão, podem resultar
em sérios problemas para a saúde relacionados ao meio ambiente,
tanto nos países em desenvolvimento como nos desenvolvidos. Os
tópicos de ação da Agenda 21 devem estar voltados para as
necessidades de atendimento primário da saúde da população
mundial, visto que são parte integrante da concretização dos
objetivos do desenvolvimento sustentável e da conservação primária
do meio ambiente. Os vínculos existentes entre saúde e melhorias
ambientais e socioeconômicas exigem esforços intersetoriais
(CNUMAD, 1992).
No Brasil, a Agenda 21 ganhou contornos próprios, em 2003, compondo o
plano plurianual à época (2004/2007) (BRASIL, 2004). No documento brasileiro, a
saúde fica evidente no objetivo sete (BRASIL, 2004, p.3): “promover a saúde e evitar
a doença, democratizando o Sistema Único de Saúde”, seguindo para
recomendações e ações:
Promover a elaboração da Agenda 21 dos hospitais brasileiros, tendo
em vista a melhoria dos seus serviços médicos e a qualidade do
atendimento, introduzindo consultas com hora marcada, registrando
o diagnóstico médico e o seu receituário de maneira a permitir,
sobretudo para os mais pobres, o acompanhamento médico no curso
da vida. Para isso, usar a caderneta-saúde ou seu equivalente
eletrônico, que acompanharia o indivíduo do nascimento à morte.
Intensificar e universalizar ações de promoção à saúde, prevenção e
controle de doenças e de assistência integral, com base em
programas como dos agentes comunitários e de saúde de família,
partes integrantes do Sistema Único de Saúde (SUS).
Melhorar a rede de saúde hierarquizando o atendimento médico em
função de sua complexidade, nível de gravidade e de especialização;
estabelecer um sistema coerente que comece com forte política
preventiva e progressivamente envolva os postos de saúde, os
hospitais de emergência e os especializados.
Promover a articulação entre os setores governamentais e destes
com a sociedade, para uma política integrada de redução de risco à
saúde e melhoria das condições de vida da população.
Aprimorar mecanismos de implementação da vigilância em saúde
relacionada à qualidade de água, solo, produtos, serviços e
ambientes de trabalho, de forma a eliminar ou reduzir fatores de risco
à saúde.
Promover o desenvolvimento de ações educativas, preventivas e
curativas, com o fim de diagnosticar, tratar e acompanhar alunos com
problemas de saúde, impedindo que estes interfiram no processo de
aprendizagem.
Ampliar as ações de detecção precoce dos problemas de saúde,
como hipertensão, diabetes, câncer de colo de útero, desnutrição,
defeitos congênitos etc., garantindo condições para
acompanhamento e tratamento.
Priorizar como política de saúde pública as ações educativas quanto
ao tabagismo, uso do álcool e outras drogas, dietas adequadas,
3
direção perigosa, comportamento sexual seguro, de forma a evitar
que esses fatores de risco se transformem em elementos
desencadeadores de processos patológicos graves e irreversíveis
(BRASIL, 2004).
Trinta anos depois, a exegese epistêmica da proteção ambiental sofreu
críticas, desmontes e se reorganizou. Existem coletivos e organizações que
identificam a permanência da colonialidade e seus efeitos de injustiça ambiental,
denunciando sua dimensão global e uma divisão internacional orientada por uma
alteridade radical cujas expressões são o racismo, a misoginia e a exclusão social
(SANTOS, 2010). Sua agenda foi ampliada por uma complexa rede de saberes e
práticas, passando a ter como elemento fundante a militância em defesa da vida e
por condições de existência e modos de ser diversos à tríade moderno-ocidental
capitalista. Elementos interpretativos de mundo como raiz, afeto e ancestralidade,
passam a compor movimentos investigativos e explicativos para a relação entre as
pessoas e a natureza (CARLE, 2019).
Participam desta rede de saberes e práticas diferentes corpos políticos que
denunciam imposições de regulações de vida e morte, e expropriações de corpos e
territórios. Morais et al. (2022) chamam a atenção para movimentos sociais cujas
pautas falam contra opressões por meio de giros epistêmicos e que denunciam a
dominação advinda da racialização, da colonização e da exploração capitalista, bem
como do sistema heterossexual. Morais et al. (2022) destacam ainda que tais
categorias operam em conjunto e devem ser disputadas de forma atenta a esta
imbricação.
Rufino, Renaud Camargo e Sanchéz (2020) também divulgam propostas que
se voltam para as questões da natureza, a partir da descolonização dessas, tendo
por argumento a Terrexistência como caminho para mudanças e como giro dentro do
campo da educação. Rufino, Renaud Camargo e Sanchéz (2020) apontam que este
posicionamento político-epistêmico da Terrexistência nomeia e cria sentidos para a
proteção ambiental a partir de desvelamentos de encruzilhadas que se abrem para
outras possibilidades de interpretação de mundo e de condições de existência para
o bem viver entre pessoas, natureza e seus encantamentos.
Neste ensaio, propomos revisitar a agenda ambiental, em específico a
temática sobre proteção e promoção das condições da saúde humana, à procura de
pensamentos críticos que questionam esta temática a partir de fundamentos do Sul
4
Global. Nesse sentido, analisamos a proteção e a promoção da saúde no Brasil,
trinta anos depois da ECO-92, percorrendo argumentos contra hegemônicos
investigativos de mundo, tendo a proteção ambiental como elemento crítico em
disputa. Para isso, situamos esse giro a partir do Sistema Único de Saúde (SUS) por
entendermos que o SUS, assim como a totalidade da Seguridade Social no Brasil,
sofrem, desde seu nascedouro, constantes ataques e depreciações por
precisamente apresentarem garantias em defesa da vida e da dignidade.
A dimensão ambiental da Proteção e Promoção da Saúde
De acordo com o boletim epidemiológico do Ministério da Saúde (2021), o
Brasil, no ano de 2021, chegou a 619 mil mortes registradas desde o início da
pandemia. Destas mortes, se têm como maioria a população negra e a indígena,
caracterizando o que Sato et al. (2020) chamaram de “injustiças pandêmicas” sobre
os “condenados da pandemia”. Neste mesmo contexto pandêmico, a Rede
Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (REDE
PENSSAN, 2021) denuncia que 19 milhões de pessoas se encontram em
insegurança alimentar, sendo que, nos últimos dois anos, houve o agravamento
desta condição para mais de 10 milhões de brasileiros. Novamente, as mesmas
populações encontram-se na berlinda da fome.
Em paralelo, houve o crescimento do crédito para a agricultura patronal com
fins à produção de commodities, o desfinanciamento da agricultura familiar, a
extinção do Programa Minha Casa Minha Vida e do Bolsa Família. Melo e Morandi
(2021) destacam que o momento pandêmico expressa fortemente a divisão
internacional sexual do trabalho, exemplificando pela sobrecarga, adoecimento e
morte das trabalhadoras do setor de cuidados, em especial as trabalhadoras da
saúde.
No SUS, por sua vez, foi revogada a portaria que dispunha sobre os serviços
do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB) (Nota
Técnica 3/2020), houve o aprofundamento de ações proibitivas sobre álcool e
outras drogas (nota técnica 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS) e o retrocesso na
Política Nacional de Saúde Mental, com a Portaria 3.588/2017, ao retomar
propostas como a eletroconvulsoterapia e a internação manicomial. Além disso, a
5
Política Nacional de Atenção Básica teve seu financiamento reorganizado pela
Portaria Ministerial 2.979, de 12 de novembro de 2019, cujos fundamentos
agregam sentidos de caráter privatizante e mercadológico para a universalidade do
acesso (SETA et al., 2021).
Estas situações, acima descritas, se somam a um conjunto de tomadas de
decisão que se voltam para o extermínio de povos e territórios a partir de
necropolíticas (MBEMBE, 2018). O discurso em movimento pelo capital e pela
modernidade tensionam para a ideia de um inimigo em estado permanente de alerta
e que deve ser abatido pelo que representa (KRENAK, 2019). Esse argumento
legitima a construção de políticas e de estruturas que intencionam o controle sobre
corpos políticos. Historicamente, o Brasil se alicerça sobre práticas sociais de saúde
que operam por essa lógica do controle, promovendo exclusões desiguais de vida e
morte.
O fundamento científico que legitima essa relação assimétrica entre esses
corpos políticos é organizado pelo modelo biomédico. Este modelo tem elementos
constitutivos como ser curativista, hospitalocêntrico, centrado na doença e nos
procedimentos, bem como na categoria médica (BARROS, 2002). Seu arcabouço
epistêmico constrói uma ideia de ser humano condicionada a existências narcísicas
da branquitude, codificando “proteção à saúde” como um privilégio. Dessa forma, a
naturalização de saberes científicos “antiambientais” e "anti sociais" tornou-se uma
estratégia para a validação da expropriação desejada pela tríade moderno-ocidental
capitalista (LOUREIRO, 2004).
O modelo biomédico organiza-se por saberes e práticas estruturados por
alteridades que racializam e gendrificam corpos e territórios a partir destes padrões.
Paulo Rodrigues, Tiriba e Cordeiro Antunes (2021) reforçam que os fenômenos da
saúde alicerçam modos de produção e de reprodução que precarizam a vida e
destroem a natureza. Como exemplo destas afirmações têm-se as condições de
existência e de permanência dos sujeitos na saúde a partir de marcadores sociais
cujo padrão é o homem branco (COSTA, 2002). Rufino, Renaud Camargo e
Sánchez (2020) apresentam estes marcadores como contratualidades raciais e
antropocenas alicerçadas na construção histórica da Modernidade.
São exemplos de ação que se baseiam nesta ficção imposta pela tríade
colonial: a demarcação de territórios tradicionais por marcos temporais
6
colonizadores, o desmonte dos Sistemas Únicos de Saúde (SUS) e de Assistência
Social (SUAS) e a depredação do ar, do solo, da terra e da água pelas corporações
empresariais. Ramalho e Leite (2020, p.5) descrevem esta hegemonia identitária
como o “homem-branco-heterossexual-europeu” que, aqui, denunciamos como
produtora de relações e acessos assimétricos entre as pessoas que fazem uso do
SUS, desde o início de sua construção.
Não à toa, logo no período de redemocratização brasileira e, portanto, do
SUS, são sancionadas leis (nº 8.080/1990 e 8.142/1990) com vetos ao
detalhamento do financiamento pela gestão tripartite (em destaque a parte que
caberia ao Governo Federal) e ao detalhamento do exercício do controle social no
SUS. A privatização e a depredação da “coisa pública” se mantêm como forças
paralelas que operam a favor da manutenção de privilégios representados na saúde
pelo acesso e por itinerários terapêuticos desiguais.
No ano de 2021, conforme detalhado pela Auditoria Cidadã da Dívida, o
Governo fez uso de 2,85% de seus gastos na saúde, frente aos 53,92% gastos em
amortizações e juros da dívida (SINTUFRJ, 2021). Estes gastos recebem o respaldo
do Banco Mundial, apoiado por estudos que reconstroem o argumento sobre o “risco
ambiental e à saúde”, por narrativas de culpabilização dos indivíduos e da pobreza,
isentando a relação entre consumo, valor, trabalho e capital (CEOLIN, 2014).
Nos artigos 196 a 200, da Constituição República Federativa do Brasil, de
1988, a saúde se delineou circunscrita à Seguridade Social. Na carta maior, a saúde,
então, passa a ser compreendida como um direito, cujo arcabouço ético-político
disputa saúde para todas e todos. Pretende-se com o SUS a universalização do
acesso e do cuidado a partir de princípios e diretrizes como equidade, integralidade,
descentralização e participação social. Dessa forma, a construção do SUS passa
necessariamente por uma reinterpretação da relação do ser humano com seu
entorno e, portanto, com a natureza. Sobre isso, o texto da Agenda 21 Global
destaca cinco pontos:
Satisfação das necessidades de atendimento primário da saúde,
especialmente nas zonas rurais; controle das moléstias contagiosas;
proteção dos grupos vulneráveis; o desafio da saúde urbana; e a
redução dos riscos para a saúde decorrentes da poluição e dos
perigos ambientais (CNUMAD, 1992).
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Para a construção de políticas públicas ambientais, a Agenda 21 apresenta
termos e destaques sobre rural e urbano, e sobre grupo vulnerável e de risco. A
evidência de um dado termo frente a outro se constitui na intelectualidade moderna
e pós-moderna a partir de argumentos da alteridade racializada e hierarquizada
(SPIVAK, 2010). Dessa forma, interpretações do sujeito enquanto um outro
inacessível, “enfraquecido” em sua existência, justificando o agenciamento deste por
quem lidera ou governa.
Se rural existe por meio do urbano e vulnerabilidade pela ideia de risco, o que
se produz é uma codificação de mundo que pratica “saúde” como forma de
regulação para a manutenção da diferença entre urbano rural e entre risco e
vulnerabilidade. Em última instância, isso configura a extinção radical dos corpos
políticos pela codificação capitalista patriarcal racista, com autorização para a
exploração com fins ao aprofundamento de exclusões abissais de vida e de morte.
Modos de vida diversos passam a representar um perigo iminente à existência
do capital e das relações humanas organizadas por este. O argumento do consumo
excessivo, por exemplo, não somente abarca na saúde o velamento sobre as
iniquidades de acesso aos serviços de saúde, como também a exclusão desigual de
cuidado a partir de interpretações de adoecimento atravessados por gênero, raça,
religião e classe (RAMALHO; LEITE, 2020). Saúde torna-se mercadoria.
Neste sentido, pelo Sul global, o rural, o urbano, a vulnerabilidade e o risco
perdem suas relações assimétricas para compreensões de mundo que se pautam
por coalizões e co-constituições (LUGONES, 2014) interessadas no bem viver e na
valorização da natureza e de seus encantamentos (RUFINO; RENAUD CAMARGO;
SÁNCHEZ, 2020). O bem viver, por sua vez, participa da constituição de várias
propostas de leituras de mundo e de horizontes que se abrem para futuros
possíveis.
Na contramão da precarização das relações entre sociedade e natureza,
encontra-se a Estratégia de Saúde da Família (BRASIL, 2011) e as políticas públicas
que singularizam, pela integralidade, o cuidado a populações específicas (BRASIL,
2014, 2016). Pelo permanente exercício da participação social, houve, a partir da
década de 1990, a construção de políticas públicas que se voltaram para
abordagens comunitárias e territoriais, promovendo aproximações entre o SUS e
modelos interpretativos de mundo diversos ao biomédico, hegemônico. No entanto,
8
como nos alerta Rocha e Rozendo (2015), apesar de inegáveis avanços, permanece
a desvalorização das práticas populares pelos profissionais da área da saúde, o que
provoca distanciamento na relação entre o SUS e tais práticas, bem como "a
invisibilidade e falta de crédito deste conhecimento popular” (ROCHA e ROZENDO,
2015, p. 336).
Neste sentido, a coordenação da gestão do cuidado e seu compartilhamento
mobilizam um permanente exercício de criticidade para estes profissionais. As
trabalhadoras e os trabalhadores ao percorrerem os territórios, nas suas mais
diversas expressões locorregionais, encontram situações cujos caminhos de
resolução passam por interpretações e proposições distantes ao modelo biomédico.
A prática normatizada e prescritiva tem limites que dificultam o desenvolvimento de
propostas centradas nas necessidades e no cuidado em saúde, o que nos leva ao
segundo ponto deste ensaio: a atenção primária à saúde e a proteção ambiental
pontuadas nas Agendas.
As “necessidades de atendimento primário da saúde da população”
(CNUMAD, 1992) são tratadas neste ensaio a partir de dois argumentos: a
compreensão de "necessidade" enquanto elemento que compõe os determinantes
sociais de saúde, bem como, o entendimento sobre o atendimento primário estar
correlacionado a uma estrutura de atenção primária (APS).
A Comissão Nacional sobre os determinantes sociais da saúde (CNDSS)
introduz o conceito de determinantes como um conjunto de elementos “sociais,
econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais” que
atravessam e que constituem situações de saúde e de adoecimento. Para isso, a
CNDSS mobiliza sentidos sobre risco, vulnerabilidade e justiça (CNDSS, 2005, p.2).
Para a Comissão, a promoção e a proteção são termos que falam sobre
equidade e que estão implicados com o debate sobre o enfrentamento das
iniquidades no Brasil (BUSS e PELLEGRINI FILHO, 2007). Por sua vez, a questão
“iniquidade social” é um argumento partícipe do pensamento mobilizado pela
educação crítica ambiental (LOUREIRO, 2004). Por sua vez, equidade, integralidade
e universalidade são diretrizes importantes ao SUS.
No SUS, a atenção primária à saúde tem sua expressão máxima no modelo
político técnico-assistencial denominado Estratégia Saúde da Família (ESF). A ESF
teve seu início na década de 1990, como programa, para se complexificar como
9
política anos depois. No ano de 2011, a ESF passa a compor a Política Nacional de
Atenção Básica (PNAB). Conforme explicado por Oliveira e Pereira (2003), a
caracterização da Estratégia de Saúde da Família atravessa ações que versam
sobre a promoção, a proteção e a recuperação da saúde. As autoras destacam que
tais ações demandam investimentos contínuos e perspectivas de cuidado integral.
A partir da ESF, as equipes de saúde mantêm vínculos com as pessoas em
seus territórios, agregando questões ambientais, culturais e sociais ao conjunto de
questionamentos da saúde. De acordo com Pereira e Oliveira (2013), isto
redireciona as práticas e saberes dentro do SUS para as necessidades daquela
população. Apesar desta proposta de modelo técnico-assistencial participar
explicitamente da PNAB (2011), o projeto ético-político que a embasa a antecede
mais de duas décadas.
O Brasil, a partir da reforma sanitária mobilizada pela redemocratização,
conquistou, em 1988, o Sistema Único de Saúde. No artigo 198, da Constituição da
República Federativa do Brasil encontram-se os três pilares do SUS:
“descentralização, com direção única em cada esfera de governo; atendimento
integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços
assistenciais; e participação da comunidade” (BRASIL, 2012, p. 6).
Tal centralidade promove-se a partir do encontro dos sujeitos históricos
envolvidos em um processo mais abrangente de saúde. Sujeito aqui também
compreendido como o “homem-sujeito que é parte integrante de uma sociedade
igualitária, que também é sujeito”, conforme apresentado por Tiriba, Rodrigues e
Antunes (2021, p.4). Pelo campo da saúde, estes sujeitos, como apontado por
Ceccim e Feuerwerker (2004), representam a reconstrução do que seja saúde no
Brasil e para quem ela se volta.
De acordo com os autores (2004, p.42), o “quadrilátero para a formação no
trabalho em saúde” seria um encontro entre estes sujeitos. Os autores destacam
que são parte dos sujeitos que compõem o SUS: as trabalhadoras e trabalhadores
do SUS, a gestão, o controle social e a educação (CECCIM e FEUERWERKER,
2004). Por conseguinte, a ordenação da formação e da atuação no SUS
reorganiza-se acompanhando os movimentos do SUS.
Como argumentado por Baptista, Guimarães e Sánchez (2020) para a
educação ambiental crítica (EAC), a formação das pessoas envolvidas em um dado
10
projeto é pauta perene. Tal pressuposto é precioso, pois fortalece encontros
interculturais e expressa nossa latinoamericanidade. Este encontro intercultural
Dussel (2016), por sua vez, anuncia como um diálogo que foca interpretações de
mundo para leituras transmodernas. A EAC provoca rupturas epistêmicas e
ontológicas que direcionam os coletivos para proposições do bem viver.
A EAC enfrenta o processo de padronização globalizadora imposta pelo
colonialismo ocidental e defende uma pedagogia autêntica à história das
comunidades e dos territórios, destacando a identidade dos povos e os processos
relacionais das culturas envolvidas (BAPTISTA, GUIMARÃES e SÁNCHEZ, 2020).
Assim, as culturas não seriam, mas estariam dentro dos processos, culminando com
transformações. Na saúde, romper com as relações orientadas por padrões significa
romper com o controle sobre os corpos, com seu uso exploratório e com a ideia de
homogeneidade pela dominação e anulação do outro.
O projeto ético-político da educação ambiental crítica possibilita, neste
sentido, um necessário afastamento da tríade moderno-ocidental capitalista,
oportunizando o resgate de pautas ambientais a partir de críticas à sociedade
brasileira e às suas práticas sociais. Em detalhe e de forma potente, a ECA
movimenta a temática ambiental para a saúde e a saúde para as questões
ambientais. Isto desvela intenções e ações promotoras de exclusões, aproximando a
promoção e a proteção da saúde a sentidos e projetos que promovem a dignidade
humana. Neste ponto, a educação ambiental se transforma em caminhos de
resistência e persistência a favor do SUS. E quando em giro, a ECA desloca a saúde
para caminhos de re-existência, retomando as diretrizes da ECO-92, porém
reorientando-a para o Sul Global.
Considerações finais
O ano de 2022 marca trinta anos da assinatura do acordo a favor da proteção
ambiental debatido pela Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento. A Agenda 21 apontava o caráter predatório das sociedades
organizadas pelo capital, pelo patriarcado e pelo racismo, denunciando o colapso
ambiental. Constata-se, no entanto, o agravamento da exploração dos corpos e dos
territórios, permanecendo uma divisão internacional que opera pela invasão,
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exploração, genocídio e epistemicídio dos povos, acompanhados pelo desmonte da
proteção ambiental.
Dentre as diretrizes pactuadas na ECO-92, o estudo destacou a proteção e a
promoção das condições da saúde humana por ser elemento central para o debate
das condições de existência impostas por essa divisão internacional do trabalho.
Neste sentido, o estudo propôs a retomada do debate da saúde, situado a partir do
Sistema Único de Saúde, para realçar e aprofundar conquistas e desafios após trinta
anos da Eco-92.
Dentre estes desafios, destacamos a indissociabilidade entre saúde, ambiente
e bem viver, o necessário questionamento de políticas excludentes e a permanência
da luta pela dignidade dos povos e território latinoamericanos. Por aprofundamento,
apontamos o fortalecimento do SUS agora orientado pela equidade e integralidade,
a perenidade de propostas para a saúde que guardem sentido com os territórios e
as comunidades, bem como a compreensão da força das trabalhadoras e dos
trabalhadores envolvidos no cotidiano disruptivo do SUS.
Para tanto, apresentamos reflexões a partir da EAC, cujos elementos
constitutivos apontam para um arcabouço teórico-prático que milita pela proteção
ambiental. Isto possibilitou interpretações contemporâneas sobre a ECO-92, bem
como o destaque de giros epistêmicos a partir do Sul Global que se lançam por
trajetórias de defesa da vida a partir da relação entre povos, territórios e natureza,
circunscrevendo saúde e proteção ambiental como potentes reveladores de
condicionantes de existência.
Referências
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ao retrocesso estabelecido no contexto brasileiro. REMEA - Revista Eletrônica Do
Mestrado Em Educação Ambiental, 37(1), 145–165, 2020. Disponível em:
https://periodicos.furg.br/remea/article/view/10885. Acesso em 19 de fevereiro de
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12
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BUSS, P. M.; PELLEGRINI FILHO, A. A saúde e seus determinantes sociais.
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15
V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
MOVIMIENTO AGROECOLÓGICO “CAMPESINO A CAMPESINO”:
EXPERIENCIAS, PARTICIPACIÓN POPULAR Y CUESTIONES
SOCIOAMBIENTALES EN CUBA1
Jesús Jorge Pérez García2
Resumen
En el texto presentamos resultados de la investigación del doctorado realizada en comunidades
rurales en Cuba (2010 2015).Tomando o materialismo histórico dialéctico como método, a partir das
categorías memoria y experiencia desde la revolución cubana hasta la actualidad; considerando los
legados de generaciones como: campesinos y líderes revolucionarios, simientes de un proceso de
construcción colectiva que atendió la formación de los recursos humanos y ubicó al hombre en sitial
prioritario, con métodos de participación colectiva, en articulación con los adelantos de la técnica, la
ciencia y la preservación del medio ambiente en equilibrio entre la sociedad-naturaleza-economía.
Palabras-clave: Agroecología. Campesino-campesino. Socio ambiental. Participación.
MOVIMENTO AGROECOLÓGICO “CAMPESINO A CAMPESINO”: EXPERIÊNCIAS,
PARTICIPAÇÃO POPULAR E QUESTÕES SOCIOAMBIENTAIS EM CUBA
Resumo
No texto apresentamos os resultados da pesquisa de doutorado realizada em comunidades rurais de
Cuba (2010 - 2015), tomando como método o materialismo histórico dialético, a partir das categorias
de memória e experiência desde a revolução cubana até o presente; considerando os legados de
gerações como: camponeses e lideranças revolucionárias, sementes de um processo de construção
coletiva que atendeu à formação de recursos humanos e colocou o homem em lugar prioritário, com
métodos de participação coletiva, em coordenação com os avanços da tecnologia, ciência e a
preservação do meio ambiente em equilíbrio entre sociedade-natureza-economia.
Palavras-chave: Agroecologia. Camponês-camponesa. Social ambiental. Participação.
AGRO ECOLOGICAL MOVEMENT “CAMPESINO A CAMPESINO”: EXPERIENCES, POPULAR
PARTICIPATION AND SOCIO-ENVIRONMENTAL QUESTIONS IN CUBA
Abstract
In the text we present the results of the doctoral research carried out in rural communities in Cuba
(2010 - 2015). Taking dialectical historical materialism as a method, based on the categories of
memory and experience from the Cuban revolution to the present; considering the legacies of
generations such as: peasants and revolutionary leaders, seeds of a process of collective construction
that attended the formation of human resources and placed man in a priority seat, with methods of
collective participation, in coordination with advances in technology, science and the preservation of
the environment in balance between society-nature-economy.
Keywords: Agroecology. Peasant-peasant. Environmental partner. Participation.
2Doctor en Ciencias Pedagógicas por ICCP Instituto Central de Ciencias Pedagógicas Habana -
Cuba. Docente, analista y gestor de proyectos en educación popular y EJA por NEAd - PUC-Rio.
E-mail: jerjor2014@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4393462117070720.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3691-8262.
1Artigo recebido em 11/06/2022. Primeira avaliação em 13/07/2022. Segunda avaliação 20/07/2022.
Aprovado em 18/08/2022. Publicado em 10/11/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.54856.
1
Introducción
Creyendo que el trabajo es la forma por la cual los seres humanos establecen
relaciones con la naturaleza y entre sí, y que economía y cultura se van tejiendo en
la misma red de relaciones, nuestro objetivo es avivar experiencias de clase,
basadas en la participación popular que permanecen en la memoria colectiva y en la
vida cotidiana de la gente, acciones cruciales para la continuidad de los valores de la
Revolución y de la vida en Cuba.
Como E. P. Thompson (1981, p.15), entendemos que las experiencias vividas
es una categoría indispensable a los historiadores y a otros investigadores, ya que,
como mediación entre ser social y estructura social, representa “la respuesta mental
y emocional, sea de un individuo o de un grupo social a muchos acontecimientos
interrelacionados o a muchas repeticiones del mismo tipo de acontecimientos”. En
especial, queremos avivar las experiencias de hombres y mujeres cuya intención es
romper con la explotación de clase y construir nuevas relaciones entre los seres
humanos y la naturaleza.
Sin desconsiderar las diferencias de las matrices teórico-metodológicas y de
las concepciones del mundo de Thompson y de Maurice Halbwacks (2006), partimos
del supuesto de que la memoria colectiva da sentido a las experiencias pasadas y
maduradas a lo largo del tiempo. La memoria es siempre memoria colectiva, es la
reconstrucción de algo que, directa o indirectamente, es vivido y experimentado en
el pasado, por un grupo o por el conjunto de la sociedad; es movilizada en el
presente, reteniendo lo que todavía sigue vivo del pasado y que es capaz de
permanecer en la consciencia individual y colectiva.
Así, esta exposición de abordaje cualitativa, de base materialista histórico
dialéctica, toma resultados de la investigación de doctorado entre 2010 e 20143,
obtenidos a través de observaciones-participante realizadas a través de oficinas,
cursos, talleres, reuniones, conversaciones en grupos, conversas informales,
anotadas en cuaderno de campo, con comunidades del Crucero Echevarría, el
Cuchillo, Planta de Asfalto y la Comuna del municipio de Consolación del Sur, Pinar
del Rio Cuba. Envueltos en la experiencia con la Empresa Transporte Agropecuario
3Titulada: Estrategia de Formación en Educación Ambiental para los Directivos de la Empresa
Transporte Agropecuario de Pinar del Rio. Orientadores: Dra. C. Caridad Pérez García, Dr. C. Juan
Alberto Mena Lorenzo y Dr. Jesús Torres Domínguez. - ICCP Instituto Central de Ciencias
Pedagógicas. La Habana, Cuba. 2016.
2
de Pinar del Rio, así como socializar los resultados al participar en los eventos del
Grupo de Pesquisa GEA Universidad Pedagógica Enrique José Varona Habana,
Cuba.
Estas experiencias de investigación en Cuba, relacionadas con las
experiencias del Movimiento Campesino Campesino, verificadas en otros países,
que en el caso de Brasil son operadas, por las acciones del MST, así como dentro
de otros movimientos de América, ¿nos conduce a la cuestión, de cómo el pueblo
cubano consigue mantener acciones y mediaciones por la vida en su territorio frente
a las contradicciones operadas por el sistema capitalista y en especial por el criminal
bloqueo del imperialismo norteamericano?
En busca de evidencias, que puedan ampliar estos breves análisis, dado al
espacio restricto de este artigo, lanzamos algunas inferencias, conforme Garcia
(2022, p. 2) relacionadas a las “necesidades sentidas”, o sea, experiencias en curso,
según Marx (2013) de hombres y mujeres que al transformar la naturaleza, se
transforman a mismas, es decir, procesos dialécticos de construcción histórica, de
un devenir constante, según Thompson (1987), llevándolos a construir alternativas
segundo Guhur e Silva (2021) a partir de la epistemología Agroecológica, formas
que mantienen viva la soberanía alimentaria cubana, hasta la actualidad.
Por tanto, se hace necesario resaltar que Cuba, es una pequeña isla,
compuesta actualmente por una población general de 11.326.616 habitantes. Al
cierre del año 2020 la población que residía en asentamientos humanos
considerados como urbanos era de 8 622 504 habitantes, para el 77,1 por ciento de
urbanización. La zona rural por su parte llegó a 2 559 091 habitantes, un 22.9 por
ciento del total. Lo anterior reitera a Cuba como un país de elevada urbanización4.
Es aquí también, donde el socialismo florece y resiste al bloqueo económico
de los Estados Unidos, por lo que es un campo fértil para el aprendizaje de esas
experiencias. Ello porque, después del triunfo revolucionario, en 1959, se desarrolló
un proceso de comunicación asamblearia participativa entre los dirigentes de la
revolución y el pueblo, que marcó pautas significativas para la socialización colectiva
de los problemas, propuestas de solución y procesos de decisión respecto al
desarrollo político, económico, social y cultural del país.
4http://www.onei.gob.cu/sites/default/files/estudios_y_datos_2020.pdf. Acceso en 30 de mayo de
2022.
3
Por lo tanto, creemos que experienciar prácticas colectivas de trabajo es la
principal escuela, para en la práctica aprender a producir la vida asociativamente,
con una racionalidad económica y cultural distinta a la lógica del capital. Además, en
esta escuela una de las tareas es crear y recrear referentes prácticos-teóricos que
orienten las nuevas relaciones entre los seres humanos y otros elementos de la
naturaleza. En verdad, se trata de construir nuevos parámetros de calidad de vida,
mediados por experiencias de participación popular en todas las esferas de la vida
social. En este artículo nuestra intención es subrayar las experiencias
socio-ambientales, en particular, la del Movimiento Agroecológico Campesino a
Campesino.
El texto está estructurado en tres partes. Teniendo en cuenta la dialéctica
presente-pasado-futuro, en la primera parte enfatizamos las condiciones de vida y
trabajo en Cuba, antes y después del año 1959. Al referirnos a la calidad de vida de
la población, subrayamos el protagonismo del Estado y de la participación popular
en las experiencias de trabajo comunitario y en la toma de decisiones para satisfacer
las necesidades sentidas de la población: trabajo, educación, vivienda, salud,
cultura, deporte y seguridad social entre otras.
En la segunda parte, fundamentados en E.P. Thompson, presentamos la
experiencia Movimiento Agroecológico Campesino a Campesino,considerándola
como experiencia de clase, de carácter político-educativa, económica y cultural.
Destacamos la importancia de la participación popular en la solución de los
problemas socio-ambientales de lo cotidiano en Cuba, respecto a las necesidades
básicas y participación social en general. Llamamos la atención que los términos
trabajo, naturaleza, comunidad, participación popular y experiencia vivida/percibida y
modificada son conceptos que se integran. Desde luego, son términos que nos
ayudan a comprender los criterios para mejorar la calidad de vida de las personas en
armonía con la naturaleza.
En la tercera parte del texto, para reflexionar sobre la experiencia del
Movimiento Agroecológico Campesino a Campesino, recordamos algunos aportes
de Carlos Walter Porto-Gonçalves (2012), Arturo Escobar (2017), Enrique Leff
(2009), Carlos Frederico B. Loureiro (2012) y de los cubanos Orestes Valdés Valdés
(2008) y Antonio Blanco Pérez (1997). Afirmamos que son ellos algunos de los
autores que nos ayudan a identificar referentes teórico-metodológicos para analizar
4
las prácticas comunitarias en su vínculo con la dimensión ambiental en lo cotidiano,
y cómo articularlos con la realidad cubana y latinoamericana.5
Calidad de vida y participación popular: ¿qué pasó después del año 1959?
¡Sesenta y cuatro años de la Revolución Cubana! A pesar que los propietarios
de los medios de comunicación y (desinformación) nieguen las conquistas del
pueblo cubano, no es posible encubrir que muchas cosas acontecen en la
pequeñísima Isla de 109, 884 mil km2. En Cuba, antes del triunfo de la revolución
socialista, la calidad de vida de las personas era muy mala. Muchos niños y niñas
morían al nacer, no tenían atención médica, ni escuelas, ni maestros suficientes. Sin
derechos ciudadanos, oprimidos y sin acceso a la vida social y política, las personas
no tenían donde vivir. Sin trabajo, abundaba la miseria, el hambre y las
enfermedades. Antes de 1959, existía un millón treinta y dos mil, ochocientos
cuarenta y nueve mil personas analfabetas y semi-analfabetas; seiscientos mil niños
estaban sin escolarizar6.La mujer era un objeto, sin derechos, siendo su principal
opción la prostitución. Las relaciones de trabajo eran de extrema explotación, sin
derechos laborales, incluso, en muchos casos, sin derechos al retiro y al pago de
vacaciones.
La gente tenía que trabajar como esclava, con relaciones de dependencia
total de los dueños de los medios de producción, que incluían la compra de los
alimentos, ropas y otros útiles de vida en las tiendas de los propios dueños. A veces,
no mediaba el dinero, sino un bono emitido por el empleador que les daba derecho a
las compras o a endeudarse hasta el próximo bono. Por otro lado, no se puede
olvidar que una buena parte de las mejores tierras de Cuba, los centrales
azucareros, la compañía de teléfonos, el comercio interno y externo, las salas de
juegos y la prostitución eran negocios de mafiosos y burgueses norteamericanos.
De 1940/1944, y de 1952/1959 gobernó en el país Fulgencio Batista, un tirano
que reprimía cualquier protesta y protegía a los burgueses y terratenientes que se
apoderaban de muchas tierras por la fuerza o se las compraban a los campesinos a
6Cuba en cifras antes y después de la revolución. www.radiorevelde.cu. Acceso en 4 de julho de
2017.
5Una primera versión de este artículo fue anteriormente publicada en el libro: MAGALHÃES, Lívia
Diana R.; TIRIBA, Lia (org.). Experiência: o termo ausente? Sobre história, memória, trabalho e
educação. Uberlândia: Navegando Publicações, 2018.
5
“precios de banana podrida”. Tampoco se puede borrar de la memoria histórica, que
los Estados Unidos, en su lógica imperial, no dudaron en difamar e intentar aplastar
el proceso revolucionario.
El 1 de enero de 1959, los revolucionarios cubanos, habían derrotado un
ejército de más de 80.000 efectivos equipados y entrenados con los armamentos
más modernos de la época, del ejército norteamericano. Fidel Castro, el comandante
en jefe de las fuerzas revolucionarias, en varias ocasiones refirió: José Martí es el
autor intelectual del Asalto al Cuartel Moncada de Santiago de Cuba7, que fue el
inicio de esta batalla. Nos inspiramos en el legado martiano que nos enseñó, que la
primera ley de nuestra república debe ser el culto de los cubanos a la dignidad plena
del hombre.
A partir de 1960, el gobierno de los Estados Unidos establece el bloqueo
económico contra Cuba, y se inician las prácticas terroristas para intentar asesinar a
Fidel Castro (más de 600 atentados). Fueron elaboradas leyes extraterritoriales
aprobadas en su Congreso como la Ley Torricelli (1992) y la Ley Helms Burton Act
(1996) que prohíben, condenan y sancionan a los países, grupos económicos y
bancos que comercien con Cuba. Violando los derechos humanos del pueblo de
Cuba. El gobierno norteamericano impuso a los países que no acataron esta ley,
multas millonarias, pérdidas de licencias de comerciar con Estados Unidos, además
de la eliminación de la “ayuda para el desarrollo” a estos países.
Actualmente, este proceso ha sido más agresivo y excepcionalmente criminal,
primero con 240 nuevas medidas impuestas durante el único periodo del Gobierno
de Donald Trump que impactó notablemente todas las esferas de la economía y de
la vida social del país, las cuales fueron mantenidas durante la pandemia,
impidiendo la compra de medicamentos, alimentos y materias primas para elaborar
medicamentos y en especial los relacionados con el COVID 19. Situación mantenida
hasta hoy por el nuevo presidente Joe Biden a pesar de las promesas realizadas en
campaña.
Esta amenaza que implicó el COVID 19, para la salud de pueblo cubano, se
convertía en una necesidad sentida y las comunidades del país: pueblo,
académicos, científicos, trabajadores, campesinos, educadores, organizaciones
sociales, centros científicos, empresas, universidades y estructuras del Estado se
7Asalto organizado por las fuerzas revolucionarias de Cuba, para iniciar la lucha armada como vía
para derrotar a la tiranía e instalar un gobierno revolucionario.
6
unirían al Ministerio de Salud Pública y pensarían como país, como Cuba y se
crearían 3 vacunas (Abdala8, Soberana 2 y Plus Soberana) para proteger al pueblo
en tiempo récord, con una cobertura actual de vacunados con el sistema completo
del 90,1% de la población, que incluyen a los niños a partir de dos años de edad.
Tampoco faltó nuestra solidaridad, en los momentos más difíciles, y
colaboramos con países hermanos; parafraseando a José Martí cuando dijo que:
patria es humanidad, por lo que haciendo realidad esta frase, nuestra colaboración
durante la pandemia llegó a más de 50 países, y en específico, Italia dijo:
Con profunda gratitud recibimos de manos de Ángelo Sollazzo,
presidente de la Confederación de Italianos en el Mundo, una placa
en reconocimiento a la labor de las brigadas médicas Henry Reeve
que enfrentaron en ciudades italianas la COVID-19, durante los
momentos más complejos de la pandemia (CUBADEBATE, 2022)9.
Asimismo, fue realizado un homenaje al Doctor Julio Guerra Izquierdo quien
recibió la Orden de la Estrella de Italia en el Grado de Caballero, por la labor
desempeñada al frente de la brigada médica
[…] del Contingente Henry Reeve que asistió a la población de la
localidad de Turín, afectada por la pandemia de la COVID-19. El
galardón, firmado por Sergio Mattarella, presidente de Italia, refleja el
agradecimiento de todo un país por la solidaridad del personal
médico cubano, señaló Roberto Vellano, embajador de esa nación
europea en Cuba (CUBADEBATE, 2022)10
Estas prácticas anteriores se ponen de manifiesto la solidaridad y el
internacionalismo proletario, que han sido comunes, como parte de la formación de
los médicos cubanos durante más de 60 años de revolución, resaltando el carácter
altruista, humanista y de valores comprometidos con la vida y el bienestar de la
humanidad. Y estas simientes, ya estaban presentes en el Programa de la Historia
me Absolverá, que fue aplicado en el país a partir del triunfo de la revolución de
1959.
10http://www.cubadebate.cu/noticias/2022/06/01/entregan-orden-de-la-estrella-de-italia-a-jefe-de-briga
da-medica-cubana-en-turin/
9http://www.cubadebate.cu/especiales/2022/06/01/brigadas-medicas-henry-reeve-que-enfrentaron-la-c
ovid-19-en-italia-reciben-placa-de-reconocimiento/
8https://elpais.com/sociedad/2021-06-24/cuba-logra-la-primera-vacuna-latinoamericana-con-datos-de-
efectividad-al-nivel-de-pfizer-y-moderna.html. Cuba logra la primera vacuna latinoamericana con
datos de efectividad al nivel de Pfizer y Moderna. Abdala muestra una eficacia del 92,28% contra la
covid-19 tras la aplicación de tres dosis. Hoy se comercializa en más de 7 países.
7
El programa de La Historia me Absolverá (CASTRO, 2007)11, entre algunas de
las acciones que implementó, se pueden mencionar: se convirtieron los cuarteles de
la tiranía en círculos infantiles, escuelas y universidades, para garantizar que todos
los cubanos/as pudieran estudiar, con la primera (1959) y la segunda ley de Reforma
Agraria (1961), se nacionalizaron las tierras del país y se entregó a quienes la
trabajaban. En 1961, se realizó con masiva participación popular la campaña de
alfabetización en la nación. Las Naciones Unidas reconocieron a Cuba, como el
“primer país libre de analfabetismo” de nuestra América.
Cómo decía José Martí (2015, p 154) “no hay obra perfecta, pero mucho
menos si en ella no está la mano de la mujer”. Así se amplió la participación de las
mujeres en el trabajo comunitario y en todas las esferas de la sociedad, con igualdad
de derechos, salarios y las mismas condiciones que los hombres. Han ganado sus
derechos de maternidad por lo que se les paga durante uno o dos años,
manteniendo reservada su plaza de trabajo.
En este sentido, el trabajo comunitario ha sido un camino importante, que
según las investigaciones realizadas en este campo:
La comunidad, es donde están las raíces de su historia, cultura,
memoria, tradiciones, educación y experiencias de conocimientos,
aptitudes, creatividad, resistencia, con pensamiento crítico, reflexivo
para la toma de decisiones con habilidades para resolver los
problemas: La comunidad, no es una forma de vida; “sino, un sentido
de la vida”, de las familias, del trabajo con grandes sentimientos de
amor, que crecen, articulan y genera fuerzas endógenas a partir de
las necesidades sentidas conceptuadas y atendidas de manera
colectiva en un territorio geográfico por el bien común de todos sus
miembros; lo que interactúa con agentes externos en una perspectiva
para, por y con la comunidad, que las identifica y al mismo tiempo las
diferencia como tales (GARCIA, p. 15, 2021).
La experiencia educativa, el trabajo comunitario abrió los horizontes que
encauzaron una desbordante satisfacción y fervor revolucionario, de sentirse parte
de este proceso. Parafraseando a José Martí (2015), ser culto es el único modo de
ser libre. Es importante evocar la memoria del proceso revolucionario cubano en
contra del imperialismo y su modo de producción fundado en la explotación a
sobremanera de los seres humanos y otros elementos de la naturaleza, produciendo
11 Alegado hecho por Fidel Castro Ruz en la autodefensa de él y sus compañeros en el juicio,
después que fueron presos en el Asalto al Cuartel Moncada de Santiago de Cuba. En este
documento histórico explicaba que el asalto fue para derrotar y liberar al Pueblo Cubano de la
dictadura sangrienta de Fulgencio Batista y proponía el programa que aplicaría el Gobierno
Revolucionario al triunfar.
8
el trabajo precario y, por ende, una vida precaria. Por fin, se puede decir que, como
experiencia de clase (THOMPSON, 1987).
La participación popular de hombres y mujeres ocurrió desde el inicio en la
construcción del socialismo. Las necesidades sentidas humanas fueron atendidas en
un paquete de medidas gubernamentales, creando estructuras que no existían,
escuelas, círculos infantiles, maestros, puestos de trabajo, viviendas, áreas para
practicar deporte, hospitales, escuelas especializadas, universidades, agua potable
por acueducto para la población, estaciones de radio y TV al servicio de la población
para educarlas, electricidad para las viviendas, carreteras e infraestructuras para
mejorar la calidad de vida de las personas.
“Campesino a campesino” como experiencia educativa y de participación
popular
Un paso importante de la revolución desde su inicio fue que, por primera vez,
las tierras eran de los que la trabajaban y como acción nueva preciso del
surgimiento de organizaciones nuevas, para atender los procesos que se
desarrollaban y formaban en lo cotidiano, con las experiencias aportadas por los
propios actores, los campesinos. Así surgió la ANAP, “Asociación de Pequeños
Agricultores de Cuba”, la cual los agrupó, organizó y asesoró
técnica-política-económicamente y compartió los saberes locales de las
comunidades.
La revolución alfabetizó a los campesinos, para que pudieran estudiar y
aplicar mejor la ciencia y la técnica, sus hijos pudieron estudiar carreras
universitarias y prepararse para las urgencias de la sociedad, les garantiza
asistencia médica. Su organización, la ANAP se convirtió en un espacio de análisis
en sus asambleas y congresos desde el nivel de base hasta la nación donde
discuten sus problemas y surgieron soluciones de la sabiduría legada durante
muchos años de luchas y prácticas colectivas del campesinado cubano.
Durante este proceso enriquecedor se desarrollaron prácticas de construcción
participativa en muchas esferas de la vida económica y social del país, entre las que
se encuentra la experiencia de trabajo comunitario del Movimiento Agroecológico
Campesino a Campesino, la cual se enriquece con los aportes de la educación
popular. Este proceso evolucionó y durante los últimos años, la política nacional con
9
las comunidades incluyó en el gobierno una secretaría para orientar y atender el
trabajo comunitario desde el nivel central hasta los gobiernos locales. Ello fortaleció
el desarrollo local endógeno en los municipios y en las comunidades.
Los elementos anteriores, entre otros, fueron claves para la implementación
de manera progresiva y masiva del Movimiento Agroecológico Campesino a
Campesino, que, en el caso de Cuba, contó con el apoyo político, financiero y
organizativo de la ANAP. Este proceso se inició desde el año 1997, pero tomó su
mayor fuerza a partir del año 2001 en la formación, aprendizaje y sistematización, en
los cuales también hubo colaboración de diferentes ONG como “Pan para el mundo”
y la Oxfam que financiaron el proyecto en la etapa inicial.
En este sentido las relaciones que se producen están impregnadas del
proceso histórico desarrollado en Cuba, el estableció nuevos roles y tipos de
relaciones que se producen en lo individual y colectivo, en los modos de producción
y la distribución de las riquezas en una nueva organización del trabajo. La sociedad
forma parte de las mediaciones; un poder social que participa en la construcción
colectiva para alcanzar una independencia libertaria en lo económico, social y
cultural.
Los principios que rigen el programa campesino a campesino en Cuba, fueron
construidos de manera participativa a partir de los nuevos conceptos, que implicó la
agroecología, las experiencias existentes de este movimiento y de los saberes de los
propios campesinos cubanos, construidas en las prácticas del día a día y
socializadas en contactos, intercambios y en las reuniones de socios de la ANAP y
en sus asambleas a nivel municipal, provincial y nacional (SOSA et al, 2013, p.71).
Principios del Movimiento Agroecológico Cubano Campesino a
Campesino.
1. Comenzar despacio y en pequeña escala.
Facilita la evaluación, la reflexión, y la rectificación de errores, así
como riesgos. Para que los campesinos puedan administrar mejor las
plantaciones.
“Vísteme despacio que estoy con prisa”.
2. Limitar la introducción de tecnologías.
No es necesario la introducción de muchas técnicas agroecológicas
al mismo tiempo. Es más rápido dominar una a una las innovaciones,
dominándolas, consolidándolas e integrándolas poco a poco.
Se debe comenzar por las que enfrentan y resuelven los mayores
problemas productivos y que al mismo tiempo tengan los menores
costos iniciales, que sean más fáciles de realizar y lleven más rápido
al resultado.
10
“Más vale una idea en la cabeza de cien, de que cien ideas en la
cabeza de uno”.
3. Obtener éxito rápido e individual.
El entusiasmo es generador de nuevas ideas, las victorias obtenidas
son el estímulo más eficaz. Buscan ser los motores morales de la
construcción y reconstrucción en el trabajo cotidiano.
“La palabra convence, más el ejemplo arrastra”.
4. Experimentar en pequeña escala.
Experimentar es poner a prueba, comprobar, adaptar y adoptar a
partir de las necesidades, una nueva técnica o solución. Este
principio nos aleja de las recetas genéricas de los paquetes
tecnológicos planificados para todos. Y todos los lugares.
“Es preciso gatear antes de caminar”
5. Desarrollar un efecto multiplicador.
La multiplicación entre los propios campesinos de los resultados y
experiencias obtenidas es la única forma de poder llegar a la
extensión y masificación del sistema de producción a fin de obtener
un impacto real en el medio ambiente. La enseñanza permite
conocer un tema a profundidad; y gran parte de esta enseñanza
reside en ejemplo vivo, comunicado de campesino a campesino.
“Cuándo el campesino ve, el cree”.
Estos principios rigen el trabajo del Movimiento Agroecológico Campesino a
Campesino, y en el proceso de construcción del mismo, en el cual, por un lado,
aprenden, y por el otro, incorporan prácticas y experiencias de sus antecesores y las
propias acumuladas a lo largo de su vida en el campo, en las plantaciones.
Entre las actividades que se desarrollan, en las asambleas de asociados
están: los talleres donde participan los miembros del Movimiento Agroecológico
Campesino a Campesino, cuyo objetivo es socializar experiencias y construir
colectivamente nuevos conocimientos, contenidos, metodologías y resultados
obtenidos, los cuales en muchas ocasiones se realizan en las propias plantaciones
de los productores de manera práctica, constatando los resultados alcanzados en
cada caso.
Entre las actividades de gran importancia, que se desarrollan están: la
realización del diagnóstico rápido participativo, el cual permite identificar los
problemas existentes en el terreno y cuál es el principal problema y sus causas; otra
acción es la realización de visitas entre los campesinos en los terrenos para
constatar los saberes prácticos, teóricos y los resultados de la producción, la
atención a los suelos, el agua y otros componentes del medio ambiente contado por
los protagonistas. También existen encuentros a nivel de zona, municipio, provincia y
país; en los cuales se socializan los mejores resultados de cada lugar para su
generalización a partir de las condiciones de cada lugar.
11
Los instrumentos de la metodología pueden ser usados en diferentes
actividades con el fin de motivar, animar, llamar a la reflexión para lo cual son
condiciones importantes crear un ambiente motivador y tratar de conseguir la mayor
comprensión posible.
El terreno. Es instrumento básico y soporte de las diferentes
actividades que se desarrollan por lo que requiere de ser cuidado y
atendido con el mayor cuidado posible.
Los testimonios. Son de gran valor por cuanto son aseveraciones de
los promotores u otro campesino sobre la solución de un problema o
de la obtención de un resultado agroecológico. Es de gran valor
didáctico, por la práctica y lenguaje sano de los campesinos.
Las demostraciones didácticas. Instrumento que sirve para demostrar
de manera visual y práctica un proceso positivo o negativo, a partir
de explicaciones que incentivan el debate, los análisis y el consenso
sobre los aspectos que la gente construye.
Exposición de productos, semillas, materiales e innovaciones. Es una
práctica válida para intercambios de experiencias, encuentros, y
otros espacios de debate en los cuales los productores muestran sus
resultados, explican cómo lo obtuvieron y se propicia un espacio de
debate, intercambio y análisis, de aprendizajes, apropiaciones y
motivaciones para el trabajo.
Dinámicas de animación. Son una vía básica en reuniones, talleres y
encuentros para dinamizar la participación de los presentes en los
temas que exponen a partir de juegos, y otras formas que sean más
dinámicas, participativas y amenas.
Poesías y canciones. Es un elemento a considerar, conociendo que
la cultura campesina se caracteriza por la música, la poesía, el
repentismo que serían importantes para amenizar, desarrollar estos
valores en la promoción y espiritualidad del trabajo realizado.
Socio-dramas. De gran valor para desde la cultura atender la
problemática agroecológica, sus conceptos, sus problemas y
soluciones desde esta otra perspectiva con otra mirada y forma de
aprendizaje en obras teatrales y otras propuestas culturales.
Otros. En este proceso de aprendizaje, debate, crítica y de
construcción son importante también otros instrumentos como fotos,
audiovisuales, mapas, diseños, carteles etc.; que contribuyan a la
promoción y divulgación de los resultados del trabajo (SOSA et al,
2013, p.71).
En el año 2001 se realiza el primer encuentro nacional del Movimiento
Agroecológico Campesino a Campesino, con la participación de numerosos
productores, especialistas y campesinos de las experiencias desarrolladas con éxito
12
en los sitios de intervención de las provincias de Cienfuegos, Ciego de Ávila,
Matanzas y La Habana. En esta histórica reunión Lugo Fontes, el Presidente de la
ANAP en Cuba expresó: “si no conseguimos financiamiento externo, el Movimiento
Agroecológico en Cuba se va a desarrollar con nuestros propios recursos, aun
cuando tengamos muy pocos”. (SOSA et al, 2013, p. 76).
Como resultado de este proceso, nace el Movimiento Agroecológico Nacional
Campesino a Campesino, fortaleciendo la estrategía del campesinado de participar
en la política agraria de la revolución aportando alimentos saludables y abundantes
para el pueblo. Así como participar en la vida política, cultural y social del país
organizado en la ANAP.
Una de las acciones importantes desarrolladas en esta etapa para la
generalización en el país de la experiencia del Movimiento Agroecológico
Campesino a Campesino (MACC), fue el aprovechamiento de la estructura
organizativa de la ANAP, a nivel de base, municipio, provincia y nación, a partir de
las potencialidades locales, las características de las plantaciones y la promoción de
la continua experimentación a partir de las experiencias acumuladas en la memoria
de trabajo teórico y práctico realizado. Para lo cual se organizaron cursos de
capacitación para todas las provincias según sus condiciones, formando promotores
y desarrollando actividades prácticas y visitas para constatar los resultados
alcanzados.
Aspectos básicos considerados para la implementación de esta Estrategia:
1. Continuar utilizando la metodología campesina a campesino, así
como continuar desarrollando el proceso de capacitación a fin de
lograr una mayor sensibilización, y concientización de todos los
actores sobre la necesidad de la agroecología.
2. Conservar todo lo que hay de positivo en la cultura productiva
tradicional campesina. Además, aplicar y multiplicar de forma
adecuada las conquistas de la ciencia cubana en materia de
sustentabilidad y cuidado del medio ambiente.
3. Conseguir que los diferentes niveles de la estructura de la ANAP
asuman de forma plena y efectiva como soportes funcionales y
movilizadores del proceso con la colaboración de los ministerios,
organismos e instituciones.
4. Medir sistemáticamente los resultados e impactos de las mejorías
en la producción, para monitorear los avances, alcances y
contribuciones del Programa Campesino a Campesino (SOSA et al,
2013, p.80).
13
Desde el año 1996 se creó el Centro Nacional de Capacitación de la ANAP
“Niceto Pérez”, el cual a partir de la evolución del Movimiento Agroecológico
Campesino a Campesino incluyó en su currículo la agroecología y la agricultura
sustentable. Unos años después se formó la Cátedra de Agroecología de la
Universidad Agraria de la Habana, ambas contribuyeron significativamente a la
formación de promotores y facilitadores. Así como a la capacitación
metodológicamente de todo el personal a partir de cursos presenciales, a distancia,
diplomados que evolucionaron hasta convertirse en temas de maestrías y
doctorados de los diferentes actores participantes en este proceso. Estos espacios
de capacitación y construcción, además fueron utilizados para preparar el personal
dirigente de la ANAP. Dando una muestra de solidaridad con nuestra América, se
impartieron cursos de formación de líderes agrarios a campesinos (as).
Las prácticas, resultados, impactos y transformaciones logradas por el
Movimiento Agroecológico Campesino a Campesino en Cuba, mudaron la forma de
pensar de muchos especialistas y políticas nacionales que se sustentaban en el uso
de grandiosos recursos, muchas veces importados, y que no siempre alcanzaban los
resultados esperados. Cuba en medio de una situación económica desfavorable por
el bloqueo económico, los efectos del cambio climático y las relaciones comerciales
desfavorables entre el norte y el sur, estaba obligada a otras prácticas, otras
maneras de hacer y fue por eso que el movimiento alcanzó apoyo político,
económico y social, así como un reconocimiento nacional e internacional.
La repercusión de la experiencia del Movimiento Agroecológico Campesino a
Campesino su forma de hacer y construir, se ha ido extendiendo en el país y muchos
proyectos de corte agroecológicos que se implementan en las comunidades
agrícolas, asumen esta metodología participativa, porque el campesinado ha
aprendido esta manera de hacer y facilita los análisis y compromisos, por el nivel de
preparación de las personas. Un ejemplo de ello es el Proyecto OP/15, en la
Cooperativa de Producción Agropecuaria Jesús Suárez Soca del municipio
Consolación del Sur en la provincia de Pinar del Rio (GARCÍA, 2014)
En relación a la importancia y necesidad del Movimiento Agroecológico en
Cuba, Raúl Castro declaró:
¡La tierra está ahí, aquí están los cubanos, veremos si trabajaremos
o no, si producimos o no, si cumpliremos o no nuestra palabra! No es
14
cuestión de gritar Patria o Muerte, abajo el imperialismo, el bloqueo
nos golpea, y la tierra está ahí, esperando por nuestro sudor. A pesar
de que los calores están cada vez mayores, no hay otro remedio sino
hacerla producir…cada vez que hablamos del asunto, aparecen los
funcionarios del ministerio de la agricultura…con una lista
interminable con millones de pesos o divisas solicitados para la tarea
a realizar. Y si no aparece un saquito plástico, no se puede sembrar.
No se conque diablos nuestros abuelos sembraban los árboles, ahí
están, y aquí estamos nosotros, comiendo los mangos que ellos
plantaron (CASTRO, 2009, p. 143).
Considerar conforme Castro (2009) nos provoca a fundamental sabiduría de
nuestros ancestros, es comprender que a perspectiva de agroecología que nos
mueve es de los movimientos populares y se sustenta en la praxis campesina,
pueblos originarios y tradicionales, con proceso de constitución social de más de 12
mil años de creación y recreación de las “agri-culturas”, o sea, clase social en
sentido amplio conforme Guhur e Silva (2021).
En este sentido, cuando Castro nos afirma “la tierra está ahí, esperando por
nuestro sudor” (p. 143), él nos invita a la praxis, pues como ele mismo reafirma la
cuestión no es apenas “gritar Patria o Muerte, abajo el imperialismo, el bloqueo nos
golpea”, es hacer y mantener la Revolución, pues no se trata de decir conforme
Loureiro (2015, p. 169) que con “el fin del capitalismo, todo estará resuelto”. Por lo
tanto, una invitación a las prácticas del propio proceso de estar en el mundo, para
hacer, ser o/no mundo, transformándose e transformándolo (MÉSZÁROS, 2013),
pues de acordó con Castro (ídem, ibidem) para la transformación social no “hay otro
remedio que hacerla producir.
Trabajo, comunidad y naturaleza: aportes desde el sur
¿Cómo interpretar la experiencia del Movimiento Agroecológico Campesino a
Campesino? Desde luego, el intenso bloqueo económico, político, social y cultural
norteamericano no ha favorecido a los cubanos y a las cubanas a participar de las
experiencias prácticas y teóricas latinoamericanas. Sin embargo, sabemos que,
desde finales del siglo XX, ha ido corroborando cada vez más, las predicciones y
tesis de muchos investigadores en relación a la problemática ambiental y a las
prácticas globalizadoras en la producción, distribución y el consumo, que cada día
se alejan y aplastan más las experiencias acumuladas por generaciones en las
comunidades.
15
Entendemos que hay otras lógicas de interactuar con la naturaleza, otras
prácticas alternativas viables, para enfrentar la actual pobreza de espíritu e iniciativa
ante la grave crisis ambiental, cultural, social y económica que estremece al planeta
Tierra. En Cuba, entre las experiencias de trabajo comunitario, con fuerte
participación popular se destacan Campesino a campesino y otras
socio-ambientales (PÉREZ GARCÍA, 2016), las cuales, aún hoy se enriquecen con
los aportes de la educación popular, contribuyendo para el desarrollo endógeno de
las comunidades. No se puede olvidar la obra de Paulo Freire (1978)12, la cual es un
referente importante en las prácticas educativas y comunitarias en Cuba.
En diferentes momentos históricos, hemos podido percibir “los comunes” que
alimentan estas praxis muy arraigadas en la cultura e identidad de los pueblos, por
lo que aprendimos en el intercambio con las personas de las comunidades sobre el
trabajo comunitario que:
Son una vía de construcción de saberes de manera participativa
vinculadas a proyectos de desarrollo local o no, en los cuales las
personas de las comunidades tienen derecho y autonomía para
presentar y realizar sus propias propuestas, que respondan a sus
necesidades sentidas como vía de transformación, a partir de la
fuerza y potencialidades existentes en las comunidades, organizados
en grupos de trabajo. La comunidad como punto de partida, de unión
y articulación de las políticas públicas y sociales. (GARCÍA, p. 20,
2022).
Respecto a las relaciones de los seres humanos con la naturaleza, ya Marx
(1995, p.153) alertaba sobre su importancia al expresar: “algún día la ciencia natural
se incorporará la ciencia del hombre, del mismo modo que la ciencia del hombre se
incorporará a la ciencia natural; habrá sólo una ciencia”. Este pensamiento de
vigencia ante los problemas que hoy nos ocupan y preocupan a los cubanos, nos
presenta el camino de respeto y equilibrio de las leyes de la ciencia natural con las
que el hombre construye, debería ser, lo construido por el hombre como una
extensión que complementan armónicamente los modos de actuación de los seres
humanos en lo cotidiano en una dimensión socio ambiental participativa.
En el caso de Cuba, todos estos años de explotación antes de la revolución,
los parámetros del capital por la ganancia, a costa de la naturaleza convirtió al país
12 En esta etapa Paulo Freire (1970) hace una afirmación muy importante, que fue práctica del
proceso revolucionario cubano: El proceso educacional debe partir de la vida y la realidad local del
educando, posibilitando el desarrollo de la conciencia crítica, los problemas de la educación no se
limitan a los aspectos de orden pedagógico son también problemas éticos, políticos, sociales y
económicos.
16
en monocultivista, mono-exportador e importador del mercado norteamericano. Se
afectaron las tradiciones de los campesinos en el trabajo de cuidado y preservación
de la tierra, y como consecuencia de este proceso de explotación intensiva de los
recursos, incompatible con las leyes de la naturaleza: Prácticamente se extinguieron
los bosques, las tierras se empobrecieron por el uso intensivo y en consecuencia la
calidad de vida de las personas menguó.
El ejemplo anterior nos demuestra hasta donde se puede llegar cuando los
intereses del capital en lo económico, social, en las relaciones de trabajo y de
educación de las personas, cuando se desconocen las ciencias y leyes de la
naturaleza. Esta situación anterior fue uno de los retos importantes al triunfo de la
revolución en Cuba, por lo que la primera medida revolucionaria fue nacionalizar las
tierras a quienes no la trabajaban, o tenían grandes latifundios de tierras ociosas. Se
confiscaron así propiedades de más de 400 hectáreas de extensión y se entregó la
tierra a numerosos campesinos. A partir de aquí, enormes territorios se convirtieron
en granjas populares y se organizó la producción agrícola en productos como el
arroz, cítrico, ganado, café, viandas, tabaco y otros alimentos.13
Estas nuevas relaciones de trabajo y educación, entre trabajadores y
trabajadoras, la nueva distribución del espacio geográfico, generó empleos para los
campesinos desposeídos, y por primera vez los que trabajaban las tierras eran sus
dueños. Un nuevo propietario social que producía los principales alimentos que
necesitaba el pueblo, sin mediadores, sin explotadores. La propiedad pasó a ser
social sobre la tierra, los medios de producción y sus resultados agrícolas. Se inició
un proceso de creación de lo que surgirían más tarde, las cooperativas de trabajo
agrícolas organizadas por juntas de socios de los propios campesinos.
La experiencia de participación popular Movimiento Agroecológico Campesino
a Campesino, es un ejemplo para muchos pueblos de nuestra América que han
luchado por “la tierra para los que la trabajan”, buscando nuevas relaciones de las
personas con la naturaleza. Sin embargo, las condiciones de dominación en las
tierras, el esquema de trabajo del capital imperante y los intereses de las oligarquías
nacionales, han sido elementos conspirativos permanentes. No obstante, el
movimiento MST en Brasil, logró alcanzar un nivel de organización y gestión con
13 La Primera Ley de Reforma Agraria se firmó el 17 de mayo de 1959 en La Plata. Sierra Maestra.
Cuba, dentro del proceso de la Revolución Cubana.
17
resultados concretos que nos muestran que existen otros caminos si nos
organizamos y nos unimos por nuestros derechos comunes.
En esta dirección se debe tener en cuenta los estudios y aportes realizados
por Carlos Walter Porto-Gonçalves sobre ordenamiento territorial, en Brasil y otros
países de Latinoamérica. El autor analiza las causas del desenvolvimiento desigual
del espacio geográfico, las contradicciones, conflictos rurales que se producen en el
campo. En el libro del año 2008, “A Globalização da Natureza e a Natureza da
Globalização”, obtuvo el Premio Internacional en Literatura Brasileña “Casas de las
Américas” (Cuba). Para los cubanos y demás pueblos latinoamericanos, son
significativos los aportes de esta producción científica para entender y enfrentar los
viejos y nuevos problemas del aprovechamiento y utilización del espacio-territorio, y
la necesidad de considerar el tema ambiental en el centro de las decisiones
económicas y políticas que se adopten.
En relación a esta compleja situación de la globalización neoliberal, que nos
impone el sistema capitalista mundial, basado en la ganancia, sin perspectivas y con
afectaciones al medio ambiente, cada vez se hace más urgente, buscar otras
racionalidades económicas y ambientales. En relación a lo cual, Porto-Gonçalves
(2012, p.16-17) expresó: “el potencial emancipatorio que está inscrito en el
contradictorio campo ambiental [...] todo indica que cualquiera que sea el proyecto
(los proyectos) que se apliquen a partir del mundo-que-está-ahí, tendrá que
incorporar la dimensión ambiental”. Aquí el investigador resume la importancia de
introducir la dimensión ambiental en cualquier proyecto de desarrollo o investigación
que se aplique. Resalta que existe otra manera de hacer: de las mujeres, de las
indígenas, campesinos, comunidades y otros grupos organizados que, desde sus
experiencias locales, proponen otras articulaciones con la naturaleza, con la vida. En
esta misma perspectiva, Arturo Escobar antropólogo colombiano, parte de las luchas
y pensamientos “desde abajo”, y aquellas que están sintonizadas con las dinámicas
de la Tierra, declara que:
“los conocimientos de los pueblos en movimiento, de las
comunidades en resistencia y de muchos movimientos sociales están
en la avanzada del pensamiento para las transiciones, y cobran una
relevancia inusitada para la reconstitución de mundos ante las graves
crisis ecológicas y sociales que enfrentamos, más aún que los
conocimientos de expertos, las instituciones y la academia
(ESCOBAR, 2016, p.1).
18
Escobar analiza la fuerza de estos movimientos en Latinoamérica los que se
basan en la reconstitución de lo comunal como el pilar de la autonomía, comunidad y
territorialidad, conceptos claves de esta corriente. Esta dimensión se encuentra
elocuentemente expresada en el arte, los mitos, las prácticas económicas y
culturales de las personas en las comunidades. Por su parte, Enrique Leff, plantea la
necesidad de buscar otras racionalidades ante la globalización, otra racionalidad
ambiental, desde la cultura y la autonomía de los pueblos. Esta perspectiva requiere
de atención y conocer las experiencias acumuladas por milenios, por nuestros
pueblos y comunidades de Latinoamérica. Esta es la globalización que necesitamos,
para construir de conjunto nuestros propios caminos.
Se puede inferir que esta perspectiva avalada por Leff, desde la cultura, es un
elemento también considerado mucho antes por E.P. Thompson, unido a la
economía, como diferentes dimensiones de la vida social. Para el historiador
marxista que estudió la formación de la clase operária inglesa, en el siglo 18, “es
esencial mantener presente en el espíritu, el factor de los fenómenos sociales y
culturales no estén “al remorque” siguiendo los fenómenos económicos a distancia,
ellos están en su surgimiento, preso en la misma red de relaciones” (THOMPSON,
1981, p. 208). Sin dudas, en los momentos actuales se impone unirnos en una lucha
que es económica y a la vez, cultural, pues como señaló Marx (1991, p.82):
Lo que exige explicación no es la unidad de los seres humanos vivos
y activos con las condiciones naturales e inorgánicas del
metabolismo con la naturaleza [...] lo que tiene que ser explicado en
la separación entre esas condiciones inorgánicas de la existencia
humana y la existencia activa, una separación apenas completada
plenamente, en la relación entre trabajo asalariado y el capital.
En esta afirmación Marx magistralmente pone en la palestra como las
condiciones y relaciones de trabajo que establece e impone el capital a partir del
trabajo asalariado, es la principal contradicción que influye en este fenómeno, una
de las premisas básicas a considerar para mudar las relaciones de desarrollo
desigual del espacio geográfico y el aprovechamiento de los recursos naturales para
superar las contradicciones que generan los principales conflictos que en la
actualidad se producen en el mundo, en la lucha por un orden económico más justo
y participativo.
Los conocimientos, el pensamiento, la resistencia, las prácticas de las
comunidades, los pueblos y los movimientos sociales de Latinoamérica, marcan el
19
camino a seguir para repensar y reconstruir los efectos de esta crisis ambiental,
social y económica. La fuerza de la cultura se constituye en un eje común para el
establecimiento de nuevas relaciones de trabajo con el capital, que se mantiene ahí
y debe ser considerado y enfrentado para poder avanzar. En esta dirección existen
experiencias como ya explicamos anteriormente que hacen la diferencia ante la
propuesta globalizadora.
En las investigaciones realizadas por Carlos Frederico B. Loureiro, importante
especialista de educación ambiental de Brasil, profundiza en la importancia de
realizar una educación ambiental crítica para la construcción de los nuevos saberes
ambientales en enfrentamiento a las propuestas globalizadoras. Esta perspectiva es
una vía importante para la capacitación y preparación de las personas y para asumir
posiciones críticas ante estas propuestas neoliberales. La fuerza de la cultura, las
tradiciones y las maneras de hacer y construir el conocimiento, son aspectos
esenciales a considerar.
Orestes Valdés Valdés, especialista cubano en Educación Ambiental, en los
estudios realizados, resalta la importancia de la cultura en comunidades rurales
como elemento importante para conformar prácticas ambientales sostenibles que
pueden ser replicadas en otros contextos. En el camino hacia la construcción de esa
nueva realidad, Antonio Blanco sociólogo cubano, hace una propuesta importante
con un grupo de indicadores para la comunidad, de manera de aprovechar sus
potencialidades para la construcción colectiva del conocimiento desde las propias
propuestas y potencialidades de las personas de la comunidad, sus experiencias y
prácticas para la atención a la problemática socio- ambiental desde lo cotidiano.
Considerar indicadores para conocer el comportamiento de las comunidades
puede ser algo que ayude a iniciar un proceso de socialización y acercamientos con
las mismas, sobre todo cuando se inician estos procesos, y en lo sucesivo. Sin
embargo, es imprescindible reconstruir de forma participativa estos indicadores, de
manera que las personas de la comunidad den sus criterios, aportes y que sean
partes activos de la formación de ese conocimiento. En esencia es una cuestión
ética-educativa, porque cada comunidad, tienen sus condiciones histórico culturales,
sociales, religiosas, económicas, de trabajo y educación, que las diferencian y a su
vez las complementan.
Los autores consultados, tienen como punto común considerar que la
globalización neoliberal capitalista que se nos impone desde arriba, no resuelve los
20
graves problemas ambientales, económicos, sociales de nuestros pueblos de
Latinoamérica; sino que los profundiza, complejiza. Crea cada día más dependencia
consumista, hambre, miseria, desigualdades, guerras, grandes oleadas migratorias,
deterioro y contaminación de las tierras, el agua, afectaciones significativas a los
bosques y la biodiversidad y como consecuencia el aumento exponencial de la
desigualdad entre el norte y el sur, los ricos y los pobres.
Está situación anterior ha tenido una resistencia de nuestros pueblos, a partir
de su experiencia, creatividad y diversidades, de los movimientos agroecológicos
surgidos en el continente vistos como un proyecto para enfrentar, criticar y
transformar desde lo técnico, político e histórico el proyecto capitalista, por tanto,
La agroecología se anuncia como un terreno fértil para la creación de
nuevas relaciones de trabajo, en dirección a la emancipación social
en el compromiso con la humanidad y su futuro, en defensa de la
vida, la salud y el medio ambiente en una perspectiva de totalidad
(DIAS; STAUFFER; et al, p.17, grifos do autor).
Por tanto, consideramos que son posibles otros caminos, otras
racionalidades, otras alternativas frente a la globalización neoliberal: en este sentido
dar gran importancia a la memoria/experiencia acumulada, a la cultura, a los valores
de la tierra, las tradiciones y la construcción colectiva en las comunidades, a los
pueblos autóctonos, a los campesinos, a los indígenas, a los ribereños, a los
sindicalistas, a los negros, a las mujeres, a los movimientos en defensa de los
derechos de los pueblos. Estos grupos proponen otras maneras de vivir en armonía
con la naturaleza, el buen vivir, como expresión de prácticas de vida milenarias,
donde el cuidado de la tierra y la racionalidad, no son meras palabras; sino
realidades tangibles.
Consideraciones finales: ¿hacia dónde caminamos?
En un mundo globalizado, donde las prácticas del agronegocio son
promovido, comercializado por grandes trasnacionales, que procuran la ganancia,
aún a costa de la naturaleza y la salud humana, donde los trabajadores son un mero
objeto explotado, obligados a realizar prácticas que se distancian de los legados y
tradiciones agrícolas de los pueblos. En este contexto contradictorio se insertan
otras propuestas desde el sur, que en el caso de Cuba tiene una construcción
21
popular-participativa que potencia la memoria/experiencia local acumulada durante
muchos años y se articula con la técnica, y la ciencia en función de lograr una
calidad de vida plena de las personas, sobre la base del cuidado y preservación del
medio ambiente.
Bajo estos preceptos anteriores se ha trabajado en Cuba, considerando los
legados de generaciones anteriores de operarios, trabajadores, intelectuales,
campesinos, líderes revolucionarios, que constituyeron las simientes de un proceso
de construcción colectiva que atendió la formación de los recursos humanos y ubicó
al hombre en un sitial prioritario, adecuando, actualizando y enriqueciendo estas
prácticas en lo cotidiano, en articulación con los adelantos de la técnica, la ciencia y
la preservación del medio ambiente como única forma de lograr un equilibrio entre la
sociedad-naturaleza-economía.
Esta política desarrollada, permitió que el país sea uno de los pocos en el
mundo, que cumplió con las metas del milenio aprobadas por las Naciones Unidas
en relación al acceso de la población a: la educación, salud, deporte, trabajo, agua
potable, alimentación, vivienda, seguridad ciudadana, índices de salubridad, acceso
a la cultura, espiritualidad, equidad social, cuidado del medio ambiente entre otras,
que han contribuido a mejorar la calidad de vida de las personas.
La historia de la Revolución Cubana ha sido contada, comentada, explicada
en muchos libros, entrevistas, películas, relatos: cada cual tratando de satisfacer sus
interrogantes sobre esta Isla Insurrecta que rompió con los códigos prediseñados
por el imperialismo norteamericano (RAMONET, 2016, por ejemplo). Desde luego,
insistimos en que la memoria social y colectiva de las experiencias vividas,
percibidas y modificadas a lo largo del proceso histórico estructurado (THOMPSON,
1981) son esenciales para aprender la totalidad social donde hombre y mujeres se
constituyen material y simbólicamente. De ahí la importancia de la historia vista
desde abajo. La revolución no da tiempo para teorizar. Hay que hacerlo. En Cuba, la
experiencia es entendida como experiencia práctica, alimentada de la teoría. La
práctica fue y ha sido el primer criterio para transformar la realidad. Las cosas se
hacían o se morían de hambre las personas, ya que los EEUU, impusieron desde los
inicios, todo tipo de limitaciones para asfixiar a la joven revolución que nacía en
nuestra América.
Hoy por hoy, sigue el trabajo creativo entre los dirigentes y la población para
formar el modelo cubano de democracia, que desde la perspectiva socialista
22
garantice, de manera masiva, la calidad de vida de la población. Importante es no
olvidar el trabajo de solidaridad internacional y colaboración en más de 100 países
del planeta. Ejemplos como en Angola y Mozambique, en las décadas de 1970 y
1980. En la década de 2010, destacamos las brigadas médicas en Nepal, Ecuador,
la solidaridad al combate del virus Ébola en África (DVE) y la participación en el
Programa Mais Médicos, creado en 2013, por Dilma Rousseff en Brasil. Y
recientemente, la atención a más de 50 países ante los peligros del COVID 19.
Lamentablemente, este preclaro pensamiento no ha sido considerado por los
que desde arriba y sin preguntar o consultar, imponen este nuevo orden global. Sin
embargo en medio de tanto desatino, donde los énfasis del capital, las relaciones
entre trabajo y educación son para incrementar ganancias cada vez mayores; se
mantiene una lucha de muchos pueblos y comunidades que se aferran a otro orden,
a otras relaciones, un orden de respeto a la tierra, basado en las
memorias/experiencias acumuladas y transmitidas de generación en generación,
sobre la que muchos investigadores Latinoamericanos han profundizado, socializado
y se ha convertido en un movimiento de referencia de nuestros pueblos que marcan
otras realidades, ante este pensamiento único y colonizador.
En cuanto a estas relaciones, que se establecen entre el capital y la clase
trabajadora, Thompson la define con mucha claridad al referir que al final, toda clase
social es una formación tanto económica como cultural: “[...] la conciencia de clase
es la forma cómo esas experiencias son tratadas en términos culturales: encarnadas
en tradiciones, sistemas de valores, ideas y formas institucionales”. (THOMPSON,
1987, p. 10).
Según Halbwachs (2006), la duración de la memoria depende del tiempo que
los grupos sobrevivan como referentes, es producida socialmente, por lo que se
puede afirmar que no hay posibilidad de experiencia sin memoria, ya que está es la
vía para transmitirla y socializarla por los grupos de clases sociales.“[...] cada
memoria individual es un punto de vista sobre la memoria colectiva, y este punto de
vista muda según el lugar que ahí ocupó y que ese mismo lugar muda según las
relaciones que mantengan con otros ambientes” (HALBWACHS, 2006, p. 69).
En la perspectiva del materialismo histórico, experiencia y memoria de dan
según el propio desarrollo económico, social, cultural, religioso de las sociedades,
todos están integrados en un proceso de cambios y mudanzas muy
interrelacionados con el desarrollo de las fuerzas productivas, los intereses de
23
clases y las luchas de las mismas para enfrentar en el caso de los obreros y la
población, las imposiciones del capital; las cuales están mediadas por intereses de
dominación y opresión por las clase dominantes. Lo que en la actualidad es un
reflejo de las relaciones de producción, empleo, distribuciones de los recursos
económicos, culturales, sociales y las políticas neoliberales que manejan estas
relaciones.
Todavía en el siglo XXI, estamos frente a una maquinaria que, no sólo en
Cuba sino, planetariamente funciona como una dictadura mundial, dándose el
gobierno de USA el auto-derecho de decidir sobre los destinos del mundo. Es la
mundialización de una fuerza económica que ignora las culturas y derecho de
autodeterminación de los pueblos de Latinoamérica y el mundo. Es la guerra, la
mentira, el engaño y la barbarie como nunca antes se ha visto en la historia de la
humanidad.
Mientras, al comprender qué mismo haciendo varias tentativas, el capital no
es la totalidad y como planteó Fidel Castro, tenemos tareas, no podemos olvidar y
por eso luchamos siempre, pues la Revolución es unidad, es independencia, es
luchar por nuestros sueños de justicia para Cuba y para el mundo, que es la base de
nuestro patriotismo, nuestro socialismo y nuestro internacionalismo” (CASTRO,
2000). Luego para continuar la historia, conforme Silvio Rodríguez, cantante cubano,
¡“vamos andar”!
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26
V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
EXPERIÊNCIAS E APROXIMAÇÕES TEÓRICO-PRÁTICAS DE MULHERES
QUILOMBOLAS DA AMAZÔNIA PARAENSE COM O ECOFEMINISMO1
Ellen Rodrigues da Silva Miranda2
Maria Jacqueline Girão Soares de Lima3
Resumo
Expomos neste artigo, a partir de achados de uma pesquisa de mestrado concluída e pesquisas em
andamento, a relação entre mulheres quilombolas, natureza e sociedade como processo de
aproximação entre teoria e práxis interseccional ecofeminista na Amazônia Paraense. Ancoradas na
abordagem qualitativa de enfoque materialista histórico-dialético, analisamos observações, anotações
de campo e entrevistas semiestruturadas. As aproximações são apontadas em experiências de luta
cotidiana ao realizarem ações contra as investidas de privatizações dos rios, florestas e animais,
operadas pelo capitalismo.
Palavras-chave: Mulheres quilombolas; Experiência; Natureza-território; Interseccionalidade;
Ecofeminismo.
MUJERES QUILOMBOLA Y ECOFEMINISMO: EXPERIENCIAS Y APROXIMACIONES
TEÓRICO-PRÁCTICAS EN LA AMAZONIA PARAENSE
Resumen
Exponemos en este artículo, a partir de hallazgos de una investigación de maestría concluida y de una
investigación en curso, la relación mujer quilombola, naturaleza y sociedad como proceso de aproximación entre
teoría y praxis interseccional ecofeminista en la Amazonía Paraense. Anclados en el enfoque cualitativo del
materialismo histórico-dialéctico, analizamos observaciones, notas de campo y entrevistas semiestructuradas.
Las aproximaciones se apuntan en experiencias de lucha cotidiana al realizar acciones contra los embates de
privatización de ríos, bosques y animales, operados por el capitalismo.
Palabras-clave: Mujeres quilombolas; Experiencia; Naturaleza-territorio; Interseccionalidad; Ecofeminismo.
QUILOMBOLAS WOMEN, NATURE AND TERRITORY: INTERSECTIONALITY AND
THEORETICAL-PRACTICES-SECOFEMINIST APPROACHES IN THE AMAZON OF PARAENSE
Abstract
We expose in this article, based on findings from a completed master's research and research in
progress, the relationship between quilombola women, nature and society as a process of
approximation between theory and ecofeminist intersectional praxis in the Paraense Amazon.
Anchored in the qualitative approach of historical-dialectical materialist approach, we analyzed
observations, field notes and semi-structured interviews. The approximations are pointed out in
experiences of daily struggle when carrying out actions against the onslaughts of privatization of
rivers, forests and animals, operated by capitalism.
Keywords: Quilombola women; Experience; Nature-territory; Intersectionality; Ecofeminism.
3Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (PPGE/UFRJ), professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (PPG/UFF).
E-mail: giraojac@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5879472477884020.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4419-3468.
2Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação na Amazônia - PGEDA,
Universidade Federal do Pará. E-mail: ellensilva@ufpa.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3349356526857497.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2030-463X.
1Artigo recebido em 30/05/2022. Primeira Avaliação em 28/06/2022. Segunda Avaliação em 13/07/2022.
Aprovado em 05/09/2022. Publicado em 10/11/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.54704.
1
Introdução
“[...] meu pai me ensinou o tempo da piracema, o
tempo do florir, o tempo do fruto [...]” Mulher
Quilombola 1, 87 anos, Quilombo Tambaí-Açu (2018)
A epígrafe da Mulher Quilombola 1 oferece-nos a instigante reflexão de que
tempo para tudo, inclusive para pensar e escrever sobre a necessária e urgente
transformação de nosso mundo, em tempos tão adversos. Assim, convictas de que,
embora sejam diversas as investidas do capitalismo, “a boiada não passará”,
expomos neste artigo algumas análises, com base em achados de pesquisa de
mestrado realizada de 2017 a 2019 (MIRANDA, 2019) e inferências construídas a
partir de pesquisas4em andamento sobre a relação Mulheres Quilombolas
Natureza – Território.
Procuramos contribuir com a discussão acerca da experiência de Mulheres
Quilombolas na Amazônia Paraense, que lhes permite produzir ações diante das
contradições operadas pelo capitalismo, analisando de que forma essas
experiências se aproximam, em termos teórico-práticos, das lutas ecofeministas.
Na busca por problematizar essas inquietações, compreendemos que, para
abordar qualitativamente um fenômeno, é necessário o entendimento de que
partimos de uma realidade social permeada de significados, motivos, aspirações,
crenças, valores, atitudes e culturas (MINAYO, 2016).
Com base nesse pressuposto, utilizamos anotações realizadas em atividades
em campo, observações livres, conversas informais, oficinas, palestras, seminários,
audiências públicas, produção de vídeos, feiras culturais com mulheres quilombolas
em 2021 e entrevistas semi estruturadas, previamente esclarecidas e consentidas
de forma livre, com três mulheres do Quilombo Tambaí-Açu, em 2018, Mocajuba,
Amazônia Paraense5. Para não cairmos nas armadilhas do idealismo e analisarmos
5A Amazônia tratada neste artigo, em termos geográficos, é referente à região do Nordeste
Paraense. Em 2016, segundo o IBGE, sua população foi estimada em 1.942.216 habitantes. É
formada pela união de 49 municípios, agrupados em cinco microrregiões, a saber: Bragantina ou
Caetés, Cametá (Baixo Tocantins), Guamá, Salgado, Tomé-Açu. Fonte: IBGE (2016).
4“Processos de Formação da Classe Trabalhadora Ampliada: experiências da relação trabalho,
cultura e educação em Territórios Quilombolas, na Amazônia Tocantina Paraense” (MIRANDA,
2020-2024) e pesquisas que tratam sobre a relação educação ambiental e ecofeminismo (LIMA,
2022). Registra-se que o encontro das autoras deste artigo se deu durante a disciplina Educação
Ambiental Insurgente e Interseccional, ministrada pela Profa. Dra. Jaqueline Girão Lima e pelo Prof.
Dr. Celso Sanchez, entre fevereiro e maio de 2021, no Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal Fluminense – UFF.
2
o concreto vivido, tomamos como enfoque o materialismo histórico-dialético
(EVANGELISTA E SHIROMA, 2019).
Nestes termos, faz-se necessário ressaltar que as Mulheres Quilombolas
tratadas neste artigo são mulheres que vivem em territórios rurais. Elas são, como
nos diz a Mulher Quilombola 1 (87 anos, 2018) “filhas de preto trabalhador”, guardiãs
das tradições, da cultura e da educação quilombola, transmitidas de geração em
geração, conforme Selma dos Santos Dealdina6(2020), ou seja, em experiências
compreendidas como tudo aquilo que é produzido por mulheres, homens, crianças,
jovens e anciães, na práxis e reprodução ampliada da vida (MAGALHÃES e TIRIBA,
2018). As experiências integradas em todas as relações, inclusive com não
humanos, são históricas.
Essas mulheres em experiência histórica, de acordo com Loureiro (2018), na
relação direta com a Natureza são a própria natureza, e não algo exterior a ela.
Conforme a Mulher Quilombola 2 (62 anos, 2018), a natureza é “semente que
cuidamos, plantamos, colhemos, entregamos, pois tudo que ela nos dá, temos que
devolver”. Igualmente dotada de bio-socio-diversidade, a natureza, parafraseando a
filosofia africana Ubuntu é: “o que nós somos”, tanto humanos quanto os não
humanos.
Nesse sentido, Território é entendido como direito ao reconhecimento do
sentimento de pertencimento e isso “implica o direito a viver de acordo com seus
costumes e práticas, que formam seu patrimônio histórico e cultural”, conforme a
percepção da quilombola Kalunga Vercilene Francisco Dias7(2020, p. 83). Importa
registrar também, de acordo com a jovem Mulher Quilombola 3 do Tambaí-Açu (21
anos), que território é o lugar em que “[...] a gente é feliz. A gente percebe. A gente
é feliz ajudando o outro”, ou seja, o território é, com base em Marin e Castro (2004),
7Mulher Quilombola do Vão do Moleque, Território Kalunga, Cavalcante, Goiás. Mestre em Direito
Agrário pela Universidade Federal de Goiás, é graduada em Estudo Internacional em Litígio
Estratégico em Direito Indígena pela Pontifícia Universidade Católica do Peru. Atua como advogada
popular na Conaq e na Terra de Direitos (DEALDINA, 2020).
6Optamos neste artigo por publicar o nome completo das autoras negras-quilombolas, no primeiro
momento que forem citadas, em razão do reconhecimento de suas existências e da importância
fundamental de suas pesquisas para a ciência. Assim, Selma dos Santos Dealdina é mulher
quilombola, de Angelim III, Território do Sapê do Norte, no Espírito Santo. Membra da Coalizão Negra
por Direitos, assessora da Coordenação Estadual de Comunidades Quilombolas do Estado do
Espírito Santo (Zacimba Gaba) e o Coletivo de Mulheres da Coordenação Nacional de Articulação
das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ (DEALDINA, 2020).
3
espaço de direito, a forma estável ao uso e controle dos recursos
socioculturais-biodiversos e de sua disponibilidade no tempo.
Desse modo, as falas da Mulher Quilombola 18(87 anos, 2018), Mulher
Quilombola 29(62 anos, 2018) e Mulher Quilombola 310 (21 anos, 2018), bem como
da Mulher Quilombola 411 (2021) e Mulher Quilombola 512 (2021), todas de
Mocajuba/PA, são reveladoras de um contexto de lutas-resistências por seus
Territórios13: Tambaí-Açu, Segundo Distrito, São José de Icatu, compostos de forma
geral por um número aproximado de 825 famílias e 3.239 habitantes (anotações de
campo de 2021). Hoje, esses territórios estão por todos os lados, tal qual ilhas,
cercados por empreendimentos do agronegócio: fazendas de gado, monocultivos de
pimenta-do-reino, açaí irrigado e dendê, dentre outros.
Essas ações de viés capitalista se intensificaram a partir do cenário político
nacional pós 2018 e têm se somado aos conflitos socioculturais-ambientais
ocasionados pelos incentivos diretos ao agronegócio, operacionalizados pelo
governo federal. Elas têm como alvo direto o uso de grandes áreas que, por
necessidade da produção em larga escala visando à exportação, geram
desmatamento, queimadas e uso desenfreado das águas dos rios para irrigação. Em
consequência, afetam diretamente territórios de povos/comunidades tradicionais, a
exemplo dos quilombolas, o que se configura como racismo ambiental, conforme
Rita Maria da Silva Passos14 (2021).
Os dados das pesquisas (realizada e em andamento), produzidos por meio
das falas de mulheres quilombolas, corroboram a hipótese de que, na Amazônia
Paraense, essas mulheres se organizam em defesa de seus territórios diante da
interseccionalidade: raça, classe e gênero e constroem experiências distintas de
14 “Mulher preta de axé que acredita na magia e na ciência”, doutoranda em Planejamento Urbano e
Regional no IPPUR/UFRJ, mestre em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais pela Escola
Nacional de Ciências Estatísticas e bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro.
13 O município de Mocajuba/PA reconhece atualmente 12 (doze) Comunidades de Povos Tradicionais
Quilombolas a saber: Vizânia, Santo Antônio do Vizeu, São Benedito do Vizeu, Itabatinga, Uxizal,
Mangabeira, Porto Grande, Mojutapera, Tambaí-Açu, São José de Icatu, Bracinho de Icatu e
Mazagão. Observação: os dois últimos estão em processo de reconhecimento e titulação territorial
(Anotações de campo, 2021).
12 Território São José de Icatu.
11 Território Segundo Distrito – Itabatinga, Mocajuba, Pará.
10 Território Tambaí-Açu, Mocajuba, Pará.
9Território Tambaí-Açu, Mocajuba, Pará.
8Território Tambaí-Açu, Mocajuba, Pará.
4
lutas, enquanto identidade étnica, que, conforme Carlídia Pereira de Almeida15
(2020, p.149), “transcende características fenotípicas, como cor da pele. Processo
de auto identificação abrange, também, formas de organização política,
socioeconômica, linguagem, ancestralidade, aspectos culturais e religiosidade”.
Essas experiências podem, igualmente, ser compreendidas como
aproximações com as lutas ecofeministas. De acordo com Givânia Maria da Silva16
(2020, p. 55): “As questões relativas a mulheres quilombolas não estão
contempladas pelo feminismo branco, tampouco, em parte, pelo feminismo negro”. E
continua,
Se consideramos certas especificidades e suas relações com
elementos simbólicos, como por exemplo, os territórios, a cura, a
relação com a sociobiodiversidade; a influência dos lugares, das
regiões geográficas, dos biomas; a relação com a religião e aspectos
culturais de forma mais ampla, vamos perceber que ainda
ausências de abordagens teóricas que aproximem as discussões
correntes dos feminismos à realidade das mulheres quilombolas.
É a partir dessas ausências de abordagens, como nos diz Silva (2020), e
compreendendo que também precisamos evidenciar essas especificidades como
lutas ecossocialistas, que temos procurado pensar as diversas “outras” lutas das
mulheres também pela ótica das mulheres quilombolas, que apontam elementos de
“outros coletivos femininos”, como nos apresenta Miranda e Rodrigues (2020) e/ou
experiências que se aproximam das lutas ecofeministas, conforme Lima (2020).
Isso porque, dentre as diversas batalhas cotidianas em prol da vida, o
enfrentamento, também, das Mulheres Quilombolas aos altos índices de
desmatamento. Conforme Tiriba e Souza (2020, p. 173), fora constatado, através do
“[...] Observatório do Clima, entre junho e setembro de 2018,que a taxa de
desmatamento subiu 36% na Amazônia. Nesses quatro meses, foram 2.414 km² de
floresta derrubada”. Logo, territórios quilombolas são vítimas desse processo
patriarcal-colonialista-capitalista que tenta aniquilá-los a todo instante, desde quando
seus ancestrais foram sequestrados de África.
16 Mulher Quilombola de Conceição das Crioulas, Salgueiro, Pernambuco. Membro fundadora da
CONAQ (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas).
(DEALDINA, 2020).
15 Mulher Quilombola do Quilombo Lagoa de Peixe, em Bom Jesus da Lapa, Bahia. Engenheira
Agrônoma formada pela Universidade do Estado da Bahia, com mestrado em Ensino e Relações
Étnico-Raciais pela Universidade Federal do Sul da Bahia (DEALDINA, 2020).
5
Além do alvo da exploração da floresta, também os projetos que visam à
privatização da água através de barragens hidroelétricas e hidrovias, a exemplo do
em curso Projeto Hidrovia Araguaia-Tocantins, que visa expandir o agronegócio
entre as regiões centro-oeste e norte do Brasil. Assim, com base em estudos
realizados pelo Governo Federal, Universidade Federal do Pará, Universidade do
Sul e Sudeste do Pará, dentre outros, é possível afirmar que os modos de vida das
populações locais, inclusive povos/comunidades tradicionais, serão afetados de
forma irreversível (CUT/Pará, 2019).
Defendemos que tornar explícita a força das mulheres quilombolas diante
desse contexto de disputa entre Natureza e Capitalismo é crucial e necessário,
que essas mulheres são guardiãs de seus territórios e é a partir de suas ações
diárias que esses espaços-tempos de vida têm resistido para continuar a existir.
Nesse sentido, entendemos que as mulheres quilombolas são, conforme Nilma Lino
Gomes17: “sinônimo de resistência. Isso significa carregar na identidade, no corpo,
no cuidado com a família, na lida no campo ou na agitação do urbano uma história
ancestral de dignidade” (2020, p. 11, grifo nosso).
Portanto, pensar na relação mulher quilombola natureza território é
compreender que essas mulheres são seus próprios territórios, que, como nos
disse Dealdina (2020, p. 37): “Toda mulher negra é um quilombo”. Quilombos, que
por vezes transcendem através desses corpos seus territórios, para além da
delimitação geográfica, por exemplo, ao ocupar espaços fundamentais para dar
visibilidade às suas lutas, como as lideranças de movimentos sociais, associações
quilombolas, redes de mulheres quilombolas, cargos de chefia, cursos na
universidade, dentre outros espaços. Quando a Mulher Quilombola ocupa espaços
historicamente negados, seu corpo, sua vida expandem o quilombo. De tal modo, o
quilombo se amplia que se torna cada vez mais o povo que a ela pertence e
vice-versa.
Nesse sentido, os corpos das Mulheres Quilombolas são a expressão da luta
de seus territórios, as evidências de um processo histórico que conduziu e ainda
conduz, de acordo com Dealdina (2020, p.31), a resistência dos quilombos
17 Mulher Preta, Profa. Dra. Titular da Faculdade de Educação da UFMG. Pesquisadora, militante das
causas em prol dos direitos humanos, publicou vários livros e artigos, dentre eles: “O Movimento
Negro Educador: saberes construídos nas lutas por emancipação” (2017).
6
[...] muitos séculos, à violência do Estado brasileiro e de agentes
privados detentores do poder. A luta negra quilombola está
representada nos quilombos que até hoje lutam por igualdade social,
racial e de gênero. Acesso à terra, à água, à moradia, à educação,
valorização da agricultura tradicional, proteção de defensoras e
defensores de direito humanos e salvaguarda das sementes e do
meio ambiente são algumas das pautas de luta dos quilombos.
Lutar exige força e coragem, pois a violência do racismo, patriarcalismo e
colonialismo é diária. Daí que tornar evidente as lutas das Mulheres Quilombolas por
seus territórios de existência é demonstrar que o capitalismo não é a totalidade, que
toda realidade é passível de transformação.
Diante desse contexto, optamos neste artigo por considerar, em termos de
embasamento teórico, somente trabalhos de autoria de mulheres, por entendermos
que lutas no campo científico referentes às hierarquias da produção do
conhecimento acadêmico que também precisam ser combatidas e transformadas, de
forma a tornar visível as produções científicas das mulheres que, mesmo diante de
suas várias tarefas cotidianas, também produzem ciência.
Organizado em duas seções que se integram, este artigo procura
problematizar as mediações construídas pelas mulheres quilombolas na relação
entre Natureza e Capitalismo, que, ao tentar submeter os ecossistemas à unidade
contraditória entre capital e natureza, constroem o sofrimento de todos os seres do
planeta Terra (TIRIBA, SOUZA, 2021). E, para continuarmos pensando e produzindo
outras pesquisas, a exposição encerra com algumas considerações.
Mulheres quilombolas natureza território e as aproximações com
fundamentos teóricos interseccionais ecofeministas
Aprende-se com as Mulheres Quilombolas na Amazônia que a água dança,
que as trovoadas indicam mudança, que os animais têm muito a dizer, que os ventos
ditam o tempo, que as flores, os cheiros da mata e da floresta dão sinais de vida e
de morte. As e os encantados(as), mesmos invisíveis, exercem poder sobre nossos
comportamentos. Se vai chover, seja temporal ou brisa, o céu com nuvens e cores
anuncia suas previsões. O sentir de viver sobre as águas ou em terra firme; do
7
caminhar a ou em barcos; os rios, os igarapés, os furos são estradas, ruas como
diz o carimbó18, música da Amazônia.
Embaladas pelo mexer da cintura quando dançam ritmos ancestrais e/ou dos
braços firmes que seguram a enxada no roçado, nos mutirões, quando os homens
resolvem sair “para trabalhar pro outro” como nos diz a Mulher Quilombola 1 -
principalmente durante o período da colheita da pimenta-do-reino, nas propriedades
dos grandes pimentalistas, os homens são atraídos pela perspectiva do trabalho
assalariado e complementação de renda, devido à falta de investimento pelo poder
público na agricultura familiar, conforme pode ser verificado na pesquisa de Miranda
(2019). Contudo, com os sorrisos das mulheres pretas trabalhadoras, segue viva a
história dos Quilombos na Amazônia.
Assim, de forma um tanto poética, compreendendo, pois, conforme Caldas
(2021, p. 1), que o poético lenteia no próprio viver dessas mulheres, nos seus modos
de vida, no cotidiano vivido, no coração da mata amazônica, iniciamos as análises
sobre as Mulheres Quilombolas na Amazônia, sejam elas das águas, da floresta ou
de terra firme, como elas costumam nos dizer.
São experiências vividas das Mulheres Quilombolas não ausentes de história,
economia e cultura, como nos afirmam Magalhães e Tiriba (2018), que conduzem as
linhas deste texto. As anotações de campo de algumas atividades de pesquisas
atuais e entrevistas realizadas em 2018 nos permitem apresentá-las dessa forma,
pois é com essa cadência entre poesia e produção de si que demonstram viver,
fazer, lutar e pensar as Mulheres Quilombolas da Amazônia Paraense.
Se são inúmeros os desafios enfrentados pelas mulheres no Brasil, quando
se trata de mulheres pretas quilombolas esses desafios são potencializados, pois,
de acordo com Djamila Ribeiro19 (2019, p. 22): [...], sobre a mulher negra incide a
opressão de classe, de gênero e de raça, tornando o processo mais complexo”. O
racismo e suas diversas faces também resiste e
19 Mulher Negra, membro do Movimento Negro Nacional Feminista, nasceu em Santos, em 1980.
Mestre em Filosofia é ativista dos Direitos Humanos. Escritora, coordena a coleção Feminismos
Plurais, da editora Pólen e é autora dentre vários livros: O que é lugar de fala? (2007) e Quem tem
medo do feminismo negro? (2017) – Companhia das Letras (RIBEIRO, 2019).
18 Trata-se de música com ritmos ancestrais africanos inter relacionados à cultura indígena
amazônica. Compreendido como patrimônio cultural paraense, o carimbó é canto, dança e encanto,
pois suas letras descrevem o cotidiano amazônico (Anotações de campo, 2018).
8
[...] se materializa em violência e criminalização contra quilombolas.
Segundo o relatório ‘Racismo e violência contra os quilombos no
Brasil’20, elaborado pela Conaq e Terra de Direitos em 2018, de 2016
a 2017 houve um aumento de 350% nos assassinatos de
quilombolas que lutam por direitos (DEALDINA, 2020, p. 32).
O mais impressionante é que, ainda que as pesquisas revelem o aumento
exponencial da violência aos quilombolas, o Estado em sua gestão atual se mantém
inerte. A partir de falas do presidente da República, como “em meu governo não
haverá mais nenhum centímetro de terra para indígenas e quilombolas”, a violência
tem alcançado esses números alarmantes, pois, de fato, a promessa do governo se
mantém na prática. Como se pode constatar, a configuração do racismo institucional
é operada flagrantemente desde que o atual governo assumiu seu posto.
Em seu primeiro dia de mandato, por meio da medida provisória
870, de de janeiro de 2019, o presidente Jair Bolsonaro transferiu,
no organograma institucional do Poder Executivo, o Incra da Casa
Civil da Presidência da República para o Ministério da Agricultura
(Mapa). Por sua vez, a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários,
alocada no mesmo Ministério passou a coordenar os trabalhos do
Incra, sob comando do presidente da União Democrática Ruralista
(UDR) e notório opositor da política pública de titulação quilombola,
Nabhan García. É fundamental ressaltar que essa mudança
administrativa se deu sem a realização de consulta livre, prévia e
informada à população quilombola, diretamente implicada e afetada
pelas mudanças, violando o Artigo da Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT). Dessa forma, o que
vemos hoje, depois dessa reorganização administrativa, é a
vinculação da política pública de titulação de territórios quilombolas a
um ministério cuja política hegemônica é pautada por setores do
agronegócio historicamente contrários à efetivação da política de
titulação de territórios quilombolas (Idem, p. 33).
Em que pese tudo isso, ainda precisamos adicionar a nomeação contraditória
de um negro que trabalhou como “capitão do mato” na Fundação Palmares,
instituição responsável pelas certificações nacionais dos Territórios Quilombolas e
que, por razões ideológicas racistas, procura a todo custo manter as/os quilombolas
atrelados ao “escravismo” assim como ocorrera “em 1888, com a falsa abolição,
ao implantar no Brasil um regime excludente, seguido por uma legislação cruel de
20 Conaq e Terra de Direitos. Racismo e violência contra quilombolas no Brasil. Curitiba: Terra de
Direitos, 2018. Disponível em:
https://terradedireitos.org.bra/uploads/arquivos/(final)-Racismo-e-Violência-Quilombola_CONAQ-Terra
-de-direitos_FN_WEB.pdf
9
acesso à terra, fortalecera a concentração fundiária, a subjugação da população
negra à condição de não sujeitos de direito” (Idem, p. 26).
Nesse sentido, de certo modo tenta-se reescravizar o povo negro ao paralisar
os processos de reconhecimento, mantendo os títulos aprisionados, impossibilitando
que sejam “alforriados” inúmeros Territórios Quilombolas brasileiros, em prol da
conservação do status quo. Ao desconsiderar, além das terras indígenas, a
existência de mais de 6 mil quilombos no Brasil isto é, territórios de reserva de
água, flora, fauna –, põe em evidência que consumo, acúmulo, lucro, individualismo
e exploração são mais importantes do que a vida.
Por isso, os objetivos do capitalismo são compreendidos como perigosos
tanto para humanos como aos não humanos, ou seja, são perigosos para o planeta
como um todo. De acordo com Tiriba e Souza (2021, p. 173):
[...] as mudanças climáticas, a poluição ambiental e a devastação do
planeta, decorrem tanto do saque das riquezas minerais e naturais
consideradas na sua biodiversidade, quanto do próprio aquecimento
global. E, como afirmou Philip Martin Fearnside (2018), a Amazônia
“não é apenas uma vítima do aquecimento global, é também uma
fonte de emissões antropogênicas por desmatamento, degradação
florestal por exploração madeireira e incêndios, emissões de
represas hidrelétricas”. Assim, não por acaso a floresta amazônica
entrou em chamas, em agosto de 2019, tornando a Pacha Mama,
manchete na imprensa internacional.
Essa, dentre outras ações, é a demonstração de que estamos diante da
destruição da natureza e da nossa própria decadência enquanto natureza humana,
pois, se entendemos que ao transformar a natureza em prol de nossas
necessidades, transformamos a nós mesmos, é evidente que se nessa
transformação afetamos a Pacha Mama21 forma irreversível, a nossa própria
humanidade está ameaçada. E, para não cairmos nas armadilhas do
antropocentrismo, faz-se necessário compreender que os não humanos também
estão submetidos ao mesmo processo necro-socioeconômico-ambiental pensado e
realizado com fins de dominação.
21 Além de sua representação como a divindade ligada à terra e à fertilidade da mesma, Pacha Mama
representa o sentido da vida, o nascimento, a maternidade e a proteção da Terra e de seus filhos que
nela habitam. Outra explicação também muita difundida cerca o termo de origem quéchua, que deu
nome à divindade, onde mama refere-se à figura da maternidade e pacha abrange conceitos como o
tempo e o espaço, a terra, o divino e o sagrado. Disponível em:
https://olma.org.br/2019/08/01/pachamama-a-mae-terra-da-cultura-andina/
10
Logo, a relação mulher-natureza com o capitalismo-colonialista deve ser
pensada como relação que envolve patriarcalismo e, no que se refere a mulheres
negras-quilombolas, precisamos acrescentar outras intersecções: classe, raça e
etnicidade, conforme Lélia Gonzalez22 (1979). Por isso, compreendemos que na
sociedade capitalista-colonialista a dominação tanto da mulher como da natureza é
uma necessidade para a manutenção do status quo, pois quanto mais empobrecidas
estiverem as mulheres e a natureza, e para isso vale toda a violência –, mais fácil
se torna explorá-las, conquistá-las. Essa lógica é operada de diversas formas,
através do moralismo, machismo, sexismo e misoginia, que se materializam no
feminicídio em todas suas dimensões.
A relação mulher-natureza tem sido produzida pelo capitalismo-colonialista
como expressão de desvalorização. Isso se desde a visão do masculino, “visto
como sagrado, materializado num Deus situado no céu, que cria e governa sobre a
Terra imaginada como feminina” (KHEEL, 2019, p. 23) até as relações mais íntimas
e cotidianas que mantém mulheres e natureza atreladas à ideia de ingenuidade,
fragilidade e que, portanto, necessitam do cuidado, proteção
patriarcal-capitalista-colonialista para continuarem a existir. Daí que,
Embora não haja uma filosofia única do ecofeminismo, certos temas
principais são comuns ao campo. No nível mais amplo, o
ecofeminismo refere-se à ideia de que a desvalorização das
mulheres e da natureza tem andado de mãos dadas na sociedade
ocidental patriarcal. Essa desvalorização se reforça mutuamente, por
exemplo, as mulheres são associadas com a natureza e por isso são
desvalorizadas; e a natureza é vista como feminina e por isso
também é desvalorizada. A desvalorização das mulheres é também
comumente vista como conectada com outras formas de opressão,
tais quais racismo, classismo [classism], heterossexismo e
especismo. (KHEEL, 2019, p. 22).
Neste artigo, focamos em pensar nos feminismos não capitalistas, ou seja,
aqueles que têm a compreensão histórica da luta contra o capitalismo, colonialismo,
patriarcalismo, racismo, sexismo e misoginia, dentre outros “ismos”. Igualmente,
faz-se necessário, também, pensar na ampliação do que pensamos sobre as lutas
em prol da natureza, isto é, do meio ambiente, pois essa luta também se articula à
luta pela terra, pela água, pelo ar que respiramos, pelas plantas, animais, enfim, a
22 Mulher Negra. Doutora em Antropologia. Militante do Movimento Nacional Negro. A pesquisadora
possui várias publicações, dentre elas: “Categoria Político-Cultural da Amefricanidade”.
11
luta pela vida é uma luta integrada, é a unidade do diverso. Isabel Loureiro (2019, p.
15), ao estudar Rosa Luxemburgo, nos diz que:
Numa época em que o capitalismo para sobreviver precisa mais do
que nunca extrair valor do meio-ambiente, o socialismo pode ser
entendido como ecossocialismo, numa rejeição ao
desenvolvimentismo “fóssil” tal como posto em prática pelos
governos “progressistas” na América Latina (e continuado pelos
governos conservadores), apoiados na exportação de commodities,
agronegócio, mineração, numa palavra, no extrativismo predador. O
planeta precisa urgentemente de uma alternativa civilizatória
antagônica ao desenvolvimento entendido como puro crescimento
econômico, para o qual não importa que o preço a pagar seja a
destruição do meio ambiente, como Belo Monte, ou cidades
entupidas de automóveis, para mencionar apenas o Brasil.
A urgência, portanto, de uma alternativa civilizatória como nos sugere
Loureiro (2019), exige pensar em caminhos que repensem também o papel da
relação mulher-natureza. Nesse processo, o ecofeminismo desponta como uma em
meio a tantas alternativas possíveis de contribuição a esse ampliar da luta em
rejeição ao capitalismo-colonialista.
Para tanto, as cientistas e ecofeministas Mies e Shiva (1993) contribuem
nesse ampliar de perspectivas feministas, conduzindo-nos a pensar sobre o que é o
ecofeminismo para as mulheres dos países do Sul, a partir do que não é
ecofeminismo. Para elas, ecofeminismo não pode ser tratado de forma essencialista,
ou seja, não podemos ser entendidas como próximas da natureza apenas porque
isso faz parte da nossa essência, dos nossos genes. Nós somos próximas da
natureza porque é com ela que trabalhamos, alimentamos nossos filhos e por ela
sobrevivemos.
Nesses termos, a luta ecofeminista tratada aqui é, também, luta contra a
cultura social de “certos” feminismos que adotam a fragmentação e o reducionismo,
características do patriarcado, à exemplo dos “movimentos de mulheres por Deus e
a Família” aqui no Brasil, ou como feminismos de mulheres brancas da classe
média, que, na luta por trabalho, oprimem outras mulheres, principalmente negras,
que acabam assumindo suas casas e seus filhos, para que elas possam trabalhar.
Esses tipos de feminismos, embora contraditoriamente sejam organizações
de mulheres, não representam a luta histórica, pois há, como defende González
(2020), um sistema econômico que antagoniza a sociedade em dois projetos
12
fundamentais de classe: o da classe opressora que se mantém da exploração do
trabalho do outro e o projeto da classe trabalhadora, que, em constante processo de
formação e luta de classes, tem procurado construir bases de um outro mundo
possível, em que não haja dominação de humanos sobre humanos, muito menos de
humanos sobre não humanos. O projeto da classe trabalhadora e toda sua
diversidade precisa ser, também, um projeto ecofeminista de base não capitalista,
não colonialista, não patriarcal, não racista.
Faz-se necessário ressaltar que o ecofeminismo tratado aqui não acredita em
“feminismos” que apostam na dominação da mulher sobre o homem, ou seja, um
campo reducionista, simplista de disputa de poder, pois não podemos cair na mesma
armadilha do patriarcado. A nossa luta é uma luta pela unidade. A luta ecofeminista
precisa ser educativa e ocupar o máximo de espaços possíveis no sentido de
contribuir na construção de outras formas de sociabilidade.
Assim como as mulheres que abraçam árvores e guardam sementes na Índia
em prol da Vida e não do lucro, na Amazônia Paraense aprende-se com as lutas das
mulheres quilombolas que as lutas são diversas, permeadas, de acordo com
Gonzalez (1979), de etnicidade, que amplia o conceito de “Interseccionalidade” de
Kimberlé Cresnshaw (1989) ao tratar sobre “a colisão das estruturas, a interação
simultânea das avenidas identitárias, além do fracasso do feminismo em contemplar
mulheres negras, já que reproduz o racismo” segundo Carla Akotirene23 (2020).
A constatação de Kimberle Cresnshaw (1989), embora seja afro-americana,
ou seja, mulher negra, não contempla os processos de racismo estrutural em outros
espaços-tempos, a exemplo do que vivenciam as mulheres quilombolas, daí que o
conceito de etnicidade de González (1989), ou melhor, amefricanidade, também
precisa ser considerado nessa discussão.
O que propomos é pensar as lutas cotidianas das Mulheres Quilombolas
como “intercruzadas” com lutas de outras mulheres indígenas, ribeirinhas,
pescadoras, peconheiras, roceiras, sindicalistas, do movimento social popular,
dentre outras, conforme Sandra Maria Andrade24 e Fernandes (2020). Essas lutas,
24 Mulher Quilombola, Quilombo Carrapatos da Tabatinga, Bom Despacho, Minas Gerais. Brincante
do Moçambique, técnica de Contabilidade e cozinheira aposentada, é membro fundadora da
Federação das Comunidades Quilombolas de Minas Gerais (N’Golo) e coordenadora executiva da
CONAQ.
23 Mulher Negra, militante, pesquisadora, autora e colunista no tema feminismo negro no Brasil. É
professora assistente na Universidade Federal da Bahia.
13
por possuírem objetivos comuns, podem se aproximar da práxis das lutas
ecofeministas, por exemplo, no campo da agroecologia, e luta em Rede (COSTA,
2019), de forma a se fortalecerem ainda mais.
Mulheres quilombolas na amazônia tocantina paraense: experiências que se
aproximam da práxis ecofeminista interseccional
As Mulheres Quilombolas e suas lutas têm nos possibilitado construir
reflexões sobre o que são, como vivem, o que pensam, como e por que se
organizam. Isso tem conduzido vários debates no sentido de ampliar, inclusive, o
conceito de Interseccionalidade, conforme Andrade e Fernandes (2020, p. 121) “[...]
classicamente utilizado para demonstração das implicações entre as categorias
gênero, raça e classe e como elas podem influir sobre as mulheres negras”. Desse
modo, considerando também o fator etnia como nos sugere González (1979),
torna-se possível abordar os casos das mulheres quilombolas e indígenas e outras
mulheres de povos/comunidades tradicionais25, que, aos seus modos, também, se
opõe às tentativas de aniquilamento socioeconômico-cultural do capitalismo e,
portanto, podem ser compreendidas como lutas-resistência, constituídas como
aproximações com a luta ecofeminista.
Contudo, vale ressaltar que a relação mulher quilombola-natureza é antes de
tudo ação histórica de si mesmas, ou seja, é anterior a qualquer conceito, inclusive
de ecofeminismo, pois são práticas centenárias com mais de trezentos anos de
existência e, portanto, seus saberes construídos na produção da vida podem ser
considerados como a própria base do que é pensado, falado, praticado e
compreendido através do conceito ecofeminista. Por isso,
Ao analisar o histórico de lutas locais contra a destruição do meio
ambiente ao redor do mundo, as mulheres sempre aparecem na
linha de frente e em maior número, mesmo quando não são
reconhecidas como principais lideranças. A luta das mulheres
indianas no Movimento Chipko pela proteção das suas florestas; a
resistência das campesinas bolivianas contra o processo de
privatização das águas que ficou conhecida como a guerra da água
25 De acordo com o Decreto Presidencial nº. 6.040/2007, são: “[...] grupos culturalmente diferenciados
e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e
usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa,
ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela
tradição” (BRASIL, 2007, s/p.).
14
no país; a mobilização das mulheres em Altamira contra a construção
da barragem de Belo Monte; e a experiência das mulheres quenianas
em torno do Movimento Cinturão Verde, são alguns exemplos de
como, a partir dos seus diferentes contextos, as mulheres,
especialmente em áreas periféricas e rurais, comunidades
tradicionais e povos originários do Sul Global, constroem laços de
solidariedade e mobilização social que se mostram centrais na luta
pela justiça socioambiental, ao apontarem a relação entre a
mercantilização da natureza e da vida e as desigualdades de gênero.
As ações coletivas levadas a cabo no Brasil através dos movimentos
de mulheres campesinas e da agroecologia apontam para propostas
éticas, epistemológicas e políticas atravessadas por debates
ecofeministas, agroecológicos e descoloniais na construção de
feminismos campesinos, quilombolas, indígenas, comunitários,
periféricos e populares (COSTA, 2019, p. 157).
Tais experiências demonstram a historicidade e ancestralidade que pulsa nas
veias de diversas formas e que construíram e ainda constroem processos que,
embora não sejam visibilizados como ecofeministas, são lutas muito anteriores.
Talvez não convenha nomeá-las como ecofeminismos e nem com qualquer outro
nome que as remeta a “ismos”, mas como “outras” lutas por justiça
sociocultural-ambiental. Daí que, cuidadosamente pensadas como aproximações
com a luta ecofeminista, cabe-nos pensar como fios de vida que se cruzam tal qual
uma teia de aranha, em que linha e nó, unidos, tornam-se “comuns”, ou melhor,
alternativas de “produção do Comum”, conforme Gutierrez e Navarro (2019).
Em termos práticos: como podemos perceber essas aproximações?
Apresentamos a seguir alguns elementos que, pensados de forma integrada, podem
apresentar evidências e responder tal indagação: Primeiro, quando o ecofeminismo,
pensado e praticado age em razão do “cuidar do outro” se aproxima da luta das
mulheres quilombolas, pois cuidar do outro é, como nos diz a jovem mulher
quilombola 3 (2018), “um saber que aprendemos com a comunidade”, isto é, cuidar
do outro faz parte da identidade quilombola.
Segundo, quando o ecofeminismo luta contra relações humanas em que, de
uma forma ou de outra, um se põe superior ao outro, portanto, posiciona-se contra a
hierarquia, por exemplo, em termos econômicos, em que os homens, por terem
salários maiores que as mulheres, acabam sendo superiores. Isso vale também
para mulheres que assumem posições hierárquicas e acabam também oprimindo o
outro, ou seja, põem seu companheiro ou companheira em condição de opressão.
15
A luta das mulheres quilombolas existe desde as primeiras formações dos
quilombos, quando elas lutaram por seus espaços de liberdade para manifestarem
sua religiosidade, sua liderança de organização e, em lutas atuais, procuram ocupar
seus espaços na universidade, na escola, na igreja, na família, cargos de chefia e
liderança nas associações quilombolas, mesmo que isso lhes exija, em alguns
momentos, entrar em conflito com os próprios companheiros, conforme verificado
por Pinto (2010).
Terceiro, quando a luta ecofeminista mobiliza mulheres negras e mulheres
não negras a se unirem em defesa da vida dos rios, do direito à água e constrói
ações como as que têm ocorrido na região do Baixo Tocantins no Pará que, em
unidade com vários outros movimentos sociais populares, opõem-se ao Projeto
Hidrovia Araguaia-Tocantins e se aproximam das lutas das mulheres quilombolas.
No que se refere à experiência específica das Mulheres Quilombolas da
Amazônia Paraense, ao possuir visão de natureza como parte do corpo humano e
na defesa do rio que alimenta sua comunidade, diz: “[...] nossa Comunidade
Quilombola São José de Icatu será muito afetada, pois o nosso rio é braço, é parte
do Rio Tocantins e com a hidrovia esse braço vai secar e nós vamos sofrer muito”
(MULHER QUILOMBOLA 5, Anotações de Campo, 2021).
Isso demonstra um pouco do panorama de como as ações do projeto do
agronegócio na região afetam diversas comunidades. Esse braço do Rio Tocantins,
como ela nos traz, chamado Rio Icatu, alimenta outras comunidades ribeirinhas além
da comunidade à qual ela pertence, exigindo com isso que as ações em defesa dos
rios sejam coletivas, ou seja, com a compreensão de que a relação natureza-mulher
é uma relação de corpo inteiro, logo, necessita de outros braços, outros corpos
afetados, de outros povos/comunidades tradicionais, para transformar essa
realidade.
Assim, essas ações ocorrem através de várias reuniões, encontros de
formação, seminários, audiências públicas, caravanas e fechamentos de estradas,
como pode ser verificado em sites26 de organizações como a CUT (Central Única
26 Ver sites disponíveis em:
https://mab.org.br/2022/01/31/caravana-em-defesa-do-rio-tocantins-denuncia-impactos-de-hidrovia-no
-para/;
https://www.cut.org.br/noticias/hidrovia-araguaia-tocantins-repete-os-erros-do-passado-e-prejudica-po
pulacoes-lo-2ab0;
16
dos Trabalhadores) e MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), bem como,
em falas proferidas pela mulher quilombola 4, durante a gravação de vídeo27, em
caráter de denúncia sobre mais esse grande projeto do agronegócio, que não
respeita o entendimento de que
[...] o rio, a terra, têm função social na vida das trabalhadoras e dos
trabalhadores e os impactos gerados pelos grandes
empreendimentos, que se imperam na região, têm impacto direto e
indireto, levando a dissociar a cultura, dissociar os costumes do que
a população está acostumada a vivenciar, levando aos conflitos,
desigualdades sociais para as periferias, para o campo, mas
também, para a vida integral das pessoas. O modo de se alimentar, o
modo de viver, passa a ser interrompido, pois os grandes projetos
não respeitam quem mora, quem depende do meio social, do meio
ambiental. Os impactos são irreparáveis a vista do que nós
vivemos com outros impactos, de outros grandes projetos: da
monocultura, dos grandes portos, das hidrovias, ferrovias. Por isso,
para nós é fundamental se contrapor a um projeto que visa o lucro,
para defender o nosso projeto que defende a vida (ANOTAÇÕES DE
CAMPO, 2021).
Diante de todos esses elementos, os valores da mulher quilombola, em
termos de luta, se aproximam do ecofeminismo no cuidar do outro, na luta contra
hierarquias patriarcais e na luta contra os grandes projetos do agronegócio, ou seja,
contra o projeto de sociedade capitalista-colonialista. Assim, no ato da ação, como
nos diz Luxemburgo (2018), as mulheres quilombolas se tornam seres de
experiência histórica, pois, conforme mulher quilombola 4 (2021), o projeto que as
representa é o projeto a favor da Vida.
A partir dos interesses em disputa do Agronegócio e Povos/Comunidades
Tradicionais na Amazônia, o quarto ponto a se considerar na aproximação da luta
das mulheres quilombolas com o ecofeminismo é o que se refere à luta pelo direito
de produzir outras economias, outras agriculturas efetivamente sustentáveis,
baseadas no que foi e é aprendido com a práxis das próprias comunidades/povos
tradicionais a exemplo do ato das mulheres quilombolas em conseguir preservar,
cuidar e melhorar sementes, tornando-as guardiãs desse processo. Cultivar é uma
27 Vídeo produzido e apresentado para fins do Movimento Social Popular Quilombola e acadêmico em
evento internacional realizado através do GEASUR/UNIRIO, em setembro de 2021. Pode ser
acessado em https://www.youtube.com/watch?v=EgWmBcN9ZpI&t=9343s e
https://www.youtube.com/watch?v=oOBtfIjeCaI
https://www.cnbb.org.br/caravana-fluvial-em-defesa-do-rio-tocantins-passa-por-11-municipios-e-comu
nidades-locais-que-devem-ser-afetados-com-as-obras-de-construcao-da-hidrovia-araguaia-tocantins/
17
prática cultural dos povos/comunidades tradicionais e “preservar suas próprias
sementes, sementes de vida, que trazem uma carga do passado no presente e, ao
mesmo tempo, lançam uma ponte para o futuro (ALMEIDA, 2020, p. 151)”, é um ato
educativo, reproduzido de geração e geração. Valéria Pôrto dos Santos28 nos diz
que:
O saber tradicional traduzido nas práticas e fazeres das mulheres
quilombolas, a exemplo do conhecimento das plantas medicinais,
evidencia um diálogo profundo com os princípios agroecológicos. As
mulheres quilombolas investem na agroecologia porque esse
conhecimento muitas gerações é repassado entre elas; por isso,
muitas apresentam uma habilidade indiscutível na atividade. É
preciso entender as demandas dessas mulheres, que valorizam o
autoconsumo, que são responsáveis pela alimentação de toda
família, a partir dessa atividade e desempenham um papel relevante
no que se tem denominado economia solidária (2020, p. 139).
Neste sentido, o ecofeminismo, ao defender outras formas de produzir a vida,
com base nos princípios da agroecologia e economia solidária praticados pelos
movimentos sociais populares, aproxima-se das lutas das mulheres quilombolas,
pois essa é uma luta fundamentalmente entre projetos antagônicos. E a mulher
quilombola 2, em 2018, alertava-nos sobre esse antagonismo ao perceber que o
“trabalho pro outro”, ou seja, o trabalho nos moldes capitalistas é diferente do que a
comunidade produz. Como a monocultura da pimenta-do-reino, introduzida na região
de forma intensiva a partir da década de 1970, afetou as comunidades tradicionais,
como observado por ela a nos dizer:
a pimenta-do-reino, eu achei que mudou até assim... No serviço da
gente, se a gente quiser entrar oito horas a gente entra, se a gente
quiser sair nove a gente sai, e é assim que é, e no do outro não, você
vai entrar sete horas/sete meia, sai meio-dia e de entra uma e
meia/duas horas... (MULHER QUILOMBOLA 2, 2018).
Essa é uma expressão qualitativa de que o trabalho para o agronegócio “não
produz a comunidade” como nos disse a mulher quilombola 1 (2018), pois o trabalho
que produz as comunidades e povos/tradicionais é o trabalho em mutirão, que pode
ser chamado pelo povo quilombola de muxirum, cunvidado ou putirum,
28 Mulher quilombola do Quilombo Pau D’arco e Parateca, em Malhada, Bahia. Graduada em
Engenharia Agronômica pela Universidade do Estado da Bahia e mestre em Sustentabilidade junto a
Povos e Terras Tradicionais pela Universidade de Brasília (DEALDINA, 2020).
18
“[...] é uma forma de trabalho coletivo caracterizado pelo sistema de
troca de dias; na região do Tocantins ganhou regras ritualizadas de
antigos quilombos que tinham por finalidade celebrar e partilhar em
grupos tarefas dos trabalhos das roças, principalmente as do plantio
da roça de mandioca (PINTO, 2007, p. 42).
Assim, “[...] os mutirões quilombolas configuram-se como trabalho que se
opõe ao trabalho nos pimentais29, pois é colaborativo, festivo, criativo e os definiu e
os define até o tempo histórico presente, em organização como comunidade
quilombola [...]” (MIRANDA, 2019, p. 27). Compreendido como prática de trabalho
coletivo, o mutirão tem se ressignificado na luta das mulheres quilombolas.
Isso base para o quinto elemento sobre as aproximações que estamos
tratando, isto é, quando o ecofeminismo se propõe a lutar pelas organizações de
mulheres em Rede, aproxima-se da luta das mulheres quilombolas. Com base na
prática do trabalho em mutirão, elas têm procurado atuar na Rede Comunitária
Agroecológica de Mulheres Quilombolas em Mocajuba/PA, como pode ser verificado
em vídeo disponível no Youtube30, em que, dentre as diversas ações em prol de
fortalecer as mulheres, tem a experiência de geração de renda através de Feira
Comunitária, Cultural e Agroecológica de Mulheres Quilombolas.
Osexto elemento que desponta em aproximação da luta das mulheres
quilombolas com a luta ecofeminista se configura na luta por políticas públicas
afirmativas, tanto em termos de elaboração quanto de implementação. As mulheres
compreendem que nada para os povos/comunidades tradicionais pode ser
construído sem a participação dos mesmos, ou seja, que se respeitar e
considerar sempre a consulta prévia e esclarecida, de acordo com o que prevê a
Convenção 169 (2011), no sentido de se construir esses processos com e não para
os povos/comunidades tracionais.
À medida em que o ecofeminismo também se propõe a esse debate,
aproxima-se da luta das mulheres quilombolas por educação pública, saúde pública,
saneamento básico, agroecologia, geração de renda, energia elétrica de baixo custo,
internet pública, lazer, segurança pública, enfim, contribui na construção de
alternativas para outro mundo possível.
30Trata-se de canal chamado “Putirum Quilombola”, disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=yDMQEvg2v-s
29 Tratam-se de monocultivos de pimenta-do-reino.
19
Assim, as experiências das mulheres quilombolas entrelaçam-se a outras
lutas, da mesma forma como as mulheres indianas abraçam suas árvores em defesa
da vida. E dessa maneira, como o próprio ato de abraçar árvores, as mulheres de
todo o mundo têm se abraçado ao lutarem por seus territórios. Suas bandeiras de
luta unem-se às bandeiras de outras mulheres oprimidas e expressam lutas pelo
Comum, pois não lutam por si mesmas apenas, mas pelo coletivo, em diversos
espaços sindicatos, associações, partidos, igrejas. Essas bandeiras de lutas são
pelo direito à água, direito à floresta, direito ao trabalho, à soberania alimentar,
saúde, educação, direito e justiça, fundamentais à vida e resistência de seus
territórios compostos de humanos e não humanos. E lutam porque na “escola da
experiência”, como diz Rosa Luxemburgo (2018, p. 24) aprenderam, por exemplo,
que
[...] a Amazônia é palco de grandes disputas pelo Capital
internacional, pelos interesses e isso tem gerado para nós grandes
conflitos. De um lado os interesses do Capital, os interesses do
Agronegócio, dos empreendimentos e do outro o povo, o território, o
povo social, que quer manter a sua cultura, manter a dignidade em
seus territórios. (MULHER QUILOMBOLA 4, 2021, Anotações de
Campo).
Na Amazônia, as Mulheres Quilombolas enfrentam a seus modos o
patriarcado capitalista que define a natureza como matéria morta e as mulheres
como passivas. Portanto, são lutas que apontam aproximações teórico-práticas
interseccionais e ecofeministas. Lutas que se aproximam, se entrecruzam, por
compreender a fundamental e necessária razão do que é a Amazônia, expressa em
poema31:
Amazônia
Nossa Amazônia
Dos rios e seus afluentes
Dos furos e igarapés
Belas águas e nascentes
Amazônia
Ensinar da floresta
Mulheres quilombolas
Anciães, ribeirinhas
Indígenas, originárias
31 Poema recitado em evento internacional do GEASUR (Grupo de Estudos em Educação Ambiental
desde el Sur): Educação Ambiental de Base Comunitária e Ecologia Política na América Latina,
outubro de 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/results?sp=mAEB&search_query=Geasur
20
Campesinas, citadinas
Amazônia
Dos não-humanos
Árvores, ar
Água, fogo
Odoya, Nanã, Oxum
Curupira
Cabocla Jurema
Pássaros, peixe, boto
Amazônia
Queimada, estuprada
Seu gemido nos ensina
Clama, grita, chora
Agronegócio
Exclui, lucra, acumula
Salva-me Caipora
Amazônia
Nosso espaço de liberdade
De reaprender a ser e transformar
É necessário nos parir de novo
Fortalecer a economia do povo
Produzir vida, amar e se reflorestar
Amazônia
Nosso tempo, nossa luta
Nossos trabalhos, nossa existência
Somos seus filhos e proclamamos
És nossa rainha
Nossa luta, resistência!
(MIRANDA32 e COSTA33, 2021).
Eis a síntese do que precisamos reconhecer, tornar visível: as Mulheres
Quilombolas em toda sua plenitude. Evidenciá-las em todos os espaços é abrir
caminhos para outras economias, outras políticas, outras filosofias, outras ciências,
para além do capitalismo. O ecofeminismo também desponta como possibilidade,
não como fim em si mesmo, mas como alternativa para o que acreditamos ser o
mundo para além do capitalismo, sem opressão de nenhum gênero sobre outro
gênero, muito menos de humanos sobre não humanos. Precisamos do equilíbrio,
necessário e urgente para que continuemos a viver e morrer bem!
33 Mulher preta, quilombola, nascida, criada e residente no Quilombo São Benedito do Vizeu,
Segundo Distrito de Mocajuba, Pará. Valdirene Rodrigues Costa atua como Secretaria da
Coordenação de Formação da Educação Escolar Quilombola, Secretaria de Educação, Município de
Mocajuba/PA.
32 Mulher Preta, autora 1 desse artigo, aquilombada, vive a experiência de comunidade quilombola
desde 2012, no Território Tambaí-Açu, Mocajuba/PA.
21
Para continuar pensando-fazendo...
Procuramos, neste artigo, evidenciar as aproximações teóricas e práticas
entre as lutas das mulheres quilombolas da Amazônia Paraense com as lutas
ecofeministas. Na busca da realização desse propósito, compreendemos que
havemos de sermos cuidadosas ao tentarmos trazer conceitos estabelecidos para
se pensar experiências centenárias construídas inclusive em resistência ao
colonialismo em sua gênese, operado por europeus.
Ao olhar por essa ótica, precisamos ser cautelosas para não cairmos nas
armadilhas, como nos diz Shiva (2003), do monocultivo do saber, procurando
intersecções entre lutas feministas e lutas de mulheres quilombolas. De tal modo
tomadas pelo que nos diz a epígrafe deste artigo e da certeza de que a “boiada não
passará”, trazemos algumas considerações sobre o que é o tempo “tempo da
piracema, tempo do florir, o tempo do fruto...” conforme nos disse a mulher
quilombola 1 (87 anos) do Quilombo Tambaí-Açu, Mocajuba, Amazônia Paraense,
para continuarmos problematizando o que o tempo das experiências das mulheres
quilombolas tem a nos ensinar sobre essas questões que nos oprimem, inclusive no
campo da ciência.
Nesse sentido, como pensar no tempo diante de tantas investidas, que vão de
ações aparentemente sutis, tentativas de produzir silenciamentos de mulheres
através de ideologia moral, éticas colonizadas, reproduzidas em todos os espaços
da sociedade por meio das ações mais perversas e violentas, operadas em casos de
feminicídios que apagam corpos, identidades e sentimentos?
Afinal, o que é o tempo se não temos o direito de viver e morrer bem? O que
é o tempo para quem não tem paz? O que é o tempo para quem tem fome de
justiça? Tempo de espera ao qual se refere a mulher quilombola 1. Espera! Ela tenta
nos dizer. Tudo tem seu tempo, é o que nos ensina. Mas, temos tempo para
esperar? O tempo tem respeitado o nosso tempo?
As Mulheres Quilombolas têm cadenciado seu tempo, tempo de viver, tempo
de lutar, tempo resumido em tempo, de que toda hora é hora de luta. O
tempo-espaço dos Quilombos são as próprias mulheres, essa é a mensagem que
fica, para continuarmos pensando, problematizando. Os corpos das Mulheres
22
Quilombolas estendem seus territórios e o ecofeminismo se desponta em “outras”
cores, “outras” formas.
E, para não finalizarmos com afirmações, pois a história precisa continuar sua
caminhada, perguntamos, provocadas pelo que nos afirma Gonzalez (2011 p.14): “o
feminismo latino-americano perde muito da sua força ao abstrair um dado da sua
realidade que é de grande importância o caráter multirracial e pluricultural das
sociedades dessa região”, ou seja, o que estamos a perder ao desconsiderar os
“outros” feminismos, a exemplo dos que estão presentes na Amazônia? O que
pensam as Mulheres Quilombolas sobre feminismo? De que forma o pensar-fazer
ecofeminista socialista pode contribuir com as lutas de caráter multirracial e
pluricultural?
Na busca incessante pela vida e sabedoras de que não neutralidade na
ciência, ficamos na espera infinita do tempo que a Mulher Quilombola 1 aprendeu
com seus ancestrais e, através das diversas outras vozes que ecoam essa mesma
força, reforçamos: as Quilombolas existem, resistem e, assim como o tempo,
continuam.
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26
V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
ECOPEDAGOGIA NA RELAÇÃO CAPITAL-NATUREZA1
Ivo Dickmann2
Ana Maria de Oliveira Pereira3
Resumo
Este artigo estabelece uma crítica ao atual modelo de vida e produção capitalista, tendo como pano
de fundo a Ecopedagogia. Para isso, discute os dilemas do desenvolvimento sustentável, sua história,
limites e possibilidades, após apresenta a dialética do trabalho na relação entre seres humanos e
natureza e, num último momento, trata a questão da formação humana e da práxis docente
relacionado aos princípios da Ecopedagogia para repensar uma nova mentalidade socioambiental. Ao
final, elenca um conjunto de considerações indicativas que se apresentam como resultado da reflexão
ecopedagógica em diálogo com as teorias críticas da educação e da sociedade.
Palavras-chave: Natureza; Capital; Trabalho; Ecopedagogia.
ECOPEDAGOGÍA EN LA RELACIÓN CAPITAL-NATURALEZA
Resumen
Este artículo establece una crítica al actual modelo de vida y producción capitalista, teniendo como
trasfondo la Ecopedagogía. Discute los dilemas del desarrollo sustentable, su historia, límites y
posibilidades, luego presenta la dialéctica del trabajo en la relación del ser humano con la naturaleza
y, en último momento, trata el tema de la formación humana y la praxis docente. relacionados con los
principios de la Ecopedagogía para repensar una nueva mentalidad socioambiental. Al final, enumera
un conjunto de consideraciones indicativas que se presentan como resultado de la reflexión
ecopedagógica en diálogo con las teorías críticas de la educación y la sociedad.
Palabras clave: Naturaleza; Capital; Trabajo; Ecopedagogía.
ECOPEDAGOGY IN THE CAPITAL-NATURE RELATION
Abstract
This article establishes a critic to the current standard of capitalist life and production, having
Ecopedagogy as background. For that reason, dilemmas about sustainable development are
discussed, as well as its history, limits and possibilities, followed by an introduction to the working
dialectic in the relation between human beings and nature and, at last, the issue of human training and
teaching practices related to the principles of Ecopedagogy is addressed for the purpose of rethinking
a new socio-environmental mentality. Finally, a set of indicative observations is elected as a result of
the ecopedagogical reflection in dialogue with the critical theories of education and society.
Keywords: Nature; Capital; Work; Ecopedagogy.
3Doutora em Diversidade Cultural e Inclusão Social pela Universidade FEEVALE (Brasil) e
pós-doutora em Educação com ênfase em Ecopedagogia pela Universidade Comunitária da Região
de Chapecó - Unochapecó. Professora Adjunta na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS).
E-mail: anamaria.oliveira08@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4184522973273476.
ORCID: http://orcid.org/0000-0001-6276-4282.
2Doutor em Educação pela UFPR e pós-doutor em Educação pela Uninove-SP. Professor do
Mestrado em Educação e do Mestrado e Doutorado em Ciências da Saúde da Universidade
Comunitária da Região de Chapecó - Unochapecó. E-mail: educador.ivo@unochapeco.edu.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1472497660681364. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6293-8382.
1Artigo recebido em 02/06/2022. Primeira avaliação 26/07/2022. Segunda avaliação em 05/08/2022.
Aprovado em 20/09/2022. Publicado em 10/11/2022. . DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.54.759.
1
Primeiras palavras…
O presente texto apresenta uma reflexão de cunho teórico, onde se procura
articular as questões que relacionam a natureza e a reprodução social da vida, tanto
a humana como as demais existentes no Planeta. Nesta seara, o eixo condutor do
diálogo que se pretende é a Ecopedagogia em uma perspectiva de reinvenção,
construindo novas abordagens e sinalizando que essa questão é atual e pertence ao
processo de aproximação de novas temáticas emergentes.
Tomando o capital como resultado da acumulação alienada do trabalho
humano que, por sua vez, se caracteriza como a ação humana no mundo para
transformá-lo, não se torna possível entendê-lo desconectado das questões
socioambientais, especialmente se percebermos o impacto ambiental e degradação
causados nos últimos anos com o advento das mais elaboradas formas de
exploração humana, em específico, e da natureza, em geral. Nesse sentido,
pretendemos estabelecer um diálogo profícuo entre os aspectos sociais e
ambientais tomando como base de referência a teoria crítica de educação e
sociedade, percebendo o metabolismo social como parte integrante da totalidade do
real-natural, e superar o mito da natureza intocada, como o lugar bucólico e puro,
mas como resultado da história natural, que tem como parte integrante a
humanidade como sua constituinte e constituidora.
Para tal tarefa traçamos um itinerário que perpassa três questões centrais:
num primeiro momento discutiremos os dilemas do desenvolvimento sustentável
tomando como base seu histórico, limites e possibilidades; depois trataremos da
dialética que caracteriza a relação dos seres humanos com a natureza em vista da
reprodução de todas as formas de vida no planeta e, por fim, tratamos da questão
da formação humana que se inter-relaciona com a práxis docente - sempre tendo
como pano de fundo dessas reflexões a Ecopedagogia como fundamento crítico
radical para repensar uma nova mentalidade socioambiental na construção de uma
nova civilização, mais justa, solidária e sustentável.
Dilemas do desenvolvimento sustentável
É inadiável a mudança de visão não em relação à semântica da palavra
“desenvolvimento” como também o que representa para o Planeta. Quando se fala
2
em preservação ambiental, logo vem em mente o desenvolvimento sustentável, a
Agenda 21 e outras memórias que estão armazenadas em nosso consciente e
subconsciente, e que remetem às questões socioambientais. Mas afinal, o que é
desenvolvimento sustentável? Que relação o desenvolvimento sustentável tem com
a sociedade capitalista neoliberal? Como a Ecopedagogia pode contribuir para uma
maior consciência de que estamos vivendo uma convulsão ambiental e vivemos
decorrências irreversíveis das diversas formas de intervenção humana causadoras
dos desequilíbrios dos ecossistemas?
A humanidade vem em um processo descontrolado de utilização dos
recursos disponíveis na natureza que se intensificou após a Revolução Industrial
que teve início no Século XVIII na Europa, e se espalhou pelos demais continentes,
não de forma igualitária economicamente e nem em relação à exploração ambiental.
As expressões dos impactos socioambientais são diversas e têm como fonte a
exploração dos recursos naturais para a produção da acumulação de riqueza via a
alienação do trabalho (ENGELS, 2004).
Em nome do “desenvolvimento econômico” que possibilite a inserção na
sociedade globalizada, alguns governantes redimensionam e manipulam a
legislação ambiental dos seus países de acordo com os interesses do Mercado.
Dessa forma, colocam em risco uma possível sustentabilidade dos recursos naturais
não-renováveis disponíveis em seu território bem como a desestruturação cultural e
a intensificação da desigualdade social. O conceito de desenvolvimento,
amplamente veiculado, tem relação aos aspectos econômicos de progresso, “[...] foi
utilizado numa visão colonizadora, durante muitos anos, na qual os países do globo
foram divididos entre ‘desenvolvidos’, ‘em desenvolvimento’ e ‘subdesenvolvidos’,
remetendo-se sempre a um padrão de industrialização e de consumo” (GADOTTI,
2000, p. 59-60).
É sabido que isso de fato é uma divisão feita pelos países centrais e que está
a serviço de uma exploração maior dos recursos econômicos, sociais e naturais dos
países em desenvolvimento e subdesenvolvidos, pelo poder econômico dos países
desenvolvidos, gerando submissão e novas formas de colonização. Além disso,
juntamente com a degradação ambiental, é notável o aumento da violência, da
periferização e marginalização das comunidades negras, tradicionais, ribeirinhas,
indígenas, autóctones, da homofobia, xenofobia, aporofobia, misoginia, resultado de
3
um conjunto de normas e condutas sociais excludentes que não se considera ao
pensar a sustentabilidade do desenvolvimento.
No que tange aos Direitos Humanos fundamentais é premente o descaso com
o acesso precário à saúde, como evidenciado na pandemia de COVID-19, a falta de
emprego digno e bem remunerado, os problemas decorrentes da falta de habitação
adequada, a acessibilidade e a mobilidade urbana, a produção e distribuição de
alimentos e o direito a um meio ambiente saudável e garantidor da vida, sendo que,
por outro lado, vemos esse mesmo modelo neoliberal de desenvolvimento, aumentar
a concentração de renda e multiplicar a riqueza de poucos, contribuindo para o
aumento da miséria de muitos nos países “desenvolvidos” e em todo o mundo de
forma cada vez mais desigual.
Nesse momento em que é possível observar e sentir a agonia do Planeta,
urge a necessidade de constituir uma visão menos predatória e mais Ecopedagogia,
menos economicista e mais humanista do desenvolvimento que se deseja.
Precisamos aprender a conviver entre nós humanos e com os demais seres, dentro
dos limites da Terra. Aqui emerge a ideia de um retorno aos modos de vida
sustentáveis dos povos primitivos em sua relação com a natureza, que respeitavam
os ciclos e a resiliência do Planeta, em vista do estabelecimento de princípios
orientadores para nosso atual e futuro modo de vida, produção e consumo, de modo
especial considerando aspectos relativos a ancestralidade e tradicionalidade
(LOUREIRO, 2019).
Partindo desses princípios, procura-se trazer à discussão algumas
problematizações feitas nesta seção sobre o desenvolvimento sustentável e suas
relações com a sociedade capitalista neoliberal, além das contribuições da
Ecopedagogia, nesse processo de reinvenção, para problematizar essas questões.
No início da década de 1980 do século XX, inicia-se a difusão do conceito de
“desenvolvimento sustentável”, primeiramente na Assembleia Geral das Nações
Unidas em 1979 e algum tempo depois, no relatório de Brundtland, conhecido
também com o nome “Nosso Futuro Comum” de 1987 (COMISSÃO, 1991). O termo
traz em sua gênese a ideia de garantia da satisfação das necessidades presentes
das sociedades, sem comprometer as demandas das futuras gerações, sem
estabelecer um questionamento do atual modelo de reprodução da vida
insustentável, ou seja, por um lado estabelece o que é sustentabilidade, mas
contraditoriamente, não critica o modelo insustentável. Isso acontece porque não
4
são construídos critérios específicos para elencar quais são as necessidades que
serão supridas, visto que no modelo atual para supri-las alguns países precisariam
estar em um planeta até quatro vezes maior (EARTH OVERSHOOT DAY, 2022).
Nesse tempo, que ultrapassa quarenta anos, as discussões e interpretações
em relação à sustentabilidade do desenvolvimento avançaram, porém, ainda não foi
possível um consenso de que a natureza tem recursos finitos, que o termo
“desenvolvimento sustentável” vai além da proteção e preservação ambiental.
Refere-se ao tripé economia-ambiente-sociedade em sua relação complexa, que
dificilmente é harmônica, muito mais percebida e entendida num equilíbrio dinâmico.
Conforme o diretor do Conselho Metropolitano de Helsinque, capital da Finlândia:
“[...] desenvolvimento sustentável significa usarmos nossa ilimitada capacidade de
pensar em vez de nossos limitados recursos naturais”. (KRANZ, 1995, p. 13).
Quadro 01 – Características da cultura da sustentabilidade
Características
Percursos
Promoção da vida na cotidianidade
É a vida que conduz o desenvolvimento
sustentável, o planeta é vivo e as ações
precisam ser coerentes com a vida, para que se
possa gerar mais vida.
Agir de maneira ética
O ser humano precisa entender que todas as
suas ações geram reações, por esse motivo é
necessário a preocupação com as
consequências das suas ações sobre os outros.
Equilíbrio Dinâmico
Esse equilíbrio se a partir do respeito a
sabedoria da natureza. O desenvolvimento
econômico deve levar em conta a preservação
ambiental/social em uma dimensão ética.
Convergência Harmônica
A perspectiva de convivência entre todos os
seres do planeta formando uma teia de
conexões, cada um sentindo-se parte do todo.
- Intuição e razão
Equilíbrio entre a intuição e a razão para que se
estabeleça uma cultura de sustentabilidade em
detrimento à cultura tecnicista que gera um
desenvolvimento desequilibrado, como é
possível perceber na economia contemporânea.
Visão integral do indivíduo
Também conhecida como visão holística, que
possibilita a perspectiva do todo e das partes,
porém com o entendimento de que o todo não é
a soma das partes. Existe a dinâmica das
relações das partes para formar o todo, que tem
ligação com regulação, autogeração e
organização dos sistemas. O planeta é dinâmico
e as partes se relacionam entre si para formar o
todo.
Consciência planetária
Essa consciência proporciona aos seres
humanos o reconhecimento de pertencimento ao
planeta e a possibilidade de viver em harmonia.
Assim será possível ter o entendimento do
planeta como nossa casa.
Fonte: Adaptado de Gutiérrez e Prado, 2013, pelos autores.
5
Nessa mesma perspectiva, porém, apontando alguns caminhos, Prado e
Gutiérrez (2013), no livro Ecopedagogia e Cidadania Planetária, apresentam
características possíveis de promover uma cultura da sustentabilidade. No quadro a
seguir observar-se as características vislumbradas pelos autores e os potenciais
percursos para a efetivação desta cultura.
A sustentabilidade, não é uma palavra da moda, que chefes de Estado e
alguns economistas gostam muito de usar, é uma necessidade da humanidade para
poder prosseguir por mais tempo no planeta. As características apresentadas,
também levam a uma “sociedade sustentável”. Ambos os termos estão interligados,
não é possível imaginar um desenvolvimento sustentável sem uma sociedade
sustentável. Porém, esse entendimento de sustentabilidade não se relaciona à
sociedade de consumo, resultado de uma economia capitalista neoliberal, a qual não
está preocupada com a finitude dos recursos naturais disponíveis e sim com o lucro
proveniente da exploração de recursos e pessoas.
Para Gadotti (2000, p. 64):
Não resta dúvida de que esta concepção de desenvolvimento coloca
em xeque o consumismo do modo de produção capitalista, principal
responsável pela degradação do meio ambiente e pelo esgotamento
dos recursos materiais do planeta. Esse modelo de desenvolvimento,
baseado no lucro e na exclusão social, não distancia cada vez
mais ricos e pobres, países desenvolvidos e subdesenvolvidos,
globalizadores e globalizados. Na era da globalização, o capitalismo
está criando, em escala mundial, um ambiente favorável ao
surgimento de alternativas políticas regressivas e antidemocráticas
que se aproximam do fascismo.
Alternativas estas, possíveis de constatar em todos os países, dos mais
desenvolvidos economicamente aos com menores índices de desenvolvimento, e
que exigem da população restrições no que diz respeito a saúde, educação e
moradia para sanar dívidas de financiamentos e hipotecas com altos juros.
Reduções também nos auxílios sociais, dificultando ainda mais a sobrevivência dos
invisíveis às vistas do capitalismo, mas que sofrem suas consequências.
Quando se fala em preservação dos recursos naturais do planeta é possível
constatarmos o quão consumista e predatória do ambiente é a sociedade do século
XXI. Em dados obtidos através de observação de satélites realizadas pela Agência
Espacial da Europa (ESA) no mês de Março de 2020 na Europa, foi possível
constatar uma drástica diminuição de poluentes na atmosfera. Isso devido ao
6
período de quarentena, motivado pelo espalhamento mundial do vírus SARS-CoV-2,
causador da doença denominada COVID 19, implementado no continente que
reduziu as atividades econômicas e a circulação de veículos.
Através da observação das imagens de satélite pesquisadores conseguiram
constatar diminuição de dióxido de nitrogênio (NO2), gás altamente tóxico que
resulta da queima de combustíveis fósseis, entre 40% e 50% no início do
confinamento, em março de 2020 especialmente na Itália França e Espanha (ESA,
2020). No Brasil, conforme pesquisa realizada por Eduardo Landulfo, pesquisador
do CELAP, financiada pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo) houve diminuição de 33% na emissão do NO2na região metropolitana de
São Paulo (ZIEGLES, 2020).
Estes dados corroboram o que viemos dizendo até aqui sobre a relação da
sociedade consumista com a insustentabilidade do planeta. Em poucos dias de
confinamento parcial foi possível uma redução de até 50% dos poluentes nos
maiores centros industriais e urbanos dos países. Isso evidencia a gravidade da
poluição ambiental que estamos vivendo e, por consequência, a intensificação do
aquecimento global, com desequilíbrio climático e o agravamento de doenças
respiratórias bem como o surgimento de novos males, comprovando o que Gutiérrez
e Prado (2013) defendem, que é o agir eticamente, ou seja, ter consciência de que
todas as ações geram reações, pois o planeta é um só, não existe fora e dentro,
está tudo enlaçado, enredado na teia da complexidade.
Dialética ser humano e natureza
É utópico realizar leitura referente à crise ambiental somente do “meio físico”,
é necessário o entendimento das relações sociais historicamente produzidas, que
constituem a totalidade, nesta relação dialética entre seres humanos e natureza.
Inexiste separar a história humana e da natureza, pois as condições de existência do
ser humano e da sociedade são retiradas da natureza e se estabelece relação de
dependência (MARX; ENGELS, 2019, p. 14).
Conforme os autores acima é necessário que o homem esteja em condições
de viver, suprir suas necessidades básicas (alimento, água, habitação, vestuário)
para que possa construir a sua história “o primeiro ato histórico é, portanto, a
produção dos meios para satisfazer essas necessidades, a produção da própria vida
7
material” (MARX; ENGELS, 2019, p. 23). Isso tudo em um processo de interação
com a natureza, pois é ali que acontece a simbiose da vida.
Essa produção da vida se também pelo trabalho, um dos conceitos
basilares do pensamento de Karl Marx. Nos diferentes tempos históricos o modo de
produção da vida vai adquirindo características e necessidades conforme
especificidades da sociedade. Com o aumento da população e como consequência
o aumento das necessidades, nas sociedades progressistas, desenvolve-se a
divisão do trabalho que inicia primeiramente com a divisão de força física, para os
diferentes tipos de trabalho e posteriormente a divisão material e intelectual do
trabalho.
Nessa divisão do trabalho, como força produtiva da materialidade da vida,
dá-se a propriedade. Para Marx e Engels a divisão do trabalho é baseada:
na divisão natural do trabalho na família e na separação da
sociedade em famílias individuais, opostas umas às outras, está
dada também, ao mesmo tempo, a distribuição, mais precisamente a
distribuição desigual, quantitativa e qualitativa, do trabalho e seus
produtos, e, portanto, está dada a propriedade, que tem seu
germe, sua primeira forma na família, onde a esposa e os filhos, são
os escravos do homem” (MARXS; ENGELS, 2019, p. 28).
Caracteriza-se assim a primeira condição e disposição de força de trabalho
de outrem, fator importante na divisão do trabalho primeiramente em pequenos
grupos familiares e posteriormente a nível de blocos de países, denominada Divisão
Internacional do Trabalho DIT. Essa divisão foi a maneira que os países
industrializados, tidos como desenvolvidos, encontraram, de inserir os países em
desenvolvimento (fornecedores de matéria-prima e mão de obra barata) na
economia globalizada.
Na primeira condição da divisão do trabalho, a exploração é da mão de obra,
cada indivíduo tem o seu papel na materialização da sua vida. Na DIT, com a
intenção de estimular o desenvolvimento econômico em países periféricos, os
países desenvolvidos exploram a mão de obra e os recursos naturais do país em
questão, aumentando ainda mais as desigualdades entre os blocos de países. Isso
porque, a tecnologia para produção dos bens materiais está com o país
desenvolvido, portanto, o custo é maior e essa tecnologia é condição para que os
países em desenvolvimento produzam os bens referentes ao seu papel na DIT.
8
Em uma leitura crítica do comportamento entre o desenvolvimento econômico
e as questões ambientais, é importante uma análise dialética de como o ser humano
se apropria historicamente da natureza e como suas práticas influenciam a
materialização da vida no presente e no futuro.
A partir do século XX, com o maior desenvolvimento tecnológico, pois a
sociedade industrial estava em pleno processo de expansão mundial, começam a
evidenciar-se fenômenos climáticos até então despercebidos. Estes fenômenos,
como por exemplo, a intensificação do “[...] efeito estufa, passam a significar a
possibilidade do fim da humanidade, provocando suscitações sobre essa
capacidade ilimitada do planeta” (CONCEIÇÃO, 2004, p. 02).
O percurso histórico de acumulação capitalista tem concretização na
exploração colossal dos recursos naturais, que até bem pouco tempo, usava-se
como se fossem inesgotáveis (algumas economias ainda o fazem), sustentando-se
na acumulação ilimitada e de bens, de riqueza e mercadorias se constituindo como a
forma mais letal de esgotamento dos recursos não-renováveis do planeta (LÖWY,
2014). Somente no início da década de 1970 do século XX, iniciam-se discussões e
manifestações acerca dessa exploração. Em 1972, em Estocolmo, na Conferência
das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, o secretário geral da
conferência, Maurice Strong na cerimônia de abertura lança “[...] um movimento de
libertação, para livrar o homem da ameaça de sua escravidão diante dos perigos
que ele próprio criou para o meio ambiente.” (GUSMÃO, 2006, p. 26).
A partir desta conferência, “[...] a sustentabilidade ecológica passa a ser
apresentada como necessidade indispensável diante da situação crítica ambiental,
das reservas naturais e da natureza do planeta.” (CONCEIÇÃO, 2004, p. 05). Os
temas ambientais passam de um patamar de discussão diplomática, para
mobilização mundial, não sem reações contrárias ao discurso de sustentabilidade
ambiental e em defesa de um desenvolvimento econômico e industrial conforme a
lógica do mercado.
Na década de 1990, no Rio de Janeiro, foi realizada a Conferência das
Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (UNCED, sigla em inglês)
no qual participaram representantes de 172 países. No discurso de encerramento da
conferência, o secretário geral Maurice Strong, que também estava a frente da
atividade em Estocolmo em 1972, falou sobre a importância de criar estratégias para
9
promover o desenvolvimento sustentável adequado aos países e reduzir os efeitos
da degradação ambiental (GUSMÃO, 2006).
Nessa conferência, também conhecida como ECO-92, é lançada a Agenda
21, que apresentou propostas para buscar equilíbrio entre o meio ambiente e o
desenvolvimento. Essa agenda, com ênfase na atividade do indivíduo no ambiente,
restringiu possibilidades de críticas ao papel do capital nesse processo. Para
Conceição:
O centro da discussão passa a ser direcionado contra o modo de
produção e de vida dos homens, estes considerados como
responsáveis pela crise do meio ambiente, indicando a necessidade
de encontrar a reintegração da relação homem versus natureza,
através de ações práticas articuladas ao processo ecológico,
tecnológico e cultural, conforme os estilos de vida, a partir das
potencialidades ecológicas locais (CONCEIÇÃO, 2004, p. 5).
A partir da visão do materialismo histórico e dialético, a primeira condição
histórica humana, conforme referido anteriormente, é produzir as condições de
satisfazer suas próprias necessidades, ou seja, a materialização da sua vida. Dessa
forma é impossível separar o ambiente do desenvolvimento econômico que dará
condições de sanar as necessidades vitais, pois na própria satisfação da
necessidade primária, surgem outras necessidades que precisarão ser sanadas.
Segundo Marx (2019), falar que o ser humano se relaciona com a natureza é o
mesmo que dizer que a natureza se relaciona com ela mesma, sendo que essa
visão integral de pertencimento do ser humano possibilita pensar novas formas de
inter-relação mais sustentáveis em vista da defesa da vida no planeta.
Essas necessidades criadas, que com o desenvolvimento econômico da
sociedade no século XXI se intensificam, cada vez mais afasta as questões
relacionadas à preservação e recuperação ambiental do fator econômico. Isso
porque a lógica do consumo é antagônica à lógica da preservação e conservação da
sustentabilidade. Os produtos possuem vida útil cada vez menor, para que as
pessoas possam adquirir mais bens, ter mais necessidades, aumentar a ilusão de
que não conseguem viver sem determinado produto, ampliando consumo. Isso tudo,
tendo como pano de fundo a garantia e aumento do lucro e, como consequência, a
inviabilização da sustentabilidade. E tautócrono ao consumismo, tem-se a
degradação ambiental, a produção de lixo, a poluição, que interferem diretamente na
materialização das condições de vida do indivíduo.
10
Em matéria do G1 referente ao Meio Ambiente, publicada por Carolina Dantas
(2022), referente ao aumento da temperatura nas regiões polares do planeta, o
pesquisador prof. Dr. Francisco Eliseu Aquino, integrante do Centro Polar e
Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, afirma que isso é impacto
da emergência climática que estamos vivendo. Essa emergência climática está
relacionada à degradação ambiental, fomentada pela emissão de gases poluentes
que influenciam no aumento da temperatura do planeta. Como consequência, o
desequilíbrio das massas de ar que regulam a temperatura do planeta, provocando
secas, enchentes, frio intenso, fortes ondas de calor e outros fenômenos.
Esse é somente um exemplo do que a relação sociedade e natureza com
vistas ao desenvolvimento econômico desenfreado, apresenta como consequências.
A sociedade como um todo, não tem ainda, apesar de todos os sintomas que o
planeta está evidenciando, a dimensão do dano que estamos causando ao planeta.
Tem-se a impressão que sabemos que estamos fazendo mal ao planeta e a nós
mesmos, mas nos sentimos impotentes para agir, esquecemos ou desaprendemos a
capacidade de saber cuidar (BOFF, 1999).
O planeta é um só, não existe fora, existe dentro. As providências para
resolver as complicações das nossas ações, precisam ser tomadas com vistas à
preservação e também, à recuperação do planeta. Precisamos agir imediatamente
e desenvolver novas maneiras, menos devastadoras de viver na Terra. Uma dessas
possibilidades passa por uma nova leitura da perspectiva socioambiental de forma
mais crítica, que precisa ser semeada e incentivada em espaços de educação formal
e informal, a Ecopedagogia.
Práxis docente e Ecopedagogia
Entende-se que o papel do educador na sociedade é proporcionar condições
para que os educandos possam desenvolver autonomia para materialização de sua
vida no planeta, seguir aprendendo, ter consciência da sua incompletude,
compreender que é aprendiz sempre. Nesse sentido, corroboramos com Freire
(2011, p. 16): “[...] formar é muito mais do que puramente treinar o educando no
desempenho de destrezas”, mas acima de tudo, desenvolver a capacidade de ler o
mundo, começando pelo mais imediato, seu entorno de vida, seu lugar de vivência,
até a dimensão global, planetária.
11
Nesse mesmo caminho, com as lentes da pedagogia histórico-crítica,
interpreta-se o trabalho educativo como “[...] ato de produzir, direta e
intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida
histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens.” (SAVIANI, 2015, p. 287). Ou
seja, o ato pedagógico é um ato criador, gerador de humanidade, que é possível
num ambiente sadio e propício à reprodução de todas as formas de vida - incluindo
a humana.
A partir dessa linha de pensamento, traz-se a Ecopedagogia como prática
socioeducativa em uma perspectiva “[...] da transformação socioambiental, tendo os
educadores o compromisso da construção do conhecimento com os educandos”
(DICKMANN; CARNEIRO, 2021, p. 175) e estes, por sua vez, a construção de
novos conhecimentos, de forma dialógica e crítica para a transformação da
realidade-vida. Uma das principais características citadas pelos autores, é de que o
“[...] educador ambiental precisa ser um sujeito politizado, fazendo da educação um
processo problematizador das relações entre sociedade e natureza” (idem, p.177).
Para tal, sua prática necessita grande respaldo em atividades cognitivas, uma
depende da outra “[...] não pensamento fora da ação humana, pois a consciência
e as concepções se formulam a partir do movimento do pensamento que se debruça
sobre o mundo das ações e das relações que elas geram.” (PEREIRA, 2019, p. 24).
A consciência ecológica que se intensifica na escolarização é o que
estimulará a sustentabilidade ambiental e econômica, pois permite a compreensão
de que o Planeta é um todo, que os atos praticados aqui, serão sentidos aqui.
Gadotti (2010, p. 75) defende a ideia de que é necessário o desenvolvimento de
uma “cidadania planetária”, pois assim é possível a conexão da cotidianidade com o
universo, entendendo o vínculo existente nesta rede de conexões que é o Planeta.
Neste ano de 2022, o livro Ecopedagogia e Cidadania Planetária de Francisco
Gutiérrez e Cruz Prado, completa 50 anos da sua primeira edição, e infelizmente
pouco se avançou no que diz respeito à Ecopedagogia. Por esse motivo e por
acreditar que este é um dos caminhos para a preservação da vida no planeta,
entende-se que a Ecopedagogia precisa se reinventar no tempo atual, tomando
como referência as suas origens latino-americanas, mas como princípios universais,
estabelecer uma nova mentalidade e outras relações dos seres humanos em
sociedade e destes com o meio ambiente.
12
pesquisadores que vêm se preocupando com isso de forma sistemática,
produzindo o que estamos chamando de “segunda Ecopedagogia”, apoiada em
temas ligados ao cotidiano contemporâneo em três pilares principais: a luta contra o
patriarcado que é gerador de todas as formas de violência decorrentes dele; a
superação do modo de pensar moderno que desligou razão e emoção, para
reconstruir o sentir-pensar e a luta contra a hegemonia capitalista geradora da
pobreza humana e acumulação desmedida de riquezas, que é o maior desastre
socioambiental.
Esse processo de reinvenção, então, precisa redimensionar também a
semântica da cidadania planetária, transformando-a em cuidadania, focada no
cuidado com todas as formas de vida e de vivência, humanas e não-humanas, dos
ecossistemas ecológicos e dos ecossistemas sociais, tomando o cuidado como
categoria fundamental e orientadora da nossa práxis como professor e como ser
natural e sujeito social.
Nessa práxis, o conhecimento vai sendo construído pelos educandos, a partir
das situações epistemologicamente organizadas pelo educador, de forma que
possam desencadear reflexões sobre as situações concretas relacionadas às
práticas sociais e como decorrência, estimular novas formas de pensar e agir.
Sabe-se que o “[...] conhecimento é o produto obtido a partir da elaboração
dos elementos assimilados à luz do espaço social onde o indivíduo está inserido”
(PEREIRA, 2019, p. 31). Assim, estamos em permanente processo de construção
do conhecimento e, conforme Freire (2011), num infinito movimento de procura, uma
busca de ser mais, o que nos caracteriza como seres inconclusos, inacabados.
É importante destacar novamente o papel do educador neste processo pois,
conforme Gadotti (2000, p. 31), estamos passando do “modo de produção para o
modo de destruição”, o planeta está padecendo e não é possível esperar soluções
de entidades ligadas ao capital produtivo, é preciso que a sociedade seja proativa.
Enfatiza-se que um dos fomentadores desta proatividade é o educador, nos espaços
concretos da sala de aula, independente da modalidade ou nível que atua.
Urge a necessidade das pessoas enxerguem o Planeta como sua casa,
assim haverá mudanças no modo de ver e agir em relação ao ambiente. A
Ecopedagogia é capaz de proporcionar uma reeducação na visão da realidade
ambiental, pois conforme Gadotti (2000, p. 102):
13
Reeducar o olhar significa desenvolver a atitude de observar a
presença de agressões ao meio ambiente, criar hábitos alimentares
novos, observar o desperdício, a poluição sonora, visual, a poluição
da água, do ar etc. e intervir no sentido de reeducar o habitante do
planeta.
Assim, ressalta-se a contribuição da Ecopedagogia para diminuirmos e
evitarmos as decorrências da convulsão ambiental que estamos vivendo. É
insustentável reproduzir práticas com ações pontuais e individuais, o planeta é um
todo. É necessário criar novas formas de ser e estar na Terra, que não sejam
devastadoras do ambiente em nome da materialização de um modo de vida. A vida
humana é inseparável do ambiente, nossa permanência e existência aqui depende
dos nossos atos. Ser um cidadão planetário exige consciência da finitude dos
recursos naturais e das consequências das práticas humanas destruidoras.
Considerações indicativas
Mais do que elencar o conjunto de problemas socioambientais que temos
atualmente devido ao atual modo de vida, produção e consumo insustentáveis do
atual sistema capitalista, que derivam das políticas neoliberais que estão em
vigência no mundo, nossa intenção é apresentar ao final de nossa reflexão, alguns
indicativos de possibilidades de superação desse modelo e de vislumbramento
efetivo de uma nova civilização que passa pela crítica radical do atual modelo.
Desse modo, apresentamos a seguir alguns desses indicativos e suas referências
para iniciarmos o debate e o diálogo em torno deles:
- Superação da crença de que a tecnologia vai diminuir o impacto ambiental
ao criar novos produtos “menos poluentes”, por um modo de vida focado no
consumo consciente e centrado na economia solidária, acentuando a relação
sustentável com a natureza e gerando menos trabalho alienado.
- Construção de modos de vida sustentáveis, amparados no respeito à
resiliência do planeta, à diversidade socioambiental de todas as formas de vida,
concebendo a Terra como um organismo vivo e compreendendo que toda vida é
uma só, como o princípio Gaia (LUTZENBERGER, 1990; LOVELOCK, 2020).
- Produção de conhecimento pertinente à sustentabilidade, com base num
outro saber ambiental, contextualizado e crítico a partir de uma racionalidade
complexa, dialógica e dialética, constituindo uma nova cultura das relações
14
socioambientais na perspectiva de uma nova civilização e cidadania planetária
(LEFF, 2011; GUTIÉRREZ; PRADO, 2013).
- Formação integral do ser humano a partir de princípios ecopedagógicos
estabelecidos a partir de modos de vida e produção, tomando o oikos da casa
comum como critério de formação humana e a paideia como resultado dos atos de
aprender-e-ensinar na relação com a natureza em seu cotidiana (DICKMANN et al,
2022).
- Religação do ser humano com a natureza, superando a dicotomia construída
pelo pensamento moderno, estabelecendo profundas relações de pertencimento à
Terra, respeito aos ecossistemas, coalescência e ternura como orientador de ações
éticas dos humanos com todas as formas de vida do planeta.
E, se tudo isso não bastasse para a constituição de uma visão sustentável da
vida na Terra, espera-se que a compreensão crítica da intervenção humana no
mundo pelo trabalho, estabeleça a possibilidade de repensar o sistema (in)produtivo,
para restabelecer novos princípios orientadores da reprodução da vida.
Por fim, acreditamos que a Ecopedagogia ainda tem muitas contribuições
para a reflexão consistente e radical sobre o atual sistema econômico que degrada o
ambiente e a vida humana, através do trabalho alienado e do modo de produção
capitalista. Cabe a cada um/uma estabelecer o diálogo de sua práxis
político-pedagógica com os princípios da Ecopedagogia e auxiliar no processo de
reinvenção.
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17
V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
A “QUESTÃO AMBIENTAL” NA OBTENÇÃO DA HEGEMONIA E O
COMPROMISSO ÉTICO-POLÍTICO DOS EDUCADORES1
Thiago Vasquinho Siqueira2
Resumo
O artigo aborda a apropriação da “questão ambiental” como artifício de obtenção do consenso sobre
a concepção burguesa de mundo. Sua apreensão como especificidade social historicamente
determinada deve buscar transcender a lógica instrumental criada pelo projeto de hegemonia
burguesa, cabendo, especialmente aos educadores, apreender a totalidade determinada nas
discussões da temática, possibilitando sua abordagem pelo compromisso ético-político com sua
classe fundamental.
Palavras-chave: Questão ambiental; Hegemonia; Educação.
LA “CUESTIÓN AMBIENTAL” EN LA OBTENCIÓN DE LA HEGEMONÍA Y EL COMPROMISO
ÉTICO-POLÍTICO DE LOS EDUCADORES
Resumen
El artículo discute la apropiación de la “cuestión ambiental” como artificio para obtener consensos
sobre la concepción burguesa del mundo. Su aprehensión como especificidad social históricamente
determinada debe buscar trascender la lógica instrumental creada por el proyecto de hegemonía
burguesa, y corresponde especialmente a los educadores aprehender la totalidad determinada en las
discusiones del tema, posibilitando su abordaje por el compromiso ético-político con su clase
fundamental.
Palabras clave: Cuestión ambiental; Hegemonía; Educación.
THE “ENVIRONMENTAL ISSUE” IN THE OBTAINMENT OF HEGEMONY AND THE
ETHICAL-POLITICAL COMMITMENT OF EDUCATORS
Abstract
The article discusses the appropriation of the “environmental issue” as an artifice to obtain consensus
on the bourgeois conception of the world. Its apprehension as a historically determined social
specificity must seek to transcend the instrumental logic created by the project of bourgeois
hegemony, it is especially up to the educators to apprehend the totality determined in the discussions
of the theme, making possible their approach through the ethical-political commitment with their
fundamental class.
Keywords: Environmental issue; Hegemony; Education.
2Doutor em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). Pós-Doutorando em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas
Populares (PPGEduc/UFRRJ). E-mail: tvasquinho@yahoo.com.br. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-5847-4001. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8571745523558612.
1Artigo recebido em 09/08/2022. Primeira avaliação 19/08/2022. Segunda avaliação 28/08/2022.
Aprovado em 17/09/2022. Publicado em 10/11/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.55545
1
Introdução
Este artigo realiza uma abordagem histórica sobre como a chamada “questão
ambiental” foi apropriada e disseminada pela classe dominante como um dos
artifícios de obtenção do consenso sobre a concepção burguesa de mundo.
Busca-se compreender as funcionalidades da utilização da “questão ambiental” ou
da dita “crise ambiental” no processo de reprodução da acumulação burguesa e de
manutenção da hegemonia dominante, sobretudo, no que tange à sua utilização
como artifício educativo na construção do consenso burguês, em sentido
gramsciano. Desta forma, são analisadas as determinações fornecidas ao discurso
ambiental como mecanismo de enfrentamento à “questão ambiental”, realizando um
exame crítico das formas de apropriação e disseminação deste discurso utilizando
o processo sócio-histórico brasileiro como exemplo analítico –, bem como seus
rebatimentos na materialidade concreta que contribuem na conquista e manutenção
da hegemonia burguesa.
Para esta discussão foi necessário inserir a ideia de existência de uma
suposta “crise ambiental” no cerne do projeto de reestruturação capitalista,
sobretudo, no conjunto de reformas do Estado inseridas no contexto internacional,
configurando uma nova modalidade de trato às “questões sociais” e à seguridade de
direitos sociais elementares. No rol de transferência das responsabilidades do
Estado estrito para a sociedade civil proclama-se uma suposta “crise” de caráter
ambiental, em nível internacional, para legitimar a introdução da lógica neoliberal e,
no interior desta, de expansão de “novos” mercados ligados à “questão ambiental”3,
sem levar em conta os fundamentos desta “questão” no âmbito do desenvolvimento
de uma crise do padrão de acumulação capitalista, ou como diria Mészáros (2009),
de uma “Crise Estrutural do Capital”.
A “questão ambiental” vem ganhando destaque como tema socialmente
relevante na história recente. Entretanto, esta mesma relevância impôs formas de
apreensão da temática carregadas de tendências e determinismos, desvelando
3A expressão “questão ambiental” é aqui empregada como derivação do entendimento da expressão
“questão social” para alguns autores do Serviço Social. Conforme coloca Montaño (2012), a
“expressão ‘questão social’ começa a ser empregada maciçamente a partir da separação positivista,
no pensamento conservador, entre o econômico e o social, dissociando as questões tipicamente
econômicas das ‘questões sociais’ (cf. NETTO, 2001, p. 42)”. Portanto, a “questão ambiental” assim
como a “social” aparece como algo naturalizado, destituído de processos históricos, econômicos,
políticos e sociais, bem como de origem apartada da luta de classes.
2
armadilhas e dificuldades aos educadores e outros trabalhadores comprometidos
com sua ética de classe que decidem abordá-la. Apreender a funcionalidade
concedida à “questão ambiental” para a reprodução da ordem determina distingui-la
como meio para a realização da mesma, sendo essa instrumentalização forma de
obtenção de finalidades (MONTAÑO, 2002).
A instrumentalidade do capital na “questão ambiental”
A instrumentalidade é categoria central para a análise de determinada
funcionalidade em relação à sua finalidade (MONTAÑO, 2002). Compreender a
instrumentalidade de um objeto ou processo social significa apreendê-lo como
síntese possível, mas carregada de determinações, das disputas por sua
apropriação no âmbito das correlações de forças sociais. Tal assimilação é funcional
à luta de uma classe ou fração para imprimir sua concepção de mundo ao conjunto
da sociedade, contribuindo para a reprodução ou superação das formas de
dominação não somente através da coerção, mas também pelo consenso.
A cisão entre ambiente e sociedade cria uma imagem fragmentada e
fetichizada da problemática ambiental, na qual a racionalidade burguesa busca
escamotear a centralidade da luta de classes nas análises do desenvolvimento
social, não partindo da materialidade concreta, mas de uma suposta independência
entre frações de uma totalidade. Desta forma, se pensa a “questão social” e a
“questão ambiental” apartadas, ambas, das relações sociais de produção capitalista.
Estas “questões” aparecem como fenômenos naturais e isolados, produzidos pelos
próprios indivíduos que os sofrem, sendo, portanto, responsabilidades
compartilhadas por “todos”, fruto de uma suposta “sociedade de consumo”
independentemente da posição ocupada pelos sujeitos no processo de produção e
das díspares possibilidades de consumo entre as classes e frações dentre outros
artifícios utilizados pela concepção dominante de mundo.
Como destaca Guerra (2000), a racionalidade burguesa é a lógica que
reproduz a ordem social capitalista e elabora as formas sociais de ser, pensar e agir
neste modo de produção. Desenvolve-se através de ações instrumentais que,
baseadas no pragmatismo e na imediaticidade, buscam a criação de valores e
princípios aderidos a este modo de produzir a vida social. Ações estas que buscam
dar conta das contradições em um determinado nível da realidade, acabando por
3
elaborar barreiras para as análises de uma totalidade complexa. Contudo, sendo as
demandas sociais totalidades repletas de determinações, as intervenções exigiriam
mediações passíveis de ultrapassar os níveis de abstração expressos nesta razão.
Com o acirramento das lutas por acesso a um ambiente com a qualidade
necessária à vida que estão intimamente vinculadas ao acesso ao trabalho ou às
formas de produzir a vida social a razão instrumental burguesa forjou a ideia de
uma “crise ambiental”, apartando-a de uma crise do modelo de produção ou,
segundo Mészáros (2009), de uma “crise estrutural do capital”. Este processo se
assenta no argumento da necessidade de se desenvolver economicamente
garantindo a sustentabilidade ambiental, ocultando que a objetividade deste
chamado “desenvolvimento” se trata da própria busca pela manutenção do processo
de acumulação burguesa. Para sustentar esta ideia conjectura-se um “consenso”
sobre a necessidade de proteger o meio ambiente, deslocando a responsabilidade
das consequências do modo de produção para a sociedade civil um ente que seria
homogêneo e ofuscando a diversidade de interesses e conflitos sociais
inseridos (LAYRARGUES, 2008).
Portanto, buscando transcender análises fragmentadas pela razão
instrumental4, intenta-se apreender a realidade concreta sobre a temática ambiental
a partir da tentativa de análise de sua totalidade, “síntese de múltiplas
determinações” e, por isso, “unidade do diverso” (MARX, 2008, p. 258).
Seguridade ambiental ou ordenamento da produção?
A partir dos anos de 1930, o impulsionamento da transição da economia
brasileira até então baseada na agroexportação para uma economia de bases
urbano-industriais, desencadeou a transformação dos processos de luta e
correlações de forças entre as diferentes classes e frações. Este momento de
desestabilização do desenvolvimento pôs em cena uma crise de hegemonia da
burguesia cafeeira (MENDONÇA, 1986), então fração dominante. Colocada a
recessão deste modo de acumulação e não existindo as condições de organização
de uma burguesia industrial capaz de conduzir o processo, coube, portanto, ao
4Guerra (2000) afirma que a razão instrumental “é uma dimensão da razão dialética (substantiva e
emancipatória), e como tal, limitada a operações formal-abstratas e a práticas manipuladoras e
instrumentais, fragmentadas, descontextualizadas e segmentadas, por isso ela é funcional à
reprodução social da ordem burguesa”.
4
Estado, assumindo processos de relativa autonomia política, reorientar as diretrizes
da política econômica do país para a realização do processo de industrialização,
garantindo, assim, a reprodução do próprio modo de produção capitalista ao
modernizá-lo. Ampliando suas funções de coordenação no período de 1930-50, o
Estado fazia com que o núcleo principal do modo de acumulação anterior, para o
qual a economia se inclinaria “naturalmente”, se orientasse no sentido de fazer da
empresa capitalista industrial o novo centro do processo (OLIVEIRA, 2013, p. 40).
Não possuindo, as elites industriais brasileiras, condições de dirigir o processo
político iniciado na década de 1930, seriam elas as privilegiadas com as decisões
que passaram a ser adotadas. Não significava que as frações agrárias tradicionais,
que ainda ocupavam espaços decisórios dentro do aparelho de Estado, detivessem
uma postura totalmente contrária ao processo de industrialização, pois isto também
possibilitava a criação de novos mercados para dispor suas mercadorias. Portanto,
foi neutralizando as tensões em jogo que teve o Estado o papel de condução da
modernização da economia brasileira no período (MENDONÇA, 1986).
Também foi a partir da década de 1930 que o Estado instituiu uma série de
ações que devem ser tratadas como políticas ambientais implícitas (ANELLO, 2009),
visando o controle do uso dos recursos naturais necessários ao processo de
industrialização e urbanização, bem como sua regulação nas fronteiras do país.
Entre 1930 e 1960 não havia uma política ambiental ou uma instituição gestora da
temática propriamente ditas; a preocupação se voltava à administração ou controle
dos recursos visando a sua utilização econômica.
Entretanto, somente a partir de meados da década de 1960 que os sintomas
da dita “crise ambiental” passam a ter maior apelo social. Os antecedentes para a
incorporação do tema na agenda internacional ganham espaço no debate público
nesta década, sobretudo na Europa, nos países onde se desenvolvia o chamado
“Estado de Bem-Estar Social”. Contraditoriamente, onde tudo parecia ir bem,
surgiram insatisfações quanto aos padrões econômico-sociais e as dúvidas em
relação aos riscos oriundos destes (LOUREIRO, 2006).
As lutas sociais que introduziram a problemática ambiental na agenda
econômica e social se desenvolveram inicialmente, sobretudo, através dos
movimentos pacifistas de contracultura, de juventude e estudantis, feministas e
outros (LOUREIRO, 2006; SILVA, 2013). Estes portavam contestações às noções de
progresso, industrialização, consumo e do papel desenvolvido pela ciência,
5
evidenciando a defesa de um meio ambiente de qualidade como um campo de lutas
(LOUREIRO, 2006). A ação política destes movimentos possibilitou, em uma escala
antes inimaginável, a reflexão sobre indícios de colapso ambiental e de esgotamento
de recursos necessários à manutenção da vida, fornecendo concretude às críticas,
que ganharam espaço em políticas estatais, discussões acadêmicas e nas práticas
de movimentos sociais (LOUREIRO, 2013).
No Brasil, foram criadas neste período um conjunto de normativas legais
visando à ordenação dos bens ambientais, como: Lei Delegada 10, de 1962, que
criou a Superintendência do Desenvolvimento da Pesca; Lei no4.771/65, que
sancionou o Código Florestal de 1965; Decreto-Lei no221/67, que dispôs sobre o
ordenamento pesqueiro; Decreto-Lei no227/67, que deu nova redação ao Código de
Minas (visando o ordenamento da mineração); Lei no5.197/67, que dispôs sobre a
proteção da fauna; e Decreto-Lei no289/67, que criou o Instituto Brasileiro de
Desenvolvimento Florestal (ANELLO, 2009).
Apesar do arcabouço legal criado à época, não havia um alinhamento voltado
para a direção de impor limites ao desenvolvimento capitalista através da regulação.
Ao contrário, esse conjunto de leis dos anos 1960-70 possuía como estratégia
principal atrair o capital internacional, voltando-se, sobretudo, para a “segurança
nacional” e a soberania territorial. Isso se explica se analisarmos a lógica
instrumental do desenvolvimentismo da ditadura empresarial-militar no Brasil e de
seu período áureo, o chamado “Milagre Econômico”, voltado para o
impulsionamento da industrialização e de um modelo de desenvolvimento desigual
em relação aos países centrais (SANTOS; ARAÚJO, 2013).
Mesmo tendo sido fundamentadas no contexto da ditadura, estas iniciativas
forneceram base para o desenvolvimento da discussão ambiental no Brasil, mais na
direção de sinalizar aos organismos internacionais e ao mundo que, mesmo de
forma superficial, estas políticas constavam da agenda do governo brasileiro
(BATISTA, 2007). A política ambiental brasileira evoluiu, principalmente, devido à
pressão de organismos internacionais (MOURA, 2016), que passaram a exigir o
cumprimento de determinados padrões para o alcance e manutenção de
investimentos nos países.
Nos anos de 1970, em nível internacional, os limites para a expansão
indefinida do bloco histórico fordista-keynesiano se apresentam. Fundamentalmente,
a crise iniciada na década de 1970 é uma crise do tipo orgânica. Tem uma
6
expressão de natureza política, de crise de direção eclosão de movimentos e
resistências em uma conjuntura de crise de realização da produção que vinha se
desenvolvendo desde o final da Guerra. Na concepção gramsciana, “crise
orgânica” são crises de origem econômica, mas, ao mesmo tempo, constituem uma
crise de poder crise de representação ou crise de hegemonia (GRAMSCI, 2007).
Estas crises representam a falência de um determinado “bloco histórico”5e o início
da criação de um novo.
Mészáros (2009) vai além, apontando que a crise que desponta nos anos de
1970 possui elementos estruturais, da ontologia do sistema do capital. Segundo o
autor, a partir de então, todo e qualquer exercício realizado pela burguesia acaba por
aprofundar os elementos limitadores da ordem vigente, como a
ampliação/intensificação da dependência em relação ao fundo público e a destruição
da natureza limites para a livre expansão do consumo de massas. Portanto, é em
meio a esta crise estrutural (MÉSZÁROS, 2009), desenvolvida, sobretudo, a partir
da década de 1970, que se intensificam as preocupações com a problemática
ambiental e a busca por alternativas de superação desta. Nesta direção, os países
centrais do capitalismo passam a formular um conjunto de respostas na tentativa de
revitalização do capital diante de uma sucessão de crises ocorridas, pautando-se
pelo arcabouço neoliberal.
Neste contexto, em 1972 se realiza a Conferência das Nações Unidas sobre o
Ambiente Humano, na cidade de Estocolmo, que introduziu internacionalmente a
necessidade de garantia de um ambiente com qualidade para as presentes e futuras
gerações. As ações internacionais foram motivadas neste período, sobretudo, pela
pressão do risco de finitude de determinados recursos de importância para a
acumulação do capital, para a industrialização e para o crescimento econômico
(IBAMA, 1993 apud SAISSE; LOUREIRO, 2012). Cabe ressaltar que a Conferência
de Estocolmo e as sugestões da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE) difundiram mundialmente a necessidade de
inserção de premissas de ordenamento ambiental na década de 1970. Vários
5Uma das principais noções do edifício teórico desenvolvido por Gramsci, sendo exatamente a
expressão concreta da relação de unidade dialética do par estrutura-superestrutura. Segundo o
filósofo: “A estrutura e as superestruturas formam um “bloco histórico”, isto é, o conjunto complexo e
contraditório das superestruturas e o reflexo do conjunto das relações sociais de produção”
(GRAMSCI, 1999, pp. 250-251), [...] as forças materiais são o conteúdo e as ideologias são a forma,
distinção entre forma e conteúdo puramente didática, que as forças materiais não seriam
historicamente concebíveis sem forma e as ideologias seriam fantasias individuais sem as forças
materiais (GRAMSCI, 1999, p. 238).
7
países, dentre eles o Brasil, adotaram medidas na legislação para garantir a
qualidade ambiental diante do processo de exploração dos recursos.
Somente a partir de Estocolmo que a dita “questão ambiental” passou a ser
encarada com maior atenção, sobretudo devido às exigências impostas pelos
organismos internacionais de financiamento para a concessão de empréstimos.
Vários destes organismos fizeram uso de instrumentos de defesa ambiental, como
os órgãos setoriais da Organização das Nações Unidas (ONU), o Banco Mundial, o
Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), dentre outros. Um dos principais
motivos para introdução destes instrumentos no Brasil se deu em resposta a estes
organismos, que passaram a exigi-los como condição para o financiamento de
projetos (CONSULTORIA LEGISLATIVA DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2005).
A Declaração de Estocolmo assinalou a importância da garantia de um meio
ambiente de qualidade como questão fundamental, e, ao mesmo tempo, considerou
o desenvolvimento econômico e social como necessário para assegurar a qualidade
de vida. Os acordos oriundos desta Conferência apontaram para um movimento de
conveniência entre os países capitalistas centrais que desejavam omitir a poluição
oriunda da riqueza e periféricos, que, buscando investimentos para o
desenvolvimento capitalista, realizaram uma concertação entre seus interesses
particulares (SILVA, 2013). O evento buscava discutir estratégias para enfrentar a
“questão ambiental” a partir de metas de controle da população e de redução de
crescimento econômico.
Contudo, o desenvolvimento de tais metas não se mostrou viável devido à
diversidade de interesses reunidos, sendo destacada a posição de resistência dos
rotulados países “subdesenvolvidos”. Estes acusaram os países industrializados de
conter a sua liberdade e soberania, defendendo o crescimento a qualquer custo
(SANTOS; ARAÚJO, 2013). No evento, o Brasil liderou 77 países, do total de 113,
estendendo uma faixa em protesto com os seguintes dizeres:
Bem vindos à poluição, estamos abertos a ela. O Brasil é um país
que não tem restrições, temos várias cidades que receberiam de
braços abertos a sua poluição, porque nós queremos empregos,
dólares para o nosso desenvolvimento. (SANTOS; ARAÚJO, 2013).
Associou-se, assim, às necessidades de enfrentamento dos problemas
ambientais pela via do combate à pobreza, sendo esta, segundo tal análise,
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resultante do “subdesenvolvimento”. Tal tese se manteve em voga até pelo menos a
metade da década de 1990 (SANTOS; ARAÚJO, 2013).
Cabe ressaltar que, como principal centro hegemônico do capitalismo global,
os Estados Unidos haviam promulgado, em 1969, a National Environmental Policy of
Act (NEPA) que serviu como “inspiração” para a adoção de medidas legais de
ordenamento ambiental no Brasil durante o período da ditadura empresarial-militar
(THEODORO et al., 2005). Com o desenvolvimento de uma economia baseada na
produção de commodities e as recomendações dos organismos internacionais de
financiamento econômico, foi iniciada a construção de mecanismos de ordenamento
político para a exploração dos recursos ambientais no país, assegurando a
continuidade do processo de utilização destes recursos.
Uma das primeiras normas legais em âmbito nacional a abordar esses
procedimentos foi o Decreto-Lei 1.413, criado e regulamentado em 1975, durante
o governo do presidente Ernesto Geisel, que dispôs sobre o controle da poluição do
meio ambiente provocada por atividades industriais. Poucos anos após, a Lei
6.803, de 2 de julho de 1980, sancionada pelo presidente João Figueiredo, dispôs
sobre as diretrizes básicas para o zoneamento industrial nas áreas críticas de
poluição. Estas normativas demonstram o incentivo do governo militar no período
aos empreendimentos industriais, concedendo condições especiais para o
financiamento de dispositivos industriais ou realocação dos empreendimentos para o
ajustamento à legislação ambiental que se iniciava. Os custos de proteção ambiental
dos empreendimentos podiam ser providos através de verbas públicas6.
Durante o período da ditadura militar a economia nacional foi caracterizada
por uma grande intervenção do Estado, favorecendo o desenvolvimento de uma
infraestrutura propícia aos interesses de grandes grupos capitalistas nacionais,
sobretudo os que mantinham associação com o grande capital internacional. Os
investimentos estatais eram financiados a partir de fundos obtidos junto às
instituições internacionais de crédito, voltados a viabilizar o crescimento de
investimentos estrangeiros no país. Este período foi marcado por projetos e
construções de grande porte, a partir de uma política econômica que propiciava
6O Decreto-Lei 1.413/75 em seu artigo 4°, parágrafo único, descreve que: “Para efeito dos
ajustamentos necessários, dar-se-á apoio de Governo, nos diferentes níveis, inclusive por
financiamento especial para aquisição de dispositivos de controle”. A Lei 6.803/80, em seu artigo
12o, parágrafo único, estabelece que: “Os projetos destinados à relocalização de indústrias e à
redução da poluição ambiental, em especial aqueles em zonas saturadas, terão condições especiais
de financiamento, a serem definidos pelos órgãos competentes”.
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financiamento nacional às indústrias estrangeiras. Tal orientação contribuiu
profundamente para a monopolização do capital no país e o enorme aumento do
endividamento externo (MENDONÇA; FONTES, 2006).
No Brasil, o movimento ambientalista ganhou caráter público e social no
início da década de 1980, ainda assim derivado de um viés conservacionista oriundo
de grande influência da classe média europeia (LOUREIRO, 2012). Isso dificultou a
entrada da “questão ambiental” nos ditos movimentos sociais populares,
desvinculando essa pauta das lutas que envolvem a contradição capital-trabalho.
Seguindo esta trajetória histórica, foi somente em 1981, ainda no final do período
ditatorial, que se instituiu a Lei no6.938, que dispõe sobre a Política Nacional de
Meio Ambiente (PNMA). Esta rege, ainda nos dias de hoje, boa parte dos
instrumentos de regulação sobre as “questões ambientais” no país.
Art. - A Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a
preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental
propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao
desenvolvimento socioeconômico, aos interesses da segurança
nacional e à proteção da dignidade da vida humana, [...] (BRASIL,
1981, grifos meus).
A PNMA instituiu, dentro do conjunto de normas que tratam a problemática
ambiental no Brasil, o Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama), que, apesar
de ter sido modificado em inúmeros aspectos devido ao processo de
redemocratização pós-ditadura e, sobretudo, devido à promulgação da Constituição
Federal de 1988, continua pautado pela redação desta lei e por suas
complementares e substitutivas. Contudo, para alguns autores, o Sisnama ainda não
registra as tendências observáveis em outros Sistemas existentes na legislação
nacional, por exemplo, quanto à centralidade em princípios como o de controle
social na implementação dos instrumentos da gestão ambiental pública (SANTOS;
ARAÚJO, 2013). Além disso, mesmo tendo sido pautada no período da ditadura, a
lei ainda carrega a subordinação da “questão ambiental” aos interesses de
desenvolvimento capitalista e da chamada “segurança nacional”, conforme o trecho
acima.
Portanto, a instrumentalidade histórica estruturada com a criação da
legislação ambiental no Brasil demonstra a centralidade da lógica de garantir o
processo de expansão do capital, condizente com o modelo que se anunciava para
o país no ciclo do capitalismo internacional, a posição periférica de exportador de
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commodities. As políticas ambientais se desenvolveram no período, sobretudo, no
sentido de garantir um ordenamento necessário à reprodução do processo de
acumulação. Cabe destaque à instrumentação das políticas e normas ambientais
criadas em resposta às finalidades impostas pelos organismos internacionais de
fomento, com vistas a inserir o país no ciclo do capitalismo global.
O debate ambiental se instaurou no Brasil, nos anos de 1970, mais por força
das pressões internacionais do que pelos movimentos de caráter ambiental
consolidados no país. Até a Constituição de 1988, a política ambiental brasileira foi
gerida de forma centralizada, estruturada sem a participação popular na definição de
suas diretrizes (LOUREIRO, 2006). A Constituição de 1988, através de seu artigo
225, contribuiu para alterar a lógica legislativa da direção concedida pela ditadura
civil-militar às políticas ambientais, reconhecendo o direito de todos ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, considerando-o como um bem comum. Ao
menos em tese, implicitamente esta determinação rejeita o processo de apropriação
e privatização dos bens ambientais, incluindo direitos sociais e políticos
conquistados pelas lutas populares (BATISTA, 2007).
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o
dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações (BRASIL, 1988).
Apesar do avanço conferido através da promulgação da Constituição, que traz
o meio ambiente equilibrado como direito de todos, em que pese o período de
redemocratização pós-ditadura, a lógica instrumental da acumulação do capital não
permitiu a garantia concreta do direito universal ao ambiente. A grande crise do
modelo econômico mundial do pós-guerra, nos anos de 1970, abriu terreno para a
inserção massiva do ideário neoliberal no contexto internacional. No Brasil, o
processo de inserção destas estratégias, nos anos de 1990, impediu a concretização
de avanços na direção da seguridade de um meio ambiente de qualidade para toda
a sociedade.
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A “questão ambiental” e a hegemonia burguesa
Analisando a formação sócio-histórica do capitalismo brasileiro, percebemos
que o país experimentou um processo de modernização capitalista sem, no entanto,
ter realizado uma revolução burguesa de caráter clássico. Aos poucos a grande
propriedade latifundiária foi se transformando em empresa capitalista de bases
agrárias, do mesmo modo que, como vimos, o capital estrangeiro contribuiu para
aprofundar a transição do país para uma economia capitalista de bases
urbano-industriais. Dirigidos “pelo alto” de forma elitista e antipopular ambos os
processos dependeram da intervenção do Estado, ao invés de serem realizados
através de movimentos populares organizados por uma burguesia que seria, então,
revolucionária.
Da mesma forma, no Golpe de 1964, a classe dominante se utilizou do
aparato repressivo e da intervenção econômica do Estado para dar continuidade
“pelo alto” à modernização capitalista brasileira. Apesar da relevante ampliação
quantitativa de organizações representativas do empresariado no âmbito da
sociedade civil, durante a ditadura não houve o surgimento de organizações
capazes de deter uma concreta hegemonia, conquistando o consenso de uma faixa
ampla da população nacional. O consenso foi sim buscado e, por vezes, até obtido,
porém se assentava em uma profunda redução da participação das massas, não se
expressando como movimentos de organização destas em apoio ao regime. O
fundamento de atuação do regime era a desmobilização e a coerção, como forma de
enfrentamento a qualquer posicionamento contrário que, segundo os militares,
colocariam em risco o “desenvolvimento” e a “segurança nacional”.
Com a crise de legitimidade do regime a partir da segunda metade da década
de 1970 o fim do chamado “milagre brasileiro”, que lhe conferia sustentação uma
ampla frente de movimentos diversos ressurgiu na vida política, desfazendo as
bases mínimas de consenso necessário para a reprodução da ditadura
empresarial-militar. Ainda que tenha logrado um substantivo desenvolvimento das
forças produtivas, o desenvolvimento capitalista da sociedade brasileira durante a
ditadura não foi capaz de assimilar o conjunto das classes a um projeto de nação,
socializando a política, consolidando a sociedade civil brasileira e, portanto,
conferindo a hegemonia a uma classe ou fração dirigente (COUTINHO, 1992).
12
De acordo com Gramsci, hegemonia seria a capacidade persuasiva de um
grupo social dirigir processos históricos para além do exercício direto da coerção. A
hegemonia, em termos gramscianos, se caracteriza por uma série de processos
ligados ao exercício do poder em sociedades baseadas na divisão em classes. Ela
se concretiza através da prática política de uma classe ou fração que busca
sedimentar sua concepção de mundo às outras. A manutenção da hegemonia é
também uma relação pedagógica, na qual a classe ou frações dominantes
subordinam os grupos sociais através da persuasão ou da educação, organizando
um suposto consenso social em torno de sua concepção dominante de mundo
(MARTINS; NEVES, 2010).
A ampliação da categoria “Estado” no pensamento do autor conforme seu
conceito de “Estado Integral” ou Estado Ampliado, como preferem estudiosos de sua
obra (BUCI-GLUCKSMANN, 1980) possibilita uma forma didática de compreender
os conflitos e disputas travados entre as classes e frações no contexto de
complexificação do modo de produção capitalista, sobretudo em sua fase
monopolista, na qual o processo de ampliação da sociedade civil e, portanto,
incorporação das massas à vida política das nações, deslocou as formas de
reprodução do processo de dominação de uma atuação mais baseada na coerção,
para a utilização de estratégias assentadas no consenso7.
O padrão de acumulação desenvolvimentista instaurado na década de 1950
alcança seu ápice no período do “milagre econômico”, impelindo um processo de
reestruturação produtiva vinculado à ampliação das bases industriais desenvolvidas
sob o modelo fordista-taylorista de produção. Demonstrando o esgotamento do
projeto desenvolvimentista baseado no modelo de “substituição de importações” e
não tendo ainda formulado uma orientação própria para a década de 1990, o
empresariado brasileiro inicia a construção de uma alternativa à crise do capitalismo
brasileiro, o projeto neoliberal.
No contexto internacional, o neoliberalismo ascende como alternativa logo
após a II Guerra Mundial, sobretudo, na Europa e América do Norte, como reação
7Esta afirmação não significa que a utilização da coerção não seja importante para a autorreprodução
da burguesia enquanto classe dominante na atualidade, nem que, necessariamente, a ampliação da
utilização do consenso como estratégia diminua consequentemente a da coerção, mas sim que
uma elevação da relevância do convencimento enquanto estratégia de hegemonia na fase superior
do modo de produção capitalista. Portanto, conforme Gramsci, poderia se dizer que: “Estado =
sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção” (GRAMSCI, 2011, p.
269).
13
contra o chamado “Estado de Bem-Estar Social”. A principal referência para este
projeto encontra-se no texto de Friedrich Hayek, “O Caminho da Servidão” (1944),
que traz um ataque contundente a qualquer limitação econômica ou política imposta
pelo Estado ao mercado, inserindo este tipo de intervenção como uma ameaça à
liberdade (ANDERSON, 1995). Mesmo não sendo o responsável pela definição do
termo “neoliberalismo”, Hayek pode ser considerado o grande fundador dessa
vertente do liberalismo, procurando apresentar como o intervencionismo do Estado
conduziria ao totalitarismo e à perda de liberdades (MONTAÑO; DURIGUETTO,
2011).
O projeto político de Hayek é baseado, sobretudo, na defesa de um sistema
organizado na livre concorrência, a qual, por si só, seria fundamento da “liberdade”.
A concorrência, desta forma, seria o meio pelo qual a sociedade se regularia, sendo
o planejamento estatal um empecilho para este desenvolvimento. Segundo o autor,
a soberania da ordem de mercado implicaria em uma sociedade livre, na qual a
intervenção estatal deveria ser mínima, caso contrário subordinaria o poder supremo
do mercado a um poder superior, o do Estado. A desigualdade social, nesta
concepção, é mecanismo impulsionador da concorrência e, portanto, do
desenvolvimento econômico-social (HAYEK, 2010).
Para o autor, o papel do Estado deve ser o de prover a livre concorrência,
realizando somente serviços sociais que o mercado não pode fornecer. Para tal, a
“questão social” e suas derivações constituiriam serviços que deveriam ser
desenvolvidos por instituições que estariam no âmbito da sociedade civil. A
seguridade social, portanto, não estaria descartada para a manutenção de um
mínimo de condições suficientes para garantir a saúde e a capacidade de trabalho,
contudo, isso não deveria ser seguido em contextos históricos de crise e de baixa
acumulação capitalista. A seguridade social não constituiria um direito, mas uma
“possibilidade” para assegurar a capacidade de trabalho (MONTAÑO;
DURIGUETTO, 2011).
O ideário neoliberal ganha terreno com a grande crise econômica iniciada em
1973, na qual uma profunda recessão combinou baixas taxas de crescimento a altas
taxas de inflação (ANDERSON, 1995). Nos países centrais do capitalismo esta
estratégia se desenvolveu desde a década de 1980, quando as condições objetivas
para a reprodução do padrão de acumulação do capital foram alteradas pela crise
econômica. na América Latina, esse processo foi atrasado pela instabilidade
14
política existente (LAMOSA, 2010). No caso do Brasil esta conjuntura propiciou a
ascensão de Fernando Collor, tido como única opção viável pelas frações
dominantes para derrotar Lula da Silva liderança operária do Partido dos
Trabalhadores (PT) na década de 1980 e iniciar o rumo à construção do novo
projeto neoliberal, ainda que este não fosse a primeira alternativa de parcelas
expressivas do empresariado.
O governo Collor adotou um conjunto de medidas visando reverter a crise
econômica que se arrastava desde os anos 1980. Dentre as principais medidas
estavam o fomento ao processo de privatização das empresas nacionais, a abertura
da economia para o capital estrangeiro e a diminuição dos gastos públicos na área
social, apontando para um perfeito alinhamento com as recomendações dos
organismos internacionais. No entanto, a dimensão mais duradoura do programa de
governo de Collor seria o aspecto privatizante (MENDONÇA; FONTES, 2006). O
governo Collor acabou por aprofundar a recessão e a crise interna do Estado, ou
seja, a alternativa inicial da burguesia por sua eleição que obstaculizou a
participação das forças sociais organizadas acabou por frear o próprio
desenvolvimento ulterior, impedindo a constituição de um pacto de modernização
capitalista com a participação de todos os setores da sociedade sob sua própria
direção (MENDONÇA e FONTES, 2006).
Apesar de o projeto neoliberal formulado no Brasil possuir características
próprias e de se afastar, em sua ortodoxia, da versão formulada por Hayek
(BIANCHI, 2004), seguindo os fundamentos básicos da proposta neoliberal, o
empresariado apontava em outra direção a que havia defendido durante as décadas
anteriores. Enquanto advogavam o planejamento estatal como estratégia de
desenvolvimento durante o regime militar, seria exatamente o discurso da “redução”
do Estado e da sua mínima intervenção o fundamento básico da alternativa que se
delineava. Contudo, o desenvolvimento destas políticas, mesmo nos países
capitalistas centrais, acarretou uma série de consequências sociais, como o
aumento da pobreza e do desemprego e a desestruturação da seguridade social
construída nos anos das políticas baseadas no welfare state (MELO; FALLEIROS,
2005).
A partir desta conjuntura sócio-histórica, a classe dominante buscou a
redefinição de suas estratégias de reprodução e legitimação. Passando a criticar
posições a favor de uma “minimização” do Estado e sua subordinação ao mercado,
15
a classe dominante apontou para a necessidade de prover um “novo” Estado, que
desse conta de promover o desenvolvimento social e o crescimento econômico.
Nesta direção, foram produzidos uma série de documentos, pelos próprios antigos
defensores do projeto neoliberal como o Banco Mundial, o Fundo Monetário
Internacional e a Unesco criticando a ideia de um “neoliberalismo radical” (MELO;
FALLEIROS, 2005). Desenvolveu-se, portanto, a ideia de criação de uma “Terceira
Via”: nem o “antigo e pesado” Estado de Bem-Estar, nem a razão conservadora do
neoliberalismo radical, mas algo entre estes, um “novo” neoliberalismo.
O projeto neoliberal da "Terceira Via", sobretudo sistematizado pelo sociólogo
britânico Anthony Giddens, parte de questões centrais para a estratégia neoliberal,
buscando refiná-las, torná-las compatíveis com os seus próprios princípios
constitutivos fundamentais (LIMA; MARTINS, 2005). Desenvolvido como estratégia
alternativa aos efeitos negativos deixados pelas políticas neoliberais, esse programa
buscou manter uma agenda político-econômica nos limites do capital. Para Giddens
(1997, p. 46), a modificação da estrutura da sociedade global é determinante para
uma mudança de concepção quanto aos mecanismos sociais, sendo necessário,
conforme o mesmo, uma “política radical reconstituída”. Giddens (1997, p. 47)
aponta que “a intensificação da solidariedade em uma sociedade destradicionalizada
depende do que poderia ser chamado confiança ativa, associada a uma renovação
da responsabilidade pessoal e social para com os outros”.
É importante destacar como a chamada “questão ambiental” passou a ser um
dos pilares do programa neoliberal de apassivamento e conciliação de classe.
Utilizado como consenso, o discurso neoliberal da confiança e da responsabilidade
social passou a ser demasiadamente empregado na discussão de distintas
perspectivas da dita “crise ambiental”. Passou a se depositar na confiança e na
responsabilidade equânime entre as classes sociais a chave para uma suposta
alteração da realidade ambiental.
Lima e Martins (2005, p. 43) apontam que:
o processo de redefinição das estratégias destinadas a legitimar o
consenso em torno da sociabilidade burguesa teve um impulso
extraordinário ao ganhar formato e diretrizes diferenciados por meio
de um único projeto político em meados dos anos 1990.
É comum, entre autores que analisam o processo de ampliação do Estado no
Brasil, definir a implantação da primeira etapa do projeto de sociabilidade neoliberal
16
entre a entrada de Collor na presidência e a ascensão de Fernando Henrique
Cardoso (FHC) a partir da implementação do Plano Real (NEVES, 2005; FONTES,
2005). Este Plano de estabilização monetária se apoiou no próprio processo de
abertura da economia, logrando conter a escalada inflacionária, a qual várias
tentativas que haviam sido postas em prática não obtiveram sucesso. Elaborado
por FHC, como Ministro da Fazenda no governo Itamar Franco, e uma equipe de
economistas, o Plano Real consolidou a confiança dos setores empresariais no
sociólogo (FONTES, 2005), possibilitando a sua eleição para presidente em 1994,
mais uma vez vencendo Lula. Os resultados obtidos pelo Plano Real se constituíram
em um relevante mecanismo para obter o consentimento da sociedade civil
brasileira aos ideais e práticas da classe dominante (NEVES, 2005).
Se a força de oposição do PT desenvolveu um processo de requalificação da
política para os setores dominantes, em resposta estes formularam um projeto de
incorporação subalternizada dos setores populares à sua agenda, que passava a se
expressar com um cunho democrático-filantrópico. Desde a realização da “Rio 92” o
Brasil experimentaria um enorme crescimento das chamadas Organizações
Não-Governamentais (ONGs), que se opunham à participação político-partidária e a
referências políticas de cunho universalizante, que, apontadas como totalitárias,
contribuíam para um real processo de desqualificação da política e do sentido de
público na essência da palavra. A política desdobrada pelo Estado durante o
governo de FHC destruiria as características universalistas, estimulando uma
associatividade despolitizada como forma política e contribuindo para que as
relações de interesse de associações privadas no Estado não se mantivessem,
como passassem a ser aprofundadas com a penetração desta nova rede de bases
filantrópicas (FONTES, 2005).
Na direção de utilizar a “questão ambiental” como plataforma do projeto
neoliberal em busca de um amplo consenso social que, na própria “Rio 92”, ascende
a utilização do termo “desenvolvimento sustentável”.
A Organização das Nações Unidas ONU realizou, no Rio de
Janeiro, em 1992, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio
Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD). A CNUMAD é mais
conhecida como Rio 92, referência à cidade que a abrigou [...] 179
países participantes da Rio 92 acordaram e assinaram a Agenda 21
Global, [...], que constitui a mais abrangente tentativa realizada
de promover, em escala planetária, um novo padrão de
17
desenvolvimento, denominado “desenvolvimento sustentável”
(MMA, 2014, grifos meus).
A ascensão do termo “desenvolvimento sustentável” aprofunda a ideia de que
todas as pessoas são igualmente responsáveis pela degradação ambiental e
destaca, para a superação desse problema, o compromisso individual e a
responsabilidade social, enfatizando a participação social na promoção desse
projeto. O conceito de “sustentabilidade” tem sido nas últimas décadas uma das
principais bases de sustentação ideológica das políticas neoliberais. Este foi
formulado oficialmente em 1987, quando a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente
e Desenvolvimento da ONU aprovou o relatório Nosso Futuro Comum:
a Comissão Brundtland, como ficou conhecida, publicou um relatório
inovador, Nosso Futuro Comum que traz o conceito de
desenvolvimento sustentável para o discurso público. “O
desenvolvimento sustentável é o desenvolvimento que encontra as
necessidades atuais sem comprometer a habilidade das futuras
gerações de atender suas próprias necessidades.”
Em 1992, a relação entre o meio ambiente e o desenvolvimento, e a
necessidade imperativa para o desenvolvimento sustentável foi
vista e reconhecida em todo o mundo. Na Agenda 21, os governos
delinearam um programa detalhado para a ação para afastar o
mundo do atual modelo insustentável de crescimento
econômico, direcionando para atividades que protejam e renovem
os recursos ambientais, no qual o crescimento e o
desenvolvimento dependem (ONU, 2014).
Apesar de reconhecer a insustentabilidade do modelo econômico, a ONU
destaca ações para qual o crescimento e o desenvolvimento dependem. Ou seja,
crescimento e desenvolvimento capitalista são necessidades imperativas,
independentemente de sua insustentabilidade. Loureiro (2012, p. 72), ao remontar à
construção histórica do conceito de desenvolvimento sustentável, partindo de
documentos e discursos de organismos da ONU, aponta para um conteúdo
reprodutor das práticas econômicas existentes:
associando desenvolvimento a crescimento e à expansão do
mercado, desde que este se paute pelos princípios solidários,
garantindo hipoteticamente a compatibilidade entre preservação da
natureza e justiça social.
No caso brasileiro, se a eleição de FHC expressou a opção do empresariado
por um projeto que prometia não somente estabilidade e continuidade da política
liberal, esta também compunha uma relativa pacificação dos movimentos sociais,
18
em particular dos sindicatos. Esta expressava às frações dominantes a possibilidade
de superar a falta de capacidade de dirigência política do conjunto da nação, sendo,
portanto, um caminho para ultrapassar a crise de hegemonia que se desenvolveu
desde o começo da década de 1980 (BIANCHI, 2004).
Em verdade, buscava-se refuncionalizar os mecanismos de manutenção e
legitimação do bloco histórico neoliberal, modificando para isso algumas das funções
do Estado que, a partir de então, não deveria deixar de ter uma participação ativa no
modo de produção da vida social ainda que de forma específica como vinha
sendo propalado no momento da primeira vertente de neoliberalismo. Seria,
portanto, necessário dar continuidade e aprofundamento das medidas liberalizantes
anteriores, mantendo a ênfase no desenvolvimento capitalista como forma de
promoção da riqueza social, no entanto deslocando o papel do Estado no
reconhecimento e atuação em algumas falhas geradas, como a pobreza extrema, a
“questão ambiental”, dentre outras.
A reorientação do rumo neoliberal dado pelas agências multilaterais passaria
a ser a defesa de uma nova configuração do Estado, que deveria possuir então
funções reguladoras da atividade econômica, além de realizar, em parceria com o
setor privado, políticas emergenciais, focalizadas e assistencialistas, que buscassem
minimizar o avolumamento das expressões da “questão social” e da própria “questão
ambiental”. Desta forma, evitava-se a lógica do confronto em questões politicamente
mais efusivas e possibilitava a adesão das camadas populares com o atendimento
mínimo de demandas de caráter profundamente emergencial (CASTELO, 2013).
A proposta buscava a instauração de um modelo de condensação do poder
que se estruturasse em torno da despolitização da política e repolitização da
sociedade civil. Conforme Neves (2005), a despolitização da política se daria no
sentido de anular a discussão sobre projetos de sociedade que contestassem a
relações capitalistas de produção da existência, limitando qualquer possibilidade de
mudança apenas aos marcos de um reformismo político. A repolitização da
sociedade civil se na direção de redefini-la como uma esfera supostamente
idílica, harmoniosa, sem antagonismos de interesses, no sentido de fortalecer
práticas de conciliação de classes (NEVES, 2005).
Ainda que tenha se esforçado no sentido de ser visto como portador de um
projeto diferente de sociedade em relação ao de FHC por exemplo combatendo a
expressão “Terceira Via” os governos de Lula da Silva não conseguiram, e nem
19
pretenderam, se desvencilhar destes propósitos (MELO; FALLEIROS, 2005), sendo
o mesmo para os governos subsequentes. Mesmo com o recente período de
ascensão de um liberalismo ultraconservador, vemos o refluxo de retorno e de apoio
das camadas dominantes aos antigos portadores de seus projetos hegemônicos
como é o caso dos Estados Unidos e do Brasil.
Portanto, até meados dos anos de 1990, os ideólogos do capital mantinham
uma profunda relação entre pobreza e degradação ambiental. Conforme o Banco
Mundial apud Santos e Araújo (2013), os pobres eram “ao mesmo tempo vítimas e
agentes da degradação do meio ambiente”. Após esse período, uma
reorganização do ideário relativo à “questão ambiental”, coloca-se em toda a
sociedade civil a responsabilidade pela degradação ambiental, isentando o modo de
produção e, portanto, o padrão de acumulação capitalista.
A partir dos anos de 1990, o apelo à conciliação e ao consenso foram
anunciados como condição para robustecer o enfrentamento às crises,
representando estratégias de reconstituição da hegemonia burguesa. Reivindicando
a educação como tarefa compartilhada entre Estado e sociedade civil, norteada pelo
princípio de uma suposta equidade (CÊA et al., 2019), educação e “questão
ambiental” passaram a termos quase que fundidos, servindo como pilares do projeto
neoliberal. Para Loureiro (2012), estas estratégias de atuação passam pelo
julgamento moral, no qual os valores são definidos pela ideologia hegemônica ao
invés de se situar na esfera do sujeito nas relações de produção e na vida cotidiana,
o que não altera as condições de existência das relações de apropriação privada
dos bens com vistas à acumulação. A centralidade se afasta das relações sociais
para se situar no âmbito do indivíduo, no qual a mudança de comportamento que
visa atingir a sustentabilidade perpassa pela aceitação da necessidade de
manutenção de uma “viabilidade econômica” nos limites do capital, sociabilizada por
via de mecanismos educacionais.
No processo de legitimação da ideia de “crise ambiental”, de sua utilização
como forma de mobilização em torno do projeto burguês e de retirada do foco das
contradições insolúveis do próprio modo de produção capitalista, do neoliberalismo
de Hayek à “Terceira Via” de Giddens, pouco se alterou nas propostas de retirada
dos direitos sociais universais. No processo de desenvolvimento das ideias
neoliberais da segunda vertente de neoliberalismo o chamado social-liberalismo
(CASTELO, 2013) a “questão ambiental” passou a ganhar maior centralidade
20
como um dos pilares de manutenção da hegemonia burguesa. Se hoje vemos nos
rankings de “empresas verdes” as maiores corporações imperialistas mundiais,
acabando por alcançar estas uma diversidade de incentivos dos Estados inclusive
no Brasil é porque a utilização da “questão ambiental” como um dos pilares da
manutenção da hegemonia burguesa funcionou.
Conclusão
O processo sócio-histórico de reprodução ampliada do capital busca abarcar
dentro de sua racionalidade todos os elementos sociais, visando convertê-los em
estratégias para a sua perpetuação. Se analisarmos o contexto de formulação da
“questão ambiental”, podemos apreender que esta foi adequada aos projetos
dominantes em determinado contexto histórico com vistas à obtenção da hegemonia
burguesa. Com o desenvolvimento do ideário neoliberal, os significados da “questão
ambiental” foram refuncionalizados como um dos pilares para adquirir capacidade
operatória da fração dominante na manutenção da direção política das outras
classes e frações.
A propalada importância e mobilização acerca da temática esconde o
processo concreto de subsunção de uma totalidade de relações à reprodução
ampliada do capital. A centralidade que a “questão ambiental” tomou no curso
sócio-histórico serviu mais à mobilização das classes e frações ao projeto de
sociabilidade dominante do que trouxe resultados concretos. Basta perceber a piora
constante dos indicadores ambientais. Segundo a Global Footprint Network (WWF,
2022), organização internacional pelo cálculo da pegada ecológica, o índice para
sustentar o padrão de consumo no planeta, em 2022, subiu em relação ao ano
anterior8.
Portanto, a apreensão da “questão ambiental” como especificidade social
historicamente determinada deve buscar transcender a lógica instrumental criada em
torno do projeto de hegemonia burguesa, visando desenvolver o acesso aos bens
ambientais como um direito universal elementar à vida. Devido à fusão entre
educação e “questão ambiental”, cabe, especialmente aos educadores mas
também aos demais trabalhadores apreender a totalidade determinada no
8Segundo a organização, em 2021 era necessário 1,7 planeta para sustentar o padrão de consumo,
neste ano o cálculo subiu para 1,75 (WWF, 2022).
21
processo sócio-histórico e explicitar suas lógicas fetichizadas, possibilitando sua
abordagem através do compromisso ético-político com a classe fundamental a qual
pertencem.
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25
V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
MIGRAÇÃO, TRABALHO E EXPERIÊNCIA NA OCUPAÇÃO CONTESTADO,
EM SÃO JOSÉ/SC1
Lyn Silva2
Célia Regina Vendramini3
Resumo
O artigo analisa a experiência de trabalhadores migrantes na Ocupação Contestado, em São José/SC.
Apresentamos quatro trajetórias de trabalhadoras migrantes, as quais revelam sua experiência como
trabalhadoras, migrantes, mães e participantes do processo político-educativo constituinte da Ocupação.
Concluímos que a migração é determinada pela dinâmica do capital, e a ocupação é expressão, por um lado, do
processo de expropriação/exploração no trabalho, da ausência de moradia e da violência do estado. De outro
lado, revela a indignação e a força de luta dos trabalhadores organizados.
Palavra-chave: Trabalho e Educação; Ocupações urbanas; Migração; Experiência.
MIGRACIÓN, TRABAJO Y EXPERIENCIA EN LA OCUPACIÓN CONTESTADO EN SÃO JOSÉ/SC
Resumen
El artículo analiza la experiencia de los trabajadores migrantes en la Ocupación Contestado, en la ciudad de São
José/SC. Presentamos cuatro trayectorias de trabajadoras migrantes, que revelaron su experiencia como
trabajadoras, migrantes, madres y partícipes del proceso político-educativo constitutivo de la Ocupación.
Concluimos que la migración está determinada por la dinámica del capital, y que la ocupación es expresión, por
un lado, del proceso de expropiación/explotación en el trabajo, el desamparo y la violencia estatal. Por otro lado,
revela la indignación y la fuerza de lucha de los trabajadores organizados.
Palabra clave: Trabajo y Educación; ocupaciones urbanas; Migración; Experiencia.
WORK, EDUCATION AND POLITICS IN THE EXPERIENCE OF MIGRANTS FROM THE CONTESTADO
OCCUPATION IN SÃO JOSÉ/SC
Abstract
The article analyzes the workers migrant experience in the Contestado Occupation, which began in São José/SC.
We present four trajectories of migrant workers, which revealed their experience as workers, migrants, mothers
and participants in the political-educational process constituting the Occupation. We conclude that the migration is
determined by the dynamics of capital, and occupation is an expression, on the one hand, of the process of
expropriation/exploitation at work, homelessness and state violence. On the other hand, it reveals indignation and
fighting strength of the organized workers.
Keyword: Work and education; Urban occupations; Migration; Experience.
3Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos/SP (UFSCar). Docente titular
vinculada ao curso de Pedagogia do Centro de Ciências da Educação (CED/UFSC) e ao Programa
de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UFSC). E-mail: celia.vendramini@ufsc.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7441375272877530. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-9600-2868.
2Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de
Santa Catarina (PPGE/UFSC). Professor de História na educação básica.
E-mail: lyn82.novo@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4197314103652558.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5510-5980.
1Artigo recebido em 18/06/2022. Primeira avaliação em 19/07/2022. Segunda avaliação em
14/07/2022. Aprovado em 06/09/2022. Publicado em 10/11/2022.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.54919.
1
Introdução
Quando morar é
um privilégio, ocupar é um direito4
Como os processos históricos e contemporâneos de expropriação e
exploração se relacionam com os fenômenos da migração e do déficit habitacional
no Brasil? Como os/as migrantes da classe trabalhadora lutam para garantir a
produção e a reprodução de suas vidas? Estas são questões complexas e de
grande relevância. No entanto, para avançarmos na compreensão destes
fenômenos, é preciso fazer um recorte na análise, focando em alguns aspectos ou
manifestações desta totalidade. Neste sentido, o foco deste artigo se volta para as
ocupações urbanas de trabalhadores sem-teto, tendo como objeto de análise a
experiência de produção e reprodução da vida de trabalhadores e trabalhadoras
migrantes na Ocupação Contestado, localizada na cidade de São José, Grande
Florianópolis, no estado de Santa Catarina, buscando analisar elementos da
trajetória de vida dos migrantes, tais como: trabalho, moradia, escolarização,
educação e luta social.
Os processos originários e atuais de expropriação e exploração5determinam
em última instância o déficit habitacional e a migração forçada. A expropriação seja
dos processos originários que separaram o trabalhador dos meios de produção da
vida (MARX, 2013), seja na atualidade, marcada pela mercantilização de todas as
formas de vida social e pela disponibilidade total dos trabalhadores ao capital
(FONTES, 2010) - cria as condições para a permanente exploração dos
trabalhadores. Tal processo combinado resulta em condições de vida abaixo da
existência, entre elas, a ausência de moradia, o que gera processos de organização
e luta de trabalhadores urbanos e rurais.
A Ocupação Contestado foi fruto de um importante movimento de luta por
terra e moradia, que contou com a presença de indivíduos e famílias trabalhadoras
5Alguns dos mecanismos da acumulação primitiva que Marx enfatizou foram aprimorados para
desempenhar hoje um papel bem mais forte do que no passado. O sistema de crédito e o capital
financeiro se tornaram, como Lenin, Hilferding e Luxemburgo observaram no começo do século XX,
grandes trampolins de predação, fraude e roubo. A forte onda de financialização, domínio pelo capital
financeiro, que se estabeleceu a partir de 1973 foi em tudo espetacular por seu estilo especulativo e
predatório (HARVEY, 2003, p. 122).
4Frase escrita em forma de pichação de protesto em muro próximo à Ocupação Contestado.
2
migrantes desde seu início.6Muitos destes sujeitos forjaram-se lideranças na própria
experiência, alcançando vitorias significativas como a permanência provisória no
local da ocupação e um acordo vinculado a políticas públicas habitacionais que
prometia a construção das moradias demandadas. Entretanto, este processo foi
violento por parte do poder público e das classes econômica e politicamente
dominantes na região, inserindo-se no contexto de criminalização da pobreza e dos
movimentos sociais tendo na especulação imobiliária uma força motriz significativa.
O estopim para a Ocupação foi uma promessa de campanha em ano eleitoral, onde
um candidato à prefeitura prometeu que iria conceder uma área para construção de
moradias sociais destinadas aos trabalhadores empobrecidos.
A noite de quarta-feira, oito de outubro de 2012, transformaria radicalmente a
experiência de um grupo de famílias trabalhadoras habitantes da cidade de São
José-SC. Por volta das 20 horas, na Igreja Assembleia de Deus localizada no bairro
José Nitro, adjunto ao Jardim Zanelatto, estas famílias participaram de uma
atividade de campanha eleitoral que teria sido articulada pelo candidato Djalma
Berger (na época PMDB), que concorria à reeleição ao cargo de prefeito da cidade.
No contexto das eleições municipais daquele ano, as famílias foram orientadas a
ocuparem uma área territorial gerenciada e de propriedade da Imobiliária Suvec
Ltda, localizada também no mesmo bairro. No encontro “político-religioso” com os
trabalhadores sem-teto realizado na Igreja Assembleia de Deus, o candidato do
PMDB, juntamente com Dário Berger, prefeito de Florianópolis na época, fez uma
promessa de campanha, “garantindo” que o terreno com uma área de 91.968,80m²,
que vinha sendo ocupado de forma espontânea algum tempo no bairro
Serraria/José Nitro, seria desapropriado pela prefeitura de São José e destinado ao
uso habitacional das famílias de baixa renda.
6Muitas destas famílias são provenientes de outros estados (principalmente Rio Grande do Sul,
Paraná e alguns estados do Nordeste, como Pernambuco e Ceará) e do interior do estado de Santa
Catarina (especialmente da região Oeste, marcada pela expulsão recente dos trabalhadores rurais). A
origem dos moradores da Ocupação Contestado é uma expressão da dinâmica das migrações
internas no estado de Santa Catarina. De igual modo, a maioria das famílias possui um histórico de
periferização na região da Grande Florianópolis, isto é, residem em locais cada vez mais afastados da
região central, no que expressam, ainda, a dinâmica da ocupação do solo urbano, como vítimas dos
processos de valorização da terra urbana em curso. Em ambos os movimentos, as famílias da
Ocupação Contestado e suas trajetórias migratórias dizem muito sobre a dinâmica migratória
existente no estado de Santa Catarina e também sobre a dinâmica dos movimentos intra-urbanos na
região da Grande Florianópolis. (CANELA, 2016, p.3).
3
O prefeito de Florianópolis estava engajado na campanha de reeleição de
Djalma Berger (PMDB) e, naquela ocasião, fez um discurso prometendo que as
famílias dos trabalhadores sem-teto, as quais estavam em posse do terreno, teriam
seu lote de terra cadastrado e legalizado, dando a entender que pessoas com
problemas de moradia poderiam juntar-se a outras famílias que ocupavam o
terreno cerca de dez anos. Eram aproximadamente cinquenta moradias simples
que estavam sobre o terreno. A garantia da promessa de campanha foi endossada
com a assinatura simbólica do Decreto 37.180/2012 de 21 de setembro de 2012,
que trata da desapropriação da área.
Após o término do comício, cerca de 200 famílias passaram a ocupar o
terreno prometido pelo candidato a prefeito.7Habitações precárias, de madeira,
foram construídas e somaram-se às demais que ali estavam. A construção das
“casas” ocorreu na perspectiva de conquista da moradia, as habitações precárias
foram feitas pelos próprios trabalhadores sem-teto, algumas com materiais
reciclados. Havia pessoas que no momento não tinham possibilidades de arcar com
qualquer custo relativo ao material, por isso passaram a noite ao relento ou embaixo
de lonas plásticas, a fim de garantir sua posse do terreno.
Ocorreu que o candidato não se elegeu e os trabalhadores sem teto que
tinham ocupado a área prometida foram expulsos do local de forma violenta pelas
forças do estado. Tal evento indignou e mobilizou os trabalhadores, e com o apoio
de movimentos sociais que se solidarizaram com a situação, no período da
reintegração e posteriormente quando estas pessoas foram alojadas
temporariamente em um estádio de esportes, foi realizada uma nova ocupação, a
Ocupação Contestado. Neste contexto, a organização política Brigadas Populares
teve e tem uma função central no desenvolvimento do processo de luta por moradia
7A promessa foi registrada em câmeras de celular por algumas pessoas que ali estavam presentes
na igreja, vejamos a seguir um trecho do discurso: “Hoje os companheiros estão com uma ordem de
despejo. Uma ordem judicial de despejo. Então a partir de setembro, como foi assinado o decreto,
essa possibilidade de despejo, ela não existe mais. Portanto, a prefeitura vai indenizar o terreno, vai
legalizar o terreno, e vai dar o terreno para os proprietários que estão em cima do terreno, ali da
imobiliária Suvec (...). Segunda-feira a prefeitura vem com a equipe de cadastramento para cadastrar
as famílias ali e para que possam fazer o loteamento, legalizar a área e deixar vocês na área onde
vocês estão”. CENTRAL DE MÍDIA INDEPENDENTE (CMI). A casa que o prefeito deu pra nós. Vídeo
Documentário Curta Metragem. Florianópolis: CMI, 2012, segs., 0,10’’- 0,50’’. Disponível em:
https://vimeo.com/51933986. Acessado em 10 de outubro de 2015.
4
travado pela Contestado. A rede de apoio8aos trabalhadores da Contestado é
efetiva e ativa, entretanto as Brigadas Populares se destacaram nesta tarefa.
Por meio de diferentes formas de atuação em diversos territórios, a
organização da Ocupação está embasada por estruturas e instâncias de direção.
Entre as estruturas de base estão brigadas territoriais, agindo em ocupações,
periferias, universidades, e as Brigadas temáticas, agindo em pautas, eixos e temas
como anti-prisional, feminismo, movimento negro, comunicação, transporte e
sindicatos.9
Atualmente, centenas de pessoas travam uma batalha diária desde o ano de
2012 pela própria sobrevivência, moradia digna e o direito à cidade, batalha essa
agravada pelas mazelas da pandemia da COVID-19 e a crise econômica. As
questões da moradia e da migração se retroalimentam, atualmente levantamentos
realizados pelas próprias lideranças da Ocupação indicam que o número de
migrantes na Contestado se aproxima de 70%. Do conjunto total de trabalhadores
9A estratégia de trabalho de base das Brigadas Populares tem como eixo fundamental a organização
do povo e, para fazer frente aos desafios da conjuntura, trabalhar com a Resistência Popular
Prolongada (RPP), disputando cotidianamente os espaços, tempos e territórios, visando um
enfrentamento em um quadro de assimetria de forças em conflito, que é o caso brasileiro. Principal
instrumento de materialização da RPP, as Comunas são unidades territoriais de organização social e
política do povo. As comunas são um dispositivo político e físico implantado nos territórios com o
objetivo de engajar a comunidade em atividades que elevem seu perfil de organização e seu
comportamento político. Assim, o sujeito social se cria por meio do seu protagonismo e de sua
identificação com uma narrativa alternativa à dominante (esta pautada no individualismo e na
fragmentação das demandas comuns). As comunas desenvolvem atividades relacionadas à
educação popular, organização comunitária, economia popular solidária, cursinhos populares, cultura,
acolhimento de demandas do cotidiano, orientação jurídica e muitas outras ações. Essas atividades
respondem a demandas imediatas e criam o contexto para o estabelecimento de uma identidade
coletiva e de estruturas de afeto e solidariedade que se expressam em engajamento político.
(Informação disponível na página das Brigadas Populares na internet:
https://brigadaspopulares.org.br/).
8A notícia do desalojamento das famílias chegou ao conhecimento de movimentos sociais de
Florianópolis e da região conurbada, os quais brevemente se solidarizaram com a causa destas
famílias e trataram de articular uma “Rede de Apoio” aos desabrigados. A troca de experiência entre o
movimento social organizado e os trabalhadores sem-teto contribuíram para o avanço da luta. Esta
Rede era composta por diversas organizações populares, como as Brigadas Populares, Diretório
Acadêmico 8 de Maio-DAOM/UDESC, CSP–Conlutas, Sindicato dos Bancários, Partido dos
Trabalhadores (PT-Estadual), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), SindSaúde/SC,
Gabinete Sargento Amauri Soares, Corrente Comunista Luís Carlos Prestes (CCLCP), CMAS-Fórum
da Cidade, Movimento Negro Unificado (MNU/SC), SINDPREVS, Moradores do Maciço do Morro da
Cruz, AGB Associação dos Geógrafos Brasileiros, Movimento Passe Livre (MPL), Coletivo
Anarquista Bandeira Negra, Portal de notícias Desacato.info, apoiadores independentes e demais
movimentos. Fonte: SILVA, L. A experiência de trabalhadores migrantes na Ocupação Contestado em
São José/SC. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, 2019.
5
que iniciaram o movimento, houve uma alteração de cerca de 25%, atualmente em
torno de 130 famílias moram na ocupação.
É verdade que as reformas urbanas e rurais são possíveis de serem
realizadas na própria dinâmica do sistema capitalista, tendo ocorrido em países
capitalistas. O próprio capital se realiza nesta relação de déficit e precariedade de
acesso à terra e moradia e reformas urbanas e rural. Entretanto, as ocupações
urbanas e de terras podem trazer consigo elementos que entram em contradição
com o capitalismo, quando direta ou indiretamente agem e forjam lutas contra a
propriedade privada capitalista. Tal ocorrência se de forma mais evidente quando
as ocupações urbanas são realizadas, ou contam com o apoio e orientação de
organizações políticas que tem em seu horizonte estratégico a superação do modo
de produção capitalista. Pode-se observar que mesmo a demanda imediata e de
curto e médio prazo para a conquista da moradia no âmbito do capitalismo, uma
compreensão da própria organização que hoje se funde com a Contestado, as
Brigadas Populares, de que a disputa pela forma e conteúdo das reformas agrarias e
urbanas fazem parte de um movimento dentro do processo histórico, empenhado no
desenvolvimento de uma experiência econômica que forje uma cultura habitacional e
de uso e utilização da terra superior a vigente no capitalismo.
Os participantes da Ocupação foram erguendo suas habitações e diversos
problemas foram sendo superados no processo. No início se montaram cozinhas e
banheiros coletivos, os materiais foram sendo arrecadados perante doações e
também comprados pelos participantes que construíram as habitações em forma de
mutirão. Esta prática é descrita por Ermínia Maricato, em sua obra “A produção
capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial”, da seguinte forma:
A autoconstrução, o mutirão, a autoajuda, a ajuda mútua são termos
usados para designar um processo de trabalho calcado na
cooperação entre as pessoas, na troca de favores, nos
compromissos familiares, diferenciando-se, portanto, das relações
capitalistas de compra e venda da força de trabalho. (MARICATO,
1979, p. 71).
Entendemos que todo este processo de autoconstrução é algo que compõe
de forma central as estratégias observadas regularmente nas ocupações urbanas
organizadas ou apoiadas por setores populares e progressistas da sociedade.
Podemos, assim, entender o mutirão, a coletividade e a solidariedade de classe no
6
movimento dos sem teto e sem-terra como parte de uma cultura econômica e
política forjada na experiência de resistir e sobreviver diante do processo de
expropriação/exploração.
As experiências dos que constituem a Ocupação são compreendidas como
expressão da experiência de classe dos trabalhadores, os quais vivenciam em
comum a expropriação e a exploração, o que decorre, entre outros aspectos, na
ausência de moradia. Da mesma forma, os trabalhadores têm em comum
enquanto classe a insatisfação diante da sua condição de vida, a qual pode gerar
processos de rebeldia, organização e luta, como é o caso da Ocupação Contestado.
A categoria experiência tem como base teórica os estudos do historiador inglês
Edward P. Thompson acerca da classe operária inglesa (1987), na qual abstrai a
experiência dos que viveram e lutaram num determinado período histórico,
considerando o processo e o sujeito na história. De acordo com o autor, a
experiência “compreende a resposta mental e emocional, seja de um indivíduo ou de
um grupo social, a muitos acontecimentos inter-relacionados ou a muitas repetições
do mesmo tipo de acontecimento.” (1981, p. 15)
Com base em entrevistas realizadas com quatro mulheres da Ocupação
Contestado, apresentamos elementos que compõem suas trajetórias singulares de
mães, trabalhadoras, migrantes e lutadoras. Em seguida, analisamos suas
experiências numa perspectiva de totalidade, enquanto expressão do problema de
moradia no país e o decorrente processo de migração e ocupação urbanas.10
10 Foi feita uma inserção no campo de estudos, afim de verificar a possibilidade de concretização da
pesquisa. Nesta ocasião foi contatada uma das lideranças da Ocupação para apresentar a pesquisa.
Assim, ao longo do processo de investigação no campo de pesquisa, contamos com o auxílio e a
mediação desta liderança. A participação de um dos autores do presente artigo na rede de apoio e a
parceria feita dos trabalhadores do movimento com professores e estudantes da UFSC e da
UDESC em outras pesquisas e no auxílio à Ocupação, favoreceram a confirmação da realização do
trabalho. Obteve-se o apoio técnico na captação de imagem e som, na logística de transporte, e na
mediação com as lideranças da Ocupação do doutorando do PPGE/UFSC Luiz Paiva. A rotina do
trabalho de campo iniciava com o deslocamento até a Ocupação por volta das 7:00 horas da manhã,
assim que chegávamos nos dirigíamos para casa da citada liderança, ficávamos cerca de 1:30h a 2
horas em sua residência. Neste meio tempo, ela nos oferecia café, atualizava informações sobre os
acontecimentos políticos e conjunturais do movimento, e nos ajudava a selecionar o próximo
trabalhador (a) migrante a ser entrevistado (a). Ao mesmo tempo dava atenção aos filhos, às tarefas
da casa e às demandas cotidianas da reprodução da vida social em uma ocupação urbana. Estes
períodos nos permitiram acompanhar a resolução de alguns problemas, como por exemplo a
distribuição de cestas básicas realizadas por membros da Ocupação que participavam de uma igreja
evangélica da região. Auxiliamos na preparação de uma festa junina que aconteceria no local, e
demos início a um processo de atualização da numeração das casas e do número de habitantes,
destacando questões de coabitação e da presença de migrantes. O surgimento da pandemia da
COVID-19 impossibilitou nosso apoio na atualização do senso a ser realizado. A experiência concreta
7
Priscila: uma jornada de resistência e liderança11
Depois que tu começas a conhecer os teus direitos tu
começas a lutar por eles.
Priscila é considerada uma das lideranças da Contestado e foi por meio dela
que pudemos concretizar esta pesquisa empiricamente. Além de conceder nossa
primeira entrevista, ela mediou as demais, nos auxiliando a entender melhor a
experiência da Ocupação. Priscila tem 37 anos e está em uma união estável com
seu companheiro, com quem vive aproximadamente vinte anos. Ela tem seis
filhos e uma neta. Natural da cidade de Joinville, nos conta que a mãe nasceu na
cidade de Braço do Norte e o pai em Urubici, ambos no estado de Santa Catarina.
Sua mãe quando jovem migrou e foi morar na Serra Catarinense e depois no morro
da Lagoa da Conceição, em Florianópolis. Priscila tem dois irmãos mais velhos que
nasceram em Braço do Norte e outro irmão que assim como ela nasceu em Joinville.
Foi em 1992 que Priscila veio para Florianópolis, quando tinha onze anos. Após sua
chegada, morou no bairro Estreito próximo ao Hospital Florianópolis na parte
continental da cidade. Depois sua mãe comprou uma casa na Praia de Fora no
município de Palhoça-SC, onde morou cerca de dez anos. Priscila, assim que casou,
mudou-se para São José-SC, onde morou na atual casa da mãe, no Jardim
Zanellato, de 2005 até o início da Ocupação em 2012.
Entre os motivos que levaram a família de Priscila a migrar de cidade em
cidade, temos o elemento dos laços familiares. Sua mãe se divorciou do seu pai, ela
e a irmã ficaram sob a guarda da mãe e o seu pai ficou com a guarda dos seus
outros dois irmãos. Sua mãe casou-se novamente e em seguida foi buscar as duas
filhas. A maioria da família da mãe de Priscila morava na região da Grande
Florianópolis, mas também em São Paulo, Urubici, Paulo Lopes e Criciúma. O
amparo familiar foi importante quando a mãe da Priscila se separou. Criar duas
filhas sozinha seria difícil e complicado, situação comum para mulheres
trabalhadoras e migrantes no Brasil.
11 Os nomes das trabalhadoras migrantes da Ocupação Contestado, entrevistadas nesta pesquisa,
foram modificados com o intuito de preservar a identidade das mesmas.
na Contestado nos proporcionou estreitar os laços de amizade, aprendizagem e solidariedade com
os/as trabalhadores (as).
8
Priscila conta que estudou até o ensino médio, porém não o completou. Parou
de frequentar as aulas após um acidente e não retornou mais, nesta época Priscila
era casada e diz ter sido um período difícil. Em suas lembranças conta que em
seu tempo de escola, ela era rebelde. Era inteligente, tirava notas boas, mas tinha
divergências com alguns professores por não aceitar o método de ensino.
Depois que veio para a Grande Florianópolis, relatou que estudou em
aproximadamente seis escolas. Priscila recorda a tentativa de um projeto de
extensão que seria realizado na Ocupação, uma espécie de supletivo acontecendo
de quinze em quinze dias. Se este projeto tivesse se concretizado poderia ter
retornado aos estudos. Ela percebe que a demanda por educação formal não é uma
exclusividade sua e que um número grande de jovens e adultos na Contestado
que não concluíram o percurso básico da educação. Muitos deles teriam vontade de
retornar aos estudos, mas a falta de oportunidades dificulta este retorno.
O aprendizado sobre os processos complexos e dinâmicos vivenciados por
Priscila nestes dez anos de Ocupação transformou a maneira como esta
trabalhadora migrante sobrevive e define, entre as condições possíveis, os próximos
caminhos a seguir. Toda essa experiência lhe permite fazer análises sobre o que se
passou.
(...) foi mapeado esse terreno e a gente ocupou (...) aqui né, porque
na verdade moradia é um direito de todos e como diz o ditado
antigamente, se perguntasse para mim eu ia começar a rir porque
para mim antigamente sem-terra era tudo maluco (...). depois que
tu começas a conhecer os teus direitos tu começas a lutar por eles.
Vai trabalhar o resto da vida e tu não vai conseguir adquirir nada
porque a gente hoje em dia trabalha de dia para comer à noite. Então
ali a gente agarrou aquilo que eram famílias que realmente
precisavam daquilo ali, a gente dependia que isso aqui desse certo,
não voltar para aluguel para não voltar a morar de favor, então assim,
foi uma resistência muito grande e eu fui me identificando com essa
luta. (PRISCILA, entrevista 1, 2019).
A luta coletiva e organizada foi uma forma de interromper seu movimento
migratório, trazendo novas características para a trajetória e experiência de Priscila,
alterando sua própria compreensão sobre a questão da moradia e da justiça social.
Apesar de enfrentar muitas dificuldades em seu cotidiano e de sua família, ela
não paga aluguel e não precisa morar de favor na casa de parentes. Tal condição
proporciona um alívio nas contas do mês e a oportunidade de cessar o
9
deslocamento contínuo. Faz dez anos que Priscila e sua família não mudam de
casa, nem de bairro ou cidade.
A liderança real surge na base, trabalhadores tornando-se sujeitos políticos,
Priscila é uma intelectual orgânica dos trabalhadores migrantes e dos sem-teto.
Apesar de não ter uma função burocrática de líder da ocupação, a sua trajetória de
vida e a maneira como ela foi lidando com sua experiência de classe dentro da
ocupação a fez ser considerada uma liderança para os trabalhadores e para os
apoiadores. Sua experiência nos recorda Gramsci, quando aponta que:
O modo de ser do novo intelectual não pode mais consistir na
eloquência, motor momentâneo dos afetos e das paixões, mas num
imiscuir-se ativamente na vida prática, como construtor, organizador,
persuasor permanente, que não apenas orador puro e superior,
todavia, ao espírito matemático abstrato, da técnica-trabalho,
eleva-se a técnica ciência e a concepção humanista histórica, sem
a qual se permanece especialista e não se chega a dirigente.
(GRAMSCI, 1979, p. 8).
Assim como Priscila, os militantes mais atuantes da Contestado ingressaram
nas Brigadas Populares, motivados pela própria ação concreta e diária deste
movimento popular, que esteve apoiando os sem-teto desde o início da Contestado.
Atualmente, a Ocupação se identifica politicamente como “brigadista”, ou seja,
compõe de forma orgânica o quadro de ocupações urbanas apoiadas pelas Brigadas
Populares. Articula-se, assim, com a luta nacional por moradia e com as
organizações políticas que lutam pelos direitos da classe trabalhadora.
Carmem: do sindicalismo ao movimento dos trabalhadores sem-teto
Eu luto com todas as minhas forças para não sair daqui
antes de ter uma moradia, porque eu não tenho para onde ir.
Todas as pessoas têm uma identidade, um rosto, uma história. Aqui mais um
desses indivíduos compartilha sua trajetória, experiência e luta. Carmem, a segunda
trabalhadora migrante entrevistada começou seu relato se identificando, estou com
53 anos, estou em processo de separação e tenho três filhos. Quatro filhos, porque
adotei meu neto. Assim como acontece com Carmen, essa história se repete e é
recorrente em muitas famílias brasileiras. As avós ajudarem a cuidar dos netos na
10
falta da mãe, ou mesmo para que a mãe possa trabalhar para prover o sustento de
todos. Esta trabalhadora migrante viveu esta situação por doze anos, até o momento
em que a criança voltou ao convívio pleno com a mãe. Carmem nasceu em São
Paulo, capital, sua mãe no estado de Santa Catarina, na cidade de Garopaba,
mudou-se para o Rio de Janeiro e depois para São Paulo. O pai era do Espírito
Santo, ambos são falecidos. Conheceram-se no Rio de Janeiro, tiveram uma filha
lá, irmã carioca de Carmem e em seguida foram para São Paulo, onde tiveram duas
filhas, Carmem é uma delas.
Observamos na sua trajetória familiar que a experiência da migração esteve
sempre presente. Aos 11 anos, Carmem vai para Santa Catarina, especificamente
para Imbituba, onde por falta de emprego para a mãe não ficaram por muito tempo.
O que moveu a família a migrar inicialmente foi a questão da falta de trabalho e a
saúde frágil de um dos irmãos que se agravava em função do clima e poluição na
cidade de São Paulo. Mudaram-se novamente, desta vez para a Grande
Florianópolis. Moraram no bairro Monte Cristo, Saco dos Limões, Forquilhinha e no
jardim Zanelatto, onde tiveram contato com a Contestado. Carmem tinha
conhecimento de que havia um movimento de trabalhadores sem teto próximo ao
local onde morava. Em conversa com uma amiga, a quem chama de Galega, ficou
conhecendo melhor a Ocupação Contestado.
(...) assisti duas reuniões, primeiro assim sem vínculo (...) daí fui
sorteada, não era todo mundo que pegava (...) daí fiz um empréstimo
e fiz minha casinha, um chalezinho que caiu num dia de chuva forte.
Mas daí vim para morar nesse chalezinho, eu vim para quinze
dias depois que o pessoal entrou. (...) A gente não tinha água, a
gente não tinha luz, daí foi feito um gato da água, (...) cada quadra
tinha um local, uma torneira, daí a gente tinha que carregar, eu
acordava às quatro da manhã para encher tudo, não tinha luz, depois
que a gente conseguiu fazer um bico de luz, (...) era tudo feito na
cozinha comunitária, então eu vim bem no começo. A maioria das
casas era de lona. (CARMEM, entrevista 2, 2019).
Carmem ainda em São Paulo esteve com os irmãos no internato até seus 11
anos, quando se refere a esse período transparece uma certa tristeza por crescer
afastada da família. Entretanto, demostra gratidão ao se referir ao aprendizado no
colégio interno. Educação de qualidade, limites, disciplina, horário são elementos
que ela considera importantes para a sua vida. Reconhece que a prática pedagógica
dentro do colégio de freiras foi fundamental para sua formação como ser humano.
11
Após o período no internato no interior de Taubaté-SP, um colégio Sírio não católico,
curiosamente administrado por freiras, sua mãe retira os filhos dessa escola e vai
com todos para o estado de Santa Catarina. Carmem completou o ensino médio e
relata que sofreu muito, porque quando começou a migrar teve que repetir do quinto
até o oitavo ano, sabendo tudo e não podendo mudar de ano escolar, repetindo tudo
o que tinha estudado.
Sobre ter ingressado em uma universidade, esta trabalhadora migrante diz
que por questões de saúde não foi possível. Relata ter tido problemas psicológicos
que intensificaram suas dificuldades, encerrando o sonho que tinha de ser uma
médica cirurgiã cardíaca. Ela chegou a fazer o curso técnico de enfermagem para se
preparar para a medicina e conhecer melhor a área da saúde. Porém, permaneceu
trabalhando na enfermagem até a aposentadoria. Nos dias de hoje, fala que se
tivesse condições voltaria a estudar e constata que o maior problema das pessoas
da Ocupação em relação ao estudo é o deslocamento e a conciliação da atividade
educacional com as tarefas diárias.
Entende que se tivesse dentro da comunidade um espaço escolar, ela e as
demais trabalhadoras poderiam completar seu percurso formativo. A demanda por
um espaço de ensino e aprendizagem dentro da Ocupação é recorrente entre o
conjunto dos trabalhadores e das trabalhadoras.
Ao chegar no estado, mais especificamente em Florianópolis, Carmem
trabalhou como empregada doméstica e camareira. Na sequência fez concurso
público para a Prefeitura e trabalhou no munícipio como merendeira, então com
dezenove anos. Diferentemente das demais trabalhadoras migrantes entrevistadas
nesta pesquisa, Carmem havia vivenciado a organização política por meio da luta
sindical. É com orgulho e satisfação que ela recorda do tempo que estava atuando
organicamente no sindicato, onde chegou a ser dirigente por quatro anos, entre o
final dos anos 1980 e início da década de 90.
À frente do Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Municipal de
Florianópolis (Sintrasen), a diretoria que Carmem compunha foi responsável por
conquistas de direitos importantes. O estatuto do sindicato, a data base, a
construção de mais de 58 sindicatos em prefeituras do entorno (como na cidade de
Rancho Queimado), a informatização dos diretórios dos trabalhadores, o dia oficial
de pagamento, o direito de férias e o plano de carreira, foram algumas das
12
conquistas relatadas por essa trabalhadora. Ela nos conta que a maioria dos direitos
que os trabalhadores do município têm hoje foram conquistados em sua época e
que o setor do magistério foi o que mais avançou de lá para cá.
Bernadete: uma migrante nordestina na luta por moradia
A gente trabalhava meia/meia, o dono da terra, se a
gente tirava seis sacos de feijão, nós tínhamos direito a
dois sacos e eles tinham direito a quatro sacos.
Ao chegar em Florianópolis, Bernadete trabalhou como doméstica com
registro na carteira, mas depois de ter seus filhos, parou de trabalhar fora, e foi
cuidar de outras crianças para complementar a renda do casal. no início de seu
relato, Bernadete citou a história que originou a Ocupação, articulando seu
depoimento com a sua própria história. A dificuldade de pagar o aluguel em sua
antiga residência é apresentada como um fator determinante na sua iniciativa de
participar do movimento.
A incompreensão e intolerância das forças do estado no dia da reintegração
de posse do primeiro terreno ocupado pelos trabalhadores, marcou sua memória. O
contato com a rede de apoio convenceu-a a permanecer no grupo dos trabalhadores
sem teto e ajudou-a a compreender os fatores determinantes sobre o problema da
moradia por ela vivenciado. Bernadete contou que chegou a falar com o candidato à
prefeitura na ocasião, relatando sua difícil situação de habitação e a falta de
recursos para pagar o aluguel, nesta ocasião recebeu apenas uma confirmação de
que o pessoal estava de posse do terreno. Após dez anos de Ocupação, esta
trabalhadora se diz contente por ter pelo menos saído do aluguel, pois estava
muito nervosa com a falta de recursos para sustentar a casa e a família junto com
seu companheiro.
No começo do movimento seu companheiro resistiu a ir com Bernadete para a
Ocupação, mas acabou se convencendo após essa trabalhadora determinada ter
uma conversa séria com ele, questionando-o se o mesmo pretendia passar o resto
da vida pagando aluguel. Bernadete começava a acreditar na luta coletiva pela
moradia, entendendo-a como forma possível de alterar sua trajetória pessoal e
familiar, assim como a condição de sua vida material. A própria luta organizada
13
forjava por meio da experiência um processo educativo. Bernadete, assim como a
maioria dos trabalhadores migrantes que, moraram de favor na casa de parentes e
amigos ou de aluguel, vivenciou a realidade de mudar de residência várias vezes.
Quando chegou em Florianópolis, ainda solteira, morou com o pai e os irmãos
que haviam migrado para a região, na jornada por uma vida melhor. Bernadete
relembra sua vida no Nordeste. Nascida em uma das regiões mais carentes do
Brasil, experimentou na pele as mazelas da desigualdade social e dos problemas
climáticos. Em períodos de seca as dificuldades sociais se agravavam, dificultando a
produção e a reprodução, da vida material dos trabalhadores rurais no Nordeste.
Situação que Bernadete e seus familiares conheceram de perto, tendo em vista que
a produtividade dos roçados em que a família trabalhava dependia diretamente da
presença das chuvas.
Assim como seus irmãos e a maioria de jovens e crianças oriundos do meio
rural nordestino, filhos de trabalhadores do campo, Bernadete tem em sua trajetória
de vida a experiência do trabalho infantil. Atividade essa que se desenvolveu em
uma relação de trabalho análoga ao “meeiro”, assim como no trabalho doméstico
auxiliando a mãe no cuidado dos irmãos menores e nas tarefas cotidianas.
Bernadete vem de uma família numerosa, quatorze irmãos, pai e mãe. Relembra e
compara a criação daqueles tempos com a de hoje. Constata que mesmo em meio
às dificuldades econômicas, que eram muitas naquela época, era mais fácil ter uma
família grande, longe da violência, onde os filhos eram criados mais livremente.
Bernadete fez a alfabetização no Nordeste, mas foi na Educação de Jovens e
Adultos, quando estava em Santa Catarina, que concluiu o ensino fundamental.
No período em que estava estudando continuou a trabalhar como empregada
doméstica, pois não tinha condições financeiras de se dedicar exclusivamente aos
estudos, realidade da grande maioria dos trabalhadores migrantes que cursam o
EJA. Sobre esta experiência compartilhada por trabalhadores migrantes é
importante entender que:
[...] a escolarização é quase um artigo de luxo, mesmo que muito
precarizada. As longas e duplas jornadas de trabalho, sobretudo no
caso das mulheres, concorrem com o tempo escolar. O cansaço, o
desânimo, a falta de estrutura para estudar, a fome, a timidez, a falta
de condições necessárias para ir à escola, como transporte e
vestimenta, são elementos que afastam o estudante deste processo.
(PEREIRA e VENDRAMINI, 2019, p. 203).
14
Em relação à possibilidade de retorno aos estudos formais, Bernadete diz que
as vezes tem vontade de voltar a estudar, mas por enquanto o retorno não está em
seus planos de curto e médio prazo. Seria preciso melhorar algumas coisas em sua
vida para ela conseguir reingressar na EJA.
Nos dias de hoje, morando na Ocupação, Bernadete concilia seu trabalho
doméstico com a atividade informal de venda de produtos cosméticos, não fica
parada. Diz que não tem interesse em buscar outro trabalho, pois tem seu tempo
comprometido com a casa e as vendas. Quando era solteira e tinha emprego
ajudava a mãe e os irmãos no Nordeste mandando dinheiro, depois de casada
dedicou-se à sua própria família. Em busca de melhores condições de vida,
trabalhadores nordestinos, assim como a família de Bernadete, vivenciam em suas
trajetórias o fenômeno migratório. Após uma longa e difícil jornada migratória, a
Ocupação proporcionou que esta trabalhadora migrante saísse do aluguel.
O evento trágico que caracterizou a reintegração de posse do primeiro terreno
foi um momento marcante na trajetória desses sujeitos. O grau de violência estatal
foi tamanho, que somado à real falta de moradia, gerou naqueles trabalhadores
resistência, alterou de certa forma sua consciência e suas ações. O terror policial
praticado contra aquelas famílias é lembrado por Bernadete, que descreve o
ocorrido da seguinte forma:
(...) nesse dia choveu muito, foi parecendo filme de terror, aquelas
crianças na chuva, todo mundo na chuva, eu também com a minha
lona, meu barraquinho erguido, vindo a cavalaria na frente, aquela
operação de choque, helicóptero, soltando bomba na gente (...)
aquelas armas assim (...) jogando spray de pimenta. (BERNADETE,
entrevista 3, 2019).
Bernadete associa sua experiência no Nordeste, onde passava as noites
cuidando do gado na fazenda de seu empregador, dormindo no mato em condições
precárias, como uma vivência que a preparou para enfrentar aqueles dias difíceis,
onde além da violência policial, passou sozinha dormindo no barraco de lona e telha
antes da ação do estado. Paralelamente, tais vivencias aprimoraram sua
compressão sobre as estruturas sociais que determinam o déficit habitacional e
impulsionam a migração que ocorre por questões econômicas.
15
Sônia: fé e trabalho na dinâmica migratória Brasil/Paraguai
Vou falar para vocês a partir da minha fé, a bíblia diz que
você tem que receber bem o órfão, a viúva e o
estrangeiro.
Sônia mora na Contestado com seu único filho, um jovem estudante. Os dois
tem uma relação de companheirismo, um dando força ao outro nas demandas
cotidianas. A migração faz parte da história da família de Sônia. Nascida em Coronel
Sapucaia, Mato Grosso do Sul, cidade da fronteira do Brasil com Paraguai, cresceu
entre os dois países da América do Sul, fato recorrente para famílias que moram em
cidades fronteiriças na região. Devido à relativa facilidade de transitar entre os
territórios, se estabelece uma dinâmica social transnacional. Inserida nos
movimentos migratórios, esta trabalhadora tem um irmão que também mora na
Grande Florianópolis e outro em São Paulo.
Sônia foi casada e hoje está separada. Seu filho nasceu na cidade de
Curitiba, quando ainda estava casada. Este jovem migrante que veio para o estado
de Santa Catarina com a mãe é portador de TEA (Transtorno do Espectro Autista).
Tal condição tem um agravante que é a péssima política pública implementada no
estado para estudantes com alguma necessidade especial. Sônia contratou uma
professora particular para ajudar seu filho na disciplina de matemática, tal gasto
extra compromete uma parcela da renda mensal, tornando a situação econômica
desta família migrante ainda mais difícil.
Sônia nos concedeu esta entrevista em sua casa na Contestado. De uma
simpatia notável serviu café e suas deliciosas empadas que são comercializadas
pela mesma para garantir o sustento da família. Desde de meados de 2017 na
Contestado, conta que além do aspecto emocional da convivência, do cotidiano
comunitário, a questão econômica é fator central para Sônia, em seu relato destacou
que:
[...] a gente morava num lugar muito isolado, porque a gente morava
tipo num prédio na parte de baixo e era eu e ele e a nossa
cachorra, não tinha vizinho para conversar, tinha tipo aquela coisa
meio isolada, colocava a cachorra numa cordinha e saia para
passear, mas não tinha aquela aglomeração que a gente adquiriu
aqui, convivência assim de vizinhos bem de perto, isso foi uma coisa
muito boa. E o lado bom, melhor ainda, foi ter parado de pagar
16
aluguel né, porque fazia muitos anos que eu pagava aluguel.
(SÔNIA, entrevista 4, 2019).
Observando e analisando a trajetória e as condições de vida de Sônia, vemos
em sua dinâmica de produção e reprodução da vida, os caminhos que a levaram a
migrar da região fronteiriça entre Brasil e Paraguai para a região da grande
Florianópolis. Com bom humor e otimismo fez uma brincadeira, dizendo que a única
da casa que não era migrante seria a cachorrinha adotada pela família, a quem
deram o nome de Vitória. Ainda disse: Na nossa casa moram três estados, Paraná,
Santa Catarina e Mato Grosso do Sul.
A família chegou à região da Grande Florianópolis no ano de 2011. O aluguel
consumia a maior parcela da renda familiar, realidade compartilhada com a maioria
dos trabalhadores assalariados no Brasil. No caso dos migrantes a questão é pior,
pois estes indivíduos estão distantes das suas redes familiares, na maioria dos
casos. Sônia deixou sua cidade de origem em busca de novas oportunidades de
trabalho, renda e qualidade de vida, se não tivesse dificuldades socioeconômicas
em sua terra natal, enfatizou que preferiria ficar em sua cidade e não ter migrado.
Observando e analisando a trajetória e as condições da vida material de
Sônia, vemos os caminhos que a levaram a migrar da região fronteiriça entre Brasil
e Paraguai para a região da Grande Florianópolis. Os movimentos migratórios na
América Latina são determinados em última instância por fatores econômicos.
Guardadas as especificidades, os trabalhadores latino-americanos compreendem a
migração como um caminho para sua sobrevivência, Segundo Queiros:
[...] no mundo hoje são milhares de pessoas que se deslocam na
condição de migrantes internacionais, nacionais ou como refugiados.
Os dados (ONU, ACNUR, IBGE) revelam um intenso fluxo das
migrações entre diferentes países, cidades, para diferentes direções
(inclusive pequenas e médias cidades), com dificuldade cada vez
maior de fixação dos trabalhadores. (QUEIROZ, 2018, p.177).
A Ocupação Contestado traz para Sônia a libertação do aluguel e a
convivência em comunidade, fatores que melhoraram a qualidade de vida da família.
Ela e seu filho encontraram no convívio cotidiano com os trabalhadores da
Ocupação e suas famílias um sentimento de pertencimento. O fluxo migratório na
região da fronteira é intenso, tanto que a mãe de Sônia é paraguaia e o pai é
brasileiro, exemplos desse fluxo. Sônia afirma que é uma mistura de Paraguai com
17
Brasil, literalmente. Seu pai que faleceu quando ela ainda era criança conheceu sua
mãe na fronteira, a “fronteira seca”, que é uma avenida grande que separa os
dois países. A irmã de Sônia busca roupas no Paraguai e vende no Brasil, outros
irmãos também praticam este comercio. “Tia Sônia” (maneira como a chamam na
Ocupação) é uma pessoa de fé, antes de migrar tinha muitas amizades ligadas à
igreja e ao grupo de jovens, sua vida era “voltada para o lado da Igreja”, como diz.
Agora, morando na Contestado, fez novos laços sociais, ligados à própria ocupação
e à nova igreja que frequenta.
Migração, organização e trajetórias que se cruzam em uma ocupação urbana
Por caminhos diferentes, as quatro trabalhadoras migrantes entrevistadas
chegaram à região da Grande Florianópolis, mais especificamente à cidade de São
José, onde foram levadas pelas circunstâncias da vida a participar da Ocupação
Contestado, no bairro Jardim Zanelatto12. Apesar de constituírem trajetórias
diversas, suas condições de vida guardam muitas semelhanças. São quatro
mulheres, mães, migrantes, trabalhadoras, lutadoras e extremamente determinadas.
As entrevistadas trabalharam com alimentação e no cuidado de crianças, fazendo
limpeza e organizando residências, bem como na área da saúde. Portanto, todas
relacionadas ao cuidado, em ocupações tradicionalmente delegadas às mulheres.
Sem muitas opções, abraçaram as oportunidades de trabalho que iam surgindo,
buscando conseguir seu sustento e de suas famílias. O cuidado com a casa e a
família foi vivenciado por todas as trabalhadoras, configurando dupla e até tripla
jornada de trabalho.
12 O povo, unido, jamais será vencido! Madeira por madeira, lona por lona, os moradores da
comunidade José Nitro estão, ao longo dos últimos dias, construindo suas casas e sua história em um
espaço que é o germe da Ocupação Contestado, consolidada na madrugada desta quarta-feira [dia 7
de novembro]. O nome da ocupação homenageia os cem anos da Guerra do Contestado, conflito que
ocorreu no Estado de Santa Catarina no início do século XX e que, assim como em nossa luta,
questionou a propriedade das terras e foi manifestação de insatisfação popular diante dos problemas
sociais. A ação deve sofrer retaliações nas próximas horas e dias e a Polícia Militar de Santa Catarina
esteve no local: antes das 4h desta madrugada, a polícia surgiu para intimidar os ocupantes, mas
não foi o suficiente para desistirmos. Esses trabalhadores da cidade de São José, oriundos de tantos
lugares do Brasil, estão protagonizando um ato histórico diante da desorganização dos sem-teto da
capital catarinense nos últimos 20 anos.” (Carta: Ocupação Contestado nasce hoje em São José! O
povo, unido, jamais será vencido! Disponível em:
http://brigadaspopularessc.blogspot.com.br/2012/11/ocupacao-contestado-nasce-hoje-em-sao.html.
(Acessado em: 10 de outubro de 2015).
18
Todas enfrentaram e enfrentam dificuldades, por vezes situações precárias.
Entretanto, a Ocupação lhes proporcionou sair do aluguel e interromper suas rotas
migratórias, tornando-se uma alternativa real à falta de habitação e ao deslocamento
permanente. Estas trabalhadoras estão inseridas em um processo de migração
interna, que é um processo social com causas estruturais que expulsa as pessoas
de seus lugares. Estas causas são em sua maioria de base econômica, segundo
Singer (1998). Assim, é possível afirmar que, em última instância, o fator econômico
é o determinante para estas trabalhadoras migrarem.
Em se tratando das especificidades, podemos destacar inicialmente a jornada
de resistência e liderança de Priscila. Considerada uma das principais lideranças por
apoiadores e moradores da ocupação, Priscila teve uma trajetória de vida inserida
na realidade da classe trabalhadora migrante. Vivenciando o problema da moradia, e
sendo prejudicada por não ter seus direitos trabalhistas garantidos quando precisou
deles por motivos de saúde, esta trabalhadora foi aprendendo pela necessidade a
lutar por seus direitos sociais. Segundo Dalmagro (2016):
Os Movimentos Sociais são expressão dos limites e das contradições
da sociedade atual e são, portanto, educativos uma vez que por sua
atuação simultaneamente questionam as estruturas sociais e a
educação delas proveniente, oferecendo pistas para novas formas de
organização da vida social e da educação. (DALMAGRO, 2016, p. 2).
A luta social organizada por moradia e, consequentemente, pelo direito à
cidade contribuiu para que esta trabalhadora migrante passasse a ter a condição de
articular prática com teoria, nos termos de Gramsci (1994). Carmem teve em sua
trajetória a experiência da luta sindical. Estudou em colégio interno, concluiu o
ensino médio e fez curso técnico. Passou em um concurso na prefeitura de
Florianópolis, onde trabalhou até se aposentar. A vivência do sindicalismo
preparou-a politicamente, dando subsídios para a luta por moradia. O caminho
percorrido por Bernadete desde o Nordeste até a Ocupação Contestado se fez em
meio a condições difíceis de sobrevivência. A família numerosa, as carências de
conforto, educação e alimento são um espelho de uma vida em condições
desfavoráveis, enfrentando a seca, a exploração no trabalho e um conjunto de
carências, como de acesso às políticas públicas. Analisando a vida material de
Bernadete, de sua família e das pessoas do seu entorno, podemos reafirmar a
19
centralidade da questão da terra no Brasil. A “meação”, prática utilizada no campo
em algumas regiões do Brasil, é um exemplo da materialização dos processos
históricos e contemporâneos que combinam expropriação e exploração.13 Segundo
Fontes (2010):
A expansão da expropriação dos recursos sociais de produção não
diz respeito apenas à expropriação da terra, de forma absoluta, mas
à supressão das condições dadas da existência dos trabalhadores, e
sua consequente inserção, direta ou mediada pela tradição, nas
relações mercantis (e no mercado de força de trabalho). As
expropriações não se expandem sozinhas, de maneira mecânica,
segundo leis abstratas do funcionamento geral do capital, ainda que
sejam uma condição geral de sua expansão. Como lembramos
anteriormente, nem sempre a expropriação resulta imediatamente na
relação capital trabalho, podendo também descambar para
modalidades híbridas ou mesmo meramente de rapina. Varia
segundo a capacidade, possibilidade, interesse ou necessidade de
extração de sobre trabalho sob a forma mais-valor das classes
dominantes e, portanto, de sua própria subordinação, cada vez mais
plena, a um mercado concorrencial e regido pela produtividade. Se
não é abstrata e conduzida por um mecanismo rígido e cego, é,
entretanto, difusa e generalizada, ocorrendo, em cada país ou caso
concreto, sob pressões diversas. Resulta, contudo, em seu conjunto,
na produção de levas crescentes de populações disponíveis para e
necessitadas de vender força de trabalho, para assegurar sua
existência, crescentemente dependente de mercados. (FONTES,
2010, p. 89).
Na história de Sônia, observamos como questões centrais relativas a saúde
do filho, a vivência na fronteira do Brasil com o Paraguai, o trabalho árduo e a
religiosidade afetam sua trajetória. Toda a movimentação familiar gira em torno do
bem-estar do jovem, além de enfrentarem um cotidiano de muita dificuldade
econômica, a situação do filho coloca mais um desafio. Essa família viu no cotidiano
da Ocupação sua vida se transformar para melhor. A “questão emocional”, como diz
Sônia, juntamente com a saída do aluguel, é o ponto mais importante da
participação desta família na Ocupação Contestado.
No que diz respeito ao percurso de ensino formal, por não ter concluído os
estudos pela questão da saúde, Priscila aprendeu com a própria experiência, com o
13 Fontes (2010), por meio do conceito de capital-imperialismo cujas características centrais são:
concentração da propriedade, expropriações, redes de dominação, encapsulamento do trabalho e
garantia de circulação do capital, expõe condições centrais do sistema socioeconômico, em que os
trabalhadores migrantes na Contestado estão ou estiveram inseridos. Sobre isso ver: FONTES,
Virginia. O Brasil e o Capital-Imperialismo: teoria e história. 2.ed. Rio de Janeiro: EPSJV/Editora
UFRJ, 2010.
20
trabalho e a luta social. Bernadete é alfabetizada, concluiu o quinto ano do ensino
fundamental na EJA. Carmem estudou em colégio interno, concluiu o ensino médio
e fez curso técnico, com problemas de saúde, não pode cursar a faculdade de
medicina, e acabou ficando impedida de realizar o sonho de ser médica cirurgiã.
Sônia, apesar de começar a trabalhar como emprega doméstica aos treze anos,
conseguiu concluir a educação básica antes de iniciar sua jornada migratória. Na
opinião destas trabalhadoras migrantes, um espaço de ensino e aprendizagem
voltado às especificidades da Ocupação e sediado na Ocupação poderia levar um
grande número de trabalhadores da Contestado a retomar os estudos. Sobre a
educação das crianças, um esforço dos trabalhadores para que as mesmas
estejam regularmente matriculadas e frequentando o espaço escolar. Essa é uma
preocupação permanente, o risco do Conselho Tutelar alegar alguma ilegalidade ou
descaso, afim de justificar a apreensão de seus filhos, preocupa a comunidade. Por
outro lado, um entendimento na ocupação referente à possibilidade da educação
na transformação da vida material e da cultura dos indivíduos. Claro que tal
entendimento é permeado pela ideologia difundida pelos aparatos estatais e
privados de hegemonia do capital.
Muitos elementos se cruzam nas histórias destas quatro mulheres. Suas
responsabilidades como filhas, mães e avós estão sempre presentes. Começaram a
trabalhar muito cedo para ajudar na renda familiar, o trabalho se configura como
central em suas vidas, seja o trabalho em casa, o cuidado dos irmãos, filhos e netos,
os bicos, os trabalhos informais e, excepcionalmente, o trabalho formal. O trabalho
também as moveu, ou suas famílias, a migrar, buscando melhores condições de
vida. Mudaram de país, de estado, de cidade e de bairro diversas vezes. Na
Ocupação, encontraram a possibilidade de se fixar num local, pelo menos por
enquanto. A vida cotidiana é sofrida, os trabalhadores passam por dificuldades
diárias.14 Entretanto, o fato de não pagarem aluguel é uma conquista concreta que é
reconhecida pelos trabalhadores e trabalhadoras migrantes que viram na Ocupação
um meio de cessar seus movimentos migratórios.
14 Apesar dos recursos financeiros limitados, a coletividade fortalece o movimento, que procura
enfrentar os problemas da melhor maneira possível. Gastos com escola, comida, remédios, roupas,
calçados são providenciados para as famílias com necessidades, que são ajudadas pelos outros
trabalhadores e pela rede de apoio. muitas mulheres grávidas que foram abandonadas por seus
companheiros, realidade que causa depressão e intensifica as dificuldades dessas mães, que tem na
coletividade um auxílio fundamental.
21
uma organização de base bem estruturada na Ocupação por meio de
núcleos, das reuniões de quadra e a Assembleia Geral que é soberana. Bernadete
considera que as assembleias são atividades em que as pessoas vão adquirindo
conhecimento. Sônia participa das divisões de tarefas na Ocupação quando pode,
diz que a comunicação e as reuniões para discutir os assuntos comuns são muito
positivas. Priscila constata a importância da existência de um barracão coletivo - um
espaço onde as mães que não tem onde deixar os filhos poderiam se organizar e
neste espaço terem seus filhos atendidos e cuidados, possibilitando que
retomassem seus estudos com mais tranquilidade. O protagonismo feminino na
vanguarda do movimento é uma marca da Ocupação. Carmem faz uma comparação
com o movimento da Ocupação Dandara que conheceu quando estava em Belo
Horizonte. Relata que na Dandara a maioria das lideranças são homens ao contrário
da Contestado, onde são mulheres.
Os trabalhadores migrantes experimentam uma vivência coletiva no
movimento dos trabalhadores sem-teto, deslocam-se com a própria ocupação que
também migra. Ela começa no primeiro terreno prometido às vésperas da eleição,
vai para o ginásio, depois para o atual local onde nasce a Ocupação Contestado. A
perspectiva dos trabalhadores é poder ir para um novo terreno que está em
negociação com a prefeitura. Priscila afirma que um número grande de migrantes
na Ocupação, pessoas do Pará, Bahia, Paraíba, Pernambuco, Mato Grosso do Sul
na divisa do Paraguai, Rio Grande do Sul e interior de Santa Catarina, como
Chapecó e Lages. Ela que a necessidade leva os migrantes a entrarem em uma
ocupação urbana de luta por moradia e pelos demais direitos sociais15. Deixar tudo
para traz e não saber o que vai encontrar é algo angustiante, a difícil adaptação em
outro local não se caracteriza unicamente por questões econômicas, o modo de vida
ou os costumes, nos termos de Thompson (1998) é uma questão importante no
movimento migratório dos trabalhadores. O modo de vida, a maneira de falar, os
hábitos alimentares, o vestuário, são fatores culturais que podem provocar
discriminação e preconceito. A maneira como Priscila expõe sua própria condição de
15 O crescimento das migrações no Brasil e na Grande Florianópolis está ligado diretamente ao
aprofundamento dos processos contemporâneos de expropriação que resultam em condições que
deixam os trabalhadores mais suscetíveis e vulneráveis à exploração de sua força de trabalho. O
discurso anti-imigração vem sendo difundido por setores de extrema direita no Brasil e no mundo.
Vimos nos últimos anos crescer o número de ataques violentos contra migrantes.
22
migrante e a de seus companheiros aborda um ponto interessante. Considera que
não existe nenhuma legislação que determine a permanência dos sujeitos nascidos
em uma região que os impossibilite ou impeça de migrar, muito menos que precisem
viver para sempre num mesmo lugar.
O discurso moralizador sobre a população pobre vigente até meados
do século XX em Florianópolis e que foi, em grande medida, voltado
para os moradores dos morros centrais, cedeu lugar à criminalização
dos pobres e de seus bairros. Palavras como “favela” tomaram o
sentido atribuído em outras partes do país para áreas perigosas
habitadas por populações sem o direito de morar na cidade. O
crescimento urbano logo evidenciou as deficiências da cidade para a
recepção da população em expansão. Nos novos bairros em
expansão a situação era crítica. Em 1972, um jornal anunciava que
uma comissão pretendia “acabar com favelas”, retirando famílias dos
morros da cidade. Seriam retiradas “600 pessoas” do “morro do
Mocotó, na Prainha”, juntamente com mais “100 famílias que moram
no Pasto do Gado”, as quais, em sua maioria, eram “do interior do
Estado” e “vieram para a capital em busca de trabalho. Pobres e sem
profissão definida, se marginalizam e não tendo onde morar,
constroem suas malocas nesses locais criando um grave problema
social”. (CAMPOS, FALCÃO, LOHN, 2010, p. 66).
No entendimento de Priscila, famílias que migraram de outros estados e
tentam se fixar na Grande Florianópolis terminam por constituir a população do local,
trabalham e muitos têm seus filhos aqui. Faz uma crítica ao preconceito relativo aos
migrantes e a “ameaça” ao emprego dos nativos. Lembra da época que pagavam
passagens de volta para pessoas que vinham do Nordeste e de outros locais para
que voltassem para as suas regiões de origem.
O estado de Santa Catarina, especialmente a região litorânea, tem recebido
muitos migrantes nacionais e internacionais nas últimas décadas. Entre muitos
problemas, eles enfrentam a grande dificuldade de conseguir um local para morar. A
questão da moradia popular não é uma prioridade social, e sim parte de um projeto
de manutenção da segregação das classes sociais, levando a uma forma de
espacialidade do urbano com vistas ao barateamento da força de trabalho. As
famílias expropriadas, enganadas, marginalizadas e desalojadas no bairro Jose
Nitro, são compostas por pessoas de baixa renda, vivenciando condições precárias
de trabalho, sendo na maioria migrantes. A experiência da Contestado
desenvolve-se a partir de problemas sociais históricos do Brasil, forjados na desigual
divisão do trabalho. Conservados ao longo do tempo por setores da sociedade que
23
se beneficiam economicamente e politicamente de um sistema de classes que
produz e reproduz tal realidade visando a expansão do capital.
Neste contexto, não outra forma de resolver o problema habitacional senão
pela organização e luta dos trabalhadores. A experiencia da Ocupação Contestado
aqui apresentada revela tal situação. Em meio a muitas dificuldades, repressão,
preconceitos, ausência de condições adequadas de vida, associada a problemas
internos organizativos, a Ocupação segue viva e necessária.
A vida cotidiana na Ocupação é sofrida, os trabalhadores passam por
dificuldades diárias. A falta de um espaço adequado de recreação para as crianças
brincarem em segurança é um dos problemas que mais preocupa os trabalhadores.
O acesso à água e à luz são problemas constantes, devido à falta de distribuição no
local. Em razão do abastecimento de água ser improvisado, existem famílias que
têm maior dificuldade de recebê-la.
A organização da Ocupação se deu por meio de Núcleos, divididos em
setores. A gestão coletiva do local foi difícil, causando alguns atritos entre as
pessoas que ali habitavam. A Ocupação buscava se organizar de maneira coletiva e
cooperada. A solidariedade sempre foi algo presente em áreas de ocupação popular,
as chamadas comunidades. No entanto, esta solidariedade de classe desenvolvia-se
de forma mais espontânea. No modelo proposto na Ocupação Contestado, a
questão da cooperação foi tratada de maneira estrutural, ato que causou
dificuldades no começo, pois mexia de certa forma com o costume adquirido pelas
pessoas ao longo de suas vidas. A experiência de trabalho, de vida e de militância
apresenta elementos educativos e também de consciência da classe trabalhadora.
Nos termos de Thompson (2008), a experiência vivida altera a experiência
percebida. Em uma sociedade de classes organizada por relações sociais
exploradoras e opressoras oriundas dos processos históricos de expropriação, a
tendência é que a percepção das contradições vigentes avançando em maior ou
menor intensidade na história.
Não fossas nas residências, nem coleta pública formal. Existe uma coleta
coletiva feita pelos próprios trabalhadores que juntam os dejetos de cada moradia e
conectam à rede de esgoto. Os trabalhadores têm consciência de que esta é uma
estrutura precária e provisória, entretanto não podem esperar o poder público
resolver uma questão imediata e importante para a sobrevivência na ocupação. O
24
cotidiano na ocupação tem seus altos e baixos. Tristeza, euforia, brigas,
preocupações com a titularidade do terreno, a própria materialidade do trabalho
cotidiano. Entretanto, o fato de não pagarem aluguel é uma conquista concreta que
é reconhecida pelos trabalhadores, assim como pelos migrantes que viram na
ocupação um meio de cessarem seus movimentos migratórios. Apesar dos recursos
financeiros limitados, a coletividade fortalece o movimento, que procura resolver os
problemas da melhor maneira possível. Gastos com escola, comida, remédios,
roupas, calçados são providenciados para as famílias com necessidades, que são
ajudadas pelos outros trabalhadores e pela rede de apoio. muitas mulheres
grávidas que foram abandonadas por seus companheiros, realidade que causa
depressão e intensifica as dificuldades dessas mães, que tem na coletividade um
auxílio fundamental.
O modelo de cidade16 e urbanização do capital relaciona-se diretamente com
os problemas da migração e da moradia. As ocupações de terras e edificações por
movimentos sociais, ou na forma individual e familiar em ação espontânea, ocorrem
no contexto de mercantilização da cidade. As condições vivenciadas pelos
trabalhadores empobrecidos nas cidades são precárias, podendo até ser
desumanas e insalubres. No caso específico dos trabalhadores migrantes em
dificuldades econômicas, a realidade na cidade do capital pode ser ainda pior.
Podem acabar na pior das hipóteses integrando a população em situação de rua,
morando de aluguel em moradias precárias, situação que compromete a maior parte
da escassa renda desta fração do proletariado urbano empobrecido. É importante
compreender que:
O urbanismo é então a concretização da tarefa ininterrupta que
resguarda o poder de classe, tendo como intenção nem sempre
aplicável, a expulsão das áreas nobres e, em seguida, a atomização
dos pobres em zonas consideradas periféricas, pobres cuja presença
torna-se indesejável nas áreas de realização de lucros e status.
(REIS, 2015, p. 84).
O problema da moradia não é um problema de capacidade técnica ou de
recursos naturais em uma sociedade que busca o bem-estar e o desenvolvimento
16 A experiência dos trabalhadores na cidade do capital se desenvolve em um contexto sociocultural,
onde os elementos da vida urbana tornam-se mercadorias. Na situação especifica da região da
Grande Florianópolis, ocorre que a base estrutural para a organização social e econômica ainda é
permeado por um modelo de cidade forjado no período do regime militar.
25
das relações sociais de produção, é sim uma escolha política determinada em última
instância por uma necessidade econômica estrutural da classe dominante, visando
manter-se no poder. O lugar em que a classe trabalhadora habita, produz e reproduz
sua vida material, está relacionado diretamente com a maneira como ela se insere
no mundo do trabalho.
Considerações Finais
uma associação entre as expropriações históricas e contemporâneas, e
entre os processos de expropriação e exploração que produzem os problemas da
migração e da falta de moradia. Recebendo baixos salários ou em situação de
desemprego, os trabalhadores experimentam situações de pobreza e precarização,
muitas vezes sem moradia, com alimentação insuficiente e de baixa qualidade,
pouca escolarização e qualificação, acabam sendo expulsos dos seus locais de
origem e/ou compelidos a ocupar e lutar pelo direito à moradia e à cidade.
Os trabalhadores migrantes vivem uma experiência comum de
expropriação/exploração no sistema capitalista e na sociedade burguesa, mas que
contém em si a possibilidade de forjar uma organização e consciência, provocando o
entendimento das relações sociais em que se encontram. A ocupação é uma ação
fundamental para os trabalhadores sem-teto continuarem a produzir e reproduzir
suas vidas, pois as saídas propostas pelo capital para a resolução de seus
problemas não garantem sua sobrevivência. Sendo assim, concluímos que a
Ocupação Contestado é expressão, por um lado, do processo de expropriação e
exploração no trabalho, da ausência de moradia e da violência do estado. De outro,
revela a indignação e a capacidade de luta dos trabalhadores que passam a se
organizar. Esse processo forja uma experiência de vida com caráter educativo, nos
termos de Thompson (2008), a experiência vivida altera a experiência percebida,
levando-nos a afirmar que a ocupação educa.
As trajetórias das mulheres migrantes entrevistadas expressam a situação de
vida dos trabalhadores em geral. Suas histórias se entrelaçam. Elas revelam uma
vida de expropriação, mas também revelam determinação e bravura. Essas
mulheres vindas de lugares diferentes do Brasil se encontraram na Ocupação
26
Contestado. Hoje são lideranças do movimento, forjadas na própria base, por meio
da experiência.
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27
SILVA, L. A experiência de trabalhadores migrantes na Ocupação Contestado
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A ESCOLA ÚNICA DO TRABALHO E A EXPERIÊNCIA EDUCACIONAL DE
MOISEY M. PISTRAK: REFLEXÕES SOBRE O LEGADO DA PEDAGOGIA
SOCIALISTA SOVIÉTICA1
Marilei Leal da Cruz2
Franciele Soares dos Santos3
Resumo
Este trabalho tem por objetivo refletir sobre o legado da Pedagogia Socialista Soviética, principalmente no que se
refere à compreensão da necessidade da relação entre trabalho e educação na formação humana. As reflexões
pautam-se no estudo dos princípios e dos fundamentos da Escola Única do Trabalho, bem como da experiência
educacional desenvolvida por Moisey M. Pistrak. Como resultado, destacamos que legados importantes
deixados pela Pedagogia Socialista Soviética, pois apresenta caminhos para repensarmos a relação trabalho,
educação e ensino na atualidade.
Palavras-chave: Trabalho e educação; Pedagogia Socialista Soviética; Escola Única do Trabalho; Moisey M.
Pistrak.
LA ESCUELA LABORAL ÚNICA Y LA EXPERIENCIA EDUCATIVA DE MOISEY M. PISTRAK: REFLEXIONES
SOBRE EL LEGADO DE LA PEDAGOGÍA SOCIALISTA SOVIÉTICA
Resumen
Este artículo trata del legado de la Pedagogía Socialista Soviética, especialmente en lo que respecta a la
comprensión de la necesidad de la relación entre el trabajo y la educación en la formación humana. Las
reflexiones se basan en el estudio de los principios y los fundamentos de la Escuela Única de Trabajo, así como
en la experiencia educativa desarrollada por Moisey M. Pistrak. Los resultados demuestran que hay importantes
legados dejados por la Pedagogía Socialista Soviética, porque presenta en el camino de repensar la relación
entre el trabajo, la educación y la enseñanza hoy.
Palabras clave: Trabajo y educación; Pedagogía Socialista Soviética; Escuela Única del Trabajo; Moisey M.
Pistrak.
THE SINGLE LABOR SCHOOL AND MOISEY M. PISTRAK'S EDUCATIONAL EXPERIENCE: REFLECTIONS
ON THE LEGACY OF SOVIET SOCIALIST PEDAGOGY
Abstract
This paper deals with the legacy of Soviet Socialist Pedagogy, especially in relation to the understanding of the
need for the relationship between labor and education in human formation. The reflections are based on the study
of the principles and the foundations of the Single School of Labor, as well as the educational experience
developed by Moisey M. Pistrak. The results show that there are important legacies left by Soviet Socialist
Pedagogy, as it presents ways to rethink the relationship between labor, education, and teaching today.
Keywords: Labor and Education; Soviet Socialist Pedagogy; Single School of Labor; Moisey M. Pistrak.
3Doutora em Educação pela Universidade Federal de Pelotas-UFPel. Professora do curso de Pedagogia e do
Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
E-mail: sfrancielesoares@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8310447915314417.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5115-0127.
2Mestranda em Educação pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Professora de Educação Infantil
efetiva no município de Marmeleiro-PR. E-mail: marileileal2015@outlook.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8498079368133214. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0045-2990.
1Recebido em 27/07/2022. Primeira avaliação: 12/08/2022. Segunda avaliação: 17/08/2022. Aprovado em
17/09/2022. Publicado em 11/10/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i4.55379.
1
Introdução
Buscar compreender o legado que a Revolução Russa nos deixou, por meio
de um arcabouço teórico e prático de experiências educativas que culminaram na
construção da Pedagogia Socialista Soviética, é um grande desafio, especialmente
no contexto atual. De acordo com Bahniuk e Dalmagro (2021), o período
pós-revolucionário foi marcado pela existência simultânea entre as velhas e as
novas políticas e relações sociais. A Revolução estava permeada de contradições,
pois a Rússia e as demais nações que formavam a União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas (URSS) buscavam, em meio ao restante do mundo capitalista, a
construção do socialismo. Além disso, o país vivia uma situação de desordem
econômica, política e social, fome, pobreza, atraso industrial, analfabetismo, entre
outras limitações, herdadas do imperialismo czarista. Portanto, para construir uma
nova sociedade, os revolucionários enfrentaram muitos desafios, o que exigiu
persistência, criatividade e muito trabalho. Esses dedicaram atenção especial às
crianças e aos jovens, investindo no desenvolvimento da Pedagogia Socialista
Soviética, a qual procurou a articulação entre o trabalho, a educação e o ensino,
possibilitando a participação de todos na vida social e política.
A educação, desse modo, teve uma função fundamental, estando à serviço da
construção do socialismo. O Comissariado do Povo para a Educação (Narkompros)
desenvolveu um árduo trabalho no enfrentamento do analfabetismo, na organização
das escolas, na formação dos professores, na organização dos coletivos infantis e
da juventude, bem como na articulação do ensino com o trabalho produtivo
socialmente útil, por meio da construção da Escola Única do Trabalho.
Considerando a educação como prioridade, os revolucionários iniciaram uma
campanha nacional para a alfabetização, visto que o alto índice de analfabetos no
país impedia o acesso ao conhecimento, à cultura e à ciência. Com isso, foi
realizado um grande investimento na educação, nunca feito, além do
desenvolvimento de uma pedagogia fundamentada no materialismo
histórico-dialético.
Diante disso, dois são os objetivos centrais neste texto: (i) refletir sobre o
legado da Pedagogia Socialista Soviética, principalmente no que se refere à
compreensão da necessidade da relação trabalho e educação na formação humana,
2
a partir do estudo dos princípios e fundamentos da Escola Única do Trabalho, e
sobre a proposta educativa e experiência educacional de Moisey Mikhaylovich
Pistrak (1888-1937); (ii) e situar, mesmo que brevemente, a relevância do legado da
Pedagogia Socialista Soviética, reafirmando a sua importância para o avanço da
pedagogia marxista e para o enfretamento da Pedagogia do Capital na atualidade.
Para tanto, realizamos o estudo de alguns dos documentos históricos escritos
pelo Comissariado do Povo para a Educação (Narkompros), presidido até 1929 por
Anatoli Vassilievitch Lunatcharsky (1875-1933). Esses documentos estão anexados
ao livro A Construção da Pedagogia Socialista (2017), de autoria de Nadezhda
Konstantinovna Krupskaya (1869-1939). Além disso, revisitamos as principais obras
escritas por Moisey Pistrak, a saber: Fundamentos da Escola do Trabalho (2003a,
2018b) e A Escola-Comuna (2009).
A fim de apresentarmos o resultado dessa investigação, na primeira parte do
texto, abordamos aspectos relacionados aos princípios e aos fundamentos que
foram determinantes para o processo de organização da proposta da Escola Única
do Trabalho. Na segunda parte, explicitamos a experiência coordenada e
desenvolvida por Moisey M. Pistrak na Escola-Comuna Lepeshinsky, assinalando a
importância das categorias pedagógicas que reforçam a relação trabalho e
educação como elemento fundamental que liga a prática educativa à vida, e que,
portanto, deveriam ser constituintes da nova forma escolar. Nas considerações
finais, reforçamos a necessidade de a pedagogia socialista soviética ser conhecida,
apropriada e potencializada na atualidade, bem como ressaltamos a sua importância
para o avanço da pedagogia marxista e para o enfretamento da Pedagogia do
Capital na atualidade.
Princípios e fundamentos da Escola Única do Trabalho
Freitas (2012) esclarece que a terminologia Escola Única do Trabalho estava
vinculada à ideia de uma a escola comprometida com a construção de uma nova
sociedade, sendo um instrumento a favor da conscientização e da emancipação da
classe trabalhadora. Os termos única etrabalho indicavam, respectivamente, a sua
não dualidade, ou seja, uma forma de organização escolar e curricular comum a
3
todos, e a compreensão do trabalho como princípio educativo, com ênfase na
formação politécnica.
Antes mesmo da Revolução, os pedagogos socialistas pensavam sobre a
construção de uma nova escola. Esse movimento se tornou ainda mais forte com a
tomada de poder pela classe trabalhadora, em outubro de 1917. No centro das
discussões sobre a criação e a organização da nova escola, a educadora socialista
Krupskaya reforçava a necessidade da transformação da escola do ensino em
escola do trabalho de caráter politécnico. Ao refletir sobre o processo de construção
da escola socialista, Krupskaya denunciava que a escola pública destinada aos
trabalhadores até então estava pautada na ciência livresca, isolada da vida e
pregava o culto ao Estado burguês: “[...] em poucas palavras, a tarefa da escola
pública é manter os estudantes com a moral burguesa, diminuir sua consciência de
classe, fazer deles um rebanho obediente, fácil de controlar” (KRUPSKAYA, 2017, p.
68). De acordo com a pedagoga socialista, a escola do trabalho somente prosperaria
diante de uma democracia operária, caso contrário, permaneceria contra os
interesses da classe trabalhadora.
Os educadores socialistas compreenderam a necessidade da organização de
uma escola que rompesse com a forma histórica escolar capitalista, pois as
propostas da Pedagogia Socialista Soviética tinham como um de seus objetivos
principais repensar o trabalho pedagógico e construir uma antítese à forma escolar
naquele contexto histórico, mesmo com limites e contradições, com vistas à sua
transformação. Logo após a Revolução, foram criados vários órgãos educacionais
que tratavam das questões relacionadas à educação: O Ministério da Educação
Nacional; A Comissão Estatal para a Educação; O Comitê Executivo dos Sovietes; O
Comitê Estatal para a Educação Nacional; e a Assembleia Constituinte (FREITAS,
2020). Os documentos históricos produzidos pelo Comissariado da Educação do
Povo expressam a compreensão da importância da educação pelo trabalho na
formação humana e para a construção da nova sociedade socialista, entre os quais
citamos: a Proclamação do Comissário do Povo para a Educação (1917); a
Deliberação do Comitê Executivo Central de Toda a Rússia (1918); e a Declaração
sobre os Princípios Fundamentais da Escola Única do Trabalho (1918).
Na Deliberação do Comitê Executivo Central de Toda a Rússia (1918),
documento que aborda o regulamento sobre a Escola Única do Trabalho da
4
República Socialista Federativa Soviética, o primeiro artigo esclarece que: “É
atribuído o nome Escola Única do Trabalho a todas as escolas da República
Socialista Federativa Soviética, que estejam na jurisdição do Comissariado do Povo
para a Educação, com exceção das instituições de ensino superior.” (CVERDLOV et
al., 2017). Nesse mesmo documento, a partir do artigo 12º, encontramos os
princípios fundamentais da escola do trabalho e da relação entre trabalho e
educação:
Artigo 12°. Na base da vida escolar deve estar o trabalho produtivo,
não como meio de pagamento dos gastos de manutenção das
crianças e não como método de ensino, mas especialmente como
trabalho produtivo socialmente necessário. Ele deve ser fortemente
organizado em ligação com o ensino, lançando a luz do
conhecimento a toda a vida circundante. Gradualmente sendo cada
vez mais complexo, devendo ir além do entorno imediato da vida da
criança, o trabalho produtivo deve familiarizar a criança com uma
ampla variedade de formas de produção, até as mais complexas
(CVERDLOV et al., 2017, p. 278-279).
No inciso 1, o artigo afirma que o trabalho assume um princípio educativo se
for criativo, alegre, livre de violência física e psicológica contra a personalidade dos
estudantes, bem planejado e organizado socialmente. No inciso 2, repudia a antiga
forma repressiva de disciplinamento, pois, na nova escola, o trabalho tem o papel de
educar e formar nas crianças uma disciplina saudável, com senso de
responsabilidade e coletividade. Dessa forma, “[...] as crianças têm participação viva
em todos os processos de trabalho da vida escolar, entre os quais as questões de
organização que surgem da divisão do trabalho e que devem desempenhar um
papel educativo muito importante” (CVERDLOV et al., 2017, p. 279).
Com isso, entendemos que o trabalho coletivo e a participação efetiva das
crianças e dos jovens na organização de todo ambiente escolar eram as bases da
formação daquela e das futuras gerações da União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas. Podemos notar que, desde o início, o trabalho como princípio educativo
era um elemento central na construção da Pedagogia Socialista Soviética.
Outro documento importante é a Declaração sobre os Princípios
Fundamentais da Escola Única do Trabalho (1918), de autoria de Lunatcharsky, que
apresenta as mudanças e as principais características das novas escolas soviéticas,
ocasionadas pela reforma educacional após a revolução. O Comissário do Povo
para a Educação, órgão responsável pela educação na reorganização estatal,
ressalta que os resultados não seriam imediatos, pois a realidade naquele primeiro
5
momento era muito crítica. De acordo com Lunatcharsky (2017b), os obstáculos
eram vários, a exemplo do número insuficiente de instituições de ensino, professores
despreparados, dentre outras dificuldades herdadas da antiga escola. Os esforços
eram grandes, e a relação do Comissariado com parte do magistério reacionário era
conflituosa, o que tornava a complexa tarefa de reformar a escola ainda mais difícil,
pois, para que isso acontecesse, era necessário o comprometimento de todos. O
autor ainda comenta que, inicialmente, a reforma seria parcial, mas as mudanças
continuariam acontecendo até se chegar a uma escola realmente popular. Para ele:
A reforma da escola, depois da Revolução de Outubro, tem
obviamente o caráter de um ato de luta das massas pelo
conhecimento, pela educação. O Comissariado da Educação deve, o
mais rapidamente possível, destruir os privilégios de classe também
neste campo, que talvez seja o mais importante. A questão não está
em apenas torná-la acessível para todos na forma como ela é, pois
que assim como ela foi feita pelo regime passado, ela não serve para
as massas trabalhadoras. Trata-se de sua reconstrução radical no
espírito de uma escola verdadeiramente popular (LUNATCHARSKY,
2017b, p. 286).
Do ponto de vista dos educadores socialistas, a nova escola, além de ser
gratuita e acessível, deveria ser única e do trabalho. Contudo, destaca-se no
documento que a escola não deve ser única em todos os níveis horizontalmente,
mas precisava ser única verticalmente. Isso quer dizer que os estudantes tinham
aptidões e disposições diferentes, mas que todos deveriam cursar disciplinas
entendidas como unificadoras da formação e do ensino. A Escola Única do Trabalho
não era encarada como um centro de treinamento profissionalizante, capaz de
formar os sujeitos para desempenhar apenas um ofício na sociedade. Os
educadores socialistas defendiam a educação politécnica, que proporcionava às
crianças, “[...] na prática, o conhecimento dos métodos de todas as mais importantes
formas de trabalho, em parte na oficina escolar ou na fazenda escolar, em parte nas
fábricas, usinas e semelhantes” (LUNATCHARSKY, 2017b, p. 290). Podemos
considerar que o trabalho seria o eixo articulador da escola, por meio do qual as
crianças se familiarizavam com o meio ambiente natural e social. De acordo com
Freitas (2017, p. 09), “para os pedagogos deste período, a escola deveria estar
envolvida na criação da nova vida social, cujas possibilidades estavam sendo
abertas pela revolução; portanto, deveria se envolver profundamente na formação
de um novo ser humano imerso na vida social”.
6
Na Escola Única do Trabalho, a aprendizagem ativa e a autonomia dos
estudantes eram elementos fundamentais. As crianças conduziam projetos e
pesquisas individuais e em grupo, porém, é importante destacar que todas essas
atividades eram realizadas com a mediação e a supervisão dos professores e dos
colegas mais velhos. Todos os trabalhos feitos pelos alunos tinham conteúdo
relevante e objetivo, e as ações dos professores continham intencionalidade
pedagógica, que a escola do trabalho precisava ser ativa e criativa, mas não
espontaneísta e superficial.
Nos períodos de trabalhos livres, os estudantes faziam suas pesquisas,
composições, modelos, desenhos, pinturas, coleções. Conforme a escolarização
avançava, as disciplinas ocupavam espaço ao lado da enciclopédia, sendo que as
disciplinas representavam o estudo sistemático ministrado por professores
especializados. No primeiro nível, a enciclopédia infantil era formada por jogos,
passeios, palestras, teatros, excursões, aulas teóricas, práticas e em laboratórios,
atividades de desenho, pintura e colagem, realizadas de maneira individual e
coletiva. No segundo nível, a apropriação sistematizada do conhecimento se torna a
principal atividade, mas sem deixar de lado a enciclopédia infantil
(LUNATCHARSKY, 2017b).
Para Lunatcharsky, nos níveis mais altos de ensino, priorizava-se o estudo da
cultura humana em ligação com a natureza. A metodologia era pensada e efetivada
por meio da apropriação pelo trabalho, ou seja, os conteúdos eram estudados não
somente a partir da teoria, mas também combinados com o trabalho. Como dito
anteriormente, o trabalho era muito valorizado e sua prática levada a sério. Na
Declaração, fica evidente que o trabalho é a base do ensino na nova escola, “[...]
devendo ser trabalho verdadeiramente produtivo, com participação verdadeira do
estudante na vida econômica do país” (LUNATCHARSKY, 2017b, p. 294). Contudo,
o autor indica que o trabalho não poderia representar riscos à saúde das crianças e
dos jovens. O trabalho desenvolvido nas escolas deveria ser de natureza politécnica,
possibilitando a aprendizagem dos fundamentos científicos de vários ramos da
produção, assim como a base das ciências sociais e naturais.
Além da categoria pedagógica trabalho, o plano de estudos contemplava
disciplinas estéticas (modelagem, desenho e pintura, composição, canto e música),
capazes de desenvolver a criatividade, a fantasia, a memória, a atenção, a
7
habilidade. A música, por sua vez, estava conectada ao aprimoramento do ouvido,
apreciação dos sons. Nesse sentido, Lunatcharsky (2017b, p. 296) destacava a
importância da educação estética como responsável pelo desenvolvimento dos
órgãos dos sentidos e habilidades criativas, pois “[...] a educação científica e do
trabalho sem este elemento estaria sem alma, porque a alegria da vida em apreciar
e criar é o objetivo final tanto do trabalho, como da ciência”. Da mesma forma, o
autor pontua que o princípio do trabalho estimula o desenvolvimento físico das
crianças. Essa função, contudo, é mais trabalhada com o exercício da ginástica, das
modalidades esportivas e dos jogos, desenvolvendo a força, a agilidade, e a
habilidade, no sentido das ações sociais. Outra questão importante para os
pedagogos soviéticos era a alimentação saudável e o bem-estar dos estudantes,
que contavam com acompanhamento médico.
A organização da rotina das crianças era pensada de modo que a duração
das aulas ou dos trabalhos programados se estendesse em torno de quatro horas
diárias no primeiro nível e até seis horas no segundo nível, sendo o restante do
tempo destinado a atividades livres e descanso dos alunos no ambiente escolar. Por
conta das condições climáticas na URSS, com muita neve e baixas temperaturas, o
ano letivo era dividido da seguinte forma: no inverno, eram realizadas atividades
usuais; no verão, os trabalhos aconteciam ao ar livre, no estilo agrícola.
O desenvolvimento das habilidades pessoais contribuiria para a construção
coletiva, uma vez que a individualidade dos estudantes deve ser respeitada, porém,
a coletividade e a luta pelo bem comum precisavam estar acima das aspirações
individuais. Outros objetivos da nova escola eram o de diminuir a quantidade de
alunos atrasados e ser comum para todos, sem distinção de gênero.
A Declaração sobre os Princípios da Escola Única do Trabalho ainda registra
outra categoria importante, a da auto-organização, sem a qual não seria possível o
desenvolvimento da autonomia, da coletividade e do senso de responsabilidade, por
exemplo. Segundo Lunatcharsky (2017b, p. 303-304), a auto-organização dos
estudantes é dividida em três aspectos:
Primeiro, a participação dos estudantes nos conselhos
administrativos das escolas, de acordo com as regras indicadas na
Deliberação sobre a Escola Única. Segundo, esta auto-organização é
de grupos puramente de estudantes. [...] A classe ou qualquer outro
grupo de estudantes deve auto-organizar toda a massa. Para isso,
organiza-se o maior número possível de postos de trabalho. [...]
8
Esses cargos não devem ser de longa duração. As crianças devem
responder por eles de um dia até duas semanas. A mudança deve
acontecer pela ordem ou por sorteio. [...] Terceiro, aos estudantes
deve ser dada completa liberdade na questão da organização de
qualquer tipo da sociedade temporária ou contínua. Deixe-os
organizar círculos científicos, redação de jornais, clubes políticos,
sociedades para organizar exposições, para esporte para
organização de bailes, espetáculos, corais, orquestras etc.
A Declaração tinha função de estabelecer um tipo comum de escola,
enfatizando que a realização dos planos elaborados depende dos recursos
financeiros vindos do Estado e do nível de preparação dos professores. Para colocar
os professores em contato com os princípios e o método de ensino da escola do
trabalho, foram organizados cursos de formação para esses profissionais,
estimando-se um período de quatro anos até que todos os educadores pudessem
cursá-los. Foi a partir desses princípios e fundamentos que o Estado soviético
incentivou a criação de escolas do trabalho demonstrativas, também conhecidas
como Escolas-Comunas, que serviam como experiência para o desenvolvimento de
organização e gestão da nova escola.
Moisey M. Pistrak foi um dos educadores que contribuiu no processo de
construção e de materialização dos princípios da Escola Única do Trabalho, nas
experiências que coordenou no âmbito das Escolas-Comunas. A partir da próxima
seção, explicitamos a experiência coordenada e desenvolvida por Moisey M. Pistrak
na Escola-Comuna Lepeshinsky.4Ao fazermos isso, assinalamos a importância das
categorias pedagógicas, destacando como essas retomam a concepção
revolucionária de educação e de formação humana presentes nos escritos
marxianos e como reforçam a relação entre trabalho e educação como elemento
fundamental que liga a prática educativa à vida, e que, portanto, devem ser
constituintes da nova forma escolar.
4As Escolas-Comunas se configuravam como “[...] um local de agregação de grandes e experientes
educadores que se dedicavam a criar as novas formas e conteúdos escolares sob o socialismo
nascente com a finalidade de transferir conhecimentos para as escolas regulares, de massa”.
(FREITAS, 2009, p. 13-14). De acordo com a Enciclopédia Pedagógica Russa citada por Freitas
(2009, p. 14), “Lepeshinsky fundamentou o modelo de Escola-Comunas como instituição de ensino de
novo tipo, isto é, comunidade constituída por princípios de autodireção, autosserviço e organização
de uma ‘forma inteligente de trabalho’”.
9
Proposta e experiência educacional de Moisey M. Pistrak
Moisey Mikhailovich Pistrak, educador e militante nascido em 1888, foi um dos
educadores responsáveis pela elaboração e organização da Pedagogia Socialista
Soviética. Pistrak, atuou ativamente durante as duas primeiras décadas da
Revolução Russa (1917-1931), na construção da Escola Única do Trabalho e no
desenvolvimento da pedagogia marxista. Era doutor em Ciências Pedagógicas,
professor e membro do Partido Comunista. Entre 1918 e 1931, trabalhou no
Narkompros, e, no mesmo período, conduziu por cinco anos a Escola-Comuna do
Narkompros, chamada Lepeshinsky. De 1931 a 1936, trabalhou no Instituto de
Pedagogia do Norte do Cáucaso, sendo, em 1936, diretor do Instituto Central de
Pesquisa Científica de Pedagogia, junto ao Instituto Superior Comunista de
Educação (FREITAS, 2018).
Sob a direção de Pistrak, a Escola-Comuna Lepeshinsky foi a que mais se
destacou, apresentando os primeiros resultados da nova organização escolar
socialista. Ainda que pequeno, o progresso era visível. Com criatividade e muito
esforço, o pedagogo russo tratava principalmente dos problemas educacionais, dos
métodos de ensino e do papel do trabalho como o cerne da nova escola soviética,
pois a escola em construção também fazia parte do projeto de transformação social.
Portanto, suas reflexões foram embasadas em sua prática de professor e militante
socialista que desejava construir uma proposta pedagógica direcionada aos
interesses da sociedade comunista.
Em 1924, escreveu “Os problemas fundamentais da Escola do Trabalho”, em
que apresentou elementos essenciais para a compreensão da proposta educacional
socialista. Segundo Pistrak (2018), para o desenvolvimento de uma educação
baseada nos fundamentos do socialismo, torna-se necessária a compreensão de
três elementos centrais: a) sem teoria pedagógica revolucionária não pode haver
prática pedagógica revolucionária; b) a teoria marxista é a teoria da transformação;
c) a teoria pedagógica comunista se tornará ativa e eficaz quando o próprio
professor assumir o papel de um militante social ativo no seio da nova escola.
Para ele, a teoria pedagógica revolucionária é a teoria marxista, a qual o autor
denomina, ao longo de sua obra, de a teoria da transformação. Em Pistrak, é
imprescindível a instrumentalização dos alunos com o ensino do conhecimento
10
científico e da filosofia marxista, pois somente assim a classe trabalhadora poderia
almejar a transformação social.
Os fundamentos teóricos da proposta educativa de Moisey Pistrak estavam
conectados às teses pedagógicas de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels
(1820-1895), sendo essas suas principais influências. Com base na teoria desses
autores, Pistrak foi um dos responsáveis pela criação e realização das primeiras
experiências educativas de caráter socialista. O educador russo buscou nos escritos
de Marx e Engels sobre trabalho e educação os fundamentos para a construção das
experiências educativas no contexto pós-revolucionário na Rússia.
Como vimos anteriormente, a grande questão debatida pelos pedagogos
socialistas soviéticos era sobre como deveria ser organizada a escola do trabalho
soviética após a concretização da revolução. Assim como a nova sociedade
socialista nasceu das ruínas do regime capitalista russo, a nova escola também
surgiria por meio do anseio pela superação da forma escolar burguesa. Para ir além,
os educadores soviéticos defendiam um novo conteúdo, uma nova forma de
organização pedagógica, com novas finalidades educativas.
No contexto das Escolas-Comunas, temas importantes como o trabalho e a
auto-organização foram experienciados sob o ponto de vista revolucionário da
classe operária. Além disso, Pistrak (2018) afirma que a escola precisa ter
finalidades socio pedagógicas, elencando categorias pedagógicas que formavam a
base da escola do trabalho: a estreita ligação com a atualidade daquele período
histórico, ou seja, a própria revolução; o trabalho como princípio educativo; e a
auto-organização dos estudantes. Em síntese, a atualidade significava a luta contra
o imperialismo capitalista, na busca pela solidificação da revolução, que era a
construção de uma sociedade sem classes sociais. Com isso, ao mesmo tempo em
que estuda a atualidade, a escola também tem o poder de transformá-la. Dessa
forma, o autor explica:
Atualidade é tudo aquilo que na vida social de nosso tempo tem
requisitos para crescer e se desenvolver, que se reúne em torno da
revolução social vitoriosa e servirá para a construção da nova vida.
Mas a atualidade também é aquela fortaleza capitalista contra a qual
a revolução mundial conduz o cerco. Em resumo, a atualidade é o
imperialismo em sua última fase e o poder soviético como ruptura no
front do imperialismo, como brecha na fortaleza do capitalismo
mundial [...] A atualidade deve ser compreendida como luta que se
trava na brecha que foi aberta; toda esta luta será ampliada,
11
exacerbada e crescerá enquanto a vitória não vem pela revolução.
(PISTRAK, 2018, p. 42).
Para educar pela atualidade, a escola precisava estar devidamente
organizada, necessitando realizar um trabalho formativo com conteúdos diferentes
daqueles lecionados na escola burguesa. A atualidade, antes ofuscada pelos velhos
métodos da escola classista, naquele momento assumia a questão fundamental a
ser entendida. Para isso, todo o trabalho pedagógico deveria estar focado no estudo
da atualidade, compreendendo os fenômenos sociais a partir do ponto de vista
marxista, de forma a romper com os antigos valores da velha escola.
A revisão dos conteúdos escolares para a escola do trabalho foi definida pela
atualidade daquele período, que era a revolução socialista. A construção da
pedagogia soviética aconteceu ao mesmo tempo em que os educadores socialistas
se esforçavam para se distanciar das práticas do antigo programa, o que implicava
um novo método de estudo, como destaca Pistrak (2018, p. 45):
O objetivo da escola não é apenas conhecer a atualidade, mas
dominá-la. E aqui os métodos antigos de ensino são inúteis. É
preciso tomar os fenômenos em suas relações mútuas, nas
interações e dinâmica; é preciso demonstrar que os fenômenos da
atualidade são parte essencial de um mesmo processo histórico
geral de desenvolvimento; é preciso esclarecer a essência dialética
do meio que nos cercam.
O autor se refere ao materialismo histórico-dialético como o método de
análise que possibilita conhecer a essência dialética do processo histórico geral do
desenvolvimento do mundo humano, algo que é possível por meio do estudo dos
fenômenos e das suas relações que formam a totalidade social. Esse é um dos
elementos que torna a pedagogia socialista essencialmente marxista, pois os
pedagogos soviéticos utilizavam-se desse método para promover o ensino. Assim,
entendemos que a finalidade da Pedagogia Socialista Soviética era a mesma da
revolução social: a transformação da sociedade. Nesse contexto, para o educador
socialista, a escola deve se assumir como parte integrante da atualidade,
demonstrando para as crianças e os jovens que eles também fazem parte dessa
luta. Isso significa que todos devem ter uma militância ativa, e, nessa batalha, a
arma mais importante é o conhecimento. Desse modo, “cada estudante deve
tornar-se um lutador e um construtor. A escola deve esclarecer a ele para quê,
12
contra quem e por quais formas ele deve lutar, o que e como ele deve construir e
criar” (PISTRAK, 2018, p. 47).
Para desenvolver a auto-organização, as crianças precisavam passar por uma
série de experiências organizativas nos mais variados órgãos. Cada estudante
deveria saber dirigir as tarefas coletivas com a criatividade exigida para cada
momento, mas também precisava aprender a se subordinar aos seus colegas. De
acordo com Pistrak, tudo isso tem de ser encarado com discernimento e
responsabilidade por cada criança e cada jovem. Nesse sentido, a auto-organização
dos estudantes é um instrumento de formação e um meio para alcançar os objetivos
da escola. Para entender melhor sobre o significado da auto-organização, Pistrak
(2018) explica dois pontos importantes: o primeiro é que a constituição dos coletivos
infantis é a base para a existência da auto-organização, pois esses órgãos
desenvolvem a noção de coletividade, ao mesmo tempo em que unem as crianças
em prol de um interesse coletivo; o segundo ponto elencado pelo pedagogo se
refere às diversas formas de auto-organização dos estudantes, englobando todos os
momentos em que as crianças se organizam coletivamente para tratar de assuntos,
por exemplo, passeios, apresentações, recepções, pesquisas, trabalhos
pedagógicos, entre outros temas que fazem parte da vida em grupo. Tudo isso
contribui de maneira significativa no desenvolvimento infantil, além de acrescentar
ao trabalho educativo.
Nas obras desse autor, podemos perceber a ênfase à conexão entre a escola
e a vida, o que reafirma ainda mais a Pedagogia Socialista Soviética como uma
pedagogia social. Se a atualidade é definida por Pistrak como o estudo da realidade
atual vivida e as pessoas como protagonistas dessa história, então podemos
entender a atualidade como o estudo da luta de classes travada historicamente entre
a burguesia e o proletariado. Logo, o trabalho se torna o elemento central, pois a luta
é justamente pela construção de uma nova sociedade, sem a existência de classes
sociais e com formas sociais de trabalho mais justas. Dessa maneira, o trabalho
também ocupa papel fundamental na escola, adentrando “[...] como um elemento
social e socioeducativo, unificando ao redor de si todo o processo
formativo-educativo” (PISTRAK, 2018, p. 56).
Na proposta educativa e escolar de Pistrak (2018), o trabalho era
compreendido como elemento constituinte do ser humano, princípio educativo, e
13
condição necessária à emancipação humana e à formação omnilateral. Dessa
forma, as Escolas-Comunas por ele coordenadas tinham como princípios-chave o
trabalho, a auto-organização e a atualidade, sendo praticados desde o início do
processo de escolarização.
O trabalho começou a ser introduzido nas escolas por meio de níveis
crescentes de complexidade, que variavam de acordo com a idade e a disposição
física das crianças: primeiro, o autosserviço formava hábitos de organização e de
higiene; segundo, o trabalho nas oficinas com diferentes tipos de materiais; e
terceiro, o trabalho fabril, que era visto como aquele que mais adentrava na
atualidade e por isso estava no núcleo do processo educativo. Nesse sentido, todo o
trabalho desenvolvido era de cunho socialmente útil, mas, para que isso ocorresse,
a escola precisava estar ligada à atualidade e os estudantes devidamente
auto-organizados.
O trabalho sob forma de autosserviço foi uma necessidade que nasceu em
razão da condição miserável de existência das comunas, algo que passou a fazer
parte do sistema educativo e formativo dos estudantes e professores. Nas palavras
do autor:
[...] de um lado, é necessidade, causada pelas condições materiais
de existência. [...]. Por outro lado, independentemente das condições
materiais, nós transferimos para as mãos das crianças este ou
aquele trabalho, particularmente aquele que ou tem caráter de
autosserviço pessoal (arrumação da cama, remendos, costura parcial
etc.), ou que espaço para iniciativa e criatividade (mutirão de fim
de semana, trabalhos de massa), ou que são úteis pelas condições
de trabalho, para a saúde das crianças (participação moderada nos
trabalhos rurais no verão). [...] o trabalho em autosserviço reduz-se
ao seguinte: limpeza do prédio, trabalho na cozinha, na cantina,
organização da sauna e cuidados com a lavanderia,calefação do
prédio, organização da sala hospitalar e ambulatório, entre outros
tipos de trabalho (PISTRAK, 2009, p. 219-223).
O princípio de autosserviço - organização e comprometimento na execução
das tarefas de cada membro - envolve toda a comunidade escolar, pois se um
integrante não fizer seu trabalho bem-feito, compromete toda a organização da
comuna, atrasando o andamento das tarefas e dos trabalhos diários. Para realização
do serviço, eles eram divididos em grupos de 3 a 5 crianças, contando com um
monitor em cada grupo responsável por acompanhar o trabalho realizado. As tarefas
englobavam desde serviços domésticos a trabalhos no campo.
14
Para Pistrak, o autosserviço se remete ao trabalho mais simples, de menor
complexidade laboral. Em contrapartida, ao mesmo tempo em que ele apoiava a
prática do autosserviço, também defendia a necessidade de realização de trabalhos
mais complexos nas Escolas-Comunas. Dessa forma, o autosserviço servia como
um ponto de partida ou como uma base para os trabalhos que poderiam ser
desenvolvidos para além de tarefas simples, pois o autosserviço precisava ir
ganhando complexidade. A questão estava em formar, começando pelos trabalhos
mais simples, por meio das mais variadas práticas de trabalho socialmente útil, de
maneira que interligassem os conteúdos escolares com a realidade social.
Pistrak (2018, p. 72) alertava também, para o fato de que o autosserviço
poderia dar uma noção desagradável do trabalho para os educandos, ou seja,
segundo o educador, uma das limitações do autosserviço era quando este
transformava o trabalho em um “[...] fardo pesado, às vezes pequenos trabalhos
forçados, desenvolvendo aversão para com ele, o desejo de livrar-se mais depressa
da obrigação desagradável, isto é, atinge-se em verdade um resultado contrário”.
Por outro lado, também destacava a potencialidade do autosserviço, ao afirmar que
este desenvolvia uma série de hábitos culturais importantes para o “novo modo de
vida” presente no socialismo nascente. Assim, de acordo com Pistrak (2018, p. 72)
“[...] é preciso examinar o autosserviço com este ponto de vista de luta por uma
etapa superior ou, mais exatamente, com uma base para o desenvolvimento desta
etapa superior de modo de vida cultural”.
A autodireção era necessária principalmente para desenvolver a autonomia
nos estudantes. Era também uma forma de organizar a vida dos alunos, e,
posteriormente, apoiá-los nas suas decisões e direções a serem tomadas fora do
ambiente escolar. Por meio do Comitê Executivo (depois transformado em Comitê
Organizacional), órgão de autodireção dos estudantes, eles participavam e
opinavam nas reuniões que tratavam sobre os diversos assuntos ligados à
comunidade escolar.
Todas as crianças se envolviam na direção e organização do trabalho escolar.
Era “[...] a ideia básica da autodireção: autonomia razoável e real dos estudantes na
esfera da sua vida espiritual, física e social” (PISTRAK, 2009, p. 262) na construção
da nova escola para a nova sociedade, mediada pelo trabalho como princípio
educativo e diretivo. Portanto, a tarefa da escola é, “[...] de forma organizada,
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conduzir as crianças no meio ambiente social. [...] É preciso ajudar as crianças a
tornarem-se participantes da grande vida social, [...] porque isso é a sua
necessidade real atual” (PISTRAK, 2009, p. 271-272).
o trabalho nas oficinas funcionou com sucesso até 1921, quando a escola,
aos poucos, foi deixando-as de lado. Em contrapartida, Pistrak afirma que as
oficinas desempenham um papel importante na escola, por isso defendia a união
delas com a grande indústria. O autor argumenta que “[...] a oficina deve ser o ponto
de partida de uma série de fios que conduzem à produção. E estes fios definem o
interesse ativo das crianças.” (PISTRAK, 2018, p. 83). O trabalho nas oficinas
também contemplava os ofícios artesanais da cidade e do campo, que tinham
grande relevância na economia soviética, pois seguiam uma série de exigências:
elaboração de materiais diversos sobre as tecnologias e os ofícios mais necessários;
as ferramentas e os métodos de trabalho devem ser os mais variados possíveis; e a
possibilidade de ampla apropriação e criação técnica pelas crianças (PISTRAK,
2018). Nas oficinas as crianças trabalhavam com muitos tipos de materiais, entre
eles a madeira, o metal, tecidos, papelão, assim, “[...] o significado fundamental das
oficinas reside em ser o ponto de partida para a introdução na compreensão da
moderna organização e técnica do trabalho.” (PISTRAK, 2018, p. 88).
O trabalho fabril estava no centro do processo educativo, pois abordava o
estudo da fábrica na sua complexidade. Para Bahniuk e Dalmagro (2021, p. 119),
A Escola do trabalho envolvia o estudo da fábrica em toda sua
amplitude e complexidade, desde a origem da matéria prima até o
destino dos produtos, os aspectos geográficos, históricos,
econômicos e culturais deste processo, o trabalho em toda sua
cadeia, o lugar do produto na economia local e nacional. Desta
forma, a escola não se restringe ao estudo da fábrica em si mesma
ou de suas técnicas de trabalho, ainda que estas sejam importantes,
mas inclui o trabalho e o estudo do trabalho dos jovens, numa visão
de totalidade.
É importante deixar claro que a escola do trabalho não foi um projeto pensado
e executado de forma assertiva, em todos os aspectos. Os educadores soviéticos
tiveram que lidar com muitos problemas, de caráter teórico e prático. Os desafios
eram grandes: havia professores que resistiam às mudanças, por estarem alinhados
aos antigos métodos de ensino; as condições estruturais eram precárias; e os
recursos financeiros bem limitados. Visto que a URSS vivia um contexto de
pós-guerra, a realidade era difícil, havendo muitos órfãos e as escolas também
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acabavam servindo de abrigo para as crianças, e não somente como centro cultural
e de ensino da ciência.
As práticas educativas do educador russo estavam entrelaçadas à
organização e à construção do socialismo. Pistrak realizou análises sobre a prática
dos professores naquele contexto de mudanças e concluiu que não era somente o
povo que precisava de uma nova educação, mas também os professores, de modo
que pudessem desenvolver um trabalho articulado com a revolução. Os professores,
compreendendo sua função política na edificação da nova sociedade, deveriam
tornar-se sujeitos ativos e conscientes na criação do socialismo. Pistrak (2018)
discute sobre problemas teóricos e práticos enfrentados pelos professores no
cotidiano escolar, relacionados à metodologia, à didática, à organização e à escolha
dos materiais. De acordo com o autor, essas questões eram fruto da velha forma
escolar burguesa, que precisava ser superada pela nova escola do trabalho.
O educador dizia que, na busca da solução dos problemas teóricos e práticos,
os professores devem ter consciência de que “[...] a pedagogia marxista pode e deve
ser, antes de tudo, uma teoria socio pedagógica ligada às questões de
desenvolvimento das relações sociais atuais, iluminadas pelo marxismo” (PISTRAK,
2018, p. 30). Nesse sentido, ele afirmava a influência política nas questões
escolares, partindo dos discursos de Lenin:
Nossa tarefa no campo escolar é a luta pela derrubada da burguesia,
e declaramos abertamente que a escola fora da vida, fora da política,
é uma mentira e uma hipocrisia. [...] Chamar a educação de apolítica
ou neutra não passa de uma hipocrisia da burguesia, isto não é outra
coisa senão enganar as massas. [...] Em todos os estados burgueses
constitui-se uma ligação extremamente forte do aparato político com
a educação, embora a sociedade burguesa não possa reconhecê-lo
abertamente. Entretanto, esta sociedade prepara as massas através
da Igreja e por meio de toda organização da propriedade privada.
Não podemos deixar de colocar francamente a questão,
reconhecendo abertamente, apesar das antigas mentiras, que a
educação não pode ser independente da política (LENIN apud
PISTRAK, 2018, p. 30-31).
Nessa citação, evidenciamos a relevância da vinculação da escola à política
em geral, visto que as instituições escolares promoviam formação política sólida
para a juventude comunista. Essas formações também aconteciam com as massas,
pois os revolucionários realizavam o trabalho de esclarecimento sobre a luta e a
consciência de classe, aproximando-se cada vez mais do povo, em busca do
17
desenvolvimento dos princípios socialistas. Para Pistrak, a escola está conectada ao
sistema social que rege a sociedade. Desse modo, no capitalismo, a educação se
torna um instrumento ideológico e de dominação sob o controle da burguesia, o que
fez com que uma das tarefas da revolução fosse revelar o caráter de classe da
escola, rompendo com os laços classistas da escola burguesa, a fim de colocar a
educação a serviço da revolução. Essa tarefa não era algo simples e fácil, haja vista
que os educadores enfrentavam inúmeras dificuldades. A organização, os objetivos
e os métodos precisavam ser novos, de acordo com as finalidades daquela escola
do trabalho que estava em construção. Com a revolução, uma das funções
assumidas por essa instituição foi de esclarecer os interesses de classe. Para tanto,
era preciso que as pessoas entendessem, primeiramente, qual a natureza da luta da
qual faziam parte, posteriormente, qual o lugar que a classe trabalhadora ocupava
nessa luta e, por fim, qual o lugar que cada jovem deveria assumir nessa batalha,
lutando a favor da construção da nova sociedade.
Para além dessas questões, era fundamental que considerassem as
condições e o contexto em que a escola estava inserida, pois determinada prática
pode funcionar bem em uma instituição, mas não em outra. Portanto, Pistrak
afirmava que é necessário desenvolver ao máximo a criatividade individual e coletiva
dos educadores, formando uma nova escola. Ele indica o compartilhamento das
experiências nas escolas experimentais-demonstrativas para servir como referência
para o magistério, bem como as críticas a elas dirigidas, vistas como oportunidade
de aprendizagem.
Na ótica desse pensador, a teoria pedagógica comunista poderia tornar-se
ativa na massa do magistério apenas quando cada professor fosse em alguma
medida um ativista social. Isso envolveria que os docentes dominassem o método
marxista e, consequentemente, as ideias comunistas da educação. Assim, todo os
educadores, em todos os níveis de ensino deveriam tornar-se ativistas sociais
(PISTRAK, 2018).
De acordo com Pistrak (2018), a escola do trabalho necessitaria refletir a
realidade da revolução, respondendo aos anseios da classe trabalhadora.
Compreendemos, desse modo, que o ensino escolar não é neutro, mas corresponde
aos objetivos do regime social no qual está inserido, como afirma o autor:
18
Uma das tarefas básicas da revolução social consiste em esclarecer
este caráter de classe da escola inserida em uma sociedade de
classes e revelar esta natureza com a ditadura do proletariado. [...] a
tarefa de educar as massas e assegurar o êxito da consolidação das
conquistas e realizações revolucionárias. A revolução deve fazer isto
também em relação à escola, porque a escola é uma superestrutura
ideológica e um instrumento ideológico da revolução. (PISTRAK,
2018, p. 40).
Logo, a proposta educativa de Pistrak, a qual faz parte do legado educacional
da Pedagogia Socialista Soviética, foi pautada na concepção marxista de educação
e no método materialista histórico-dialético. Percebemos essas relações ao estudar
as práticas pedagógicas do autor, as quais abordam a relação entre trabalho,
educação e ensino; a formação omnilateral e politécnica; e a necessidade de
compreender a realidade, a luta de classes e atuar sobre ela (BAHNIUK;
DALMAGRO, 2021).
A questão central da pedagogia socialista, como consideramos, é o trabalho
na escola. Além de ser o fundamento da educação, ele precisa estar conectado ao
trabalho socialmente útil e à produção social. Junto ao trabalho, a atualidade e a
auto-organização constituem-se elementos importantes que fundam a Pedagogia
Socialista Soviética, como observamos tanto nas obras de Pistrak quanto nos
documentos históricos apresentados.
Considerações finais
Experienciamos um momento de diferentes ofensivas direcionadas à
educação, por isso, é urgente construirmos respostas, resistências e enfrentamentos
contra a Pedagogia do Capital. Acreditamos que, apesar da Pedagogia Socialista
Soviética ter sido uma experiência ensaiada um pouco mais de 100 anos, ela tem
enorme validade e potencialidade atualmente, considerando que ainda vivemos sob
a égide do modo capitalista de produção.
A Pedagogia Socialista Soviética nos aponta caminhos importantes a serem
seguidos, pois sua finalidade centra-se na emancipação humana, por meio da união
entre trabalho e educação. Nesse sentido, avaliamos que estudar o pensamento
pedagógico socialista soviético constitui-se como um caminho para lutarmos contra
as pedagogias hegemônicas do capital. Por exemplo, aprendemos com Pistrak a
importância de reconhecer a escola como fundamental na formação dos
19
trabalhadores, homens e mulheres, jovens e crianças, a fim de transformar a
realidade atual e construir uma nova sociedade. Assim, a escola orientada por uma
pedagogia revolucionária tornar-se-ia o espaço da ciência, da tecnologia e da
cultura, responsável pela educação das futuras gerações.
Outro ensinamento é compreender a escola como espaço de disputa, o que
envolve desde os conteúdos até a organização do trabalho pedagógico, para, desse
modo, colocá-la a favor dos interesses da classe trabalhadora. Nessa perspectiva,
concordamos com a afirmação de Bahniuk e Dalmagro (2021, p. 255):
[...] a Pedagogia Socialista é um projeto futuro, mas que se
constrói desde já, recuperando em certo sentido experiências
passadas, não para copiá-las, mas sim para refletir sobre elas e
construir algo novo, condizente com o tempo histórico atual.
Por fim, afirmamos que legados importantes deixados pela Pedagogia
Socialista Soviética, como um rico arcabouço teórico e prático de experiências
educativas, nas quais podemos apoiar nossas práticas educativas, com o intuito de
repensarmos a relação entre trabalho, educação e ensino na atualidade, com vistas
à formação humana integral de homens e mulheres.
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ofensiva do capital e crise sanitária. Revista Linhas, Florianópolis, v. 22, 49,
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BAHNIUK, C.; DALMAGRO, S. L. P. Shulgin e a pedagogia soviética nos anos de
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Leandro E. P. POMAR, Valter. (orgs). São Paulo: ELAHP: Escola Latino-americana
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21
V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
EDUCAÇÃO INTEGRAL: UMA CONCEPÇÃO EM DISPUTA1
Débora Spotorno Moreira Machado Ferreira2
Resumo
O presente artigo consiste na apresentação da educação integral sob a perspectiva dos projetos
educacionais em disputa. Tomaremos como educação integral aquela que se baseia na concepção
crítica e visa à superação da sociedade capitalista e à instauração do socialismo. Entretanto, esse é
um termo comumente apropriado pelos discursos hegemônicos em uma perspectiva totalmente
distinta da que defendemos. Por isso, compreender como a classe dominante vale-se dessa categoria
é um esforço essencial para desconstruir seus argumentos e apresentar contra ela uma
argumentação consistente.
Palavras-chave: Educação Integra; Escola unitária; Reforma do Ensino Médio.
EDUCACIÓN INTEGRAL: un concepto en disputa
Resumen
El presente artículo consiste en la presentación de la educación integral desde la perspectiva de los
proyectos educativos en disputa. Tomaremos como educación integral, aquella que se base en la
concepción crítica y tenga como objetivo la superación de la sociedad capitalista y la instauración del
socialismo. Sin embargo, este es un término comúnmente apropiado por los discursos hegemónicos,
en una perspectiva totalmente diferente a la que defendemos. Por lo tanto, comprender cómo la clase
dominante usa esta categoría es un esfuerzo esencial para deconstruir sus argumentos y presentar
una contraargumentación consistente.
Palabras clave: Educación Integral; Escuela Unitaria; Reforma Escolar.
INTEGRAL EDUCATION: a concept in dispute
Abstract
The present article consists of the presentation of integral education from the perspective of the
educational projects in dispute. We will take as integral education, the one that is based on the critical
conception and aims to overcome capitalist society and the establishment of socialism. However, this
is a term commonly appropriated by hegemonic discourses, in a distinct perspective from the one we
defend. Therefore, understanding how the ruling class uses this category is an essential effort to
deconstruct its arguments and present consistent counter-argumentation.
Keywords: Integral Education; Unitary School; High School Reform.
2Doutoranda em Serviço Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mestre em
Serviço Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Assistente social no Instituto
Federal Fluminense, Campus Macaé. E-mail: deboraspotorno@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6917562635160328. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9902-4683.
1Artigo recebido em 14/07/2022. Primeira avaliação 07/09/2022. Segunda avaliação 17/09/2022.
Aprovado em 23/09/2022. Publicado em 10/11/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i4355215.
1
Introdução
Pensar a educação integral e o que ela significa na educação básica brasileira
do século XXI envolve compreender seus aspectos nas mais variadas, distintas e
contraditórias percepções que resultam em projetos de educação em constante
disputa na realidade, em pleno contexto de (contra)reforma do ensino médio.3
Nesse sentido, a compreensão de educação integral que aqui se apresentará
como essencial e, de fato, integradora baseia-se em uma concepção crítica que
defende a transformação da sociedade capitalista, sua superação e a instauração de
uma outra forma de organização social: a saber, o socialismo.
Dito isso, o leitor está ciente de que a construção teórico-metodológica aqui
usada irá conduzi-lo por uma leitura implicada, comprometida e radicalmente
enraizada na concepção de que a educação, ao lado dos demais aparelhos de
hegemonia, pode e deve ser constituída “para” e “pela” classe trabalhadora, para ela
mesma, em um processo de autoformação que combata a alienação e promova uma
nova concepção de mundo, fincada na filosofia da práxis. Logo, não neutralidade
neste ensaio, não uma apresentação indiferente dos diversos pontos de vista
acerca do que seja a educação integral e seus mais variados discursos e projetos,
entre as distintas frações de classe da sociedade capitalista atual.
Toda exposição aqui realizada, mesmo que se mantenha fiel aos discursos
apresentados, desde a escolha dos interlocutores até a seleção dos textos para a
construção da análise, fizeram-se com base no envolvimento da autora com o tema
e na sua defesa teórica e prática como assistente social da educação profissional e
tecnológica de nível médio integrado ao técnico de um instituto federal brasileiro.
Para compreender a educação integral do ponto de vista da perspectiva
crítica marxista, optamos por desenvolvê-la partindo do que defende Gramsci como
Escola Unitária. Nesse sentido, temos o desenvolvimento dessa categoria como o
primeiro ponto abordado no presente ensaio. Isso porque a compreensão de tal
categoria deixará evidente o que defendemos como o verdadeiro modelo de
educação integral, que seja capaz não de atender às transformações do capitalismo
3Necessário ainda destacar que a educação integral aqui apresentada irá focar na sua concepção
apenas para formação dos jovens entre 14 e 18 anos (que no Brasil diz respeito ao nível médio da
educação básica), apesar de que, quando tratarmos da escola unitária em Gramsci, esta refere-se a
um período que seria o que hoje conhecemos como a educação básica do fundamental ao médio.
2
e suas necessidades, mas sim de formar a classe trabalhadora para a luta pela
superação desse sistema que a subjuga.
Posterior à apresentação da concepção gramsciana acerca de escola unitária,
apresentamos as acepções de escola integral da burguesia, mais precisamente, do
Banco Mundial, da burguesia nacional do Centro de Estudos e Pesquisa em
Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) e o Programa de Educação
Integral do Governo Federal (Programa Mais Educação de 2007), passando à
análise da atual (contra) reforma do ensino médio como um espaço de disputa do
empresariado nacional e internacional para a conformação da classe trabalhadora à
lógica da acumulação flexível.
Discutimos a concepção de educação integral em disputa, e como essa se
tanto no campo político e econômico quanto no ideológico, cuja educação
constitui-se em espaço privilegiado, uma vez que contribui com a formação da
classe trabalhadora. Para tanto, as diversas concepções acerca de educação
integral são analisadas com a intensão de explicitar o real significado que elas
carregam.
Posteriormente, são efetuadas a exposição e a análise da atual (contra)
reforma do ensino médio, destacando todos os seus problemas, em especial o fato
de ela alimentar uma formação dual, e institucionalizar o acesso desigual e
diferenciado ao conhecimento, o que colabora com a precarização da formação da
classe trabalhadora.
Por fim apresentamos uma perspectiva que aposta nas possibilidades de que
se construam resistências e se fundem possibilidades concretas de instauração de
uma educação forjada nos moldes da escola unitária. Para tanto, acreditamos que a
intervenção pedagógica tem um papel decisivo nesse processo.
É diante dessa perspectiva, fundada em uma junção corajosa do pessimismo
da razão com o otimismo da vontade, que este ensaio se posiciona, pois, uma vez
que odiamos os indiferentes4, somos parte dos que não apenas fazem a crítica, mas
se unem nas propostas de garantir novas alternativas.
4Ver “Odeio os Indiferentes” (GRAMSCI, 2020). Nesse escrito, o filósofo pontua que a indiferença é
apatia e não é vida, por isso ele odeia os indiferentes. A indiferença é o peso morto da história e o
que atrasa as inovações. Ela afunda os entusiastas e desencoraja os empreendedores. Ela opera
com força na história, opera passivamente, mas opera. Ao abdicar de decidir, de se expor, de tomar
um lado, você acaba estando de um lado.
3
A escola unitária em Gramsci
Esse conceito gramsciano é provocador no sentido da compreensão de uma
dimensão do real, ao oferecer apontamentos específicos, claros, objetivos e
norteadores para a educação da classe trabalhadora, aqui entendida como a
educação que o próprio trabalhador reivindica e constrói para si, pois a ele pertence
a tarefa de exigir a escola do trabalho. Mais do que isso, não é um conceito
puramente abstrato, pois carrega em sua formulação apontamentos concretos e
práticos para essa escola de tipo unitário.
É no contexto da formação dos intelectuais orgânicos, e no debate de como
se a formação de intelectuais de novo tipo que se vinculem organicamente às
massas subalternizadas, que Gramsci constrói suas reflexões acerca dessa escola.
Nesse mesmo sentido, é também sobre as mudanças imbricadas na ciência e
na tecnologia que destaca que as escolas de seu tempo estavam em descompasso
com esses desafios, uma vez que se construíam de maneira diferenciada para cada
grupo social, reforçando a divisão existente no mundo do trabalho e reproduzindo-a
no espaço formativo. A escola construía-se de maneira interessada, ou seja,
vinculada aos interesses específicos da sociedade capitalista, com os destinos dos
alunos determinados de acordo com as funções socioeconômicas a eles
destinadas.
Para o teórico, a forma de solução desse modelo e a forma de pensar a
escola estavam na sua proposta de escola unitária, compreendida como uma escola
capaz de assegurar autonomia, criação intelectual e prática e de, também, cada vez
mais, garantir a capacidade de ser dirigente aos trabalhadores.
A crise terá uma solução que, racionalmente, deveria seguir esta
linha: escola única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que
equilibre de modo justo o desenvolvimento da capacidade de
trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o
desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual. Deste tipo
de escola única, através de repetidas experiências de orientação
profissional, passar-se-á a uma das escolas especializadas ou ao
trabalho produtivo. (GRAMSCI, 2001, p. 33).
Em Gramsci, a escola deve ser capaz de formar a todos de maneira
igualitária, propiciando a qualquer ser humano o desenvolvimento de habilidades
4
semelhantes, tornando-os igualmente capazes de se tornarem dirigentes ou de
controlarem os que dirigem.
Outro aspecto fundamental, e que está posto desde os seus primeiros
escritos, é o de que seu embasamento filosófico é antitético às concepções
filosóficas dominantes da época e, assim sendo, fundamenta-se nesse
embasamento quando formula suas proposições para a escola unitária.
Cada ser humano, na sua individualidade, está imerso nas relações sociais
das quais faz parte. A individualidade é socialmente construída e, em cada formação
social, essa individualidade é distinta de outra, porque cada formação social, cada
conjunto organizado de relações sociais, imprime aos que a constituem, enquanto
um ser social coletivo ou individual, as suas marcas específicas. Logo, descarta
qualquer teoria que pretenda justificar que alguns seres humanos, por sua natureza,
são fadados à direção e à condução da vida social e outros são predestinados a ser
alvo de determinações que lhe são exteriores, como meros executores.
Sua concepção de escola unitária desenvolve-se de maneira a opor-se ao
processo escolar de seu tempo, em que a escola atendia aos interesses
hegemônicos do capital. Oferecia-se aos dominantes e empresários uma formação
propriamente intelectual para que perpetuassem seu processo de dominação sobre
as massas, e a estas, uma formação exclusivamente instrumental ou para o
trabalho, no seu sentido estrito e operário, mantendo-as, assim, na condição de
dominadas. Logo, “a divisão fundamental da escola em clássica e profissional era
um esquema racional: a escola profissional destinava-se às classes instrumentais,
enquanto a clássica destinava-se às classes dominantes e aos intelectuais”
(GRAMSCI, 2001, p. 33).
Segundo Gramsci (2001, p. 32), a civilização moderna tendeu a criar diversos
tipos de escolas para formar os mais variados grupos de especialistas com vistas a
atender às complexas práticas que se desenvolviam no interior do processo
produtivo. Assim,
ao lado do tipo de escola que poderíamos chamar de “humanista” (e
que é o tipo tradicional mais antigo), destinado a desenvolver em
cada indivíduo humano a cultura geral ainda indiferenciada, o poder
fundamental de pensar e de saber orientar-se na vida, foi-se criando
paulatinamente todo um sistema de escolas particulares de
diferentes níveis, para inteiros ramos profissionais ou para profissões
já especializadas e indicadas mediante uma precisa especificação.
5
Para Gramsci, todos os seres humanos têm capacidades intelectuais.
Nenhuma atividade é apenas motora; todas, uma vez sendo atividades humanas,
pressupõem o movimento intelectual. Sua compreensão da humanidade permite-nos
estabelecer que todo ser humano, por mais ignorante do ponto de vista de sua
formação intelectual e por mais que seu ofício seja aparentemente essencialmente
braçal e mecânico, é sempre capaz de pensar e, mais do que isso, sempre está
pensando. É de Gramsci (1999, p. 93) a compreensão de que “[...] todos são
filósofos, ainda que a seu modo, inconscientemente que, até mesmo na mais
simples manifestação de uma atividade intelectual qualquer, na “linguagem”, está
contida uma determinada concepção do mundo”.
Com isso ele quer dizer que, mesmo no exercício de trabalho manual ou
instrumental, o homem pensa, exige-se dele um mínimo de atividade intelectual,
pois, “[...] em qualquer trabalho físico, mesmo no mais mecânico e degradado, existe
um mínimo de qualificação técnica, isto é, um mínimo de atividade intelectual
criadora” (GRAMSCI, 2001, p. 18). Sendo assim, mesmo que não seja um filósofo
de ofício, ele possui desenvolvimento de características filosóficas ou intelectuais,
sem deixar de considerar que, apesar de todos os homens serem intelectuais, “[...]
nem todos os homens têm na sociedade a função de intelectuais” (GRAMSCI, 2001,
p.18). E é em decorrência dessa compreensão que defende que a escola deve
radicalizar esse princípio de que todos os seres humanos são intelectuais.
O teórico ressalta a importância de as escolas serem constituídas por
intelectuais que saibam lidar com um método de ensino que comporte elementos
pedagógicos e didáticos, que paulatinamente construam dimensões de autonomia
dos sujeitos e das próprias instituições educacionais. Logo, a escola unitária “[...]
deveria assumir a tarefa de inserir os jovens na atividade social, depois de tê-los
elevado a um certo grau de maturidade e capacidade para a criação intelectual e
prática e a uma certa autonomia na orientação e na iniciativa” (GRAMSCI, 2001, p.
36).
Ele estabelece como princípio da escola primária, ou elemento fundamental
dela, a necessidade de definir agendas e conhecimentos políticos de enfrentamento
ou proposta de superação ao que ele denomina de folclore, que pode ser
compreendido como o senso comum ou aquelas concepções de mundo aleatórias,
6
sem reflexões críticas e repetidas instintivamente e automaticamente. Logo, “com
seu ensino, a escola luta contra o folclore, contra todas as sedimentações
tradicionais de concepções do mundo, a fim de difundir uma concepção mais
moderna [...]” (GRAMSCI, 2001, p. 42).
Para Gramsci, essas concepções que necessitam ser superadas, também e
principalmente pelo processo educativo escolar, são o que mantém as pessoas
prisioneiras de uma concepção de mundo e ou uma ideologia que reitera elementos
não científicos e reforça visões mágicas, religiosas e deterministas da realidade,
garantindo a subordinação dos trabalhadores à classe dominante e, assim, a
perpetuação do modo de produção capitalista, da alienação e da hegemonia dos
ideais burgueses.
Esse enfrentamento, segundo o filósofo, tem que ser iniciado na escola
primária, o que inevitavelmente gera uma tensão com as formas de pensamento das
crianças quando chegam a elas. Assim nos anos iniciais, esse tipo de escola:
[...]deveria desenvolver sobretudo a parte relativa aos “direitos e
deveres”, atualmente negligenciada, isto é, as primeiras noções do
Estado e da sociedade, enquanto elementos primordiais de uma
nova concepção do mundo que entra em luta contra as concepções
determinadas pelos diversos ambientes sociais tradicionais, ou seja,
contra as concepções que poderíamos chamar de folclóricas
(GRAMSCI, 2001, p. 37).
Entendida como o ciclo básico que, no Brasil, corresponde à parte da
Educação Básica5constituída pelo Ensino Fundamental e Médio, que atende à faixa
etária que vai dos 6 aos 17 anos a escola unitária tem por objetivo final e
primordial o desenvolvimento da capacidade de uma formação materialista-histórica,
rejeitando o humanismo abstrato, bem como o conhecimento puramente e
exclusivamente técnico-científico.
Assim, a formulação da concepção de escola unitária ganha uma radicalidade
e uma precisão imensas quando justamente estabelece que seu objetivo é a
formação de todos os seres humanos como dirigentes ou capazes de controlar os
que dirigem.
Esse modelo de escola prevê percursos formativos de quadros intelectuais na
perspectiva de que todos os homens são intelectivos. Entretanto, o principal objetivo
5Dizemos parte pois, no Brasil, a Educação básica também corresponde à Infantil, faixa etária não
abrangida pela concepção gramsciana de Escola Unitária.
7
desse modelo de escola é construir um novo intelectual que, nesse caso, é o
intelectual socialista: construtor, organizador, permanentemente persuasor, cuja
técnica trabalho eleva-se à técnica ciência, em que a tecnologia e a concepção
materialista histórica unificam-se para que o trabalhador se construa em especialista
político.
A escola unitária associa instrução e educação de modo não idealista, pois
aqui a formulação de Gramsci está sendo embasada pela concepção de trabalho
inscrita em uma concepção materialista histórica. O conceito e o fato do trabalho (da
atividade teórico-prática) é o princípio educativo imanente à escola primária, que a
ordem social e estatal (direitos e deveres) é introduzida e identificada na ordem
natural pelo trabalho.
O conceito do equilíbrio entre ordem social e ordem natural com base
no trabalho, na atividade teórico-prática do homem, cria os primeiros
elementos de uma intuição do mundo liberta de toda magia ou
bruxaria, e fornece o ponto de partida para o posterior
desenvolvimento de uma concepção histórica, dialética, do mundo,
para a compreensão do movimento e do devir, para a avaliação da
soma de esforços e de sacrifícios que o presente custou ao passado
e que o futuro custa ao presente, para a concepção da atualidade
como síntese do passado, de todas as gerações passadas, que se
projeta no futuro (GRAMSCI, 2001, p. 43).
E é por isso, assumindo esse compromisso, que o teórico destaca a
necessidade de romper com as escolas elitizadas, e isso passa pelo enfrentamento
ao intento que a burguesia tem de diferenciar as escolas. Além disso, ele entende
que quanto mais níveis educacionais uma sociedade possui mais evoluída na sua
capacidade organizativa ela é.
A complexidade da função intelectual nos vários Estados pode ser
objetivamente medida pela quantidade das escolas especializadas e
pela sua hierarquização: quanto mais extensa for a “área” escolar e
quanto mais numerosos forem os “graus” “verticais’ da escola, tão
mais complexo será o mundo cultural, a civilização, de um
determinado Estado. (GRAMSCI, 2001, p. 19).
Entretanto, é necessário, ao multiplicar e graduar os diversos tipos de escola
e sobretudo as profissionais, lutar por um tipo único de educação que confira ao
jovem a possibilidade de escolha profissional e que, nesse percurso formativo, ele
seja capaz de pensar, estudar, dirigir e controlar quem dirige. Portanto, deve-se “[...]
criar um tipo único de escola preparatória (primária-média) que conduza o jovem até
8
os umbrais da escolha profissional, formando-o, durante este meio tempo, como
pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige”
(GRAMSCI, 2001, p. 49).
Para isso, Gramsci considera ser necessário que o Estado assuma o papel de
criar esse tipo de escola, pois ela precisa ser, em potencial, universal, apesar de
reconhecer que será necessário que ela se inicie de maneira seletiva no sentido de
progressivamente ser ampliada para todos. Gramsci reconhece que a escola
unitária, tal como ele a propõe, precisará surgir ainda com um número reduzido de
vagas, mas que deve ser gratuita e, por isso, ter processos seletivos que permitam
que todas as frações de classe a acessem. Sendo assim, aos poucos, o Estado, por
meio da ampliação de seus recursos financeiros investidos na política educacional,
tornará esse tipo de escola o único existente e dará garantia de acesso a ela para
todos.
A escola unitária requer que o Estado possa assumir as despesas
que hoje estão a cargo da família no que toca à manutenção dos
escolares, isto é, requer que seja completamente transformado o
orçamento do ministério da educação nacional, ampliando-o
enormemente e tornando-o mais complexo: a inteira função de
educação e formação das novas gerações deixa de ser privada e
torna-se pública, pois somente assim ela pode abarcar todas as
gerações, sem divisões de grupos ou castas. (GRAMSCI, 2001, p.
36).
Seguindo em sua proposta, o filósofo enfatiza a necessidade de ampliar o
corpo docente, uma vez que entende que a escola é tão mais eficiente em seu
processo formativo quanto menor for a relação professor aluno. São suas palavras:
“o corpo docente, em particular, deveria ser ampliado, pois a eficiência da escola é
muito maior e intensa quando a relação entre professor e aluno é menor”
(GRAMSCI, 2001, p. 36-37).
A escola unitária refere-se ao período que vai desde os 6 anos até por volta
dos 17 anos. Ela unifica o preparo para a vida na perspectiva humanista e, também,
para o trabalho em sua dimensão ontológica e técnico-operativa. Deve ser
reorganizada tanto do ponto de vista do método de ensino quanto no que diz
respeito à organização dos seus vários níveis de percurso formativo.
Aos jovens deve ser possibilitado esse modelo de formação em uma
instituição cuja educação se em tempo integral e tenha características que
9
garantam um espaço escolar específico. A esse respeito, destaca que a garantia de
uma escola de tipo unitário precisa atentar-se, inclusive, para a “questão dos
prédios” o que, nas suas próprias palavras, “não é simples” (GRAMSCI, 2001, p. 37).
Essas instituições de ensino devem oferecer: alojamento, laboratórios,
bibliotecas, refeitórios e espaços de discussão, garantindo-se, assim, que todos os
jovens possam ter asseguradas as condições básicas para estudar. Assim vemos,
mais uma vez, que Gramsci incorpora a defesa de um Estado educador responsável
pela escola unitária, uma vez que ele tem clareza de que, se assim não for, os filhos
da classe trabalhadora não terão acesso a esse modelo formativo.
Ademais, para que a escola unitária seja viável, é necessária, na perspectiva
do teórico, a garantia de todo um aparato de instituições que lhe deem suporte,
como as creches, nas quais as crianças, desde bem pequenas, sejam inseridas de
maneira a se habituarem a uma disciplina coletiva que se fará necessária na vida
educacional das escolas unitárias.
Nesse tipo de escola, o ensino é feito coletivamente, permitindo um
aprendizado criativo, colaborando com o desenvolvimento da autonomia dos sujeitos
e constituindo-se no que Gramsci denomina de escola criadora, na qual o professor
é uma espécie de guia e facilitador do aprendizado. Assim sendo, segundo Gramsci
(2001, p. 39), “toda escola unitária é uma escola ativa”, isso porque
A escola criadora é o coroamento da escola ativa: na primeira fase,
tende-se a disciplinar e, portanto, também a nivelar, a obter uma
certa espécie de “conformismo” que pode ser chamado de
“dinâmico”; na fase criadora, sobre a base atingida de
“coletivização” do tipo social, tende-se a expandir a personalidade,
tornada autônoma e responsável, mas com uma consciência moral e
social sólida e homogênea. (GRAMSCI, 2001, p. 39).
Por fim, conclui-se, com destaque entre as suas concepções de escola, que
“[...] o estudo ou a maior parte dele deve ser (ou assim aparecer aos discentes)
desinteressado, ou seja, não deve ter finalidades práticas imediatas ou muito
imediatas, deve ser formativo ainda que ‘instrutivo’, isto é, rico de noções concretas”
(GRAMSCI, 2001, p. 49). Logo, a escola, seu percurso formativo e seu propósito não
devem ser vinculados aos interesses hegemônicos, não devem ser interessados ao
capital. O desinteresse refere-se exatamente a um tipo de escola cujo compromisso
10
não está previamente definido pelas concepções de mundo dominantes, mas com a
formação integral, igualitária, libertadora e ampliada de todos.
Entende ainda, o estudo como um trabalho que envolve um esforço próprio e
exige disciplina e dedicação. São suas palavras: “o estudo é também um trabalho, e
muito cansativo, com um tirocínio particular próprio, não intelectual, mas também
muscular-nervoso: é um processo de adaptação, é um hábito adquirido com esforço,
aborrecimento e até mesmo sofrimento” (GRAMSCI, 2001, p. 51).
Logo, na sua proposta de escola unitária uma escola que possibilite a
formação de um novo nexo psicofísico para que as pessoas se movam com
desenvoltura em uma nova ordem social. Para isso, chama a atenção para o fato de
que a educação integral, dita escola única/unitária, não é uma questão de um
desafio apenas interno e específico da política de educação, dos educadores ou da
própria instituição; a construção dessa escola é, necessariamente, uma tarefa da
sociedade como um todo.
A educação integral para os interesses da classe burguesa: o Banco Mundial,
a burguesia nacional (CENPEC) e o Programa de Educação Integral do
Governo Federal
O que temos hoje no Brasil é um redimensionamento do Estado, no que diz
respeito às suas responsabilidades, e um aumento das influências das organizações
da sociedade civil vinculadas ao empresariado, seja nacional, seja internacional, as
quais disputam as agendas das políticas sociais, entre elas a Educação. Com
destaque para o Banco Mundial, esses organismos, apontam para uma escola em
conformidade com os interesses da classe dominante, “desenvolvendo uma tarefa
política de educador coletivo” (SILVA, 2018, p. 1614).
Os discursos empresariais partem da compreensão de que são os indicadores
sociais que deixam explícita a necessidade de investimento na educação, uma vez
que atribuem à melhoria na educação uma redução das desigualdades. Assim,
[...] Evidências internacionais indicam que a escolaridade é uma
variável chave na determinação do progresso econômico de
indivíduos e nações. [...] Adicionalmente, o maior nível de
escolaridade produz maiores salários individuais e maiores taxas de
crescimento econômico para os países. (IU, 2011a, p. 5).
11
Acredita-se que a melhoria nos índices educacionais resultaria em uma
imediata e “milagrosa” melhoria da economia e das condições de vida do ponto de
vista do indivíduo. Logo, os resultados se dariam como se a soma de resultados
individuais fosse imediatamente convertida em mudanças sociais.
Entretanto, não é apenas essa a compreensão que dita as regras
argumentativas da classe dominante acerca do investimento em educação.
Valendo-se de métricas de desempenho que comparam o resultado dos países
(muitas vezes desconsiderando as desigualdades explícitas entre eles, inclusive do
ponto de vista da formação social), também adotam uma matriz descritora de
competências que, supostamente, seriam aquelas necessárias para formar o
"cidadão do século XXI", termo eufemisticamente utilizado para designar os
trabalhadores em tempos de superexploração.
Em conformidade com os interesses burgueses, novos valores passam a ditar
a forma de constituição das relações na sociedade, entre eles ganham destaque,
especialmente considerando os que impactam na política de educação, a pedagogia
das competências,6oaccountability e o protagonismo juvenil,7o empreendedorismo
e a empregabilidade. Soma-se a isso a ênfase nas competências socioemocionais,
tais como autocontrole, resiliência e trabalho em equipe.
Oaccountability, é um conceito que se origina de uma prática do mercado
financeiro alcança ou expressa-se em “todos os atores da empresa, desde o
dirigente ao assalariado de base” (DARDOT; LAVAL, 2009 apud QUADROS;
KRAWCZYK, 2021, p. 14-15). Segundo eles, isso seria característico da forma como
o mercado financeiro tornou-se ‘agente disciplinador’, ou seja, um importante ator na
difusão de uma racionalidade. De acordo com essa concepção, o mercado agora
não é a métrica pela qual todas as condutas devem ser guiadas, mas também é o
educador, por meio de práticas que procuram construir no indivíduo o consenso
(BROWN, 2015 apud QUADROS; KRAWCZYK, 2021). No discurso empresarial,
indicadores sociais no país justificam e indicam a necessidade de investimento
7O protagonismo juvenil é a maneira por meio da qual os jovens irão encarnar a lógica das
competências e do accountability,“[...] se consolida como uma forma de submissão ativa dos jovens à
sociedade neoliberal e à sua racionalidade” (QUADROS; KRAWCZYK, 2021, p. 22).
6“Ocorre que, ao ser orientado pelas competências, a seleção e o ordenamento de conteúdos terão
como fim os desempenhos profissionais e não a compreensão do exercício profissional como
mediação de relações sociais de produção e dos processos produtivos como particularidade da
realidade social” (CIAVATTA; RAMOS, 2012, p. 27).
12
econômico na educação, sendo o mercado aquele que deve realizar e conduzir tal
investimento, bem como determinar os tipos de resultados esperados.
Temos diante do conceito de accountability o fortalecimento, nas políticas
sociais, entre elas a de educação, de discursos tais como o de que o progresso
econômico tanto individual como da sociedade está atrelado de maneira imediata e
inquestionável ao aumento da escolaridade. Logo, bastaria aumentar o nível de
escolaridade dos indivíduos para que eles tivessem melhores salários e o país
alcançasse crescimento econômico.
Nesse mesmo sentido, são considerados competentes os que sabem se
mover nos diversos saberes para resolver problemas no campo da sua atuação
profissional.
[…] as competências são consideradas comportamentos observáveis
e sem relação com atributos mentais subjacentes, enfatizam a
conduta observável em detrimento da compreensão, podem ser
isoladas e treinadas de maneira independente, e são agrupadas e
somadas sob o entendimento de que o todo é igual a mera soma das
partes. (GÓMEZ, 2011, p. 83).
Nos modelos tayloristas e fordistas de produção, as competências são
sinônimo de eficiência e eficácia. Os modelos flexíveis valorizam também os
comportamentos, tais como trabalhar em equipe, saber se comunicar e outras
capacidades comportamentais. Logo, “[...] se as competências compõem a
subjetividade do trabalhador (no plano cognitivo e socio interativo), qualquer
enunciado objetivo pode reduzi-las a desempenhos” (CIAVATTA; RAMOS, 2012,
p. 24).
Todos esses valores se justificam uma vez que a formação da mão de obra é
construída para que ela atenda aos interesses do capital para que essa qualificação
específica colabore com a alavancagem do processo produtivo.
Assim, para analisar a formação da classe trabalhadora no contexto da
contrarreforma do ensino médio, é necessário, em uma perspectiva de totalidade,
considerar
[...] a análise das relações entre a agenda de incremento da
produtividade do trabalho demandada pela fração burguesa industrial
no Brasil e a mais recente política pública de reformulação do ensino
médio, [...] entendendo que essa agenda e sua relação com a
referida contrarreforma [...] se apresenta como uma importante
13
mediação no que diz respeito à relação entre o mundo do trabalho e
a formação da força de trabalho no Brasil contemporâneo.
(GAWRYSZEWSKI; MELLO, 2020, p. 3).
Nesse sentido, a dominação não se desenvolve apenas no campo político e
econômico. A luta e a disputa pela hegemonia dão-se no aspecto ideológico, e neste
“[...] a educação, entendida por estes [membros da classe dominante] enquanto
lócus de (con)formação objetiva e subjetiva da força de trabalho para o atendimento
de seus interesses mercantis” (GAWRYSZEWSKI; MELLO, 2020, p. 12).
A Educação Integral e em tempo integral, fundamentada pelo Centro de
Estudos e Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), instituição
que teoricamente é sem fins lucrativos (apesar de gerida pelo Itaú), na concepção
desse Centro, desenvolveu-se de maneira exemplar em alguns locais. Por esse
motivo, tais locais passaram a funcionar como uma espécie de laboratório, servindo
de exemplo às demais unidades de ensino.
Essa instituição disseminou uma concepção de educação integral que
subsidiou aquela desenvolvida pelo Governo Federal no Programa Mais Educação
em conformidade com a Meta 6 do Plano Nacional de Educação (PNE) Lei
13.005/2014 que estabelece que, até 2024, pelo menos 50% das escolas públicas
devem ampliar a jornada de atividades escolares.
Tanto para o referido Centro quanto para o governo federal e todos os seus
projetos, a educação precisa ser de mais qualidade e de maior tempo de duração.
Essas defesas assumem compromissos específicos com um determinado projeto de
sociedade. Vistas sem conexões com suas ideologias fundadoras e com o perfil de
seus promulgadores (Banco Itaú, Instituto Ayrton Senna e outros), aparentemente,
podem ser tomadas como progressistas e até, em certa medida, revolucionárias,
bem diferente do que de fato acreditam, defendem e implementam. Entretanto, para
entender essas concepções de educação integral, é necessário construir uma
análise crítica e pertinente dos discursos desses diversos atores, seja o Banco
Mundial, seja o CENPEC, seja o Governo Federal via Programa Mais Educação.
Faz parte da compreensão desses a de que educação integral “(...) não é uma
modalidade de ensino (...) é uma concepção de educação que coloca o estudante no
centro do processo e busca o desenvolvimento em todas as suas dimensões física,
emocional, intelectual, cultural e social” (CEI, 2016).
14
Da mesma maneira, o Instituto Ayrton Senna defende a ressignificação da
educação brasileira argumentando que ela está muito distante daquilo que o jovem
brasileiro está buscando. Vale-se da defesa do desenvolvimento da capacidade de
sonhar e de “correr atrás dos sonhos” trazendo para o âmbito do indivíduo a
responsabilidade pelo seu futuro, por sua empregabilidade, por seu “sucesso”
profissional (INSTITUTO AYRTON SENNA, 2018).
No que diz respeito ao papel que o Banco Mundial desempenha na
construção dessa ideologia educacional, importa compreender que, ao focar na
pobreza como um elemento que atrapalha o avanço do desenvolvimento nos países
dependentes, o banco ideologicamente a desloca como resultado desse atraso e a
coloca no papel de motivo dele. Pode parecer simples essa inversão, mas não o é,
pois ela torna a pobreza funcional e lucrativa, na medida em que passa a ser usada
de subterfúgio para a construção de projetos de ampliação da exploração do
trabalho, como um modelo educacional que educa o trabalhador para o conformismo
e a docilidade.
Segundo o Banco Mundial, países cujos empréstimos são recorrentes
precisam investir na educação dos seus trabalhadores para diminuir a pobreza
absoluta, mesmo que mantenham a relativa (esta deve inclusive ser preservada).
Para eles,
Como a mão de obra é o principal ativo das pessoas de baixa renda,
torná-la mais produtiva é a melhor forma de reduzir a pobreza. Isso
exige o aumento das oportunidades de ganhar dinheiro e de
desenvolver o capital humano a fim de aproveitar essas
oportunidades. O crescimento econômico a partir de uma base ampla
é importante. São igualmente importantes a educação básica e os
cuidados de saúde, especialmente para as crianças, a fim de
proporcionar os fundamentos para as aptidões básicas e o
bem-estar. (BANCO MUNDIAL, 2006, p. 2).
O Banco Mundial entende que, pela escolarização, a mão de obra se
qualifica, e é a escola a instituição capaz de evitar os problemas decorrentes da
pobreza que são experienciados pelos jovens. Em uma espécie de missão
salvadora, a escola, em especial a de tempo integral, evita comportamentos
negativos e “resultados desfavoráveis”.
Segundo destaca Silva (2018, p. 1618), “o que o BM possui como princípio é
que a pobreza é uma problemática passível de regulação e atribui à escola pública,
15
principalmente, a responsabilidade por isso”. Na verdade, a escola pode exercer e
exerce um duplo papel tanto de reproduzir a pobreza quanto de combatê-la e
promover uma proposta revolucionária. Entretanto, para esse último papel, a
possibilidade depende de investimento e oferta de condições para que tal intenção
se efetive de fato, saindo apenas do campo do idealismo.
De acordo com o CENPEC, por sua vez, a educação integral é uma estratégia
para a garantia da equidade e para melhorar as condições da política de educação.
De acordo com sua concepção, a educação integral seria capaz de atender às
demandas das classes populares, e, para alcançá-la, duas ações são propostas:
1) atuação de organizações não governamentais junto às escolas
para a composição da EITI, por meio de atividades no contraturno
escolar realizadas em diferentes espaços educativos; 2) assessoria
para a implantação, formulação e acompanhamento de políticas e
planos voltados para a EITI (SILVA, 2018, p. 1620).
Para essa instituição, a educação integral cumpre o papel de ser um meio
para que a escola pública exerça a função de aliviar os resultados provenientes da
pobreza e da desigualdade. Alguns autores que discutem essa educação integral
e(m) tempo integral, entre eles Carvalho (2006), demandam que a escola pública
não é, sozinha, capaz de garantir essa integralidade e deveria se articular com
outras instituições, sejam públicas ou privadas, para que isso fosse possível.
Assim, se une tal influência empresarial com a difusão de uma ideologia de
justiça social, em que a burguesia tem um papel funcional de atender ao duplo
interesse do capital: i) promover uma formação em massa do seu ideal do
consentimento e do conformismo, e o alívio das tensões provocadas pela pobreza,
cooperando com a coesão social; ii) garantir a preservação da concepção de que o
melhor modo de produção permanece sendo o capitalista.
Assim, a lógica da educação integral, para esses atores, passa pelo discurso
de uma formação de integralidade do ser, na qual todos os elementos da vida
humana são considerados, sejam suas dimensões físicas, emocionais, afetivas e
espirituais. Nesse projeto de totalidade humana,
A ideia de formação integral do homem está presente,
principalmente, em projetos de educação para a paz, dos direitos
humanos e da educação para valores, todos eles fundamentados em
princípios éticos e humanistas. Nesse sentido, a formação integral
16
dos indivíduos não está adstrita ao processo formal e intencional de
ensino, pois tem suas bases nas esferas da vida cotidiana, como nos
lembra Heller (1994). Inicia-se no nascimento e prossegue com a
aprendizagem sobre o universo cultural, durante todo o processo de
desenvolvimento das pessoas, pois é na vida cotidiana que se
objetivam as ações humanas e nela se inscrevem os resultados do
conhecimento humano, de suas conquistas e desafios. (GUARÁ,
2006, p. 16).
A escola não é central no processo de formação humana, processo esse que
deve ser dividido com todas as demais esferas da vida social. Essa defesa em si
parece ser compatível com a perspectiva crítica, uma vez que a vida e todas as suas
dimensões são parte da formação dos sujeitos, de suas concepções de mundo, da
formação de suas consciências e/ou de sua alienação. O próprio Gramsci entende
que os partidos políticos e o Estado, na sua dimensão ampliada8, cumprem o papel
educador de intelectuais orgânicos. Entretanto, essa concepção ampliada não é a
que o CENPEC e os representantes burgueses nacionais e internacionais
defendem, uma vez que, para eles, a escola serve apenas para a manutenção da
pobreza em níveis toleráveis (SILVA, 2018).
Como forma de unificar os interesses dos organismos internacionais para o
país e a concepção da burguesia nacional exemplificada pelo discurso do CENPEC,
o governo brasileiro, no ano de 2007, promulgou, via Portaria Interministerial 17, o
Programa Mais Educação (PME) com o objetivo de “[...] fomentar a educação
integral de crianças, adolescentes e jovens, por meio do apoio a atividades
socioeducativas no contraturno escolar” (BRASIL, 2007, p. 1).
Os ditames e as orientações desse programa do governo estavam atendendo
aos interesses dos empresários que compunham o chamado movimento Todos pela
8O conceito de Estado Ampliado em Gramsci considera que a divisão entre a dimensão restrita
(político-administrativa do Estado) e a dimensão conhecida por sociedade civil (composta pelos
aparelhos privados de hegemonia) deve ser considerada apenas didaticamente. Para o filósofo, o
Estado é a junção indissociável entre sociedade civil e política. Nesse sentido, todos os espaços, as
instituições, as organizações sociais existentes na sociedade são parte constituinte do Estado,
determinam e constroem as mais variadas relações sociais que, por sua vez, dão forma ao Estado e
tanto garantem a manutenção da hegemonia quanto a construção das possibilidades de sua
superação. É nesse sentido que podemos considerar que o Estado cumpre a função de educador, e a
escola é a que maior contribuição para isso. Sobre o papel educador do Estado, temos um artigo
publicado recentemente no III Colóquio Internacional de Antonio Gramsci sob o título: O ESTADO
EDUCADOR: o papel do Estado na formação de intelectuais orgânicos para construção de
hegemonia (no prelo).
17
Educação,9os quais estavam supostamente interessados e preocupados com a
qualidade da educação pública do nosso país. Eles assumem uma agenda com a
educação do país que cumpre uma função cujo interesse é econômico (qualificar e
adestrar a mão de obra das massas) e, também, pedagógico, no sentido de
produção e manutenção de hegemonia, assim entendendo, em conformidade com
Gramsci, que toda relação de hegemonia é pedagógica.
Essa dimensão pedagógica fica evidente quando percebemos com clareza
que o foco é o indivíduo e suas necessidades particulares de formação, deixando de
lado a instituição educacional e suas demandas por capacitação e estruturação.
Logo, não apresentam qualquer preocupação com garantir reais condições de oferta
da educação integral e(m) tempo integral que esteja preocupada com a sociedade
como um todo, e com a superação do modo de produção promotor das
desigualdades sociais.
A reforma do ensino médio e a educação: espaço de disputa?
De acordo com a Nova Reforma do Ensino Médio10, defende-se e constrói-se
todo um debate sobre a flexibilização das práticas pedagógicas, compreendendo
suas novas formas de mediação decorrentes, entre outros motivos, do aumento das
chamadas Tecnologias da Informação e Comunicação – as TICs.
Existe um movimento pela flexibilização do ensino médio sob a alegação de
que ele é rígido e apresenta um único percurso sem considerar as diversidades de
aptidões e interesses dos jovens. Aqui, conforme veremos, a flexibilização caminha
no compasso da precarização.
Temos nos documentos do Novo Ensino Médio diversos pontos essenciais à
sua compreensão. Muitos deles serão trabalhados neste ensaio com suas
necessárias ponderações críticas. A fim de elencar algumas dessas características
10 O chamado Novo Ensino Médio encontra-se regulamentado por diversas legislações. Entre elas,
a Lei 13.415/2017 alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e estabeleceu uma
mudança na estrutura do ensino médio, ampliando o tempo mínimo do estudante na escola de 800
horas para 1.000 horas anuais (até 2022) e definindo uma nova organização curricular. O Ministério
da Educação, por meio da Portaria 1.145/2016 substituída pela Portaria nº. 727/2017, instituiu o
Programa de Fomento à Implementação de Escolas em Tempo Integral e ainda elaborou uma cartilha
com orientações acerca desse novo Ensino Médio.
9Formaram esse grupo fundações e associações sem fins de lucro, vinculadas aos diferentes grupos
empresariais, tais como Banco Itaú, Gerdau, Camargo Correa, Banco Bradesco, Rede Globo de
Televisão, dentre outros.
18
presentes nos documentos oficiais, apresentamos ao leitor: a ampliação de 800
horas anuais para 1000 horas anuais (carga horária atual 25% maior que a anterior);
destinação de 1200 horas do total dos três anos para os chamados itinerários
formativos (deixando o estudante escolher em que e como investir na sua
formação); garantia de que os itinerários formativos respeitarão que as opções dos
estudantes sejam organizadas por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares;
as disciplinas e conteúdos comuns na BNCC ficam garantidas nas 1800 horas
restantes.
De acordo com o projeto desse Novo Ensino Médio, o horário escolar será
estendido até um total de 7 horas diárias, caracterizando a escola como de tempo
integral. Essa expansão, segundo a legislação, será gradual até o prazo de 5 anos
(prazo este que se conclui neste ano de 2022). Além da questão da carga horária, o
documento prevê que até 20%11 dela poderão ser compostos pela modalidade a
distância, realidade que, em decorrência da pandemia, pode ser agora funcional e
servir de argumentação para alegações de que, uma vez que temos experiência no
assunto (ensino na modalidade on line), podemos permitir a massificação de tal
oferta de diversos conteúdos para, assim, sermos capazes de cumprir tal extensão
de jornada letiva.
Faz parte desse projeto de ensino médio a criação dos chamados itinerários
formativos diversificados. Sobre estes, o documento apenas explicita que as
unidades escolares deverão ofertar pelo menos dois deles, mas não deixa claro
como esse processo se dará. Observando tal indefinição, tentando prever o que ela
significa na possibilidade de criação dos itinerários, e pensando a diversidade da
realidade brasileira, resta-nos trazer diversas questões sem qualquer pretensão de
apresentar respostas objetivas e/ou precisas. Como farão cidades pequenas onde
existe apenas uma escola de ensino médio? Como ficará garantido ao estudante o
direito de escolha considerando sua residência, e quais modalidades serão
ofertadas em sua escola de referência? Essas são apenas alguns dos importantes
questionamentos para os quais não encontramos quaisquer respostas nesse projeto.
Além disso, nessa previsão de reforma, não estão claramente contemplados
os estudantes em ensino noturno. Para estes, a carga horária de 7 horas diárias fica
complicada até mesmo pensando em ensino a distância, a não ser que sejam
11 No caso da educação de jovens e adultos esse percentual pode ser de até 80%.
19
realizadas as famosas atividades assíncronas, nas quais o horário atribuído é
explicitamente fictício haja vista ser calculado pelo docente a depender da atividade
proposta.
Em semelhante situação, encontram-se os estudantes na modalidade de
educação de jovens e adultos (EJA) que possuem uma formação mais
precarizada em relação aos demais do ensino regular e não tiveram suas
particularidades consideradas nessa reforma.
Do ponto de vista curricular, essa formação, que diminui o ensino de
conteúdos comuns e amplia os de caráter optativo, em vez de garantir uma
educação mais integral, acaba por torná-la ainda mais pulverizada,12 uma vez que
esse modelo diminui os conhecimentos que são comuns a todos os estudantes e
amplia aqueles que o jovem “escolhe aprender”, sem sequer uma base firme no
conhecimento generalista para realizar essa “escolha”.
A formação comum (estabelecida pela BNCC) é então reduzida para no
máximo 1800h. Além disso, essa reforma estabelece a definição precoce por parte
do jovem da área em que quer se especializar, quando deveria estar tendo contato
com as diversas opções para, só assim, poder se decidir com mais maturidade.
Outro problema pontuado refere-se à incapacidade de todas as escolas
ofertarem todas as possibilidades formativas. A não obrigatoriedade de se fazer tal
oferta acaba levando sempre à opção por aqueles itinerários formativos cujas
despesas e condições para seu oferecimento são menores, seja devido a perfil
docente, seja devido a orçamento e avanços tecnológicos. Por fim e não menos
importante, precisamos reforçar que a extensa carga horária de período integral
exclui o jovem trabalhador dessa possibilidade de ensino.
Não podemos deixar de destacar ainda que uma das essências dessa
proposta da reforma é a ênfase na flexibilidade no processo de formação do jovem
para o mercado de trabalho. A sua possibilidade de escolher deve estrar atrelada à
sua capacidade de agir autonomamente e de se adaptar às constantes
transformações do sistema.
12 Optamos pelo termo pulverizados a fim de caracterizar os caminhos formativos que passam a
poder ser realizados a partir de várias especificidades sem que respeitem um núcleo básico sólido
comum.
20
Dessa forma, a aprendizagem flexível se materializa em grupos que
apresentam interesses em comum e se reúnem para trocar experiências e, assim,
apresentar respostas às demandas de uma sociedade exigente. Portanto,
[...] concebida como resultado de uma metodologia inovadora, que
articula o desenvolvimento tecnológico, a diversidade de modelos
dinamizadores da aprendizagem e as mídias interativas; neste caso,
ela se justifica pela necessidade de expandir o ensino para atender
às demandas de uma sociedade cada vez mais exigente e
competitiva. (KUENZER, 2017, p. 337).
O discurso desse tipo de defesa vem carregado de demagogia, como se o
estudante precisasse de maior autonomia e protagonismo, como se o modelo de
educação fosse centrado no docente, rígido, conteudista, e não considerasse as
diversidades de condições e interesses dos estudantes.
Em síntese, esse modelo coloca-se como o que abarca o respeito à vivência
de cada um, permitindo-lhes escolha. Na verdade, ele direciona as “escolhas” para
os interesses capitalistas, que a acumulação flexível exige a formação de
profissionais também flexíveis, que consigam acompanhar as transformações
tecnológicas.
A flexibilização dos percursos institucionaliza o acesso desigual e diferenciado
ao conhecimento. As diversas formas de inserção nesse mercado de trabalho
flexível separam ainda mais aqueles que investem em uma maior qualificação
intelectual do seu trabalho, e os que se limitam aos aprendizados práticos do próprio
exercício profissional.
Nesse sentido, podemos tomar que
[...] o ensino médio na atual versão integra a pedagogia da
acumulação flexível e tem como finalidade a formação de
trabalhadores com subjetividades flexíveis, por meio de uma base de
educação geral complementada por itinerários formativos por área de
conhecimento, incluindo a educação técnica e profissional; a
formação profissional é disponibilizada de forma diferenciada por
origem de classe, de modo a levar os que vivem do trabalho a
exercer, e aceitar, de forma natural, as múltiplas tarefas no mercado
flexibilizado. (KUENZER, 2017, p. 341).
A Reforma do Ensino Médio tem propostas que se atam explicitamente aos
interesses burgueses nacionais e internacionais. Há, entretanto, alternativas e
espaço de luta, e é sobre isso que trataremos em nossas considerações finais.
21
Considerações finais
Contraditoriamente ao exposto, quando tratamos da produção do
conhecimento nos marcos do materialismo, estamos nos referindo à compreensão
de que esse conhecimento resulta de uma recriação, ou seja, da reprodução do real
no pensamento por meio de ação humana. É nesse processo dialético e teleológico
que a realidade passa a ter significado para os homens.
Segundo Marx e Engels (2011), os homens e as mulheres são capazes de
conhecer o que é objeto da sua prática, da sua vida e do cotidiano, e acabam por
conhecer porque atuam praticamente sobre isso. Sendo assim, apreender o real e
produzir conhecimento não é possível apenas por meio de abstrações. Não se
conhece o real apenas teoricamente ou somente intelectualmente.
O conhecimento e a produção de conhecimento real fazem-se no confronto
entre a teoria e a prática; é por meio dessa relação contraditória, histórica e dialética
que novas sínteses são possíveis e se tornam, até mesmo, potenciais de
transformação do real. Segundo Vázquez (1968, apud KUENZER, 2017, p. 343), é
dessa maneira de compreender a produção do conhecimento que “[...] emerge a
concepção de práxis, atividade teórica e prática que transforma a natureza e a
sociedade; prática na medida em que a teoria, como guia da ação, orienta a
atividade humana; teórica na medida em que essa ação é consciente”.
A prática, entretanto, não é em si a realidade na sua essência; o real seus
fenômenos e expressões precisam ser interpretados, estudados, analisados e
refletidos teoricamente. Isso porque, o real não se deixa a conhecer de imediato,
apenas na sua expressão fenomênica. É preciso ir para além das aparências,
apesar de ser imprescindível considerá-las como parte inalienável da sua essência.
Logo, o fenômeno na sua aparência ainda não constitui conhecimento.
Por isso, apenas tratar dados empíricos e expor diálogos com sujeitos do real,
explicitando suas falas e seus modos de perceber o objeto estudado, não pode se
traduzir, de imediato, sem o estabelecimento de mediações intelectuais e reflexivas,
como resposta de produção de conhecimento. A superação da aparência faz-se
essencial para conhecer as estruturas, as relações, as conexões, as finalidades, os
propósitos, as expectativas, as verdadeiras determinações e sobre determinações
que conformam esse real, e que não se mostram de imediato a olho nu.
22
Assim compreendido, o ato de conhecer não prescinde do trabalho intelectual
e teórico, que se desenvolve no pensamento do sujeito que, necessariamente, para
conhecer um determinado fenômeno do real, tem que se debruçar sobre a realidade
a ser conhecida. E esse debruçar não é apenas ir a campo empírico, dialogar com
os sujeitos envolvidos no objeto a ser pesquisado, realizar entrevistas, colher dados,
participar ativamente de uma determinada comunidade ou envolver-se praticamente
nesse real; depende, com tamanha importância, de um movimento de pensar.
É nesse movimento de pensar, em que se parte “[...] das primeiras e
imprecisas percepções para relacionar-se com a dimensão empírica da realidade
que são construídos os significados” dos processos investigados. (KUENZER, 2017,
p. 343).
Esse processo dialético leva-nos à incrível conclusão de que, na medida em
que o trabalho intelectual vem como resultado de uma ação humana que surge de
uma dada intencionalidade ou finalidade específica, ele se torna também ação
que se refere à realidade e desenvolve-se com vistas a transformá-la.
Diferentemente, quando o trabalho intelectual tem seu desenvolvimento
exclusivamente como pensamento, descolado do real, sem se preocupar com dar a
ele algum retorno, constitui-se necessariamente apenas em uma reflexão. Assim, é
preciso se ter clareza de que
[...] em decorrência de ser um processo de apropriação da realidade
pelo pensamento, não transforma, por si, a realidade. Ainda que a
atividade teórica mude concepções, transforme representações,
produza teorias, em nenhum desses casos transforma, sozinha, a
realidade. É preciso que as ideias se transformem em ações.
(KUENZER, 2017, p. 343).
A aprendizagem flexível toma a prática como um fim em si mesma. Sobre ela,
não se produz reflexões teóricas necessárias, ou seja, não se estabelece uma
relação de mediação com a teoria. Assim, o conhecimento é adquirido de uma
prática pela prática. Nessa perspectiva, é verdadeiro aquilo que é útil, e “o
conhecimento limita-se à prática imediata e reduz-se à experiência sensível, aos
limites do empírico enquanto fim em si mesmo, e não enquanto ponto de partida e
de chegada da produção do conhecimento na perspectiva da transformação”
(KUENZER, 2017, p. 346).
23
Para que os sujeitos, no caso os estudantes, desenvolvam competências para
um agir teleológico, envolvendo planejamento, intencionalidade e ações idealizadas,
é preciso que eles experimentem processos sistematizados de aprendizagem, e não
apenas meras apreensões práticas mecanicistas e repetitivas. É nesse sentido que
Vygotsky (1984, apud KUENZER 2017, p. 350), defende que:
[...] a transição do senso comum e dos saberes tácitos para o
conhecimento científico não se espontaneamente, conferindo à
intervenção pedagógica decisivo papel; ou seja, se o homem é capaz
de formular seus conceitos cotidianos espontaneamente, isso não se
no caso do desenvolvimento de conceitos científicos, que
demandam ações especificamente planejadas, e competentes, para
esse fim.
Esse mesmo autor entende que toda produção de conhecimento se por
uma relação entre diversos sujeitos, como por exemplo, entre os estudantes e os
docentes. A relação entre o que vai ser conhecido e os sujeitos do aprendizado se
mediante as relações com outros indivíduos. Logo, mesmo quando uma
aprendizagem parece ser produzida individualmente, ela é, na verdade, a síntese de
processos históricos anteriores.
[...] o processo que faz a mediação entre teoria e prática é o trabalho
educativo; é por meio dele que a prática se faz presente no
pensamento e se transforma em teoria. Do mesmo modo, é pelo
trabalho educativo que a teoria se faz prática, que se a interação
entre consciências e circunstâncias, entre pensamento e bases
materiais de produção, configurando-se a possibilidade de
transformação da realidade. (KUENZER, 2017, p. 350-351).
Segundo Kosik (1976, apud KUENZER, 2017, p. 349):
Em síntese, o método de produção do conhecimento é um
movimento que leva o pensamento a transitar continuamente entre o
abstrato e o concreto, entre a forma e o conteúdo, entre o imediato e
o mediato, entre o simples e o complexo, entre o que está dado e o
que se anuncia. Esse processo tem como ponto de partida um
primeiro nível de abstração composto pela imediata e nebulosa
representação do todo e como ponto de chegada as formulações
conceituais abstratas; nesse movimento, o pensamento, após
debruçar-se sobre situações concretas, volta ao ponto de partida,
agora para percebê-lo como totalidade ricamente articulada e
compreendida, mas também como prenúncio de novos
conhecimentos que estimulam novas buscas e formulações.
24
Portanto, muito do que defende na atual reforma para o ensino médio e os
discursos ideológicos da burguesia educacional evidenciam uma apropriação dúbia,
camuflada, nebulosa e perigosa das defesas históricas do movimento revolucionário
para uma educação realmente transformadora. Os termos e discursos são
facilmente confundidos com os adotados pelos educadores de vanguarda e
intelectuais orgânicos da classe trabalhadora, na luta por um projeto de educação
revolucionário.
Não contradição evidente na aparência desse real. É preciso compreender
os discursos na sua essência, desvelar os projetos nas suas determinações não
aparentes e que se constroem para reproduzir a hegemonia burguesa vigente. Uma
educação integral nos moldes da atual reforma é aquela que coloca os sujeitos com
aparente igualdade de condições, mas que, na verdade, aprofunda ainda mais o
fosso entre uma educação de excelência para os filhos da classe dominante e uma
educação empobrecida, dividida, ultra especializada para os filhos da classe
trabalhadora.
Na realidade, não se garante condição de igualdade de escolha, não se
constrói possibilidade de autogoverno, nem de realização de sonhos e projetos da
juventude. O que se estabelece é que esses jovens sejam resilientes, solidários
entre si mesmos e flexíveis para se adaptar às mais variadas e extremas formas de
exploração dos avanços do capitalismo imperialista e da acumulação flexível.
A esses jovens filhos da classe trabalhadora, um ensino médio com itinerários
de formação, em que eles, sem qualquer base para “decidir”, escolhem entre as
opções que existem, e não entre as que gostariam. Em um mundo de
impossibilidades são levados a construir os sonhos que não são sequer deles, mas
daqueles que sobre eles constroem e reconstroem a exploração.
Entretanto, mesmo com essa realidade evidente, as máscaras permanecem,
e é por causa delas que se defende o empreendedorismo e a crença de que todos
são capazes, como argumento para dizer que estamos diante de um modelo falido
de educação que precisa se adequar aos avanços do mundo capitalista moderno e
tecnológico. Por isso, fica evidente que a educação integral nos moldes em que se
constrói no nosso país tem tido sucesso do ponto de vista do capital, e caminha para
o sentido oposto do que defendemos na perspectiva materialista histórico-dialética e
crítica de uma educação para além do capital.
25
Conhecer os diversos projetos de educação integral é essencial para, na
relação de disputa entre eles, desenvolver capacidade de enfrentamento real às
concepções hegemônicas dentro da ordem do capital, e de construção de um novo
tipo de educação que busque nova hegemonia e superação do capitalismo.
Como condição para a construção da hegemonia pelos trabalhadores, então,
a escola deve ser disputada na direção de uma “escola única inicial de cultura geral,
humanista, formativa, que equilibre com equanimidade o desenvolvimento da
capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o
desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual” (GRAMSCI, 1991, p. 118).
Disputamos uma escola cuja educação seja realmente integral, onde a
formação se no trabalho, pelo trabalho e para o trabalho, do ponto de vista
ontológico. O trabalho é a primeira mediação entre o homem e a realidade, e é
prática econômica. A formação para o trabalho se opõe à formação para o mercado
de trabalho, uma vez que a primeira “[...] incorpora valores ético-políticos e
conteúdos históricos e científicos que caracterizam a práxis humana” (CIAVATTA;
RAMOS, 2012, p. 25).
Perceber o currículo como o que estabelece a relação trabalho e educação é
tomá-lo diante do problema da relação entre “[...] a particularidade dos processos
produtivos e a totalidade das relações sociais de produção” (CIAVATTA; RAMOS,
2012, p. 26). Essa compreensão parte do pressuposto de que o real é um todo
dialético, o qual, assim tomado, permite que qualquer fato seja compreendido na sua
essência. Nesse sentido, a totalidade define-se em oposição ao pragmatismo que,
por sua vez, impede a compreensão da realidade nas suas legalidades, detendo-se
apenas à aparência dos fenômenos.
Logo, uma vez que cada fato do real reflete a totalidade da realidade, torna-se
possível compreender e conhecer a totalidade por meio de suas partes, que, nos
fatos ou a partir deles, é possível se identificar aqueles que contenham mais da
essência desse real, que permitam distinguir com maior e melhor clareza o que é
essencial e o que é acessório.
Assim, tomando essa concepção de método de conhecimento da realidade,
no que diz respeito aos fins formativos e processos pedagógicos, significa que
podemos identificar, nos currículos e seus componentes, conteúdos que permitam
aos estudantes “[...] fazer relações sincrônicas e diacrônicas cada vez mais amplas
26
e profundas entre os fenômenos que se quer apreender nesse caso, uma
profissão – e a realidade em que eles se inserem” (CIAVATTA; RAMOS, 2012, p. 26).
Os conteúdos e conhecimentos de origem geral e ampliada, não específicos e
generalistas, são essenciais e devem ser garantidos mesmo que os específicos
sejam também ofertados. Porém, é preciso investir em uma formação de base
comum que carregue a perspectiva de totalidade.
A formação pragmática permite que o homem se oriente no mundo, maneje
coisas, mas não garante que as compreenda. Para a filosofia da práxis, a teoria é
resultado do processo de conhecer a realidade, que envolve o processo de elevar
essa experiência concreta ao pensamento de tal forma que permita a compreensão
das contradições internas dos fenômenos que existem no real. Logo,
[...] a prática transformadora no contexto da realidade que não é
somente utilitária e adaptadora depende da atividade realizada no
contexto da teoria, posto que o homem não pode conhecer o real a
não ser pela análise dos fatos, reordenando-os, posteriormente, nas
intrínsecas relações com a totalidade concreta. (CIAVATTA; RAMOS,
2012, p. 28).
Por isso, mesmo com as dificuldades impostas pelo cenário político, social e
econômico brasileiro, é preciso continuar na luta pela educação politécnica. Sem
deixar de considerar que,
[...] a defesa, hoje, de uma educação que tenha por horizonte a
politecnia passa necessariamente pela negação do avanço do
Capital sobre o Trabalho; passa necessariamente pela negação de
uma pedagogia societária, baseada no cinismo; passa
necessariamente pela negação de uma educação escolar
fragmentada e direcionada para a competitividade e a
empregabilidade; passa, enfim, pela afirmação da solidariedade e da
liberdade humanas. (RODRIGUES, 2005, p. 278-279).
Lutar por uma educação politécnica é uma luta nossa, de todos os que,
apesar da atual política educacional, lutam por uma formação omnilateral da classe
trabalhadora.
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30
V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
O OLHAR DO AGENTE COMUNITÁRIO DE SAÚDE PARA A SUA PRÁTICA
PROFISSIONAL: ENTRE O TRABALHO REAL E O TRABALHO PRESCRITO1
Monique Nunes Fiuza Dias2
Resumo
Neste artigo apresento as atribuições do Agente Comunitário de Saúde (ACS) em seu trabalho real e
prescrito sob a ótica do próprio profissional, e o valor que lhes atribui. Optou-se por um estudo
qualitativo que analisou dados primários. Constatou-se que o trabalho real destoa do prescrito. Entre
as atribuições, aquelas que envolvem a presença no território e participação em grupos de educação
em saúde, são valorizadas pelo ACS. Mesmo após constantes reformulações direcionadas ao cargo,
o ACS valoriza as suas raízes, enquanto promotores de saúde.
Palavra-chave: Atenção Primária à Saúde; Agente Comunitário de Saúde; Trabalho em saúde.
LA MIRADA DE LOS AGENTES COMUNITARIOS DE SALUD SOBRE SU PRÁCTICA
PROFESIONAL: ENTRE LO REAL Y LO PRESCRITO
Resumen
En este artículo presento las atribuciones del Agente Comunitario de Salud (ACS) en su trabajo real y
prescrito desde la perspectiva del profesional, y el valor que les atribuye. Opté por un estudio
cualitativo que analizara datos primarios. Se constató que el trabajo real es diferente al prescrito.
Entre las asignaciones, las que involucran la presencia en el territorio y la participación en grupos de
educación para la salud son valoradas por la ACS. Aún después de constantes reformulaciones
encaminadas al cargo, la ACS valora sus raíces, como promotoras de salud.
Palabra clave: Atención Primaria em la Salud; Agente de Salud Comunitaria; Trabajo em la Salud.
THE COMMUNITY HEALTH AGENTS' LOOK AT THEIR PROFESSIONAL PRACTICE: BETWEEN
THE REAL AND THE PRESCRIBED
Abstract
In this article I present the attributions of the Community Health Agent (ACS) in their real and
prescribed work from the perspective of the professional, and the value he attributes to them. I opted
for a qualitative study that analyzed primary data. It was found that the real work differs from the
prescribed. Among the assignments, those that involve the presence in the territory and participation
in health education groups are valued by the ACS. Even after constant reformulations aimed at the
position, the ACS values their roots, as health promoters.
Keyword: Primary Health Care; Community Health Agent; Health Work.
2Mestre em Educação em Saúde Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fundação
Oswaldo Cruz EPSJV/FIOCRUZ Brasil. Profissional da Escola Nacional de Saúde
Pública/Fundação Oswaldo Cruz – ENSP/FIOCRUZ. E-mail: moniquenfd@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4865842621028394.ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7761-7768.
1Artigo recebido em 18/07/2022. Primeira avaliação em 17/08/2022. Segunda avaliação em
12/09/2022. Aprovado em 30/09/2022. Publicado em 10/11/2022.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i4.55269.
1
Introdução
A Constituição Federal de 1988 representa um grande marco no cenário da
saúde, considerando a sua inscrição enquanto direito do cidadão. Logo, contribuiu
para a construção do sistema de saúde pública o Sistema Único de Saúde (SUS) -
de caráter nacional, norteado por princípios como a universalidade, integralidade e a
participação social (GUIMARÃES et. al, 2017).
A Atenção Primária em Saúde (APS), classificada enquanto a principal
ferramenta organizacional da atenção à saúde e, ao mesmo tempo, como a principal
resposta às necessidades de saúde da população, ganhou força no cenário
internacional a partir da década de 60 e 70 (MATTA, MOROSINI, 2008).
Considerando os importantes movimentos internacionais envolvendo a APS,
especialmente a Conferência de Alma-Ata em 1978, bem como a sua repercussão
no Brasil, figuram enquanto fatores contribuintes para a incorporação da APS no
contexto nacional, especialmente a partir da década de 90. A partir de então,
observou-se a ampliação do acesso aos serviços de saúde, especialmente para os
mais vulneráveis, considerando a priorização destas áreas para a sua implantação
(FAUSTO, MATTA, 2007); (MOROSINI, 2010).
Na década de 90, no Brasil, foram instituídos dois programas importantes e
que objetivaram reduzir, indicadores negativos, com destaque à morbimortalidade
infantil e materna, especialmente no Nordeste: Programa Nacional de Agentes
Comunitários de Saúde (PNACS), posteriormente Programa de Agentes
Comunitários de Saúde (PACS). Na mesma década, ocorre a criação do Programa
de Saúde da Família (PSF) como forma de viabilizar a realização de ações integrais
na atenção básica (AB). Neste formato, surge, em um contexto de influências
sociais, ideológicas, políticas e técnicas, envolvendo demandas nacionais e
internacionais, a categoria ACS (BARROS et al. 2010).
Posteriormente, o PSF é reintitulado para estratégia de saúde da família
(ESF) e, desde a sua implantação, observa-se o aumento das implantações das
equipes. Em 2019, o Brasil contava com a assistência prestada por 43.756
equipes, o que representou uma cobertura de 71,42% (BRASIL, 2019a).
Ao analisar especificamente a composição destas equipes, o Agente
Comunitário de Saúde (ACS), entre outras categorias profissionais, compõe a
2
equipe mínima da ESF. Representa uma categoria expressiva numericamente: em
2019. O Brasil contava com 268.037 ACS, o que representou uma cobertura de
74,38% da população brasileira, contando com o acompanhamento destes
profissionais (BRASIL, 2017); (BRASIL, 2019).
As atribuições do ACS são norteadas pela Política Nacional de Atenção
Básica (PNAB), desde 2006. Em sua última publicação (2017), o redesenho de
algumas atribuições do ACS. Aquelas consideradas como gerais comuns a todos
os membros da ESF e as específicas ao cargo de ACS (BRASIL, 2017). Entre as
atribuições gerais, encontram-se:
Participar do acolhimento dos usuários, proporcionando atendimento
humanizado, realizando classificação de risco, identificando as
necessidades de intervenções de cuidado, responsabilizando- se
pela continuidade da atenção e viabilizando o estabelecimento do
vínculo; Articular e participar das atividades de educação permanente
e educação continuada; Realizar ações de educação em saúde à
população adstrita, conforme planejamento da equipe e utilizando
abordagens adequadas às necessidades deste público (BRASIL,
2017, p. 19 - 20).
Entre as atribuições específicas do ACS:
Desenvolver atividades de promoção da saúde, de prevenção de
doenças e agravos, em especial aqueles mais prevalentes no
território; Identificar e registrar situações que interfiram no curso das
doenças; Orientar a comunidade sobre sintomas, riscos e agentes
transmissores de doenças e medidas de prevenção individual e
coletiva; Identificar casos suspeitos de doenças e agravos; Informar e
mobilizar a comunidade para desenvolver medidas simples de
manejo ambiental e outras formas de intervenção no ambiente para o
controle de vetores (BRASIL, 2017, p. 25 – 27).
Partindo da premissa de que as suas atribuições sofreram intensas
modificações frente às reformulações da PNAB, o presente estudo objetiva
identificar, através da fala dos participantes, as atribuições reais e previstas ao cargo
e, e destas quais realmente são valorizadas pelo profissional.
Portanto, o estudo se justifica ao passo que propõe identificar aquelas
atribuições executadas no cotidiano prático, valorizadas ou não pelo ACS, e que
nem sempre estão previstas e, ao mesmo tempo, identificar o domínio da zona de
atuação do ACS, dentro do que está previsto para a sua função.
3
Com o objetivo de realizar a análise do problema exposto anteriormente,
optou-se por um estudo de caráter qualitativo. Para alcançar aos objetivos
propostos, foi realizada a análise de dados primários. O banco de dados foi
produzido em 2016 a partir do projeto de pesquisa intitulado como “Processo de
Trabalho dos Técnicos em Saúde na perspectiva dos saberes, práticas e
competências” Projeto SABERES, vinculado ao Observatório dos Técnicos em
Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo
Cruz (EPSJV/FIOCRUZ). O objetivo geral do estudo (Projeto SABERES) consiste
em analisar o processo de trabalho dos técnicos em saúde que atuam na atenção
básica do SUS, especificamente na ESF, nas cinco regiões brasileiras.
Para compor a amostra do estudo, originalmente, o Projeto Saberes contou
com todos os profissionais técnicos inseridos na ESF: Agente Comunitário de
Endemias (ACE), ACS, Técnico de Saúde Bucal (TSB), Auxiliar de Saúde Bucal
(ASB), Técnico e Auxiliar de Enfermagem. No entanto, tendo em vista o objeto do
presente estudo e o alcance do objetivo previamente estabelecido, somente a
categoria de ACS foi eleita, compondo, portanto, a amostra de participantes que
participaram do presente estudo.
Após analisar o conteúdo transcrito a partir de cada entrevista, a amostra do
presente estudo conta com 20 ACS, garantindo a representatividade de todos os
municípios contemplados no projeto saberes. Foram excluídas 24 entrevistas, uma
vez que o conteúdo de algumas falas não contemplava aos objetivos traçados no
presente estudo.
Os dados foram coletados no período de janeiro e abril de 2016. Dois
pesquisadores acompanharam as atividades dos profissionais de nível técnico da
ESF selecionada por cinco dias, realizando a observação participante de sua rotina
de trabalho, assim como entrevistas individuais semiestruturadas. As entrevistas
foram registradas em gravador digital e transcritas integralmente. Foram analisados
com base na análise de discurso proposta por Bardin (1979), procedendo a
categorização.
Os procedimentos da pesquisa foram autorizados pelo Comitê de Ética em
Pesquisa envolvendo Seres Humanos (CEP) da Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio (EPSJV-FIOCRUZ) (CAAE: 43320275.L.0000524I).
4
Valorização das atribuições sob a ótica do próprio profissional
Ao analisar o conteúdo das falas, contatou-se como o ACS descreve a sua
rotina de trabalho e atribui diferentes graus de importância às ações desenvolvidas.
Fica evidente a dicotomia entre o tipo de trabalho reconhecido pelo ACS: aquele
desenvolvido no território - para o qual atribuem maior valor - e o trabalho interno,
visto como burocrático, de menor relevância.
Ainda neste mote, é possível identificar aquelas atribuições que o ACS
entende como algo inerente à sua ocupação e que de fato os compete - e aquelas
que constam em sua rotina de trabalho e que não os compete, consideradas pelos
próprios profissionais enquanto desvio da sua função.
Do ponto de vista do tipo de trabalho desenvolvido pelo ACS, dos 20
participantes, 17 (85%) citam a realização da visita domiciliar (VD) como parte
integrante da rotina diária de trabalho; 6 (30%) referem a participação em grupos
educativos; 2 (10%) comparecem no domicílio para a entrega de consultas
agendados, e 2 (10%) referem ir ao domicílio para auxiliar em situações
emergenciais de saúde. A atuação do ACS no território é extremamente presente e
valorizada na fala dos participantes:
ACS 1: “Gosto de fazer tudo na comunidade, eu não gosto de fazer
vento aqui no posto, eu não gosto de palestra, eu gosto de fazer tudo
lá. Porque onde você está é aonde está seu público, o que você está
almejando, as pessoas estão ali, é o dia a dia delas. Então para você
tirar elas e trazer para a unidade é mais complicado. Eu gosto de
fazer tudo lá.”
Muito em virtude da constante presença territorial, o ACS é considerado como
o elo entre a comunidade e a ESF. Sua inserção do território é importante para
desenvolver uma gama de atividades para a população adscrita e promover saúde
naquele espaço:
[...] monitoramento de casos e resultados de intervenções; facilita o
acesso à unidade; cadastra famílias e identifica situações de risco;
visita domicílios; encaminha para consultas; promove vigilância e
ações de educação em saúde; reflete sobre trabalho e mobilidade
comunitária; realiza atividades com grupos prioritários e ações para
agilizar o trabalho (SAMUDIO et. al, 2017, p. 754).
5
A VD consiste no acompanhamento realizado pelo ACS das condições de
saúde das famílias de sua microárea, e busca ativa que realiza, quando necessário.
Representa a principal expressão da presença do ACS no território, sendo uma das
suas atribuições previstas na PNAB. Deve ser realizada de forma periódica e
planejada com base nas necessidades de saúde da população (MOROSINI,
FONSECA, 2018); (BRASIL, 2017).
Desde os primórdios da profissão, o ACS realiza o monitoramento territorial
prioritário, direcionado a determinados segmentos populacionais, com o intuito de
contribuir para a redução da morbimortalidade mais frequente nestes grupos,
especialmente entre crianças. Também, são potentes ao oportunizar o acesso ao
exame diagnóstico em condições como tuberculose (SAMUDIO et. al. 2017).
Os participantes revelam que a atuação territorial do ACS é planejada a partir
das linhas de cuidado prioritárias, entre elas: gestantes, crianças, nutrizes,
sintomáticos respiratórios e casos de tuberculose. Também descreve o investimento
educativo para prepará-los para tal acompanhamento:
ACS 2: “Sim. Eu entrei em 2005 e fiz o Introdutório. E sempre houve,
sempre houve muitos, Cursos, muitos, muitos. Cursos desde... Tipo...
Tinham Cursos sobre Amamentação, por exemplo... Doenças... De
tudo o que você pensar de Cursos a gente tinha. Mesmo que alguns
fossem palestras para que a gente soubesse mais o que é uma
Tuberculose, como trabalhar com isso... Foi um tempo melhor de
Curso no passado, hoje, essa Gestão... Se eu te dizer que a gente...”
Portanto, a fala do ACS traduz a importância que agrega a sua presença no
território e, ao mesmo tempo, lamenta a redução da sua presença neste espaço. É
em sua microárea que pratica ações importantes para a saúde da população,
consegue fortalecer o vínculo com os seus cadastrados e identifica condições de
risco e vulnerabilidades, ratificando o seu papel essencial enquanto o elo entre a
comunidade e equipe técnica.
No entanto, os participantes salientam que, em algumas situações, apesar de
estar no território, a sua presença é puramente burocrática, citando a entrega de
documentos ou insumos aos usuários:
ACS 3: na terça eu tenho, de manhã, ou eu venho para cá, ou eu
vou no morro com algumas consultas, porque a gente vem aqui na
segunda à tarde, pega consulta com a Dona do Taissa (médica), ali a
6
da semana. entrego as consultas, na segunda de manhã se tiver
alguma consulta eu entrego.”
ACS 2: Então, isso você tem que ficar falando, tem que ficar...
“Nossa! Dona Marcela (paciente), a senhora tem que ir lá”. Ela tem
um filho que consegue trazer, mas eu acabo fazendo por ele, né? Às
vezes, ela quer ir no tempo dela, e o tempo dela tem que ser o tempo
dela, não o nosso. Então, ao invés de eu pegar a medicação, por
exemplo o remédio controlado dela e levar para ela... A receita, na
verdade. A receita. Eu vou ali na farmácia, pego o remédio,
levo o remédio. Eu faço isso por ela. Porque eles, na verdade, tem
que levar receita e eles se virem para ir na farmácia. qualquer
farmácia perto... Já vou ali, já pego, já levo o remédio, já faço isso.”
O caráter burocrático de algumas ações, ainda que realizadas no território,
também é prevista na PNAB, com destaque ao seu papel de informar quanto aos
agendamentos dos usuários. (BRASIL, 2017)
Nestes casos, mesmo o ACS estando no território, nem sempre atua em
direção ao acompanhamento. Frequentemente, vai ao território apenas para a
entrega de consultas/agendamentos.
Tendo em vista o número expressivo de consultas a serem entregues, essa
visita deixa de ser um momento produtivo, de qualidade e troca entre ACS e usuário.
Não tempo hábil para adentrar ao domicílio. O ACS comparece na residência,
entrega o agendamento e dali, segue para o outro endereço. Esta situação é
chamada de “VD burocrática”, com o viés quantitativo:
Observa-se que a visita se transformou em um ato sumário,
burocrático, com objetivo de cumprir uma agenda predeterminada,
avisar de consultas e exames, e registrar a produção. Sem dúvida,
um desvio da função de ACS, e uma perda na qualidade do
cuidado (CHUENGUE, FRANCO, 2018, p. 12).
A entrega de kits de odontologia pelo ACS também integra a VD burocrática.
Este tipo de VD, apesar de prevista e importante, representa um ato sumário, cujo
objetivo é o de cumprir uma agenda, avisar de consultas, exames e registrar a
produção, apontando para o desvio da função do ACS e perda da qualidade do
cuidado (MOROSINI, FONSECA, 2018); (CHUENGUE, FRANCO, 2018).
Sob a ótica do ACS, ele enxerga a VD burocrática - entrega de
receitas/medicações/consultas - como algo fruto do vínculo, com o intuito de facilitar
para o usuário, principalmente para o público idoso, ou por ser algo puramente
7
mecânico, inserido em sua rotina, sem problematizar o real motivo pelo qual lhe foi
atribuído tal função.
Quanto à participação do ACS em grupos educativos, esta atribuição aparece
nas falas dos participantes (30%) e constam enquanto suas atribuições na PNAB.
Estes grupos consistem em ações coletivas de caráter educativo, que visam o
aprendizado, mudança de hábitos e criação de vínculo. (BRASIL, 2017); (MATIAS,
2017):
ACS 12: também tem duas vezes por mês tem o grupo de
caminhada que a gente faz da terceira idade que é segunda quarta
e sexta que a gente participa e durante a semana é visita, tem a
época de campanha a gente faz palestra, vacina, assim a gente
convida o pessoal, ajuda também na época da campanha da vacina.
(...) a gente trabalha nas escolas que ele vai fazer palestra ou
alguma coisa, ensinar escovação né, a gente acompanha você
entendeu, fora disso, é mas assim nas escolas que a gente trabalha
ou então no grupo também da caminhada da terceira idade eles vão
pra ensinar os cuidados, aquele pessoal que usa prótese,
escovação, assistência, sempre faz palestra.”
Os grupos de educação em saúde estão fortemente incorporados à rotina de
trabalho do ACS. A maior parte dos grupos, são realizados no território, junto ao
enfermeiro, outro ACS ou até mesmo sozinho (COSTA et. al, 2013).
Entre as suas atribuições de cunho educativo, o Programa Saúde na Escola
(PSE) é extremamente potente e sua importância é reconhecida pelo ACS. O PSE:
Constitui uma estratégia para a integração e a articulação
permanente entre as políticas e ações de educação e de saúde, com
a participação da comunidade escolar, envolvendo as equipes de
saúde da família e da educação básica (BRASIL, 2007, art. 3).
O ACS compreende que as ações de educação em saúde são de sua
competência e as valoriza como tal, inclusive, muitos citam a realização de grupos
de forma fixa em sua rotina semanal. O ACS que atua mais de 10 anos na ESF,
demonstra valorizar ainda mais as ações de educação em saúde, ratificando o seu
papel de promotor de saúde.
O trabalho burocrático, realizado no interior da unidade, também está
presente na fala dos profissionais. Dos 20 profissionais entrevistados: 11 (55%)
citam ações de digitação (cadastro, lançamento de VD no E-SUS, lançamento de
acompanhamento das condicionalidades do BF); 7 (35%) participam de reuniões
8
com periodicidade distintas (reuniões gerais, de equipe, intersetoriais); 4 (20%) citam
o acolhimento; 3 (15%) citam a realização do agendamento de usuários nas
agendas dos profissionais da equipe técnica. E ainda: 4 (20%) realizam atividades
assistenciais (aplicação de vacina, realização de curativos, sinais vitais); 2 (10%)
auxiliam na limpeza da unidade; 1 (5%) cita o serviço de esterilização, assim como 1
(5%) realiza atividades vinculadas à farmácia.
Algumas falas revelam a maior permanência no interior da unidade como algo
obrigatório, com o intuito gerar dados/alimentar ao sistema de informação por meio
da digitação, seja das fichas de cadastro (cadastramento/atualização), seja por meio
do registro simplificado das visitas como forma de alcançar à meta/produção mensal
estipulada para o ACS:
ACS 3: É. nos outros dias quando eu não estou aqui. Agora, eu
acho errado, mas a gente está mais aqui do que no campo de
trabalho, com essa produção. Se você não ficar aqui, bem dizer
direto, você não consegue fazer produção. Você tem que fazer
produção para poder mostrar que você trabalhou no final do mês,
então tem hora que você tem até que inventar serviço [...]”
Ao avaliar o sentimento atribuído à sua permanência no interior da unidade,
fica evidente a insatisfação do ACS. Apesar de ser uma atribuição, o ACS não lhe
atribui valor:
ACS 3: na terça eu tenho, de manhã, ou eu venho para cá, ou eu
vou no morro com algumas consultas, porque a gente vem aqui na
segunda à tarde, pega consulta com a Dona do Cristiane (médica),
ali a da semana. entrego as consultas, na segunda de manhã se
tiver alguma consulta eu entrego. Terça a gente tem que estar aqui, e
terça é o dia que eles me escolheram para poder digitar. Se não tiver
a Comissão Local de saúde na segunda terça do mês, eu tenho
que ficar digitando até as seis. Agora até as seis, graças a Deus. Não
é até as sete mais não.”
O cadastramento e sua constante atualização é uma atividade prevista e
comum a todos os membros das equipes que atuam na ESF (BRASIL, 2017).
No entanto, naturalmente esta atribuição foi direcionada especificamente ao
ACS e que o profissional julga ser importante em sua rotina, sendo citada por todos
os ACS quando são questionados sobre as atividades desenvolvidas em sua rotina
(PEDRAZA, SANTOS, 2017).
9
A atualização cadastral, apesar de importante para o planejamento em saúde,
apresenta uma faceta quantitativa, com o foco na produção e, principalmente
financeira, de modo a garantir os repasses proporcionais.
Observa-se, portanto, o viés quantitativo na produção de informações, que
a digitação das visitas, resulta em uma produção individual a qual será
acompanhada e contrastada com a meta estipulada, representando o olhar gerencial
direcionado ao processo de trabalho do ACS (ALONSO et. al, 2018).
Um agravante que observamos ao manipular o sistema de informação
utilizado na atenção primária à saúde (APS) o e-SUS - e que fortalece o ponto de
vista quantitativo/produção, diz respeito ao fato de que o ACS não dispõe de campos
corridos para relatar informações importantes no prontuário eletrônico (PE) e suas
VD resumem ao preenchimento de fichas com respostas de múltipla escolha. Resta
ao ACS se organizar em suas próprias anotações, geradas por conta própria.
As reuniões ordinárias também representam um trabalho interno para o ACS,
por acontecerem sempre na unidade:
ACS 4: A reunião de equipe acontece toda quinta-feira das 11:00 ao
meio-dia, a gente tem uma reunião de matriciamento que a gente
chama, que é com a nossa equipe normal, mais o CAPS adulto, o
CAPS infantil e o NASP. é uma vez no mês, toda a última
quinta-feira do mês e outras reuniões que acontecem [...]”
Mesmo sendo um momento em que estão na unidade, o ACS atribui valor às
reuniões de equipe, por considerar um momento propício para discussão em equipe
de questões inerentes ao território, bem como de atualização de informações:
ACS 4: A gente divide o território, divide a sala de reuniões, a gente
divide problemas, porque quando eu identifico um problema aqui e é
da competência deles a gente sempre discute juntos, assim quando
eles sabem de alguma coisa ele sempre passa entre a gente.”
É um momento fértil, onde a sua função de elo e mediador é ressaltada,
que consegue compartilhar problemas e necessidades identificadas no território com
toda a equipe e traçar estratégias. Muitos desses encontros, resultam em visitas
domiciliares programadas (SPERONI, et. al, 2016).
As reuniões contribuem para ressaltar a figura do ACS enquanto membro de
uma equipe multiprofissional e a sua atuação em equipe. O ACS se sente parte
10
importante da equipe, consegue dialogar de forma horizontal com todos os membros
da equipe:
ACS 4: Aqui eu trabalho em equipe e tudo, a gente passou por
pessoas que tinham muitas dificuldades de trabalhar com a gente, eu
vejo assim a equipe que a gente tem hoje uma equipe madura, ela
não tem medo de expor, porque assim, antes eu via, eu não sei se
tinha essa coisa de se sentir inferior, a pessoa nem falava, nem abria
a boca pra falar do paciente falava quando era chamado, hoje
não, hoje eu vejo que todo mundo fala, todo mundo expõe, todo
mundo questiona, ninguém tem medo de questionar, o outro pode
passar informação nas reuniões que é onde a gente mais fala, a
equipe inteira.”
Eu acho que foi a convivência entre a gente mesmo, e aquela coisa
a gente passou para o profissional, que não se valorizava também,
não levava em consideração aquilo que você falava, e hoje a gente
tem uma equipe que ela te escuta, então a gente ganhou a confiança
deles, de trazer aquilo que a gente tá vendo lá pra aqui dentro [...]”
O ACS, como todo integrante da ESF, deve ter o seu espaço de voz
respeitado e valorizado, uma vez que representa a extensão da comunidade na
equipe e, portanto, deve ter ocupação valorizada na análise de saúde do território e
planejamento das ações.
Outra atividade realizada no interior da unidade, diz respeito ao acolhimento.
Quando questionados sobre a sua rotina de trabalho, 7 (35%) ACS identificam o
acolhimento como uma atribuição e que, em muitos momentos, é vista como algo
obrigatório, imposto por meio de escala confeccionada envolvendo a todos os ACS:
ACS 6: “Quando tem, assim, um cronograma de palestras, a gente
segue. E no dia do acolhimento a gente tem que vir. E os demais,
são as visitas. [...] assim, visita, eu trabalho todos os dias, na semana
que eu não estou no acolhimento.”
“[...] a questão do acolhimento é da própria secretaria de saúde.
Porque, as vezes, eu até questiono, né. Eu questionei até com a
minha coordenação. Porque, assim, o acolhimento, o correto é a
gente ficar 2 horas e ir pra área. que depende da demanda do
posto, às vezes tem uma demanda menor e às vezes tem uma
demanda maior. E tem horas que não pra sair, tem dias que tem
uma demanda grande, que a gente quer ajudar, às vezes, não pra
ficar aquelas 2 horas. Até porque a gente tem que acolher a
comunidade no posto e bem, a gente não vai ficar essas 2 horas e
sair, e deixar a comunidade ali. Às vezes, tem que ficar.”
11
Mesmo com escalas para o acolhimento, fica evidenciada, em sua fala, a
insatisfação em deixar de estar no território, para atuar no acolhimento, citando o
termo “perder” turno de visita:
ACS 6: A gente antes tinha que fazer 5 visitas depois do
acolhimento. mudou agora, então, naquele dia de acolhimento, a
gente tem que dobrar a visita do outro dia. a gente se questiona
por isso, porque a gente termina perdendo. O acolhimento é bom,
mas a deixa de fazer visitar, de ver alguma coisa na área que poderia
ser feito. Como hoje, eu estou aqui, mas tem alguém na minha área
que eu estou precisando ver. E eu estou no acolhimento. Então,
termina, de qualquer forma, o acolhimento tirando a gente da área.”
[...] “eu perguntei por que a coordenadora, eu questionei, foi até
quinta-feira passada. Eu questionei, por que a gente está no
acolhimento. Ela foi questionada e veio dizer que o Ministério da
Saúde prioriza que a gente esteja 2 horas no posto. Eu questionei
quinta-feira. Eu vejo que é bom, porque a gente acolhe os pacientes,
mas a gente deixa os pacientes na área. Veja, são 2 horas aqui, e eu
tenho família que é mais de 8 KM, até eu chegar nessa última casa...
Que horas eu vou chegar lá, né? Porque a realidade da zona urbana
para a rural é diferente. Tem casa que a gente anda meia hora, 40
minutos para achar outra.”
O acolhimento consiste no ato de receber, escutar e interpretar as
necessidades dos usuários. No contexto da ESF, o ato de acolher contribuiu para a
mudança no modelo assistencial ao possibilitar ao usuário o acesso a um cuidado
justo, ampliado e integral (MOROSINI, FONSECA, 2018); (LEITE et. al, 2016).
Partindo da premissa de que a APS consiste na porta de entrada preferencial
do usuário ao SUS, o acolhimento realizado especialmente pelo ACS, garante este
acesso.
A permanência física de cada ACS na unidade como forma de acolher o
usuário que comparece na unidade, normalmente é garantida por escalas de turnos.
No entanto, a permanência por maior tempo neste espaço muito em função da
redução do número de ACS nas equipes da ESF - é sinalizada pelo ACS enquanto
um grande problema para a sua prática. Assim, mesmo sendo uma atribuição de
extrema importância, o ACS não enxerga como algo importante e não lhe atribuiu
valor, tornando o acolhimento um momento estressante.
É importante, portanto, chegar ao meio termo entre as atividades burocráticas
e territoriais, sem que haja sobreposição:
12
Ainda que o fato de o ACS trabalhar dentro da unidade não
descaracterize completamente seu papel, uma vez que possa haver
conciliação das suas atividades específicas com esse ambiente de
saúde, como o registro de novos cadastros e acolhimento inicial ao
usuário, diminui-se o tempo disponível para boa parte do processo
de vigilância de território, que pode ser feito na comunidade
(PEDEBOS et al, 2018, p. 947).
Três (15%) dos ACS referem dedicar parte do seu tempo a realizar a
marcação de consultas para os usuários nas agendas dos profissionais que
compõem a equipe técnica, como médicos e enfermeiros:
ACS 16: Na quarta-feira... na terça eu marco os atendimentos da
quarta. Na quarta eu vou fazer a marcação dos atendimentos que
são consultas gerais pra quinta. [inaudível] criança, gestante,
gestante não, demanda geral. Resultado de exame, resultado de
PCCU, [inaudível], pode ser pela [inaudível]... parte de enfermagem,
os que não, a gente já vai até conseguir.”
“Aí, na sexta-feira a gente abre aqui e a marcação segundo
nível. A gente coloca aquelas pessoas, tudinho, que vão ser
mandadas na segunda, tanto pra médica, quanto para a enfermeira.
marca comigo, faz esse procedimento. E, também a
reunião com a equipe na sexta-feira.”
Apesar de presente entre as atribuições do ACS, o agendamento é
considerando um excesso de função (ALONSO, 2018); (SAMUDIO et al, 2017).
O que se observa na rotina de uma unidade é que o agendamento vai de
acordo com o que é pactuado internamente, na equipe. Muitas vezes, os
agendamentos são realizados em reuniões de equipe.
É importante correlacionar a atuação do ACS e as alterações nas diretrizes da
AB promovidas, principalmente pela PNAB 2017. Esse documento configura um
grande marco na ruptura do papel basilar do ACS enquanto promotores de saúde e
elo entre a UBS e a população, caminhando em direção a uma atuação cada vez
mais burocrática e interna (MOROSINI, FONSECA, LIMA, 2018).
Algumas modificações importantes nesse documento, direcionadas
especificamente para a categoria do ACS, alimentam esta atuação mais interna do
ACS e ressaltam o caráter utilitarista de suas atividades.
Assim, é possível destacar alguns pontos trazidos na PNAB publicada em
2017 que contribuem para tal, entre eles: a flexibilização dos parâmetros da
cobertura populacional pelo ACS, a indefinição do quantitativo de ACS por equipe, a
omissão de padrões diferenciados de ações e cuidados para a AB, o que contribui
13
para o desconhecimento dos procedimentos e ações que integram o padrão básico
assistencial, admite e incentiva outras estratégias de organização da AB, alterações
nas regras de composição profissional e de distribuição da carga horária dos
trabalhadores nas equipes de AB, onde a presença dos ACS não é requerida na
composição mínima das equipes de AB, e, por fim, a ideia de fundir as atribuições
dos ACS e dos Agentes de Combate às Endemias (ACE), tornando-os um único tipo
de profissional (BRASIL, 2017).
Assim, Morosini, Fonseca, Lima (2018) concluem que a presença do ACS nas
equipes de saúde da família e a continuidade das ações por ele estão em risco. O
maior impacto desta ameaça recai sobre as ações educativas e de promoção da
saúde, e ao se tornar predominante entre as suas atribuições específicas, as
atividades de produção e registro de uma série de dados e informações, o que
contribuiu para a descaracterização do seu trabalho, bem como a intensificação do
trabalho dos agentes que restarem nas equipes.
Outros resultados apontam para a possibilidade de identificar, na fala dos
participantes, atividades que desenvolvem e julgam ser de sua competência,
estando presente em sua rotina de trabalho, assim como, aquelas que não são de
sua competência e acabam por realizar. Estes resultados, compõem o trabalho real
do ACS, composto por atribuições que informam compor a sua rotina de trabalho, e
aquelas que estão previstas, ou seja, atribuições que são desenhadas para o cargo
do ACS, mas que nem sempre são postas em prática em seu cotidiano.
O trabalho real descrito pelo ACS encontra-se sintetizado através das
seguintes atribuições:17 (85%) ACS citam a VD; 12 (60%) citam burocracias de
forma geral (agendamentos, cadastramento, turnos de digitação, alimentação da
plataforma para acompanhamento do bolsa família, atividades de secretariado); 7
(35%) citam os grupos educativos; 6 (30%) citam as reuniões; 4 (20%) citam o
acolhimento; 3 (15%) citam procedimentos assistenciais (verificação de PA, HGT,
curativo, injeções); 3 (15%) citam atividades de limpeza; 2 (10%) citam entrega de
medicamentos/exames/consultas; 2 (10%) citam a atuação conjunto aos agentes de
endemias; e por fim: 1 cita as palestras, bem como atividades de apoio na farmácia,
PSE, esterilização e comissão local (colegiado).
Quanto ao trabalho previsto, uma análise um tanto quanto preocupante é o
fato de que os 20 (100%) ACS entrevistados conseguem narrar o seu trabalho real;
14
no entanto, apenas 5 (25%) ACS são capazes de descrever as atividades previstas
para o seu cargo aquelas que verdadeiramente deveriam desempenhar com a
nucleação em duas categorias de respostas: grupos educativos (2 ACS) e
procedimentos assistenciais (3 ACS). Vale ressaltar que 1 ACS não quis responder
quando questionado às atribuições prescritas.
A VD é citada como a atribuição mais presente em sua rotina. No entanto, é
frequente a ideia de que a VD poderia ser mais eficaz caso o ACS estivesse apto a
realizar procedimentos assistenciais:
ACS 1: Porque como a gente se aprofundou na área técnica, né, de
técnico de auxiliar de enfermagem, foi tudo de bom para a gente. Por
exemplo, a gente ia olhar um paciente que precisava fazer um
curativo, a gente chegava e dizia as técnicas, e no final de semana
eu ia muito pedir o material no posto fazia esses curativos para
eles não ficarem assim. E assim, foi muito bom porque abriu a mente
da gente, pra gente poder ser mais útil...”
ACS 9: Eu vejo assim, o que é que a gente deveria fazer e não faz:
verificar a pressão arterial e verificar o açúcar. Devia ser, também, da
nossa função.”
ACS 13: Igual eu te falei, sobre aferir pressão. Porque tem gente
que não tem condições de vir aqui no postinho, tão ali decadente, ou
é pessoa de idade. Eu acho assim, que eles deveriam dar um
treinamento pra gente, porque acho que não tem dificuldade da
pessoa aprender.”
Assim, no entendimento do ACS, a realização de procedimentos assistenciais
pelo ACS durante a VD, ampliaria a sua resolutividade, especialmente durante o
acompanhamento de usuários inseridos em linhas de cuidado específicas:
[...] gostariam de contribuir mais para o processo de trabalho, visto
que poderiam auxiliar no controle dos hipertensos, que sabem
aferir, atividade poucas vezes realizada na frequência orientada pela
equipe pela impossibilidade de o hipertenso fazê-lo (PEDEBOS et. al,
2018, p. 946).
O fato de o próprio ACS valorizar a realização de procedimentos técnicos e
assistenciais como forma de aumentar a resolutividade da sua VD, perpassa por
questões culturalmente impregnadas, em torno da valorização curativa das ações
em saúde (RIQUINHO et. al, 2018).
A presença das ações de educação em saúde na rotina do ACS ratifica o
papel basilar do ACS, enquanto promotores de saúde, desde os primórdios da
15
profissão e que, desde então, impactaram positivamente nos indicadores morbidade
e mortalidade (MOROSINI, FONSECA, 2018).
ACS 8: “O nosso trabalho é a orientação, a prevenção fora da
unidade nós não fazemos, nós não olhamos pressão, nós não
fazemos injeção né, tudo que nós fazemos é ir orientar, aquilo que
nós não conseguimos fazer a gente vem aqui, chama a
enfermeira, passa pra enfermeira e a enfermeira se precisar da
técnica ir ver uma pressão, tirar um ponto, alguma coisa a
enfermeira chama a técnica e a técnica desce com nós até onde nós
tem aquele caso.”
O trabalho burocrático, apesar de compor o seu trabalho real e consumir
grande parte do trabalho do ACS, o ACS não atribui valor a esta atribuição e, muitas
vezes, são executadas para cumprir ordens:
ACS 1: Todo dia a gente tem que estar aqui. Eu não venho à tarde
porque eu coloquei para outra enfermeira que eu não entendia o que
eu tinha que fazer aqui à tarde. Que aqui o pessoal vem e fica na
sala, não sei, trocando ideias... eu não sei qual a minha função em
ficar aqui. Enquanto estou fora faço minhas visitas, eu costumo dizer
as meninas que as vezes a gente se envolve tanto que a gente
quando faz o que a gente ama a gente se envolve numa forma que
nem percebe o que está acontecendo. Vai numa casa: “ei, você está
aí? Venha aqui que eu quero lhe mostrar minha medicação”. Daí a
gente vai. Isso para mim é gratificante. Eu sei que onde eu vou estou
produzindo, e aqui eu não tenho atividade para mim. Aqui você tira
um prontuário, você ouve um comentário de uma colega que não
satisfez você... entendeu?
Que a gente tem que fazer, são questionamentos meus dessa última
formação que a gente teve, a questão da digitação que a gente
precisa fazer digitação, isso não é... mas pelas normas técnicas,
segundo a gente ficou sabendo, a gente teria que fazer essa
digitação.”
A gente faz pela questão do andamento do processo da equipe.
Agora mesmo a gente está vendo a questão do Bolsa Família. Eu
não concordo com o Bolsa Família. Eu sou extremamente contra e
disse. Eu sou extremamente contra porque foi um processo criado
por três Ministérios e sobrecarregou os agentes de saúde.”
ACS 10: Então, assim... nós estamos num período que eu não
gosto. Cadastro. É necessário? É bem assim, a norma é assim, todo
o dia eu tenho que fazer dois cadastros. Todo dia eu tenho que fazer
dois cadastros, mas eu não faço segunda e terça porque leva muito
tempo e eu não vejo as minhas prioridades.”
O acompanhamento dos beneficiários do Programa Bolsa Família (PBF) é
algo de extrema resistência por parte do ACS, justamente por estigmatizarem esses
beneficiários como pessoas “aproveitadoras”, as quais beneficiam-se do dinheiro
16
para não trabalhar e continuar tendo mais filhos e não trabalhar (CHUENGUE,
FRANCO, 2018).
Assim, o conjunto de atividades burocráticas, apesar de compor trabalho real
do ACS, acaba sendo realizado sem o real entendimento do profissional, por
representarem atribuições obrigatórias e não valorizadas pelo ACS:
[...] além de encontrarem dificuldades para identificar, nomear e
descrever as fichas que precisam preencher para alimentar o SIAB,
também não conseguem compreender variáveis, termos e patologias
que compõem esses instrumentos. Como consequência, tarefas
ligadas à vigilância em saúde, apesar de sua importância para a ESF,
incidem no trabalho dos ACS como meras atividades de coleta de
dados estatísticos, com pouco sentido para esses trabalhadores
(ALONSO et. al, 2018, p. 8).
É fortemente recomendado que as atribuições burocráticas sejam repensadas
para o trabalho do ACS, objetivando dar sentido a estas ações na visão do ACS,
pois muitas vezes, são realizadas norteadas pela produtividade individual de cada
profissional (ALONSO et al, 2018).
ACS 3: É. nos outros dias quando eu não estou aqui. Agora, eu
acho errado, mas a gente está mais aqui do que no campo de
trabalho, com essa produção. Se você não ficar aqui, bem dizer
direto, você não consegue fazer produção. Você tem que fazer
produção para poder mostrar que você trabalhou no final do mês,
então tem hora que você tem até que inventar serviço. Porque, não
tem lógica, eu tenho 750 pessoas, família eu tenho 150, 140, mas
pessoas são 720, 730. Você digitar todo mês as 700. Falando tudo
que tem. Eu acho impossível, falei com a Ana, acho impossível, mas
a gente tenta chegar mais ou menos nesse número. Quem consegue
Deus abençoa, mas eu acho que está mentindo. na terça tem,
na segunda, na segunda de manhã eu fico para ver o que vai fazer.
Essa agenda minha que eu comprei, não posso perder ela de jeito
nenhum. Terça a gente tem que estar aqui, e terça é o dia que eles
me escolheram para poder digitar. Se não tiver a Comissão Local de
saúde na segunda terça do mês, eu tenho que ficar digitando até
as seis. Agora até as seis, graças a Deus. Não é até as sete mais
não.”
ACS 6: A gente antes tinha que fazer 5 visitas depois do
acolhimento. mudou agora, então, naquele dia de acolhimento, a
gente tem que dobrar a visita do outro dia. a gente se questiona
por isso, porque a gente termina perdendo. O acolhimento é bom,
mas a deixa de fazer visitar, de ver alguma coisa na área que poderia
ser feito. Como hoje, eu estou aqui, mas tem alguém na minha área
que eu estou precisando ver. E eu estou no acolhimento. Então,
termina, de qualquer forma, o acolhimento tirando a gente da área.”
17
[...] o PACS não tinha tanta burocracia, né. Não tinha tanto papel pra
preencher. Antes era um cadastro de auxiliar, era uma ficha, a ficha
A, que ali tinha nome, idade, data de nascimento, a profissão e
algumas doenças, né. E hoje, a gente preenche a ficha domiciliar. No
domicílio, cada pessoa é uma folha frente e verso. E nunca pra
fazer o cadastro totalmente na casa. Você tem que trazer trabalho
para casa, porque a parte burocrática... Jesus! É muita cobrança. E
também tem a parte das metas, meta de visitas, que a equipe tem
que ter metas de atendimento, e de visita domiciliar também. É muita
coisa. Pelo PACS era mais, vamos dizer, light, né. Não tinha tanta
informação quanto hoje.”
ACS 18: 16 horas vem para cá. E quem é do horário das 6, pega
as 9 e larga às 6, fica no acolhimento. Então, assim... A Estratégia
mudou muito, se falava muito da qualidade, hoje não é qualidade
que você tem que fazer, é um atropelamento... É quantidade também
(...) Das metas. É estranho. Até eu conseguir lidar com isso foi
horrível. A qualidade é instantânea.... Você pegar uma criança, fazer
aquele relatório todo com a mãe dentro de casa, tem que ficar
preocupada que tem que colocar no computador. Ai de você se não
colocar no computador.... Não é igual antigamente, agora você tem
que fazer tudo correndo, fazer a qualidade e a quantidade. Tudo
correndo. Mesmo assim eu amo a Estratégia, amo o que faço.”
A lógica quantitativa termina por nortear as ações do ACS, considerando os
indicadores de monitoramento e resultado, que refletem, numericamente, o seu
desempenho. Para cada indicador, uma meta a ser alcançada, o que corrobora
para a realização de VD breves e superficiais. (MOROSINI, FONSECA, 2018)
O trabalho real do ACS também é composto por atividades outras que o
profissional desempenha com o intuito de ajudar, aproveitando os turnos em que se
encontra na unidade:
ACS 4: A equipe acaba abraçando, gosta da ideia gosta de fazer, é
por gosto mesmo. Igual é uma coisa de parte da rotina mas não seria
nosso fazer o que é a esterilização, mas às vezes está corrido pra
caramba e eles vem e pedem pra colocar gaze no pacotinho, sei lá,
pra poder esterilizar depois, são coisas do dia a dia que vão surgindo
e se você está ali, normalmente a Barbara (técnica de enfermagem)
faz isso, pede você pode ajudar, você não vai sair em alguma coisa
importante, você pode ficar e fazer tal coisa, normalmente é
solicitado por ela e as suas rotinas de trabalho aqui dentro.”
ACS 2: “[...] eu sou formado em Educação Física, na terça-feira eu
chego aqui no horário, e eu poderia fazer essas atividades com os
hipertensos e diabéticos. Mas tem o Educador Físico, que ganha
para isso.
ACS 7: Quando a gente fez a primeira capacitação, o que foi
passado pra nós, a gente atuaria na área fazendo as visitas
18
domiciliar. E, chamando essas pessoas, quando tivessem
campanhas, ou qualquer coisa, a gente trazer pra cá. Eu acho que
nas campanhas... nas campanhas nós temos que atuar, ajudar. Na
recepção, eu acho que não... recepção é parte administrativa, a
gente faz porque... às vezes não é nem determinado, mas se a
gente bater o e disse que não vai, a gente não vai. Mas, às vezes,
a gente gosta do gestor, muitas vezes gosta dos recepcionistas, dos
atendentes, às vezes elas estão sozinhas, por exemplo, se tem
dois, faltou um, aí ligam, pedem pra gente.”
A execução de trabalhos administrativos é frequentemente citada pelo ACS e,
justificada pela deficiência de técnicos administrativos para ações que envolvam o
contato com o usuário. Este auxílio, acaba por sobrecarregar o ACS e reduz o tempo
para realizar as próprias atividades (PEDEBOS et. al, 2018).
A intensa cobrança da população ao ACS, também força ao profissional a
tomar para si atividades que competem a outros cargos, extrapolando o trabalho
previsto ao seu cargo (SANTOS et. al, 2018).
O fato de o ACS residir na comunidade, a dificuldade que o usuário apresenta
em separar o profissional ACS da pessoa, acaba gerando uma carga demandante
do ACS mesmo quando não se encontra em horário de trabalho. O ACS acaba por
incorporar estas demandas com o intuito de não ameaçar a sua credibilidade junto à
população:
[...] encontraram que a credibilidade do ACS junto à comunidade está
diretamente associada à resolução das demandas dos usuários e
que a manutenção dessa credibilidade é dificultada por aspectos
relacionados à estruturação do serviço e à inoperância do sistema de
saúde (ALONSO et. al, 2018, p. 7).
Somado à dificuldade em dissociar a imagem do trabalhador e morador, a
comunidade cobra ao ACS condições que vão além dos determinantes da saúde,
extravasando para outros espaços de atuação de equipamentos inseridos na rede
de assistência. O ACS, principalmente aqueles que não têm muita clareza do
funcionamento e da estruturação da rede, muitas vezes não consegue resolver a
demanda, aumentando cada vez mais o sentimento de frustração por parte do
usuário e ao próprio profissional:
Também questões que ultrapassam o alcance das ações de
saúde. Condições de vida da população, como pobreza, falta de
alimentos, moradia insalubre, água contaminada, lixo, são oriundas
19
de determinantes socioeconômicos que fazem o ACS se sentir
impotente (SAMUDIO et. al, 2017, p. 760).
No que diz respeito ao trabalho interno, a realização deste tipo de trabalho
não descaracteriza o trabalho do ACS. As atribuições burocráticas, no interior da
unidade, também compõem o trabalho previsto para a categoria. No entanto, a
frequência com que são citadas no trabalho real é preocupante, e reflexo da redução
do quantitativo de ACS que compõe cada equipe da ESF.
O que se observa em termos práticos é a diminuição do tempo disponível
para o trabalho de vigilância territorial, o que, pode ser feito uma vez presente no
território. Portanto, com uma demanda burocrática cada vez mais crescente, o ACS
tem permanecido de forma predominante no interior da unidade (PEDEBOS, 2018).
Este distanciamento do território, compromete o monitoramento, bem como as
ações de promoção da saúde, e contribui para descompensar a condição de saúde
de alguns usuários (RIQUINHO et. al, 2018):
ACS10: Situação tipo, tava trabalhando normalmente e disse: (...)
minha está morrendo! ”. E era uma senhorinha que a gente visita
porque ela é acamada e tudo. Ela sempre está na cadeirinha,
sentada. E eu tive que deixar tudo e ir ajudar ela e ela tava
apavorada. Ela fechou muito isso aqui e não tava conseguindo
respirar. Ela tava sem oxigênio e a gente levantou, botou ela pra
respirar. E ela não tava morrendo, ela estava passando mal, porque
ela não estava conseguindo respirar. Fechou as vias aéreas.”
Considerando a contextualização realizada até o momento em torno do
trabalho do ACS, é essencial trazer a luz conceitos chaves em torno do trabalho real
e o prescrito, com base em Christophe Dejours.
Segundo Dejours, o trabalho prescrito corresponde ao que antecede a
execução da tarefa. Assume o formato de orientação, burocratização, fiscalização e
parâmetro para avaliar da qualidade da ação. o trabalho real é a própria
execução da ação real do trabalhador e que, acaba por não abarcar a complexidade
do trabalho prescrito. Portanto, o trabalho real complementa o trabalho prescrito.
(ANJOS et al. 2011)
A teoria de Dejours em torno do trabalho real e o prescrito contribui para
entender a realidade da concepção do próprio ACS em torno das suas atribuições,
mas principalmente, contribui para entender a dificuldade que esses profissionais
apresentam para descrever suas atribuições quando foram questionados sobre.
20
Observa-se o intenso movimento de precarização e intensificação do processo de
trabalho na ESF. Especificamente para o ACS, este fato tem contribuído para que o
ACS abrace cada vez mais atribuições e tenha dificuldade em discernir o que de fato
lhe compete e o que não compete.
Por fim, quando são questionados quanto à atribuição que mais atribui valor:
11 (55%) ACS citam o maior cuidado quanto à vigilância das principais linhas de
cuidado (gestantes, crianças, idosos, hipertensos, diabéticos); 4 (20%) citam o
cuidado com a realização dos cadastros/meta cadastral, 4 (20%) citam a ética
profissional na rotina de trabalho, principalmente durante o contato domiciliar; 2
(10%) citam a VD, a presença territorial; e 1 ACS cita a análise do cartão vacinal, a
escuta qualificada e o vínculo com as famílias e cadastrados.
O ACS reconhece a importância do seu trabalho de vigilância do território e
associam a sua constante vigilância, principalmente voltadas às linhas de cuidado
prioritárias, ao planejamento das suas ações. Entende que o seu trabalho não se
resume apenas a identificação de problemas no território para que a equipe possa
resolver, mas enxerga a potência que suas orientações podem ter na saúde dos
seus cadastrados (PEDEBOS et al, 2018):
ACS2: Eu acho que o ACS é estar transmitindo o que existe na sua
área, para seu Posto de Saúde saber... O Médico, Enfermeiro
coordenador, que é nosso caso, até para Técnica, enfim... Até para
recepção e tudo mais. O que existe na sua área, o que tem de
problemas na sua área. Mas o ACS, em si, é um monte de coisas
porque acaba sendo psicólogo, que tem gente que quer você
para conversar. Você não é Enfermeiro, mas a pessoa quer saber....
você tem que dizer que você não é, entendeu? Você não tem
capacidade para dizer que aquilo é uma doença...Mas ele quer falar
com você. É criar vínculo com esse pessoal. Acho que o Agente de
Saúde é mais ou menos isso.”
A estadia no território é entendida enquanto uma oportunidade importante
tanto para a coleta de informações e planejamento das ações em equipe, quanto
para identificar as demandas da comunidade e difundir orientações à população.
Assim, a VD contribuiu para manter a boa comunicação em mão dupla: tanto da
comunidade em direção ao serviço de saúde, quanto do serviço de saúde em
direção à comunidade. O vínculo é reconhecido enquanto uma ferramenta que
facilita a comunicação com os usuários e, mesmo após estabelecido o vínculo, é de
extrema importância manter uma relação ética (PEDEBOS et al, 2018):
21
ACS 1: Eu acho que é chegar e receber as pessoas com muito
amor e muito carinho, né? É a primeira coisa, você chegar e receber
com amor e carinho porque é ali que elas começam a confiar em
você. Do jeito que você chega, começam a confiar. Que eles
contam.... Você sabe a vida de todo mundo. Mas é por quê? Porque
você chega com amor e carinho, é aquilo ali que eles estão
precisando, é aquilo ali que eles não têm, o amor e carinho das
pessoas. Porque você uns que não tem filho, não tem nada. Tem
gente que não tem filho, não tem família.... Então você chega ali,
você é, naquele momento, a família deles. Então, eles têm você
para conversar. Então, quer dizer.... Eles querem contar os
problemas da vida, você tem que escutar. Agora, eles estão
contando, você vira as costas e vai embora? No outro dia que você
voltar ele já vai te receber com duas pedras na mão.”
Outro resultado aponta em direção ao tempo de atuação na ESF: 4 (20%)
ACS apresentam 15 anos de atuação, seguidos por: 2 (10%) com 10 anos, 2 (10%)
com 14 anos, 2 (10%) com 16 anos, 2 (10%) ACS com 20 anos, 2 (10%) com 22
anos e por fim, um ACS com 11 anos, apresentando o mesmo valor para o tempo de
12, 13, 17, 18 e 24 anos de atuação na ESF.
A atuação madura e experiente é uma característica do ACS da ESF, aponta
para a baixa rotatividade desta categoria e favorece a formação de um forte vínculo
com a população (PINTO et al, 2018); (CASTRO et al, 2017).
Considerando toda a experiencia e vivência ao longo do tempo em que atua,
justifica o fato de atribuírem grande valor a atribuições como a VD e aquelas que
envolvem a promoção de saúde. Nos primórdios da profissão, o ACS se via menos
envolvido com questões burocráticas, atuando, basicamente no território e em
contato constante com a população.
Por fim, um achado importante encontrado diz respeito ao fato de que poucos
profissionais 5 (25%) foram capazes de descrever as atividades prescritas para o
seu cargo. Pode ser um ponto de preocupação, pois revela a pouca clareza às
atribuições do próprio cargo, o que abre precedentes para a incorporação de
inúmeras atribuições em seu trabalho real:
[...] o ACS se insere em um espaço de indeterminações e incertezas,
sem definição clara de suas competências, habilidades e saberes.
Os dados do estudo apontaram que essa indefinição pode estar
abrindo precedentes para que elas assumam atividades que se
distanciam de seu lócus de intervenção, o território vivido
(RIQUINHO, et al, 2018, p. 167).
22
Considerando a pouca clareza em torno do que se espera para o cargo, o
ACS incorpora demandas que identifica na área, muitas das quais, fogem da sua
governabilidade (SAMUDIO et al, 2017); (KRUG et al, 2017).
Além da pouca clareza em relação às próprias atribuições, o fato de ser uma
profissão composta por profissionais extremamente experientes e que em seus
primórdios, manteve relação com a caridade, o ACS ainda assume para si algumas
responsabilidades, muito em função da solidariedade e caridade ao próximo
(ALONSO et. al, 2018).
Considerações finais
Em condições ideias, o trabalho prescrito para o ACS deveria ser sinônimo do
trabalho real. Assim como, todo o trabalho prescrito, deveria dialogar com a
realidade vivenciada na rotina dos serviços de saúde e, consequentemente, ter a
sua relevância reconhecida e valorizada pelo ACS.
No entanto, foi possível observar que existe o trabalho dicotômico do ACS: o
real composto pelas atribuições que o profissional executa na rotina de trabalho,
dentro das possibilidades laborais, e o prescrito que consta em documentos
norteadores para as suas atribuições e que, nem mesmo, é reconhecido pelo ACS,
ao ser identificada a dificuldade para descrevê-lo ou, simplesmente, a falta de
conforto para tal. No interior do trabalho real, o ACS atribui diferentes valores as
suas atividades, ressaltando a importância da sua presença no território e em grupos
educativos.
Ao analisar as atribuições presentes em sua rotina de trabalho e que,
portanto, compõem o seu trabalho real, ainda observamos a predominância de
ações desenvolvidas no território, ainda que não desenvolvidas com a qualidade
desejada pelo ACS, por se tratar de VD puramente burocráticas e com viés
quantitativo. Assim, a visita do ACS perde, cada vez mais, a essência do
acompanhamento e vigilância territorial, fruto da significativa presença das ações
burocráticas em sua rotina de trabalho.
Outro ponto que chama a atenção é o desempenho de atividades
pertencentes a outras categorias profissionais, entre elas, atividades assistenciais -
majoritariamente vinculadas a categoria da enfermagem - e a maior integração e
23
fusão de atribuições com os agentes de endemias. A presença destas práticas em
sua rotina, é a prova de que muitas das alterações presentes no texto da PNAB
2017, já estão sendo praticadas pelo ACS.
Tais achados, abrem precedentes para que o ACS sofra intensas
modificações em sua atuação basilar, tendo a sua atuação raiz enquanto
promotores de saúde sendo deslocada para uma atuação assistencialista e
burocrática. Este movimento gera uma sobrecarga do ACS e corrobora com um dos
achados do presente estudo: a dificuldade, que o próprio profissional refere, em
relatar as atividades previstas ao seu cargo.
Outra variável analisada é o tempo em que este profissional atua enquanto
ACS e a influência desta experiência em torno da percepção das suas atribuições
enquanto ACS. A ESF é composta majoritariamente por ACS experientes com
mais de 10 anos de atuação. O ACS, apesar das constantes e intensas
reformulações direcionadas ao cargo, valoriza as suas raízes, que envolve a
atuação territorial e ações de promoção da saúde, em detrimento das atividades
burocráticas e no interior da unidade.
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27
V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
A EDUCAÇÃO AMBIENTAL CRÍTICA EM PESSOA: ENTREVISTA COM
CARLOS FREDERICO LOUREIRO1
Entrevista com realizada pelo Grupo de Pesquisa Trabalho-educação e
Educação Ambiental (GPTEEA) do IFRJ (Campus Nilópolis) 2
Alexandre Maia do Bomfim3
Patrícia Maria Pereira do Nascimento4
Juliana Rodrigues de Souza5
5Graduanda do curso de bacharelado de Produção Cultural do Instituto Federal do Rio de Janeiro
(IFRJ), campus Nilópolis. Email: jully.rodrigues2012@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8660-7107; Lattes: http://lattes.cnpq.br/1261988630021649.
4Doutoranda e Mestre em Ensino de Ciências (PROPEC-IFRJ); Graduada em Ciências Biológicas.
Docente no Senac-RJ (Curso Técnico em Segurança do Trabalho).
Email: prof.pattynascimento@gmail.com . Lattes http://lattes.cnpq.br/9696813281691492;
ORCID:https://orcid.org/0000-0002-8654-8506.
3Doutor em Ciências Humanas-Educação. Professor Associado III do Programa de Pós-graduação
em Ensino de Ciências (Propec) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de
Janeiro (IFRJ) E-mail: alexandre.bomfim@ifrj.edu.br ORCID: 0000-0002-5617-2229.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9426535856477661
2Essa entrevista foi concedida no dia 10 de fevereiro de 2022, de forma remota. Vale dizer que
sintetizamos um pouco a entrevista, e editamos para facilitar o entendimento. Tivemos que fazer
algumas interferências exatamente para recolocar o sentido, dentro do texto, que julgamos ter
apreendido no contexto da oralidade. Não obstante, mantivemos um pouco da conversa coloquial.
1Entrevista recebida em 20/07/2022. Avaliado pelos editores em 29/07/2022. Aprovado em
02/08/2022. Publicado em 10/11/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.55411.
1
Nosso entrevistado é Carlos Frederico Bernardo Loureiro, com certeza uma das
principais referências em Educação Ambiental Crítica do país. Loureiro é professor
titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
professor do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da UFRJ. Líder do
Laboratório de Investigações em Educação, Ambiente e Sociedade (LIEAS/UFRJ).
Foram suas graduações pela UFRJ (seu Bacharelado em Ecologia e Licenciatura
em Ciências Físicas e Biológicas) que o levaram à Educação Ambiental, mas
certamente foi seu percurso acadêmico posterior, seu percurso como pesquisador,
assim como suas atividades profissionais e inclusive sua militância, que o
conduziram para uma postura ainda mais crítica, para uma práxis
sociológica-filosófica-política. Além de ser muito lido, Loureiro é formador de muitos
formadores. Busca apreender a problemática ambiental, trazendo relevantes
contribuições para processos educativos que se contraponham às respostas e
soluções apregoadas pela educação hegemônica capitalista.
****
Alexandre: (...) Aqui estamos no dia 10 de fevereiro de 2022, infelizmente, ainda em
tempos pandêmicos. O meu grupo de pesquisa é o Grupo de Pesquisa em
Trabalho-Educação e Educação Ambiental (GPTEEA), grupo que uniu minha
trajetória, a que tive na UFF com a área de Trabalho e Educação, com a pegada
marxista e meu envolvimento com o GT 09 [da ANPED], somada agora à minha
trajetória profissional, que fez me encontrar com você, né? [sic]. (...) Embora eu
tenha visto um movimento seu em outras frentes, nos últimos tempos... Nós
queremos saber de você: quem é o Fred? Além disso, por ser um intelectual
orgânico, queremos conhecer sua trajetória a partir do seu próprio olhar...
Frederico: (...) Minha trajetória é toda, toda ela pessoal, ela toda vinculada às
minhas discussões e à minha escolha pela Educação Ambiental. Isso aparece com
mais força nos meus textos do último livro, quem não sei se teve contato...
Educação Ambiental: questões de vida6.Na verdade, eu até coloco aquele terceiro
capítulo que é sobre isso, porque as pessoas me perguntavam muito sobre isso,
assim... mas você não fala muito de você e parece que é uma coisa muito visceral
em você, e é! Trouxe naquele capítulo, porque minhas escolhas todas foram feitas
6Publicado em 2019, pela Editora Cortez, São Paulo.
2
em cima de uma inquietação que eu tinha desde pequeno. É que era, que era isso,
olhar pro mundo e vê... Sentir um incômodo profundo, com a barbárie que a gente
vive, com as formas de destruição, com o desprezo pelo outro. Enfim, sempre tive
uma ligação muito estreita com a Baía de Guanabara, né? Fui criado em Paquetá.
Então, ver a Baía de Guanabara se destruindo, se acabando. Eu sou do tempo em
que ainda peguei, ainda via cavalo-marinho, né? Eu tinha que tomar cuidado
nadando porque podia esbarrar numa arraia, hoje em dia não tem mais nada disso.
Até arraia voltou um pouco agora, enfim... Mas a situação virou um quintalzão do
parque industrial, de navios, né? Então, essa inquietação que vinha desde criança
em relação ao que eu via na vida, foi se vinculando às minhas escolhas
profissionais. Então, eu fui fazer Biologia, na verdade motivado por isso, achei
inicialmente que a Biologia ia dar conta dessa discussão e depois eu fui vendo que
não, que a Biologia tinha contribuição bacana e tal, importante... Mas, enfim, essa
relação sociedade e natureza traz a questão ambiental, porque demanda esse lado
social, né? Porque, na verdade, as questões são sociais! O problema ambiental
existe em função de uma questão social. E aí, fui buscando uma série de outras
formações e estudos, mas sempre vinculado à minha vivência, né? Movimento
ambientalista, meninos e meninas de rua, que viviam em situação de rua. Enfim, nas
favelas do Rio e depois isso foi se ampliando para vários grupos sociais, escolares,
não escolares. E mais especificamente, para os últimos [anos], eu diria, talvez os
últimos dez, quinze anos vim me aproximando do debate dos povos tradicionais, por
vários motivos, né? Eu acabei me vinculando muito...
Ah... Por vários motivos, um mais estrutural, que eu diria, é a questão de que sem
dúvida nenhuma é esse processo de desenvolvimento que a gente tem no Brasil,
diante dessa reprimarização, essa base do extrativismo, né? Muito forte, de uma
perda do processo de desindustrialização no Brasil, isso gera uma pressão enorme
sobre os povos tradicionais porque na verdade (...) É o agronegócio, é a extração
mineral, da madeira, e por vai, minério total, muito forte... Então, quem acaba
sendo o sujeito prioritário desse [sic] debate todo? Acaba sendo/são os povos
tradicionais, porque eles sofrem mais diretamente, (...) Fui me apaixonando... por
esse mundo dos povos tradicionais, pelas tradições africanas (...) e aprendi muita
coisa com esses grupos e aprendo até hoje, sou totalmente vinculado a todos eles.
3
E foi uma paixão pessoal numa situação conjuntural do padrão de
desenvolvimento do país que me levou a essa guinada pra [sic] povos tradicionais e
sem dúvida nenhuma as minhas discussões acadêmicas começaram a ganhar
mais essa cara nos últimos anos. Antes eu discutia muita coisa ligada à escola ou às
questões teóricas mais gerais da Educação Ambiental. É mais que visivelmente, se
olhar as produções dos últimos anos, elas começam assim, explícita ou
implicitamente começa a aparecer muita coisa da tradicionalidade, desses povos
tradicionais, de aprendizado com esses povos e de trabalho com esses povos. (...)
É, tem uma relação direta com questões de entendimento de leitura de mundo [sic]
do que [sic] se passando no país e com a minha vida mesmo. Assim, daquilo que
eu gosto e de possibilidade de aprender. Assim, sou muito grato, na verdade, a
esses grupos porque sem dúvida nenhuma amadureci muito como pessoa. Depois
que comecei a ter contato com eles, conviver mais, estar dentro de um quilombo,
estar numa vila de pescadores artesanais, de marisqueiras, de extrativistas, no norte
do país, de frutas... Enfim, então, isso realmente me encantou, eu diria que a minha
trajetória pessoal sempre teve [sic] vinculada às minhas escolhas acadêmicas. Na
verdade, eu diria até que o meu caminho acadêmico foi em decorrência das minhas
inquietações pessoais desde pequeno e a guinada nesse momento para os povos
tradicionais tem a ver com essa conjuntura e com a paixão, [essa] mesma que eles
despertam, são encantadores, são pessoas maravilhosas... Assim, hoje acho que
dificilmente vou dar outra uma guinada [ainda que tenha] essa característica...
Realmente, na Educação Ambiental, talvez seja uma das poucas pessoas que
transitou senão por todos, por quase todos os espaços possíveis, se você reparar
assim se for lendo ao longo do tempo trabalhei muito com a escola, trabalhei em
unidade de conservação, gestão de água, licenciamento ambiental, movimentos
sociais e por vai. Eu consigo transitar muito fácil por temáticas muito diferentes na
Educação Ambiental e tive ênfases ao longo da minha vida, mas acho que os
povos tradicionais chegam pra ficar até minha aposentadoria.(...)
Patrícia: Sobre todo esse contexto que estamos vivendo, eu falo de todo o contexto
social, saúde, ambiente. (...) a gente fica na Academia muita das vezes encastelado
e falando, né? Assim, como que a gente poderia sair desse castelo, alguma
solução, você acha que tem assim uma luz no fim do túnel em relação a toda essa
4
conjuntura que estamos vivendo? E nós, vamos dizer assim, intelectuais, que
estamos desenvolvendo trabalho de pesquisa, a gente consegue sair dessa, desses
muros, é possível essa libertação?
Frederico: Olha, eu acho que a curto prazo não, né? A gente um momento de
crise estrutural (...). Marx falava da própria dinâmica do capitalismo, ele reconhecia
certas, certas condições assim que são realmente impressionantes, né? Nenhuma
formação social outra consegue ter tanta maleabilidade, ser tão dinâmico e tão
universal como o capitalismo conseguiu, né? Então, é claro que é uma forma social,
um sistema, que tem uma capacidade de se adaptar muito grande e de superar as
suas crises, [ainda que] criando outras crises também, sem igual. (...) Não tenho
esse otimismo... [Há] contradições muito agudas, elas criam possibilidades pra
gente, em alguma medida, por exemplo, do ponto de vista teórico, acho que cria
primeiro essas possibilidades, assim hoje eu vejo pessoas retomando o debate que
dentro da própria Academia assim, se tinha se jogado fora... E hoje as pessoas
tão voltando, dando passo pra trás, no bom sentido da palavra e reconhecendo
alguns extremos também... Por exemplo, toda essa discussão do negacionismo,
discussões de ciência, anti-razão, de relativizar por absoluto a verdade (...) tudo é
discurso, tudo é opinião, tudo é interpretação... E aí, esses caras começam a
ficar numa situação difícil, né? Porque eles começam a ficar igual ao cara que diz
que a terra é plana... E aí, fica complicado pro acadêmico... Que mobiliza pessoas,
uma ideologia que mobiliza muitas pessoas no mundo, né? Mas, não para você
dizer que é uma verdade. Então, acho que primeiro ponto é esse, está [se] forçando
um debate crítico para ganhar um novo lugar, [algo] que estava meio perdido e hoje
[esse] reconhecimento de todo esse pensamento crítico, dessas sinucas que a
gente foi se enfiado no mundo, né? Eu vejo também essas possibilidades para uma
diversificação maior.
Do entendimento de quem é o expropriado nessa sociedade, a gente fica muito
centrado no trabalhador assalariado, no desempregado, e hoje você é isso, você
precisa entender o conjunto dos expropriados que passa pelos povos tradicionais,
que passa pelos trabalhadores informais, esses caras também são sujeitos da
história... E acho que hoje uma ampliação desse entendimento importante para a
própria esquerda, um amadurecimento para a própria esquerda, um reconhecimento
5
dessas questões de identidade que tinha de fato um certo desprezo por muitos, né?
Que a gente não pela lógica da identidade, mas assim são questões importantes
que a gente consegue hoje, a gente consegue amadurecer numa perspectiva
crítica... Então, assim do ponto de vista teórico acho que tem caminhos também no
sentido dessa articulação com esses sujeitos, com esses movimentos... Eu acho que
isso são caminhos possíveis e que vejo que trazem coisas muito interessantes. É
lógico, assim quando a gente no momento de crise aguda, a gente tende a não
enxergar essas coisas, mas elas estão presentes, elas existem... E acho que são
elementos que criaram raízes e que vão frutificar em breve. Assim, as possibilidades
de algumas mudanças no plano da política para 2023, poderá recolocar algumas
questões na pauta brasileira de novo... Em relação à escola, à universidade, à
questão da mulher, à questão da criança, enfim, e por vai. Então, assim eu vejo,
vejo como, com alguma esperança. Essa possibilidade de algo novo...
Agora, lógico, tem que ter muita serenidade, né? Porque se for espremido pelo
imediato você tende a ficar com pessimismo muito grande, imediato é muito ruim,
[temos] que ter uma paciência histórica. Entender os tempos da história também, o
tempo histórico e tempo da história não é o nosso, o nosso tempo é muito curtinho.
Então, precisamos entender isso também, os ciclos que a própria história
estabelece, na dinâmica humana, no planeta, das espécies de modo geral. Acreditar
na possibilidade da mudança sempre, essa é até uma condição ontológica, não é
uma questão de fé, né? É ontológica para o marxismo, a mudança vem da ideia da
possibilidade da transformação, porque o trabalho transforma (...). Eu acho que
essas possibilidades do ponto de vista teórico, da possibilidade de articulação, de
ampliar a luta antissistêmica, de estabelecer interlocuções que não existiam... [São
caminhos!]
Eu acho que isso traz, do ponto de vista mais econômico, [outras] experiências
interessantes: da Agroecologia, de práticas econômicas alternativas, que mostram
assim que caminhos. E aí, lógico que, se isso vai se estabelecer ou não, se isso
vai preponderar ou não, aí... Eu fico muito sereno em relação a isso sempre. Porque
a gente tem que fazer de qualquer forma, né? Então, a gente tem que continuar,
continuar acreditando, com no chão, evidentemente. Agora, se isso ainda vai
estar no nosso horizonte da vida ou não, mudanças mais agudas, não sei dizer,
6
entende? Acho que pra mim particularmente, acho que não... Enfim, mas assim não
me prendo a essa discussão em particular, sei que estará no meu horizonte de vida
(...).
Thiago: Eu tenho muito me preocupado muito com essas novas alternativas, porque
quando eu penso muito na mudança estrutural do capitalismo... (...) Mas, enfim, aí,
eu tenho lido muito, tem uma [leitura] Outra economia é possível do Castells7, muito
interessante esse livro, que vai trazendo alguns [elementos novos], mas enfim... Na
verdade, o que eu quero perguntar, eu estou com uma leitura muito fresca do
Polanyi, né? E o Polanyi, é sobre o futuro, né? Que eu quero falar ou do presente
talvez... Ele mostra que se continuar assim, você vai ter um problema social, que o
problema na verdade, para o capitalismo, [para a sociedade ] do livre mercado e vai
destruir realmente a sociedade em si. (...) Essa galera [fascista] conseguindo
conversar mais com a sociedade do que a gente? E por que isso acontece? (...)
Frederico: Tem dois pontos importante na sua fala... O primeiro vou começar, por
esse final... Por que essa galera fascista (vamos simplificar aqui) acaba dialogando
mais fácil, né? É interessante... Por exemplo, quando você os teóricos marxistas
dos anos 1970... Eles estavam sinalizando para isso, nos anos 70, todos eles,
falando assim que a América Latina iria entrar num ciclo de dependência e que iria
gerar um retrocesso muito grande, uma pauperização muito violenta e que isso ia
forçar para dois [possíveis] caminhos: ou as pessoas iam entender esse lugar e se
convenceriam, da importância de uma perspectiva socialista ou isso iriam se
radicalizar à direita... E aí, uma nova onda fascista surgiria no mundo, infelizmente
acabou acontecendo o segundo caminho, mas acho que tem uma explicação muito
simples pra isso... Na verdade, o diálogo se porque as respostas que eles dão
são muito simples e de aplicação muito imediata, entende? Então, é tipo assim:
[Alguém pergunta] “Tá uma merda?” (Desculpa a palavra) [Outro responde para
todos:] “porque tem muito vagabundo, a gente mata vagabundo e resolvido o
problema”... Essa lógica de raciocínio, ela funciona muito bem, né? [Mais fácil de
explicar] do que você ter que explicar porque que existe gente que vivendo na rua,
desempregada, porque que o negro é vítima de intolerância na sociedade, [pois] isso
exige um complexo de argumentos que as pessoas nessa necessidade atual, que é
7O livro de Castells foi publicado em 2019 pela editora Zahar, Rio de Janeiro.
7
muito imediata, não estão dispostas a ouvir, isso explica em parte o próprio
fenômeno neopentecostal no Brasil...
Se você conversar com pessoas que são neopentecostais, eu não sei se aqui tem
alguém, conversei com vários que são militantes de esquerda e que também são...
Eles trazem assim a questão... O pastor aquele que] chega primeiro, que uma
atenção, supre a necessidade imediata... É uma lógica muito simples, assim o que
dentro disso aqui é bom, o que fora disso aqui é ruim... Essa forma de pensar
atrai demais, ela é muito sedutora, até pra gente é, até quando a gente brinca de
negócio futebol no fundo você cai nessa lógica, quem torce pro meu time é legal e
quem não é, quero que se exploda, assim eu quero que o outro perca... A gente
mesmo vai pra esse lugar, né? O que aqui é bom, o que fora não é bom. Então,
é uma forma muito simplória, né? Mas que funciona, cola e responde muito rápido,
responde muito rápido às nossas necessidades.
E a esquerda não sabe dar essa resposta rápida, ela não consegue dar essa
resposta muito rápida. Então, é por isso, que Bolsonaro, o povo escuta mais, escuta
muito mais o Bolsonaro do que a mim, entende? Não tenho a menor dúvida em
relação a isso. Por que que o Lula às vezes consegue convencer? Porque ele
consegue às vezes mandar um recado assim bem direto, bem pá-pum, [mas] ele
sofre críticas. Na verdade, você tem que entender o que o Lula está falando, ele
querendo alcançar exatamente esse cara, não adianta o Lula vir com sofisticação...
Olha só, “eu sei que você quer comer amanhã”, entendeu? Sei que você não quer
morrer tomando porrada na rua, eu vou dar resposta pra isso aí... Então, eu sinto
que a direita responde muito rápido porque é uma lógica muito binária mesmo, do
bem contra o mal... Quem aqui é do bem, quem contra é do mal, [assim] isso
cola muito fácil e você quer resolver, resolver é isso, matar, exterminar... A culpa é
por quê [de quem]? Dos comunistas que acabaram com a família tradicional, a culpa
é porque muito pobre na rua, a culpa é porque tem muito preto que cismou que
quer comer carne... São umas aberrações, mas cola, funciona. você vê, o próprio
assassinato do menino do congolês. Hoje até pegaram imagens, hoje não,
ontem, anteontem conseguiram outras imagens, várias pessoas passaram.(...) Te
garanto que muitos pensaram que é uma desgraça, mas que também é a realidade,
né?
8
[Outro ponto que] me lembrei, da questão das alternativas, eu acho assim... Qual o
limite dessa discussão? Por exemplo, eu acho que tem uma galera da Educação
Ambiental legal, que está fazendo toda uma discussão das vivências, das
experiências, experimentações... Pessoal que trabalha com povos tradicionais ou
economias alternativas, economia solidária e tal. Eu acho ótimo, acho que tem
sim algo importante, mas faltam exatamente o debate mais crítico, entender o
seguinte, isso não vai se replicar naturalmente do dia pro outro. Eu acho legal pelo
seguinte... Você pegar uma economia solidária, pegar a Agroecologia, pegar o modo
de vida dos povos tradicionais, o modo de vida quilombola, porque eles mostram
objetivamente que existe possibilidade de você viver de outra forma. O que eu mais
vejo, quando estou com os povos tradicionais, é isso, quando eu estou no quilombo,
numa comunidade indígena ou estou numa comunidade de pescadores é o que eu
vejo, que aquelas pessoas são felizes do modo que eles vivem, que é o modo
comunitário. Então, significa que existem outras formas de se viver bem, você pode
ser feliz, sem precisar ser dessa forma burguesa, branca, eurocêntrica, capitalista,
industrial.. Mas, daí você transpor e achar que um dia só, porque isso é legal, eu vou
mostrar isso pro burguês e um dia todo mundo... Ou [mesmo] achar que o
capitalismo vai tolerar... Aí (...) fica uma idealização boba, né?
É isso, a comunidade indígena vai sobreviver enquanto o capital (...) [não souber
que] aqui tem uma mina de não sei quantos trilhões... (...). Então, essa idealização
assim fica muito romântica, então, acho que está o limite, né? É muito bacana, a
Ecovila... Eu orientei uma menina que estudou Ecovila, ela fez um balanço mundial,
né? É uma tese que vale a pena ser lida. Ela falou de um limite hoje reconhecido no
movimento de Ecovila.. É uma classe média que vai e se organiza uma vila
alternativa, mas aquele que tem dinheiro acaba sendo aquele que dirige a Ecovila,
porque tem dinheiro... (...)
Alexandre: Fred, algumas questões eu antecipei, não foi? [ “Que autores
marcaram/marcam sua formação e militância? E sendo a Revista Trabalho
Necessário uma revista que acolhe mais as reflexões críticas especialmente as do
materialismo histórico... “Como enxerga isso para a questão do ambiente e como
em seus trabalhos?” Acrescento essas duas: (...) Que tipo de Educação Ambiental
atrapalha mais do que ajuda? Que tipo de Educação Ambiental a gente ainda
9
consegue fazer? E como você as políticas que envolvem o Meio Ambiente,
atualmente?
Frederico: Então tá! Vou, mas deixar assim, vou responder pontualmente [as duas
primeiras] pra facilitar a vida. Então, assim, autores que me inspiraram desde o
começo, né? Marx, evidentemente, né? Paulo Freire desde o começo, Saviani
também, o próprio Gaudêncio [Frigotto], foram leituras importantes no começo da
minha formação. Depois foram chegando alguns autores, assim como muita força, o
Sartre durante um tempo, (...) Mészáros, os frankfurtianos de um modo geral. E mais
recentemente o Jameson e na América Latina em particular, o Enrique Dussel...
Assim de longe, assim, o cara [Dussel] mais impressionante que eu vi em termos
de domínio desses autores e pensando, a partir da América.
(...) A importância do materialismo histórico na questão ambiental é total, né? (...)
Sociedade e a natureza não tem como pensar [de outra maneira sem se desejar]
caminhos para superar o que se passando, sem entender que sociedade é essa e
que interage com a natureza, que tem um metabolismo, [de como] a natureza
evolui... (...) E sua destruição em massa da vida como um todo...Pra mim sem
marxismo é impossível entender a questão ambiental, entender o que se
passando atualmente no planeta.
Que tipo de educação atrapalha mais do que ajuda? Acho que, assim, eu não vou
classificar tendências que atrapalham, acho que têm posturas dentro de certas
tendências que atrapalham muito. Então, por exemplo, pego muito o que o Phillipe
[Layrargues] classificou como Educação Ambiental pragmática, essa mais me
preocupa, até [mais do que os] conservadores stricto sensu (...) [Muitas vezes, os
conservadores estão] querendo realmente discutir questões de ecossistema, de
biodiversidade... Então, acho [que é até] mais transparente naquilo que quer, tem
limite, no meu ponto de vista, porque é isso... [Esse viés conservador] quer discutir
uma preservação ambiental, uma proteção ambiental, um amor à natureza, um
respeito à biodiversidade como se fosse uma questão individual, ética, pessoal e
não entra nas questões das relações sociais que define a materialidade desse
processo e as possibilidades... Mas, acho que tem uma Educação Ambiental
pragmática que apresenta posturas muito mais preocupantes, que é essa coisa de
que “tudo se resolve a partir daquilo que eu faço”. É tudo muito pragmático, assim,
10
descartam teoria, descartam reflexão sobre o mundo e vão muito pro [sic] para o
“faça sua parte”, ‘resolva e vamos em frente”. Isso é muito preocupante, não o
“fazer a nossa parte”, evidentemente. Por isso, que eu falei de postura, porque fazer
a nossa parte tem que fazer... Claro, é evidente que não vou desperdiçar coisa,
jogar, deixar a torneira aberta, né? Claro, não faz sentido nenhum, mas quando você
coloca como se resolvesse a questão, se cada um faz o que pode e as coisas
vão se resolver, [só vai se] deslocar pro indivíduo, é cair numa lógica individualista, é
não compreender as determinações sociais, é não compreender que esse indivíduo
se constitui em sociedade. Portanto, também é um indivíduo contraditório que
carrega suas contradições, seus limites de classe, enfim. Então, eu acho que
banaliza o processo pedagógico e leva à uma simplificação e leva à uma ilusão,
gera, eu vi isso objetivamente em vários projetos, né? As pessoas ficam iludidas
achando que estão [sic] resolvendo o problema, né? E, por exemplo, isso em escola
eu vi resultados que não é assim, quando você estimula demais a coleta seletiva
com premiação, sem fazer o projeto pedagógico propriamente dito, muitas vezes as
pessoas passam a consumir mais, ela não repensa seu consumo, porque ficam
aliviadas que estão destinando pra reciclagem, pro reaproveitamento. Isso acontece,
vi isso em escola, em condomínio, entendeu? Isso cria um alívio para as pessoas.
Então, é aquela história assim, se eu tomar coca-cola vai reciclar o pet, então, é tudo
legal, o cara toma quatro litros de coca-cola. O problema é que a coca-cola não é
exatamente a pet, o que vão dizer de você que não quer reciclar a garrafa pet, né?
Entendeu?
Alexandre: Você lembrou, meus alunos sabem dessa história... A história de que eu
tinha um aluno, que fazia gincana... Um dia ele se deu conta que a meninada estava
trazendo muito óleo pra reciclar, começou fazer um cálculo de óleo por criança...
E aí: “O que vocês estão fazendo?”. “Ah, professor, agora a gente frita tudo pra
poder ganhar a competição, a gente frita tudo que pode”. Então, é essa a
compreensão. E outra coisa... De uma forma mais macro, acho que até o ano 2000,
um dos maiores investidores em Meio Ambiente era Souza Cruz, é quase uma
indulgência, né?
Frederico: Pois é! Essa pra mim é a pior, as posturas dentro da Educação
Ambiental pragmática, na classificação que o Philippe [Layrargues] fez, é a mais
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preocupante, é a que tem mais aderência... Claro que também limite na visão
conservacionista... (...) [Aí no máximo] pensam em política pública em Educação
Ambiental, mas como uma coisa restrita ao diálogo, como se as contradições do
capitalismo não fossem determinantes e como se as questões de classe não fossem
significativas...
Alexandre: A ideia do “Conciliatório”!
Frederico: É! Uma visão conciliatória, exatamente! Isso me preocupa também do
ponto de vista político, porque ela se mostra como um discurso crítico, mas na hora
de apresentar os encaminhamentos, principalmente no que diz respeito à política
pública, vai pro [sic] tom conciliatório. É muito frágil e muito aposta nesse negócio de
diálogo como se fosse problema de diálogo... Como se o problema do MST com o
agronegócio fosse uma questão de não diálogo. É um projeto de sociedade
diferente. Então, acho que tem aí, uma vez ouvi de um desses, tem que lembrar que
no Brasil tem, o Brasil é muito grande, tem espaço pro pessoal do agronegócio, tem
espaço pra Agroecologia como se fosse uma questão de espaço. Não tem espaço
pra Agroecologia porque tem um projeto de campo liderado pelo agronegócio,
encarnada pelo agronegócio, né? Que não é isso, não cabe Agroecologia. A questão
é outra, eu diria que são dois limites consideráveis, essa visão “crítico liberal” e a
visão “conservacionista”, mas, ainda assim, a que preocupa mais é a pragmática,
que tem um discurso que cola muito fácil. É um pouco do que a gente estava falando
da extrema-direita. Quando se fala do bem e do mal, é muito fácil. Opa! Isso aqui é
beleza pra fazer, é como você falou, “ah, vou e frito tudo” depois a gente recicla
óleo e tudo legal e vamos em frente. Putz, isso é perigoso, é muito perigoso, no
momento atual é o mais perigoso...
Vou responder essas duas próximas questões [“Como as questões políticas que
envolvem o meio ambiente atualmente?” / “Governos anteriores foram diferentes
quanto às questões políticas para o meio ambiente?”] em bloco...
elementos visivelmente de continuidade do governo, porque o Brasil é isso, é um
país periférico do capitalismo, capitalismo dependente... E cumpre um papel na
geopolítica e na economia mundial muito claro. Esse movimento de
desindustrialização, reprimarização, expansão do agronegócio exportador de
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matéria-prima... Isso não é de agora, é um lugar que pode entrar o governo que for,
isso não vai mudar muito, você consegue obviamente criar mais ou menos limites.
Mas ao mesmo tempo você está ali fomentando o agronegócio, produzindo políticas
pra agricultura familiar, pra Agroecologia que foi o caso do governo PT, tentou ali
conciliar. Beleza, pro agronegócio, segue aí, vocês são os carros-chefes do nosso
PIB junto com petróleo, mineração e tal...[sic]. Então, é preciso entender que um
elemento, uma continuidade visivelmente. Eu também não tenho essa idealização.
Ah, no governo PT tudo mudou... Não, não é isso, [trata-se de um] país capitalista
periférico, mas, é claro, você tem que considerar que isso não é um elemento
menor...Há uma análise conjuntural, não pra comparar o governo PT com
Bolsonaro. Porque eu conheço outros colegas da esquerda que pensam assim...
Não! [Precisamos garantir] ao menos o campo democrático que vai reforçar políticas
sociais importantes, garantir certos direitos, impedir uma coisa avassaladora no
campo... (...) Ainda tem o aspecto ideológico: o governo [atual] é altamente
conservador, fascista, então é isso... Não eles [fascistas] querem isso, mas
querem aniquilar todos aqueles que eles consideram que não tão [sic] dentro da
norma. Então é isso aí, exterminar pobre, exterminar negro, exterminar LGBT,
exterminar quilombola, exterminar indígena porque isso é um resquício de
humanidade que tem que ser eliminado do planeta, então vem todo um arcabouço
ideológico, vem junto e torna a coisa [ainda mais] absurda. Então... elementos de
continuidade, nesse sentido do lugar econômico político do Brasil, mas obviamente
isso é qualificado de um modo completamente diferente com uma política econômica
de liberalização total e acabar com qualquer amarra do ponto de vista trabalhista,
normativo legal da política ambiental.
realmente uma intolerância total e isso impõe a gente uma série de necessidades
de luta de sobrevivência, algo que a gente nunca tinha vivido dessa forma. Talvez
na época da ditadura, mas mesmo assim tem situações atuais que você fala:
“caramba, acho que nem na época da ditadura, isso aconteceu dessa forma”. Por
exemplo, você tem hoje no governo muito mais militar do que durante a própria
ditadura. um nível de censura, de perseguição, identificação de pessoas que são
críticas ao governo, vem sendo um negócio absurdo, é isso. Essa subjetividade
chegou nas redes, então, você é censurado pelos próprios bolsominions, não
precisa nem ser o governo, não é nem o Estado brasileiro, [ou seja] você tem uma
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malha feroz. Os caras ameaçam, os caras matam, vão atrás, perseguem. Isso
realmente é algo muito ruim, é muito diferente, que legitima o que sendo feito, isso
não existia em nenhum outro governo anterior. Então, tem uma marca muito forte,
além dessa liberalização total, flexibilização das políticas ambientais, agora uma
política (...) perto de passar o rodo no licenciamento ambiental, [estão vindo com o]
auto licenciamento, algo absurdo, o cara que vai ser empreendedor e vai se auto
licenciar, é a mesma coisa, sei que pedir pra mim, né? (...) É o limite do
impossível, (...) pedir pro [sic] empreendedor se auto licenciar é um erro, ele mesmo
vai se estabelecer regras? “Olha só... Eu estou querendo explorar petróleo, então
vou estabelecer a regra do que eu vou/devo fazer”.. Coisa de maluco. (...)
Alexandre: É assustador, assustador! Então, quando foi você falou assim, quando
se compara com a ditadura, não sei nem se na ditadura tinha bem isso...
Frederico: É... e pensando assim nos rumos... Em relação ao agronegócio, acho
que é o que aí, é uma força econômica enorme, que está no interior e que possui
uma força política total. Eles definem governadores do centro-oeste, definem
prefeito de grande parte das regiões do Brasil... [E vão assim] liberando agrotóxico,
flexibilizando acesso às terras mais variadas, áreas de proteção, território indígena,
eu acho que a tendência é o agronegócio expandir cada vez mais... Sei que existe
um conflito interno dentro no agronegócio, uma galera que é hard mesmo, bota tudo
abaixo e vamos em frente, mas tem um pessoal do agronegócio que é visto
inclusive, como ambientalistas. É curioso isso, né? Claro que “sustentável” pelo
ponto de vista do próprio capital, né? Garantir o mínimo de razoabilidade no
processo até por questão de reprodução do próprio agronegócio, uma tensão que
acho que pode explodir para o agronegócio “mais ecológico” pode ir pra frente. [De
qualquer forma] eu acho que o agronegócio vai ser dominante por muito tempo.
Não vejo nenhuma perspectiva de ser o contrário. Acho que Agroecologia pode
entrar mais um governo mais à esquerda, pode avançar, pode efetivamente do ponto
de vista de política pública ganhar espaço e se consolidar como uma alternativa.
Mas acho que vai ficar muito circunscrito aos limites, desde que não atrapalhe o
agronegócio. (...) Gera alguma esperança que o grupo visto como ambientalista
dentro do agronegócio ganhe mais força, talvez com outro governo ganhe realmente
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mais força e favoreça um agronegócio menos destrutível que o atual, mas é
sempre agronegócio...
Em relação à Educação, eu acho que vai ter que desempenhar uma batalha violenta
(...). A Educação ainda é algo que está sendo explorado, que ainda tem o lastro de
exploração... E os setores que fazem essa exploração na Educação? Tem um peso
econômico e político maior do que tem atualmente, não estão consolidados como o
agronegócio, mas é uma força sem dúvida nenhuma. Também é uma coisa que se
você for ver, vem desde os governos do PSDB, passou pelos governos petistas,
chega na atual lógica da privatização, de tratar como sujeito prioritário o
empresariado, enfim... Que tem diferença que é isso liberais de fato na época do PT
e agora são conservadores fascistas, né? Então, a Educação ganha um ar de
disputa ideológica, do ponto de vista econômico é a mesma coisa, de privatizar,
sucatear ensino público e por vai desvalorizar a carreira do docente, flexibilizar as
formas de contratação do professor, enfim, a lógica é a mesma. Mas, agora tem o
ideológico, não é um mais qualquer, é não pode tocar em certos assuntos e por
vai, uma perseguição visível dentro dos espaços da Educação... [Quer dizer] ainda é
um espaço têm mais possibilidade de disputa a curto prazo, eu acho que a gente
tem possibilidade de conseguir reverter alguns aspectos ainda que o movimento seja
muito forte, acho que tem espaço pra luta dos trabalhadores, pra gente recuperar um
certo prestígio da Educação pública, recuperar, redemocratizar a universidade,
entende? No sentido das eleições dos seus reitores, seu corpo diretor, de recursos
para pesquisa, que é o que acabou, né? Noutro governo, eu vejo como uma
possibilidade a curto prazo, de maior liberdade de possibilidade de conversa sobre
certos assuntos. [De forma semelhante, num novo governo], acho que a gente tem
melhores perspectivas comparativamente com o agronegócio.
Mas não quer dizer que são excelentes perspectivas, porque acho que do ponto de
vista do trabalho a gente muito mal, dada às condições de hoje, o nível de
precarização da condição do trabalho do docente é impressionante, as formas de
contratação hoje. Hoje mais de 50% não são concursados. Então, existem várias
formas de contratação, [inclusive] as mais precárias que vão criando prejuízos reais
ao trabalho pedagógico e num desenvolvimento de qualidade. Porque, [sic] o
cara ser contratado por tipo “uberização”, literalmente, ser contratado por hora que
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alguém faltou, você cobrir a pessoa... Pior ainda, o cara está lá, vai trabalhar uma
coisa que nem é área dele imediata, a condição da própria vida do professor a
possibilidade dele se qualificar, de ter tranquilidade de vida, de estudar. Eu acho que
nesse sentido a gente muito mal e não vejo reversão a curto prazo não, eu vejo
mais no sentido do campo ideológico de uma revalorização do espaço público, da
universidade, da redemocratização no sentido de reocupar certas conferências,
certos espaços de discussão que a gente perdeu tudo, né? (...)
E pra área ambiental, eu falei de modo geral, [vale reiterar] agora é devastador.
Claro que tem uma esperança entrando com um candidato mais à esquerda, para
recompor, como tenho visto falas do Lula, enquanto candidato favorito. Ele
incorporou mais elementos de discussões de sustentabilidade, preservação, enfim.
Isso pode ajudar, eu tenho esperança assim, porque ainda que não se avance muito,
que se reverta o que foi perdido. (...) É... A base do Lula vai puxar pra esse lado...
Mesmo porque assim, o empresário “terra arrasada” está vinculado ao Bolsonaro,
né? O grande capital vinculado ao que quer derrubar tudo e explorar ao máximo não
vai apoiar o Lula.
Alexandre: Pode atrapalhar o próprio agronegócio. Esse “empresário da terra
arrasada” pode atrapalhar, pois os mercados internacionais estão todos de olho.
Frederico: Sim, sim! Eu tenho conversado com algumas pessoas do agronegócio e
eles falam isso... Eu vejo com otimismo, assim, o PT, e sei que vai precisar fazer
uma base de um empresariado verde, digamos assim. Tem alguns parâmetros,
senso ético, que entende que exploração tem que ter um limite, pra própria
manutenção da forma de exploração. Que hoje você conviver com esses povos
tradicionais atrai o mercado internacional, né? Que se você manter a Amazônia em
atrai o mercado internacional. Então, acho que o Lula vai por aí, vai recuperar
uma regulamentação forte que tinha no Brasil, retomar a estrutura de Estado que era
importante ao Brasil, IBAMA, ICMBIO, MMA. Ainda que dentro desse limite, de um
capitalismo verde, mas de uma economia mais diversificada. Acho que a gente tem
possibilidades razoáveis no campo ambiental, no campo da educação, vejo menos
no campo stricto sensu, na produção agrícola e também menos, de certa forma, na
questão mineral que é muito destrutiva, feroz. Mas, ainda assim, eu vejo
possibilidade nesses limites de pensar algo mais no capitalismo verde, capitalismo
16
mais democrático, minimamente humanitário. Certos princípios éticos de respeito ao
outro, coisas que hoje a gente não vive. Acredito nisso sim, acho que é uma
possibilidade real pro país.
E assim, então é isso, pensando no imediato como em 2023 e2022, é passar o ano
e ganhar a eleição, ou melhor, não deixar o Bolsonaro ganhar eleição. A médio
prazo imediato, pensando em 2023, e um pouco mais pra frente, eu acredito sim,
nessas possibilidades de uma governabilidade petista moderada com certos
princípios incorporados, de um capitalismo mais verde, uma economia mais
sustentável e maior respeito aos direitos básicos de dignidade humana. E assim,
pergunta que eu faria pra mim mesmo. Rapaz, eu não sei, essa é a pergunta mais
difícil de todas. Não sei! O que vocês estavam pensando quando botaram essa aí.
Alexandre: (...). Então, você pode fazer o fechamento.
Frederico: Meu fechamento é nesse caminhar que eu tenho feito aí, no último livro...
Assim, eu recomendo muito fortemente que vocês tenham fortes raízes nos autores
marxistas, latino-americano, europeu. É claro, uma leitura latina é necessária,
latino-americana pra pensar o mundo. Que vocês possam mergulhar cada vez mais
nisso, sempre abertos para as lutas antissistêmicas, pra essa diversidade que se
apresenta, pra outros saberes também, que é uma coisa que me ajudou muito na
vida, até pra ter serenidade pra enfrentar tudo que a gente vive.
(...) Eu estou chamando atenção pra importância do diálogo com as tradições, olhar
pra essas outras formas de saberes porque isso enriquece muito a nossa
experiência acadêmica, profissional, de vida. E nesse caminhar da construção de
um novo mundo porque eles trazem muitos elementos nessa perspectiva cada uma
no seu modo de pensar o mundo, mas traz muitos elementos pra gente pensar um
outro mundo. Então, vale a pena esse diálogo aí, tradições, marxismo e abertura
para o diálogo.
Alexandre: [Fred, não conhecia esse seu lado de fazer lutas marciais...] De fato é
um homem de luta. Oh, Fred, eu queria muito agradecer a sua generosidade...
Porque você nem sabia como seria aqui, não sabia que seria uma roda de
conversa... E no tempo que a gente está vivendo é muita coisa doar um tempo
assim, é muita coisa, estar aqui por duas horas, sua família entrando aí,
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participando... Então, assim, isso pra mim é tão militante quanto um front muito
evidente, sabe... Tão importante quanto estar no agronegócio, no cerrado diante
dos quilombolas, pra mim é muito parecido ao de dedicar esse tempo que você nos
deu...Hoje foi um dia muito prazeroso e foi uma honra recebê-lo aqui no nosso
grupo. E espero que, em breve, essa interlocução possa acontecer em situações
presenciais, saudáveis e também de luta. Porque acho como você falou, 2022 é
decisivo e a gente vai ter que se mostrar mesmo. porque eles são capazes ainda de
se organizar. E como a gente falou aqui, refletiu aqui, como é um discurso muito fácil
mesmo aqueles que parecem não estar mais com eles, são rapidamente seduzidos.
Te agradeço muito! Agradeço a todos vocês, a gente no momento de se despedir.
É muito legal você ter vindo aqui...
Frederico: Obrigado a todos pela presença e vamos continuar, tem muita coisa pra
falar, conversar. Quem lendo o livro 8aí, depois se quiser, a gente pode marcar
mais um encontro... Tá joia? Agora vou lá cuidar do meu pequeno..
Alexandre: Valeu, Fred! Tudo de bom.
8Frederico refere-se ao livro de Karl Polanyi, publicado pela editora Campus, em 1990, intitulado “A grande
transformação: as origens da nossa época.
18
V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
A LUTA DOS TRABALHADORES É A LUTA AMBIENTAL E VICE-VERSA:
ENTREVISTA COM DERCY TELES1
Entrevista realizada pelo Grupo de Pesquisa Trabalho-educação e Educação
Ambiental (GPTEEA) do IFRJ – Campus Nilópolis 2
Alexandre Maia do Bomfim3
Thiago da Silva Oliveira4
Juliana Rodrigues de Souza5
5Graduanda do curso de bacharelado de Produção Cultural do Instituto Federal do Rio de Janeiro
(IFRJ), campus Nilópolis.E-mail: jully.rodrigues2012@gmail.com .
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8660-7107. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1261988630021649.
4Mestre em Ensino de Ciências pelo Programa Pós-graduação em Ensino de Ciências (Propec) do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ) - Brasil.
E-mail: thiagosilvaoliveira1989@gmail.com; Lattes: http://lattes.cnpq.br/7417803107136987;
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8855-470X
3Doutor em Ciências Humanas-Educação. Professor Associado III do Programa de Pós-graduação
em Ensino de Ciências (Propec) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de
Janeiro (IFRJ) E-mail: alexandre.bomfim@ifrj.edu.br ORCID: 0000-0002-5617-2229.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9426535856477661
2Entrevista realizada no dia 03 de fevereiro de 2022, de forma remota. Resumimos um pouco a
entrevista, assim como editamos parcialmente para facilitar o entendimento. Não obstante,
mantivemos o tom coloquial da conversa.
1Entrevista recebida em 20/07/2022. Avaliada pelos editores em 29/07/2022. Aprovada em
10/08/2022. Publicada em 11/11/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.55419.
1
Nossa entrevistada é Dercy Teles, seringueira, primeira mulher a presidir um
Sindicato de Trabalhadores Rurais na Amazônia, exatamente o mesmo sindicato
que seria liderado depois por Chico Mendes. Antes da presidência e martírio de
Chico, era ela quem liderava os trabalhadores rurais em Xapuri-Acre. Sua formação
política se deu no interior das Comunidades Eclesiais de Base, influenciada pela
Teologia da Libertação da Igreja Católica. O mandato de Dercy no Sindicato iniciou
em 1981, ainda sob o Regime Militar e conforme suas próprias palavras, esteve sob
“duas ditaduras: a ditadura militar e a ditadura dos camaradas homens”. A força de
Dercy não deve ser registrada nesse passado relativamente remoto, porque ela
continuou militando e refletindo a situação dos trabalhadores por muito tempo,
especialmente com esses que ficaram, assim como ela, nas “colocações” e na
própria Reserva Extrativista Chico Mendes. A Dercy ainda tem muito a nos dizer e
vai nos dizendo; ouvi-la é mexer também com nossas próprias convicções políticas...
***
Alexandre: Dercy, vou explicar para você qual a intenção dessa entrevista e logo
depois vamos fazer as perguntas. Eu coordeno um grupo chamado Grupo de
Pesquisa em Trabalho Educação e Educação Ambiental (GPTEEA). É um grupo
ligado à educação, mas sempre reflete sobre educação ambiental. A gente está
fazendo essa entrevista por conta da revista Trabalho Necessário, que é uma revista
da UFF de colegas envolvidos principalmente com a reflexão em
Trabalho-Educação, mas que acolhe várias outras perspectivas, de movimentos
sociais à universidade. Então, viemos conversar com você, de maneira geral, sobre
como você os problemas do Acre, os problemas nacionais que envolvem os
trabalhadores do campo, os trabalhadores rurais, o desafio de ter essa questão
ambiental sendo posta. É um pouco sobre isso que vamos conversar hoje. Eu queria
começar devagar. Você disse que está agora na sede do PSOL...
Dercy: Sim... No momento estou numa rua das mais antigas, uma das primeiras
ruas fundadas na cidade... Estou na chamada Rua Major Salinas, próximo ao
Hospital Epaminondas Jácome, bem no centro antigo da cidade de Xapuri, à beira
do Rio Acre. A casa onde eu estou, o quintal dela, vai para as margens do rio. Essa
casa é onde funciona o diretório municipal do PSOL.
2
Alexandre: Dercy, qual a distância de Xapuri para Rio Branco? mais ou menos
Dercy: Pra Rio Branco? A distância é de 185 quilômetros.
Alexandre: E a estrada, está boa?
Dercy: Ela está razoável, sempre tem uns tapa-buracos, e a gente consegue fazer
entre duas horas e duas horas e meia esse trecho, sem correr muito.
Alexandre: Mas hoje você ainda mora em Xapuri?
Dercy: Eu morei em Xapuri de 2006 a 2017, quando estive na direção do sindicato,
aí, em 2017 a gente perdeu a eleição e eu retornei à minha propriedade na zona
rural, que estava entregue às traças. Eu fui reativar [a propriedade] porque foram 11
anos afastada. Hoje eu moro na zona rural, que fica a 10 quilômetros aqui da
cidade.
Alexandre: É perto da reserva Chico Mendes?
Dercy: Eu moro no entorno da reserva [Chico Mendes], ela está mais ou menos de
três a quatro quilômetros distante de onde eu moro. A estrada de terra que
acesso à reserva Chico Mendes corta a minha propriedade. Toda a movimentação
que acontece lá dentro passa por onde eu moro.
ENFRENTADO DUAS DITADURAS
Alexandre: Vou passar pra [sua] história. Por onde você quiser, Dercy... Se você
quiser resgatar sua infância...
Dercy: Minha história é como a história da maioria dos acreanos. Sou filha de
nordestino que migrou para o Acre na época da guerra... Nasci no seringal. Aos 4
anos de idade meus pais se mudaram para esse lugar que eu moro atualmente. A
gente6foi criado e continuamos morando lá, com exceção da minha irmã que
mora em Rio Branco e do meu irmão mais novo que já é falecido há três anos.
6Referência aos quatro irmãos, na ordem de nascimento: Pedro Teles de Carvalho; Dercy Teles de
Carvalho; Bernadete Teles de Carvalho; Emi Teles de Carvalho.
3
Eu me criei no seringal Boa Vista, na Colocação Pimenteira, que hoje não é mais
colocação7, porque houve uma divisão da área. Com a desvalorização do
extrativismo, a falta de mercado e de uma política de incentivo para o extrativismo,
as colocações foram loteadas e a nossa não foi diferente.
Fiz um pouco de tudo na roça, roçando as estradas de seringa, preparando as
seringueiras pro [sic] corte, ajudando meus irmãos. Sempre tive uma vida ativa,
tanto no trabalho de campo, como no trabalho doméstico. Tanto que hoje, apesar da
idade, moro e consigo administrar minha propriedade, cuidar da criação. eu e
Deus. [São] Os deuses e os anjos que dão a força pra gente continuar essa luta...
Muita gente me pergunta como é que eu cheguei aonde cheguei. Porque muita
gente procura conhecer minha história. Não é comum as mulheres nascidas e
criadas na zona rural terem destaque no campo político e eu comecei a me destacar
quando meu pai morreu. Meu pai faleceu em 1974, eu tinha 20 anos. A minha mãe
era aquela mulher do lar, aquela mulher que o marido escolhia a cor do tecido.
Naquele tempo, a gente comprava a “fazenda”, não se chamava tecido, era fazenda
pra confeccionar as roupas. Meu pai comprava pra ela e pra nós, escolhia o modelo,
ia na costureira. Ele que decidia tudo. Então, quando meu pai faleceu a minha mãe
ficou perdida, e eu fui forçada a assumir o comando, porque meu irmão mais
velho era alcoólatra e a gente sabe que quando a pessoa é dependente é um
problema, nem precisa detalhar... Então, eu assumi a governança da colocação. A
partir daí, eu vou me inserindo no campo político.
Em 1977, é fundado o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Xapuri, que se inicia a
partir dos conflitos que começaram nos anos 1970 com a transição do extrativismo
pra [sic] pecuária intensiva. Os seringalistas começaram a vender os seringais com
as famílias de seringueiros morando dentro. E os novos donos das terras
começaram a expulsar as pessoas e cometer sérias atrocidades. E começou o
grande problema do Acre, que foi o inchamento das periferias, principalmente em
Rio Branco, que é a maior cidade e por ser a maior cidade as pessoas sempre
7“Colocação” é uma média extensão de terra, geralmente área que cabe a uma família, onde se
encontra a casa do extrativista e as plantações de subsistência, rodeadas pela floresta. Cada
colocação é formada por no mínimo por três “estradas de seringa”. “Colocação” é uma expressão
muito utilizada no Acre.
4
migravam pra Rio Branco na expectativa de conseguir trabalho, de ter uma vida
digna.
Nessa história, em 1977 é fundado o sindicato e em 1978 inicia a Teologia da
Libertação aqui no Acre. Capitaneada pelo bispo Dom Moacyr Grechi, que também
partiu pra eternidade, mas, assim, foi um excelente pastor, que ajudou muito no
fortalecimento dos sindicatos e incentivou muito esse trabalho da Teologia da
Libertação, que propiciou a formação política de trabalhadores e trabalhadoras,
assim como eu. Com isso a gente conseguiu fazer o sindicato de Xapuri, (...) um
sindicato reconhecido nacional e internacionalmente, que fez muitas badalações,
muitas lutas, né, nos anos 70, 80... A gente fez muita luta aqui, teve muitas
conquistas também.
Essa formação da Teologia da Libertação, do Moacyr, trazia grandes pensadores,
cientistas pra promover formação pros [...] animadores de grupo, [grupo] que se
chamava Grupo de Evangelização nas Comunidades. Tinha Clodovis Boff, Carlos
Mesters, Leonardo Boff, grandes figuras. Hoje uma colega de São Paulo mandou
uma página de um livro, que o Clodovis escreveu sobre o Acre, que se chama Deus
e o homem no inferno verde”, não sei se vocês conhecem... Ela conseguiu localizar
esse livro e me mandou uma página onde ele me cita.
A gente com essas formações aprendeu muita coisa e continua aprendendo. Essa
conversa que a gente está tendo aqui é uma troca, a gente conta a história e ouve a
história de vocês, essa troca de experiência, de vivência de cada lugar, é uma coisa
que enriquece e fortalece as esperanças de cada um de nós... Então, em 78, eu
ingressei nas Comunidades Eclesiais de Base e comecei a participar dessas
formações dada pela igreja.
Eu fui delegada sindical da minha comunidade, não era comum as mulheres serem
sindicalizadas, as viúvas. Mas, eu me sindicalizei, fui delegada sindical da minha
comunidade e, em 1981, fui a primeira mulher a presidir um sindicato na Amazônia:
o Sindicato de Trabalhadores Rurais da Amazônia. Os sindicatos iniciaram como um
espaço extremamente masculino e eu sempre falo que enfrentei duas ditaduras: a
ditadura militar e a ditadura dos camaradas homens, que eu convivi no sindicato.
Muitos não aceitavam que uma mulher presidisse um sindicato dos trabalhadores
5
rurais. Mas, a gente conseguiu descobrir estratégias e quebrar esse paradigma. Tem
pessoas que me perguntam como eu sobrevivi a isso tudo. Eu descobri que eu tinha
que me nivelar nas informações para debater de igual pra igual com eles, [saber
sobre] os problemas que eram comuns à classe trabalhadora rural naquele
momento, procurei me informar e me nivelar nos debates e por a gente foi
socializando as ideias de homens e das mulheres... A gente conseguiu trazer outras
mulheres pra se sindicalizar. Eu fui a segunda presidente do sindicato de Xapuri. O
primeiro foi o fundador, Luiz Damião do Nascimento, e depois de mim teve o Osmar
Facundo, que também é nordestino, depois do Osmar que entra o Chico Mendes,
ele foi o quarto presidente...
Alexandre: O Wilson Pinheiro não foi presidente do sindicato de Xapuri, ele era de
outro lugar...
Dercy: Do município de Brasiléia, que foi fundado em 1975, fica bem próximo de
Xapuri. [Foi] o primeiro sindicato a ser fundado aqui na nossa região, que a gente
chama região do Alto Acre. Ele [Wilson Pinheiro] era muito parecido com Chico
Mendes, parecido no sentido de lutar. Era um negro de estatura média, uma pessoa
muito simpática e tinha o mesmo carisma que o Chico Mendes, de aglutinar
pessoas, de conquistar a confiança dos trabalhadores, uma pessoa simples e muito
responsável.
Alexandre: Eu ia te perguntar sobre ele. Ele também tinha formação católica?
Dercy: Tinha. Eventualmente ele participava desses eventos de formação, que
aconteciam no mês de julho de cada ano, era uma semana de evento que acontecia
em Rio Branco, na capital do estado.
Alexandre: Ele morreu em 1980. Isso foi um baque muito duro, né? Como foi a
morte dele?
Dercy: Foi muito duro e teve uma repercussão local muito grande. Inclusive, os
trabalhadores de Brasiléia revidaram assassinando um capataz de [da] fazenda [dos
proprietários suspeitos de encomendarem a morte de Wilson Pinheiro]. A primeira e
última vez que eu estive em um presídio foi visitando esses camaradas [os que
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mataram o capataz] que foram presos após esse episódio... Eles ficaram uma
porção de tempo, mas depois foram liberados.
Os fazendeiros, os proprietários das terras, eles nem andavam aqui, tinham os
capatazes, os chamados gerentes, que comandavam as fazendas. Esse [tal
capataz] foi assassinado porque ele era visto pelos trabalhadores de Brasiléia como
um dos mandantes do assassinato do Wilson.
Alexandre: Qual era a maior motivação para esses embates?
Dercy: A principal motivação desses embates era garantir a posse da terra para os
seringueiros, para as famílias seringueiras. Tanto que, a partir dessa organização do
movimento sindical, a gente foi diagnosticando alguns instrumentos essenciais para
fortalecer a luta, um deles foi a alfabetização de jovens e adultos, porque a maioria
era analfabeta... tinha escola para os filhos dos gerentes e dos funcionários que
trabalhavam ali pros [sic] seringalistas e depois pros funcionários dos fazendeiros.
A gente conseguiu fazer, com um grupo de intelectuais, a partir de uma tese de
doutorado da Maria Allegretti, que estudou a vida e o modo de vida dos seringueiros
do Juruá... [A gente conseguiu] elaborar uma cartilha específica pra essa
alfabetização, com palavras geradoras, toda dentro do contexto do vocabulário do
seringal.
A gente começou a abrir escolas alternativas. Havia, digamos, ONGs que
financiaram, como a (...) CEDI, que financiou a elaboração de cartilhas8, (...) e o
próprio Ministério da Cultura. Tinha um departamento chamado de Pró Memória que
investia na Cultura, na Educação, que era do governo, do Ministério da Cultura,
em Brasília. E junto com a alfabetização de jovens e adultos, a gente trabalhou
também a inserção da assistência à saúde. Para resolver o problema econômico,
trabalhamos com a questão do cooperativismo, que culminou com a fundação da
Cooperativa Agroextrativista de Xapuri, inaugurada no ano que o Chico foi
assassinado, em junho de 88 [alguns meses antes do assassinato]. E foi um
sucesso muito grande [a organização dos trabalhadores entorno da Cooperativa].
8Cartilha Poronga era o nome de um conjunto de materiais didáticos destinados à alfabetização dos
seringueiros do estado do Acre. Foi elaborada pelo Centro de Trabalhadores da Amazônia (CTA) com
a colaboração do Centro Ecumênico de Documentação e Informação.
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Infelizmente, depois da morte do Chico teve várias dissidências. Porque começou a
chegar muito recurso e o pessoal começou a brigar e deixou de dar importância para
aquilo que custou tantas vidas (...).
Nessa história toda, além das escolas, da assistência à saúde e de tentar resolver a
questão financeira com a cooperativa, a gente fundou, também em 1985, o
Conselho Nacional dos Seringueiros, para que essa entidade trabalhasse
exclusivamente propondo políticas que fortalecesse o extrativismo e garantisse a
permanência das famílias de seringueiros sobrevivendo do extrativismo. Também foi
criada uma entidade chamada Centro dos Trabalhadores da Amazônia, para
trabalhar exclusivamente a questão da educação e da saúde. Porque a gente
precisava ter um CNPJ para poder receber recursos, tanto do governo, como de
entidades não-governamentais, para investir no fortalecimento dessas ideias. É tanto
que, a gente conseguiu reconhecer as primeiras escolas, a gente conseguiu
contratar os professores, [fazer] reconhecer o material didático utilizado. Tudo isso a
gente conseguiu no primeiro governo eleito depois da ditadura, que foi o governador
Nabor Júnior. Não porque eles fossem bonzinhos, mas porque a classe trabalhadora
estava organizada, a da cidade, da periferia ao campo... Toda a categoria estava
organizada, desde a lavadeira aos trabalhadores domésticos, até chegar na zona
rural.
Nós conseguimos contratar o pessoal, os agentes de saúde, construir postos de
saúde para fazer os primeiros socorros na zona rural (...). Porque acontecia muito
acidente e não tinha ninguém que soubesse fazer nada [sic]. A gente conseguiu
treinar pessoas, até dentista amador que extraia dente e fazia prótese, porque o
pessoal tinha muito problema por causa da falta de educação com a saúde bucal.
Muito problema de dor de dente, de dente estragado, e a gente conseguiu fazer tudo
isso.
Alexandre: Eu fiquei curioso, como foi a sua formação?
Dercy: Olha, a minha formação se deu assim, o meu pai era um dos poucos
seringueiros que dominavam a leitura e a escrita. Ele ensinou a gente a ler e
escrever em casa. Quando ele morreu, eu e meus irmãos sabíamos ler e escrever.
(...) Ler e escrever, não éramos alfabetizados... Porque a alfabetização é uma coisa
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bem complexa, muito mais refinada. Mas, como eu sempre gostei muito de ler,
aquilo que eu não entendia as pessoas foram me ajudando...
Eu consegui um dicionário e fui aprendendo sozinha, nunca tive muito tempo para ir
para escola, porque estava na luta, uma hora eu estava aqui, uma hora eu estava
acolá.
Eu consegui me certificar no Ensino Fundamental e no médio através daquele
provão que se fazia antigamente, a gente se inscrevia, ia lá, fazia a prova e, se
alcançasse a pontuação, era certificado. Não consegui fazer o curso superior por
falta de tempo. Porque tinha que ficar na cidade e a minha vida sempre foi muito
instável, sempre acompanhando as escolas, viajando para outros estados pra [sic]
falar da experiência que a gente tava trabalhando, e não dava pra estudar e
frequentar a escola. Até fiz dois vestibulares, fui classificada na primeira fase para
pedagogia e, na segunda fase, eu fiquei reprovada. Quando as pessoas me
perguntam em qual escola me formei, eu digo “na escola da vida”, que continua me
formando a cada dia.
A SUPERIORIDADE DA RAZÃO
Alexandre: Dercy, você é super bem formada, super articulada, por isso essa sua
política que nos muita coisa... Mas, uma coisa chamou a atenção, no momento
que você assume como presidente, o Wilson tinha morrido um ano mais ou
menos... Era um momento de medo.
Dercy: E assumi em 1981, quando o terror estava instalado, quando estava todo
mundo estremecido. Tem pessoas que dizem que os homens me usaram porque
não tinham coragem de assumir a presidência. Que a presidência sempre foi muito
visada. Mas, a gente articulou algumas estratégias de defesa. Porque o
presidente não é o dono do sindicato, não é ele que decide. Inclusive, nas
discussões com fazendeiros, que eles tentavam me cooptar para eu poder baixar a
guarda (...), para eles conseguirem os seus objetivos, que era desocupar a área, eu
falava: não! (...) Eu aqui em nome de uma categoria e eu estou autorizada a
falar isso que estou falando. Mas você é a presidente! [Interpelavam os fazendeiros]
Eu sou a presidente representante política da classe, eu não sou a dona da classe,
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eu não estou autorizada a decidir pela classe sem ter uma ata registrando que eles
me autorizaram a fazer em tal negociação... E aí, eles me xingavam, sabe. O
presidente da UDR9era, assim, tipo um leão enjaulado, ele gritava, xingava,
palavrão e eu me mantinha calma... Ele não conseguia me tirar do sério.
Geralmente, uma estratégia de quem não está com a razão é fazer com que você
perca a sua, para ficar igual a ele. (...)
Teve uma oportunidade que eu fiquei estremecida sabe, não fiquei apavorada, eu
fiquei preocupada. Todos os poderes do estado estavam a favor do latifúndio e
quando eu estava na presidência, foram presas 112 pessoas, em um “empate”.
Antes de acontecer essa prisão, o delegado mandou me chamar na delegacia e
juntou um pacote de papel em cima da mesa. Que eram os mandatos, as ordens
que ele tinha do secretário de segurança para agir. E para me pedir que evitasse
que o episódio acontecesse. Eu falei: “Olha, teve uma assembleia geral, onde se
discutiu essa situação e eu não posso desfazer o que uma assembleia deliberou.
Infelizmente, está todo mundo ciente do que pode acontecer”. Eu passei trinta dias
dentro dessa área, foi no período da semana santa (...). Eu passei trinta dias dentro
dessa área discutindo minuciosamente o que podia acontecer. Porque o Estado
estava em peso contra a gente, o poder do Estado pesa, mas os trabalhadores
decidiram que íamos fazer o empate. E o empate foi feito (...).
Alexandre: Dercy, nem todos sabem o que é empate...
Dercy: O empate no futebol é quando os dois times fazem o mesmo total de gols.
Na nossa linguagem, o empate era um mutirão de pessoas que ia dialogar com os
peões e com os capatazes, do chefe do desmatamento e convencê-los a desistir
do desmatamento pacificamente. Ia homem, mulher, criança, ia todo mundo e se
denominou de empate. Empatamos a derrubada.
Eu não participei de nenhum empate porque, como estratégia, nessa época matava
tudo que era gente de cabeça... Tinha sido assassinado Wilson Pinheiro
recentemente, então eu não ia, nem eu e nenhum presidente ia aos empates.
Tinham outros diretores, mas a gente ficava fazendo o trabalho de articulação
política, mas não ia porque eles tinham que se desiludir de que matar o presidente
9União Democrática Ruralista
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não resolvia... Porque a luta continuava, porque a luta não era do presidente, mas
do sindicato, [que] era uma luta de classe. Nesse período, Chico Mendes era
vereador do MDB. Na época existiam os dois partidos: A ARENA e o MDB10, e
tinha uma ala progressista dentro do MDB. O Chico Mendes se identificava com
esse pessoal, se identificava com a luta do povo, como Aluísio Bezerra, (...) tinha
Arthur Virgílio, do Amazonas.
Nesse período, da minha primeira experiência como presidente, o Chico dava apoio
político na câmara. Ele denunciava da tribuna tudo que estava acontecendo e dava
suporte para gente, assim como o [bispo] Moacyr e os padres da nossa paróquia.
Tinha um grupo da universidade do Acre, inclusive uma dessas pessoas era doutor
em enfermagem e ajudou na formação dos agentes de saúde da zona rural.
O Chico terminou o mandato filiado ao PT, mas no PT não conseguiu se reeleger a
nada, nem para vereador e nem para deputado. Ele fez várias tentativas, mas não
conseguiu. O primeiro vereador do PT no Acre foi o presidente do Sindicato de
Xapuri que me sucedeu em 1983, ele tinha que se desincompatibilizar para assumir
a cadeira de vereador e aí o Chico assumiu a presidência do sindicato.
Alexandre: Muitos foram ameaçados. Por que o Chico foi martirizado?
Dercy: Olha, o Chico levou mais ou menos 10 anos sobrevivendo em ameaças. Por
ser a pessoa que mais se articulava nacional e internacionalmente, ele conseguiu
arranjar muitos aliados e, como ele foi aos Estados Unidos denunciar a abertura da
BR 364, que liga Rondônia ao estado do Acre, que foi uma estrada extremamente
perversa... Ela [essa estrada] foi feita de uma forma desordenada, sem nenhum
estudo de impacto ambiental. O Chico fez essa denúncia pro [sic] banco que estava
financiando a obra e isso criou uma rixa muito grande por partes daqueles que
tinham interesses na abertura dessa estrada. Ele também denunciava a questão do
desmatamento, da pecuarização dos seringais. [Esses seringais] que estavam
sendo devastados para dar lugar ao pasto e à criação de gado intensiva.
O estado de Rondônia foi desconstruído e reconstruído dentro de uma outra lógica
dessa cultura, porque também era um estado extrativista, mas se você chegar
10 Aliança Renovadora Nacional e Movimento Democrático Brasileiro
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hoje, tem gente de todo lugar do Brasil e até de outros países, mas você não
encontra os originários. Os que ainda existem, estão nas cabeceiras dos rios, no
isolamento dos índios Suruí. (..).
O Darly Alves e seu filho (Darcy Alves) foram apenas bodes expiatórios [os
assassinos condenados pela morte do Chico Mendes], mas, na verdade, tinha todo
um complô que articulou esse assassinato. Tanto é que... São 185 quilômetros,
numa estrada de terra na época e, no período chuvoso, que foi dezembro, mas, uma
hora depois do tiro que assassinou o Chico, o jornal que pertencia a uma das figuras
que mais odiava estava fazendo a cobertura. Então, se imagina que estava tudo
preparado para acontecer naquele dia, naquela hora. Porque a gente conhecia a
estrada, a gente tinha absoluta certeza que era impossível, no período de uma hora,
andar 185 quilômetros numa estrada de terra, no inverno e cheia de buracos, em
Xapuri... (...).
Alexandre: É a expressão do próprio sistema do capital... Um detalhe importante,
até pro [sic] nosso grupo, em que a luta dos trabalhadores convergiria com a
ambiental. O próprio Chico enxergava essa convergência?
Dercy: Teve uma distorção. Na verdade, o Chico não era ambientalista ou um
ecologista propriamente dito, mas ele defendia a permanência da floresta e dos
trabalhadores que sobreviviam dela, automaticamente, ele defendia o meio
ambiente. Mas, na verdade, o foco da luta dele mesmo era as condições de vida
para as pessoas que nasceram, cresceram e viveram da floresta. Tanto que, a gente
idealizou a Reserva Extrativista Chico Mendes como um modelo de reforma agrária
específico para os seringueiros. Porque os assentamentos, esses tradicionais que o
governo fazia, a gente sabia que não funcionavam. Aqui, o primeiro
assentamento que o governo fez no estado do Acre, que foi o governador Jorge
Kalume, no final dos anos 1960, você pode perguntar, ninguém conhece, porque os
bem-sucedidos vão comprando os lotes dos menos sucedidos.
Quando eu estava no sindicato, o INCRA vivia me mandando ofício perguntando se
o sindicato tinha interesse em desapropriar o seringal Aquidaban. E eu me
perguntava, mas que seringal é esse? O Aquidaban foi desapropriado nos anos
1960. Mas, era uma segunda desapropriação, porque o governo desapropriou,
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assentou, os assentados venderam, virou duas ou três fazendas, se não me
engano... E o INCRA queria desapropriar pra assentar de novo. Eu falei, não faz
sentido, o povo vai ficar no assentamento onde tem pasto e que o governo não
dá assistência para que eles possam produzir?
A CENTRALIDADE DA LUTA DE CLASSES
Alexandre: [Agora] Queria caminhar no período que você entra no PT... O PT
daquele momento é um partido progressista, de intelectuais, de pessoas dos
movimentos sociais, cria uma grande esperança, de maneira geral... Como é que foi
esse período: a relação com o Estado, a questão agrária, a ecologia?
Dercy: Olha, é lamentável, mas foi uma grande decepção... O rebanho bovino
nunca se multiplicou tanto como no período que o PT governou. Hoje, o rebanho
bovino do estado do Acre é maior, mais populoso do que a população do Estado,
tem mais boi do que gente. Então, isso é uma contradição muito grande e que deixa
a gente muito triste, porque a gente lutou muito para construir esse partido. Suou a
camisa, gastou o solado do sapato e teve essa grande decepção e o mais triste e
revoltante é eles usarem o nome do Chico, dizendo que os sonhos do Chico
estavam sendo realizados. [Especialmente o sonho:] “Que era o homem sobreviver
da floresta com dignidade”. Agora me diga que dignidade é essa? As famílias
ficaram numa situação de vulnerabilidade total, porque eles não conseguiram
construir uma política de geração de renda para garantir sua sobrevivência com
dignidade... Então, os que eram seringueiros naquela época foram forçados a
virarem criadores de gado, porque é o produto que tem mercado garantido.
Alexandre: E a luta sindical, a luta de classes?
Dercy: A luta sindical praticamente foi anulada. A maioria dos sindicatos foram
subornados. Passaram a ser cabos eleitorais. Com cargo de confiança no governo,
deixaram a causa dos trabalhadores de lado. E quem se atreveu, como eu, modéstia
à parte, não me vendi. Eu fui muito perseguida, muito marginalizada. Você precisava
ver no dia da eleição do Sindicato de Xapuri, parecia eleição do município. Você
olhava a rua na frente do sindicato e tinha chapa branca, deputado do secretário,
do chefe de gabinete, tudo que é gente do governo fazendo pressão e fazendo
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campanha pra chapa deles, que era chapa da situação. Mas, a gente conseguiu
vencer três eleições. Na quarta a gente perdeu. Eles conseguiram comprar o
presidente da atualidade, que foi secretário geral do sindicato na minha primeira
gestão e vice-presidente na segunda. Na terceira, houve uma inversão, ele foi
presidente e eu fui a vice dele. E olha que eu investi nesse cara, era a grande
expectativa da minha vida... Porque ele era um jovem e eu investi alto na formação
dele, para que ele desse continuidade à luta, mas infelizmente essa questão da
corrupção é uma coisa que parece estar no sangue da maioria dos seres humanos...
Eu não sei se aquilo foi articulado propositalmente, porque a primeira coisa que ele
fez foi começar a roubar o dinheiro do sindicato e eu não poderia ignorar...
Convoquei a diretoria, foi feita uma auditoria, foi comprovado [o roubo] e a gente
seguiu os passos que o estatuto nos permitia, até a Assembleia Geral, que decidiria
se ele seria expulso ou não. Nessa assembleia, o governo entra com tudo, lota o
auditório, e a gente não tinha condições para concorrer, [então] eles conseguiram
manter o cara no poder, para que ele facilitasse o acesso na próxima eleição, como
de fato eles conseguiram.
Hoje ele continua na direção do sindicato, mas o sindicato tem o prédio, não tem
mais nenhuma ação, até porque não tem autoridade. O pessoal que está no
sindicato é todo esse pessoal que o governo cooptou, esse pessoal que passou
esses 20 anos na cola do governo e não apresentou nenhuma política pública que
garantisse a sustentabilidade das famílias na forma tradicional, [que pudesse ser um
caminho] sem devastação, sem que tivessem que virar criadores de boi.
Com que autoridade eles vão questionar o governo atual se eles passaram 20 anos
e não apresentaram nenhuma proposta que viabilizasse a manutenção da floresta?
Eles não têm como fazer [essa] luta, porque eles tiveram 20 anos pra transformar e
nem sequer tentaram.
Alexandre: Hoje eles não podem nem fazer oposição...
Dercy: Eles tiveram um posicionamento no governo idêntico ao da direita.
Trouxeram as madeireiras para roubar a reserva extrativista, empobrecer as
pessoas cada vez mais. Trouxeram tudo o que você pode imaginar que é nocivo ao
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ser humano, eles destruíram as comunidades. Eles destruíram a cultura. Aumentou
o nível de prostituição infantil, de alcoolismo e droga dentro da zona rural. Todo esse
pessoal chama isso de projeto de desenvolvimento dos produtos florestais
comunitários. Mas, não tinha nada comunitário, era tudo feito por empresas que
vinham de fora, que eram contratadas por agentes de fora, que se inseriram dentro
das comunidades destruindo toda organização, todo modo de vida.
Alexandre: E o PSOL está se articulando com os trabalhadores?
Dercy: O PSOL faz essa tentativa, mas, ele tem uma aproximação muito grande
com o PT, inclusive, nas eleições eles sempre fazem aliança... Então, assim, as
pessoas veem e tem gente que perguntou assim pra mim: O PSOL é tão ligado ao
PT, por que por que esse pessoal não fica numa sigla só?
Alexandre: Agora, como é que está o cenário, o governo estadual tem um
representante do latifúndio, né?
Dercy: Está muito difícil Alexandre! Porque teve toda uma desarticulação. Primeiro,
abriram-se as estradas de terra no meio da floresta, levaram-se rede de energia
para o meio da floresta. Ninguém tem mais aquele hábito dos anos 70, do vizinho
visitar vizinho. Todo mundo se fala quando precisa ou se fala por telefone, porque
tem antena, tem torre em tudo quanto é lugar. Não tem mais aquela de parar na
casa do vizinho para tomar uma água ou café, porque todo mundo anda de carro,
anda de moto. Assim, foi um desastre total. Eu sempre digo que eu não consigo ver
um horizonte que se possa voltar a articular esse povo, a não ser quando eles
caírem na real... As escolas que trabalhavam isso, que propiciaram esse
fortalecimento do sindicato no passado, se transformaram em escolas tradicionais.
As crianças sequer aprendem o ofício de trabalhar na zona rural porque eles ficam
naquela ilusão de que se estudam para arranjar emprego e não aprendem a
trabalhar na zona rural, com isso o índice de marginalidade aumentou. O presídio
está com superlotação e essa população, essa juventude, ficou na terra de ninguém.
Eu chamo “terra de ninguém” porque eles nem são rural e nem são urbano [sic], eles
acabam se envolvendo com as facções e terminando atrás das grades.
Alexandre: E como está a reserva Chico Mendes hoje?
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Dercy: Com essa desvalorização do extrativismo, as “colocações de seringa”
deixam de ter importância para quem mora naquele local e eles começaram a
lotear, eu chamo de favela rural. Onde morava uma família, chegou a ter doze e,
como eu falei antes, os bem-sucedidos vão comprando dos menos sucedidos e
acaba ficando um ou dois donos daquela área enorme, que antes era uma
colocação de seringa. Porque as colocações de seringa eram de 400, 500 até 1000
hectares, dependendo da localização, eram áreas extensas. Com esses loteamentos
as pessoas ficam sem ter onde morar e migram para a periferia da cidade. As
propriedades se tornam propriedades de pessoas da zona urbana, que investem no
setor rural para criar boi, mas não mora ninguém. Por exemplo, daqui, nesses dez
quilômetros, se você depender de tomar um copo de água nesse trecho, você não
consegue, porque todas as propriedades têm dono, mas as casas estão todas
fechadas, porque os donos moram na cidade. Eles vão no final de semana olhar o
gado e domingo à tarde retornam. É uma pastagem só! Nesses dez quilômetros,
daqui até onde eu moro, você vai ver floresta onde eu moro. Mas, daqui até lá,
é uma pastagem só...
E na reserva não é diferente, porque não tem como sobreviver sem pensar na
geração de renda para que as pessoas possam adquirir os bens que se tornam
[cada vez mais] necessários, [ainda mais] com a chegada da energia e com a
chegada da estrada. Com a estrada no meio do sol ninguém consegue andar.
Debaixo da floresta a gente andava o dia inteiro. chega a energia e a primeira
coisa é uma televisão, né?
Outro detalhe que também está contribuindo pra esse amortecimento das lutas são
as igrejas protestantes. Porque elas pregam que Jesus está prestes a fazer o
arrebatamento, então, a gente não precisa se preocupar com a situação, porque
Jesus vai levar todos os seus para o céu, e pra entrar no céu tem que entrar na
igreja primeiro... Tem igrejas nos recantos mais longínquos que você pode imaginar,
dentro da floresta...
Alexandre: E nenhuma articulação da igreja católica?
Dercy: A Teologia da Libertação também foi banida. Porque, a gente às vezes se
recusa a admitir que as igrejas são grandes empresas e que elas têm interesses
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capitalistas por trás. A Teologia da Libertação estava levando as pessoas a fazerem
esses questionamentos.
Alexandre: Como foram as eleições de 2018 e qual a perspectiva para 2022?
Dercy: O Bolsonaro teve a maioria dos votos dos acreanos. Como as pessoas não
têm formação política para fazer o discernimento, eles querem saber de se vingar.
[Embora] às vezes eu fale de informação, de falta de instrução, nem sempre é
assim, porque, inclusive um amigo meu, que trabalhou num projeto que eu falei de
educação e saúde, ficou tão decepcionado com as atitudes dos governos petistas,
que se filiou ao PSDB e passou a ser formador político do PSDB. Então, [para esse
caso] não é falta de informação... É, tipo assim, uma forma de manifestar a
insatisfação. De manifestar o ódio. Isso não resolve nada. O que deveríamos ter
feito, era ter sido vigilante. Porque eu acho que uma coisa nos faltou (...): que foi a
gente não vigiar. Eu sempre digo que a gente tem que confiar, mas tem que vigiar
para que antes que o barco afunde a gente possa se salvar. O PT deixou um saldo
tão negativo, que quem defende são aqueles poucos que se beneficiaram. Por
isso a maioria votou no Bolsonaro e no Gladson [de Lima Cameli, atual governador
do Acre], independentemente de ser o que são... E as pesquisas que estão sendo
feitas previamente tão dizendo que, se as eleições fossem hoje, Bolsonaro ganharia
no Acre e o Gladson ganharia no primeiro turno.
Alexandre: Dercy onde você depositaria sua esperança?
Dercy: Nessas conversas que a gente tem, [que possam] despertar a juventude
para retomar a luta, que alguém inicie esse chamamento de retomada da luta de
classes, para poder botar ordem nessa baderna que virou o Brasil. Que é cada um
por um e Deus por todos [sic]. Mas, aqui em Xapuri, que foi o berço da luta no
passado, eu não consigo visualizar muita esperança... Porque os jovens do próprio
Chico Mendes não conhecem a história dele. As filhas do Chico Mendes
participaram de toda essa barbárie que o PT cometeu no governo. Elas estavam
juntas apoiando e legitimando esse falso discurso que [deturpava] os ideais do Chico
[dizendo que] estavam sendo realizados. Tudo em troca de dinheiro.
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Alexandre: Sobre partidos, representação partidária, participação democrática e
futuro...
Dercy: Em relação às perspectivas, no momento são um tanto remotas... Eu, por
exemplo, acredito muito na organização de classe, eu acho que a mudança vai
ocorrer se as classes estiverem organizadas, para, a partir disso, conduzir os
partidos políticos através da eleição. Na representação eleita onde eles ficam e
nós cá, nada vai mudar e a prova aconteceu... Então, a gente tem que aproveitar
todos esses erros que a gente viveu e quando tiver a oportunidade de ter um partido
de confiança da maioria dos brasileiros, quando um parlamentar for eleito [sic], a
gente tome o cuidado de acompanhar e de fazer com que essa pessoa entenda que
ela não é dona do mandato, o mandato pertence a quem o elegeu. Eu, como
presidente do sindicato, sempre usei essa estratégia: eu sou a presidente dos
trabalhadores, não a dona. O mandato pertence a eles, eles me deram e tiram
quando quiser. O problema é que a gente ainda não aprendeu a lidar com essa
função, a gente elege e deixa o cara lá, ninguém procura cobrar o plano que ele
apresentou no decorrer da campanha. Isso é um aprendizado que eu,
particularmente, acho que prevalece.
Em relação ao que fazer para manter a coragem, acho que a questão está em
compreender o nosso papel de cidadão e cidadã, a nossa história de vida, do nosso
país, do nosso município, no nosso estado, da nossa comunidade. Nós temos uma
responsabilidade enquanto cidadãos. As pessoas sempre perguntam como que eu
resisto, porque desde os 24 anos de idade que eu vivo nessa luta. Agora eu dei uma
recuada, mas digo assim: agora eu conto a história e vocês fazem a luta. Não
dou mais conta, mas, o que faz a gente ter coragem é a compreensão do dever. Eu
sempre uso o exemplo da beija-flor: “estava acontecendo um incêndio na floresta e a
beija-flor, um pássaro minúsculo, começou a carregar água no bico, gotículas
d’água, e jogar no incêndio; os outros pássaros disseram, ‘Mas você ficando
louca? Você não está vendo que com essas gotinhas d’água você não combate esse
incêndio?’ e ela responde, “Estou fazendo minha parte, se cada um fizer a sua a
gente constrói o todo, a gente consegue apagar o fogo’”. É isso que mantém a
esperança viva, de que cada um de nós tem que fazer a nossa parte. Se a gente
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não conseguir, não vamos ficar com o peso na consciência. A gente vai saber se
dá resultado ou não se a gente tentar...
Em relação aos partidos políticos, como eu disse, a gente tem que ser vigilante, tem
que estabelecer compromissos. Fazer como o PT iniciou fazendo... No início, o PT
agia assim. Inclusive, o primeiro deputado estadual eleito no Acre foi expulso por
não cumprir o que estava estabelecido no regimento interno do partido. depois
que assumiram os poderes executivos de fato, eles começaram a mudar o
comportamento, porque era cômodo para quem estava lá no poder.
Eu fico muito feliz por ter essa oportunidade de dialogar com vocês e acho que é
trocando ideia que a gente se fortalece e constrói uma nova estratégia de luta pra
esse Brasil, para essa moçada aí, essa moçada que precisa de uma sociedade justa
e igualitária. Porque eu já estou descendo a serra...
Alexandre: Dercy, eu discordo totalmente do “descendo a serra”. Você tem muita
luta ainda pela frente. Agora queria aproveitar para dar realmente o fechamento
dessa conversa. Você está dizendo que está contando história, mas essa história
é importantíssima para gente. Ela precisa ser contada e recontada e não é contar
história, como se fosse pouco, mas o fato de você tentar se organizar para estar
aqui hoje, sei o quanto foi difícil, por isso queria reforçar uma coisa que é o seguinte:
a luta é importante e a gente luta também com as armas que tem. No momento você
nos deu quase duas horas de fala, isso é muita coisa... Temos todas as contradições
pela frente. Os desafios dessa luta de classes que você reivindicou e que eu
reivindico também, essa luta que tem nuances, tem aprendizados, tem revisões... O
que a gente não pode deixar de ter à frente é a compreensão de que ela é
necessária enquanto luta de classes e cada vez isso fica mais claro. É fato que a
gente tem diante de nós alguns desafios, um é, pelo menos, recuperar uma trilha ou
um caminho, trazer, de novo, a luta, a esperança política e, sobretudo, a discussão
política. Agora, eu queria muito agradecer porque você veio firme, como sempre, na
sua integridade, você nos deu muita coisa e muito do que você nos deu a gente vai
[precisar] debater e conversar. Te agradeço muito, Dercy... Foi um dos maiores
momentos do nosso grupo, um momento muito bonito.
19
Dercy: Para mim também foi muito importante, até porque esse período de
pandemia [Covid 19], aliado com o momento político que a gente vivendo, está
afastando muito mais as pessoas, umas das outras, impedindo esses debates de
forma presencial, que é muito mais salutar... [De qualquer maneira,] a tecnologia nos
possibilitou fazer um debate, uma discussão dessas, sem ter que se deslocar. Eu
estou aqui sentada confortavelmente e vocês também...
Agradeço pelo convite, pela escolha, de fazer parte dessa conversa com vocês e
dizer também que estou à disposição para outras oportunidades, se porventura
forem necessárias. Eu tive no instituto de vocês duas vezes, agora é nosso
terceiro diálogo. Eu espero que a gente continue dialogando para fortalecer as ideias
e trocar as experiências que são necessárias. Um grande abraço para todos vocês e
sucesso aí na luta, a gente continua junto...
Alexandre: Obrigado, querida Dercy...
20
V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
AGRONEGÓCIO ACIMA DE TUDO, AGRONEGÓCIO ACIMA DE TODOS:
DESCONSTRUINDO A EDUCAÇÃO ANTIAMBIENTAL DOS HOMENS DE
(AGRO)NEGÓCIO1
Alexandre Maia do Bomfim2
Resumo
Este artigo é desdobramento de uma pesquisa intitulada ‘“O agronegócio e seu rastro de mentiras e
destruição: um estudo sobre trabalho-educação e ambiente na perspectiva da luta de classes". O
objetivo foi estudar a campanha publicitária “Agro: A indústria-riqueza do Brasil”, para destacar seus
objetivos, observar a estética, ressaltar seu conteúdo, mostrar suas contradições. Isso foi feito sobre
as peças publicitárias, compartilhando inferências no percurso da análise. Constatou-se que a
campanha é um velamento de um lado do agronegócio, especialmente antiambiental, excludente e
desigual.
Palavras-chave: agronegócio e meio ambiente; agronegócio e educação; agronegócio e mídia;
hegemonia; educação midiática.
AGRONEGOCIOS SOBRE TODO: DECONSTRUYENDO EDUCACIÓN ANTIAMBIENTAL DE
(AGRO)EMPRENDEDORES
Resumen
Este artículo es una derivación de una investigación titulada '"La agroindustria y su rastro de mentiras
y destrucción: un estudio sobre el trabajo-educación y el medio ambiente en la perspectiva de la lucha
de clases". do Brasil”, para resaltar sus objetivos, observar la estética, resaltar su contenido, mostrar
sus contradicciones. Esto se hizo sobre las piezas publicitarias, compartiendo inferencias en el
transcurso del análisis. Se constató que la campaña es un velo de un lado del agronegocio,
especialmente antiambiental, excluyente y desigual.
Palabras clave: agronegocios y medio ambiente; agroindustria y educación; agronegocios y medios
de comunicación; hegemonía; educación en medios.
AGRIBUSINESS ABOVE ALL: DECONSTRUCTING ANTI-ENVIRONMENTAL EDUCATION FROM
(AGRO)BUSINESS MEN
Abstract
This article is an offshoot of a research entitled '"Agribusiness and its trail of lies and destruction: a
study on work-education and the environment from the perspective of class struggle". do Brasil”, to
highlight its objectives, observe the aesthetics, highlight its content, show its contradictions. This was
done on the advertising pieces, sharing inferences in the course of the analysis. It was found that the
campaign is a veil on one side of agribusiness , especially anti-environmental, exclusionary and
unequal.
Keyword: agribusiness and environment; agribusiness and education; agribusiness and media;
hegemony; media education.
2Doutor em Ciências Humanas-Educação. Professor Associado III do Programa de Pós-graduação em Ensino
de Ciências (Propec) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ)
E-mail: alexandre.bomfim@ifrj.edu.br. Lattes http://lattes.cnpq.br/9426535856477661.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5617-2229.
1Artigo recebido em 17/08/2022. Primeira avaliação em 02/09/2022. Segunda avaliação 19/08/2022. Terceira
avaliação em 01/09/2022. Aprovado em 23/09/2022. Publicado em 10/11/2022.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.55646.
1
Introdução
Lá em cima daquele morro,
Passa boi, passa boiada,
Mas, só passa se for pouco...
Se for do agronegócio...
Segura seu moço
Porque não sobrará um toco (Adaptação da canção popular)
Antes da introdução deste ensaio, vale registrar que é fruto de uma pesquisa
de pós-doutorado realizada entre março de 2020 e março de 2021, ou seja, um
estudo realizado no período crítico da pandemia. Pesquisa que gerou um relatório
intitulado “O agronegócio e seu rastro de mentiras e destruição: um estudo sobre
trabalho-educação e ambiente na perspectiva da luta de classes". Apesar das
adversidades que vieram com a pandemia, o escopo principal foi mantido: estudar o
agronegócio e suas implicações para o meio ambiente, para o trabalho e para a
educação. A primeira parte (de apelo mais teórico) do relatório dessa pesquisa foi
uma breve teorização sobre como esse agronegócio se atrelaria ao conceito de
neodesenvolvimentismo e se contraporia ao conceito de agroecologia. O trabalho de
campo foi realizado a partir de um roteiro para o “centro do agronegócio”, uma
viagem de aproximadamente 3.700km que começou no Rio de Janeiro e se
estendeu pelo interior de São Paulo, sul e noroeste de Minas, até o sul e norte de
Goiás. Outros capítulos importantes tiveram ou terão desdobramentos noutras
publicações, como os estudos que fizemos com as imagens do trabalho de campo,
confrontando com as imagens de satélites, como as entrevistas de educadores
ambientais, pesquisadores, trabalhadores e militantes de movimentos sociais ligados
à questão ambiental (BOMFIM, 2022). O que trouxemos para cá, para constituir este
artigo, foi o quadro analítico sobre a campanha publicitária “Agro, a
Indústria-Riqueza do Brasil”.
Aqui apresentaremos uma análise direta sobre as propagandas de TV (peças
publicitárias) da Campanha “Agro: A indústria-riqueza do Brasil” disponíveis no portal
G1 da Rede Globo (PORTAL G1, 2022). Focamos nessa Campanha da maior Rede
de TV do Brasil, embora outras emissoras também possuam suas campanhas de
apoio ao agronegócio (BAND, 2018), muito por conta de seu tamanho, seu
destaque, por ter sido posta entre as propagandas comerciais, pela apresentação
estética, por sua penetração na sociedade etc. Fizemos um quadro qualitativo que
2
buscou apreender elementos de destaque entre os 140 links disponibilizados no
portal G1. Vale dizer que erros na disponibilização dos vídeos por parte do site,
alguns que se repetem integralmente, como exemplo. Não podemos garantir que
as datas apresentadas no site foram exatamente as mesmas das veiculadas à
época na televisão. alguns temas que reaparecem depois de algum tempo, mas,
nesse caso, é para renovar os números e informações de conteúdo dentro da peça
publicitária.
Pretexto: pode o agro ser tudo?
O primeiro e um dos itens principais que a campanha quer instalar é que “o
agronegócio está em tudo”. Isso é mais importante de se dizer, até mais do que
tentar mostrar a força tecnológica do setor ou do quanto é popular. Mostrar que
dependemos do agro, de que ele é estruturante, cria uma relação de dependência e
de fatalidade ao ponto de ser impossível enxergar alternativas para a sociedade.
Vale ressaltar algumas características gerais antes de inferirmos alguns
pontos mais à frente. As peças sempre iniciam com seus temas após a chamada da
campanha (em que o narrador diz: “Agro: A indústria-riqueza do Brasil”). Pode-se
dizer que são seus próprios títulos iniciais os quais revelam o que a propaganda
intenciona promover, como: “borracha é agro”, “pêssego é agro”, “batata é agro”,
passando por outros que não são itens exatamente da agricultura ou da criação de
animais como “gente é agro”, “pesquisa é agro”, assim vai... Alguns itens
reapareceram em vários momentos, especialmente em novos anos da campanha,
pois em cada ano algumas peças voltam para reiterar o setor e atualizar seus
números. As propagandas, na maior parte dos casos, em relação ao produto em
questão, tentaram demonstrar: a) sua força histórica; b) sua internacionalização; c)
seus números expressivos; d) sua rede, sua malha com outros setores; e) sua
ligação com a tecnologia e pesquisa; f) sua sustentabilidade; g) sua força
econômica; h) sua participação no mundo do trabalho; i) seu valor social etc. O que
buscamos foi ver o quanto essas intenções se sustentam ou o que escondem...
Sobre como estão organizados no Portal G1, simplesmente seguimos a
ordem oferecida pelo site e na data exposta (que estão no quadro 1 abaixo).
Notamos que algumas peças não somente se repetiram em anos diferentes, mas no
3
mesmo e ao lado uma da outra. Caso haja erros, caso haja incompatibilidades, caso
não estejam parelhos com o momento que foram exibidos na TV, não nos coube e
não nos interessou investigar, pois não haveria nenhuma interferência significativa
nisso para nossas análises.
Quadro 1: Analisando os 140 links dos Vídeos (peças) da Campanha Publicitária “Agro: A
indústria-riqueza do Brasil” disponíveis no Portal G1, datados entre 27 de junho de 2016 até 16
de fevereiro de 2022.
Número
do link
em
fevereiro
de 2022
Título (frase
inicial) da
peça
Números na propaganda
Sobre
pessoas
envolvidas
Comentários,
curiosidades,
contradições. A rede
que estabelece...
Sobre
exportações
Sobre
movimentações e
faturamentos
1
Pêssego é
Agro (16 de
fevereiro de
22)
1 bilhão de reais
ano
7 mil
pessoas
Sucos, caldas, licor...
2
Borracha é
agro
28 bilhões de reais
ano
3
Gergelim é
agro
70 milhões de
dólares por
ano
4
Fruta é água
1 bilhão de
dólares (em
2021)
Mais de 5
milhões
5
Agro é gente
(2021)
“Agro é gente” É
mostrado o pequeno
agricultor, mas o que
tem a ver com grande?
6
Pastel com
cana de cana
é agro
7
Orgânico é
agro
8
Abelha é agro
100 milhões de
dólares
Elas polinizam...
9
Batata é agro
10
Acerola é agro
11
Agricultura
familiar é agro
12
Tecnologia é
Agro
13
Cavalo é agro
Plasma do cavalo
serve até para
produção de
medicamentos
14
Romeu e
Julieta é agro
15
Cana é agro
16
Maracujá é
agro
1 bilhão de reais
17
Ovo é agro
48 milhões de
dólares
16 bilhões de reais
18
Agro está
presente em
4
todas as horas
do dia
19
Banana é agro
26 milhões de
dólares
13 bilhões de reais
20
Tempero é
agro
21
Bambu é agro
22
Arroz é agro
23
Carne vegetal
é agro
Novos mercados
24
Pesquisa é
agro
Pesquisa agrária no
Brasil é a mais
avançada em solo
tropical
25
Irrigação é
agro
26
Maçã é agro
40 milhões de
dólares
7 bilhões de reais
27
Energia é agro
Brasil está entre os
maiores produtores de
energia renovável no
mundo
28
Feijoada é
agro
29
Agricultura
familiar é agro
(2020)
Representa 23% de
renda do campo
30
Leite é agro
40 bilhões de reais
4 milhões de
emprego
31
Abacate é
agro
19 milhões de
dólares
32
Couro é agro
1 bilhão de dólares
ano
33
Mandioca é
agro
34
Caju é agro
120 milhões de
dólares
(castanha)
35
Você sabe
quanto vale
um cafezinho?
Quanto vale um
cafezinho?
36
Tecnologia
digital é agro
37
Agro é gente
15 milhões
de pessoas
38
Milho é agro
75 bilhões
100 milhões de
toneladas
39
Produção
sustentável é
agro
Brasil tem como dobrar
produção sem
desmatar. Plantio
direto. Usar área
degradada é um
caminho (Mas, por
quem foi degradada?)
40
Cooperativa é
agro
200 bilhões de reais
209 mil
pessoas no
setor
41
Agro está no
que você usa
42
Pão com
manteiga é
agro
Trigo - 40 bilhões de
reais
5
43
Madeira é
agro
Cultivo de árvore
diminui desmatamento
44
Guaraná é
agro
45
Confiança é
agro
Trajeto do arroz e feijão
(continuam
trabalhando...)
46
Confiança é
agro
Agro na pandemia
47
Produtividade
é agro
Produtividade do
cerrado... 20 a 35% da
área deveria ser
preservada... é? (10%
do café, 50% da soja e
milho e quase a
totalidade do algodão)
48
Bem-estar
animal é agro
49
Goiaba é agro
800 milhões de
reais
6 mil
pequenos
produtores
50
Porco é agro
16 bilhões
Cada fêmea tem 30
leitões ano
51
Tecnologia é
agro
Sobre agroflorestal
52
Feijão é agro
9 bilhões (vemos
atualizações dos
dados)
Ganhou mercado
internacional
53
Uva é agro
(2019)
5 bilhões/ano
54
Tecnologia e
agro
Tecnologia do Nordeste
55
Fruta é agro
4 bilhões
56
Pecuária é
agro
Pecuária de precisão
57
Melancia é
agro
1 bilhão reais
2 milhões de melancia
toneladas
58
Cana é agro
8% da energia do país
por conta do vapor?
59
Horta é agro
Dispensa de
agrotóxicos...
Só o lado positivo
60
Agro é
diversificação
61
Agro é
diversificação
(repetido)
62
Algodão é
agro
41 bilhões de reais
Segundo maior
exportador mundial
63
Gente é agro
8 milhões de
jovens
ocupados
8 milhões de jovens
ocupados com o agro?
Como assim?
64
Frango é agro
62 bilhões de reais
Que orgulho:
crescimento em 42 dias
65
Bicho da Seda
é agro
7 mil
pessoas no
campo
66
Peixe é agro
67
Agro é tech
68
Plantio direto
é agro
Plantio direto é
sustentável
69
Peru é agro
270 milhões de
dólares
6
70
Café é agro
5 bilhões de
dólares
20 bilhões
71
Mamão é agro
900 milhões
72
Irrigação é
agro
33 mil
1,6 bilhão
73
Armazém é
agro
74
Soja é agro
140 bilhões/ano
1, 4 milhão
75
Amendoim é
agro
1 bilhão
76
Boi é agro
76 bilhões
Menor impacto?
E até o chifre vira
berrante.
77
Limão é agro
(2018)
80 milhões de
dólares
1,2 bilhão
78
Agro na Globo
em 2018
79
Manga é agro
60 mil
pessoas
no Nordeste
80
Ração é agro
58 bilhões
Soja e milho nessa
base
81
Palmeiras é
Agro
600 milhões de
reais (só açaí)
82
Abacaxi é
agro
74 mil
pessoas
83
Controle
biológico é
agro
500 milhões por ano
(farmácias)
84
Flor é agro
7 bilhões
200 mil
empregos
85
Erva-mate é
agro
2 bilhões
500 mil
pessoas
86
Cabra é agro
87
Cabra é agro
88
Cabra é agro
10 milhões de cabras
na mão de agricultura
familiar
89
Agro é gente...
90
Girassol é
agro
91
Cavalo é agro
92
Cavalo é agro
(repetiu)
16 bilhões por ano
(roda)
600 mil
pessoas
93
Energia é agro
Energia sustentável...
cínicos
94
Agro é mais
pop e tech
que do você
conhece
95
Coco é agro
1,1 bilhão de reais
700 mil
96
Borracha é
agro
346 milhões de
reais
97
Búfalo é agro
1,1 bilhão de reais
98
Abelha é agro
121 milhões de
dólares
99
Água é agro
100
Presença
feminina no
agro
101
Porco é agro
600 mil
empregos
Serve até para “fazer”
órgãos
102
Batata é agro
3,6 bilhões
7
103
Tomate é agro
(2017)
14 bilhões de reais
104
Mandioca é
agro
11 bilhões reais
Amido na roupa, na
lubrificação...
105
Agro é gente
34 milhões
de pessoas
106
Cogumelo é
agro
Pratos sofisticados...
107
Ovelha é agro
Lã, leite, queijos finos
Agricultores familiares
108
Orgânico é
agro
Versões orgânicas...
Adubo e nutrientes da
natureza, pragas
combatidos pelos
inimigos naturais
109
Castanha é
agro
130 milhões de
dólares
Equilíbrio saúde e meio
ambiente?
110
Boi é agro
5,3 bilhões de
dólares
1, 6 milhão
Maior exportador do
mundo. 215 milhões de
cabeças
111
Trigo é agro
41 bilhões de reais
500 mil
pessoas
112
Agro é tudo!
Remédios, indústria
farmacêutica,
Plásticos
biodegradáveis
113
Ovo é agro
41 milhões de
dólares
39 bilhões de ovos
114
Agro é
tecnologia
Florestas uniformes!?
Películas
transparentes!?
Dobrou a produção?
Agricultura
sustentável?
115
Agro é leite
27 bilhões de reais
4 milhões de
pessoas
Pequenas fazendas
(1,2 milhão)
116
Agro é
cooperativa
117
Cebola é agro
3 bilhões de reais
Flores para a salada,
agricultura familiar (180
mil)
118
Agro é
transporte
Caminhões que
levam...
119
Melão é agro
80 mil (no
Nordeste)
Suco, sorvete,
sobremesas
120
Quem faz a
riqueza do
agro?
Gente?!
121
Cana é agro
52 bilhões de reais
1 milhão
Combustível e muitos
outros elementos
122
Cacau é agro
Amigo do meio
ambiente. 56 milhões
de ovos de chocolate.
Está nas balas
também...
123
Agricultura
familiar é agro
11 milhões
de
trabalhadore
s
4 milhões de sítio.
Metade criação de
frangos e suíno
124
Soja é agro
25 bilhões de
dólares (em
2016)
117 bilhões de reais
(em 2016)
1 milhão
Maior exportador do
mundo. Mais do que
ração animal, biodiesel,
até remédios tintas
8
125
Banana é agro
20 milhões
dólares
14 bilhões de reais
Sucesso no exterior
126
Feijão é agro
9 bilhões de reais
Da agricultura familiar
127
Maçã é agro
4,3 bilhões de reais
Cremes
128
Peixe é agro
4,5 bilhões de reais
1 milhão
Comidas, couro, sapato
129
Agro é gente
(2016)
19 milhões
130
Uva é agro
4 bilhões reais
Vinhos, sucos, sorvetes
131
Dendê é agro
1,250 bilhão reais
Cosméticos,
sabonete...Plantações
na Amazônia em
equilíbrio com o meio
ambiente
132
Madeira é
agro
69 bilhões reais
Floresta plantada?
Maior exportador dessa
matéria. Na escola, na
carteira...
133
Algodão é
agro
13 bilhões reais
Roupas até o jeans que
está na moda. Caroço
vira ração
134
Agro está em
tudo
6 bilhões reais
135
Flor é agro
Alegria, lembrança,
saudade
136
Laranja é agro
1,8 bilhão de
dólares (x 5,12 em
reais em fevereiro
de 2022) igual a 9,2
bilhões de reais
200 mil
Maior produtor e
exportador de suco de
laranja. Suco, óleo,
perfume
137
Milho é agro
6 bilhões
dólares -
receita
43 bilhões reais
Milhões de dados na
variedade de
sementes. Grão mais
consumido no mundo.
Base da ração animal,
etanol, amido do talco
infantil
138
Café é agro
6 bilhões
dólares -
receita 2015
3 milhões
Número 1 do mundo
em exportação. “Tá na
casa, Tá no futuro”
139
Frango é agro
6 bilhões de
dólares de
exportação
50 bilhões reais por
ano
3,5 milhões
de empregos
158 países consomem
nosso frango. Rede
com milho, soja,
caminhões
140
Sabe onde
está a riqueza
do
Agronegócio
brasileiro? (27
de junho de
2016)
Elaboração própria. Fonte: PORTAL G1, 2022.
A culpa é das estrelas...: os artifícios criados pela propaganda do agronegócio
para dar a falsa ideia de sua indispensabilidade
Quando pegamos a campanha da Rede Globo a qual apoia o agronegócio
para analisar, certamente não poderíamos esperar outra coisa que não fosse a
tentativa deles de levantar suas supostas virtudes. Uma forma de mostrar o
9
contraditório é colocar os números nocivos do agronegócio em oposição ao
conteúdo das peças da campanha publicitária, ou seja, trazer a própria materialidade
característica da Filosofia da Práxis (KONDER, 1992). A contrapropaganda
também poderia ser um caminho fecundo, ainda mais se for assentada elementos
de contraposição. De qualquer forma, ainda poderá estar restrita a uma disputa de
discursos, especialmente para os que veem isso de fora, para quem não tem acesso
aos números da realidade, não tem acesso a fatos e/ou que não tem como enxergar
os interesses antagônicos por detrás dessas propagandas. Por conta disso,
queríamos tentar levantar as intenções, os limites e as contradições da campanha a
partir dela própria. Não se trata de uma análise de discurso (ORLANDI, 2009),
quanto metodologia consagrada, mas a apreensão de alguns elementos que
podemos livremente fazer uma interpretação (ANJOS; RÔÇAS; PEREIRA, 2019)
(procurando demonstrar como chegamos até essa interpretação) sobre o conteúdo
das peças. Comecemos pelo conteúdo integral da primeira peça (Sabe onde está a
riqueza do Agronegócio brasileiro?) da Campanha (a de número 140 no quadro,
aparecendo no site como sendo de junho de 2016):
Sabe onde está a riqueza do Agronegócio brasileiro? na roupa,
no carro, na lata, na cara, no móvel, no copo, no passo,
na mesa, na arte, na massa, na pele, no pão, no papo,
na escola, na feira, na praia, na busca, na indústria, fora,
na bolsa, na moda, no pasto... em tudo que o Brasil faz.
em tudo que o Brasil consome. Agro é tech. Agro é pop. Agro é
tudo! Agro, a Indústria-riqueza do Brasil (PORTAL G1, 2022).
A campanha desde o início quer nos mostrar que o agro está em tudo, que
está associado a todos os outros setores da economia, que é responsável direta ou
indiretamente por praticamente todos os produtos que temos e acessamos, que a
nossa vida não pode existir desassociada do que vem da agricultura e da criação
dos animais. É especialmente importante mostrar ao morador da cidade, aquele que
consome leite em caixinha, anda de carro sobre o asfalto, usa celular, precisa se
vacinar, tem suas vestimentas, usa mel, come frango congelado, faz churrasco,
absolutamente tudo que usa e acessa tem origem no setor agrário, mesmo os
produtos manufaturados, mediados pela indústria, inclusive os de maior
complexidade tecnológica: nada, absolutamente nada pode existir sem ter origem no
agro. A estética da propaganda é tão importante quanto o conteúdo, nela é possível
10
ouvir um narrador, supostamente um adulto ainda jovem, que transmite o texto em
forma de rap, enquanto vão se sobrepondo imagens de variadas pessoas, variados
produtos e variados lugares.
Essa primeira ideia da primeira peça é muito bem apresentada, tanto pelo
conteúdo quanto pela forma. Essa peça publicitária o tom estético do que virá nas
próximas, marca a rede que começa no campo e chega à casa das pessoas, mostra
como os itens estão numa malha de relação, mas com destaque à origem de tudo
isso: o setor rural. Não obstante, incongruências nessa ideia e nesse aparato
todo. Há uma retórica que precisa ser revista.
Dizer que tudo vem do agro e que tudo se relaciona é tão vazio quanto dizer
que tudo nasce das estrelas ou que tudo que temos é constituído por átomos. O
agro apresentado como a origem de tudo ou que se relaciona a tudo é uma forma
inclusive de esvaziar o seu próprio conceito, pois fica inclusive difícil de distingui-lo
de outros, difícil de dar seus contornos e suas fronteiras. Enquanto setor econômico,
o agro é do setor primário. O conceito do agro posto de outra forma é uma aporia.
Mesmo porque o conceito que a campanha vai tentando imprimir ao agro, poderia
ser dado à própria compreensão de “natureza”, porque dela sim, quanto um conceito
ampliado, poderia vir tudo. Ao agro pertencem as atividades humanas da agricultura
e da criação dos animais, ainda que básicas, estão no âmbito da Cultura (em seu
sentido mais amplo e antropológico) e na maneira que esses homens processam a
natureza para a reprodução de suas vidas individuais e em coletivo. Definitivamente,
o agro não é tudo!
Apesar do agro não ser evidentemente tudo, a primeira peça mostra aonde
querem chegar, inclusive atribuindo ao agro itens inusitados, como dizer que “agro é
passo”, “agro no papo”, “agro na praia”, “agro na busca”... Quando
fracionamos a propaganda assim, conseguimos ver como foram mirabolantes os
criadores dessa campanha, pois querem dar onipresença ao agro. Como também
não esquecem de mostrar que poder econômico por detrás disso, quando dizem:
“agro fora, na bolsa”. É um jogo pesado, de uma estrutura de poder que de
fato “passa o trator”!
Depois disso, outras intenções são postas nas peças, destacamos a que tenta
mostrar a importância que teria o agro para as pessoas, não somente para o
consumo de alimentos e produtos, mas também para manutenção de suas
11
atividades laborais. Assim, em várias peças apresentação do quanto a atividade
em questão emprega direta e indiretamente trabalhadores e produtores (destaque
aos da agricultura familiar); em vários momentos aparece uma propaganda intitulada
“Agro é gente” (no quadro: 5, 37, 89, e 105), em que se mostra pessoas diretamente
com seu trabalho no campo; em outra peça (a de número 105) do ano de 2017 diz
que o setor do campo emprega 34 milhões de pessoas em suas atividades; em mais
uma peça de 14 de agosto de 2020 diz que o agro emprega 15 milhões, sem
diferenciar essas pessoas3. O “agro é gente” não distingue os trabalhadores, entre
os que são explorados pelo agronegócio, os sazonais e precarizados, entre os que
produzem somente o suficiente para seu próprio sustento imediato em relação aos
produtores de médio porte, os profissionais dos setores gerenciais do agronegócio e
os próprios grandes produtores ou os latifundiários... Claro que não pretendiam fazer
essa distinção, mas vale registar um movimento oposto: trata-os como se fossem os
mesmos, como se fossem iguais! Não obstante, “agro não é pop”!
Outra função da campanha é mostrar a força econômica do setor com
números exuberantes nas peças, ora para mostrar o faturamento (geralmente em
bilhões de reais), ora para mostrar as exportações (em milhões de dólares), ora para
mostrar a produtividade (milhões de toneladas de grãos). Numa peça de 2020 (40 do
quadro 1), como exemplo, intitulada “Cooperativa é agro”, eles apontam que as
cooperativas são responsáveis por quase metade da produção de alimentos por ano
e alcançam 200 bilhões de reais em faturamento4. “Soja é agro” aparece duas
vezes, no ano de 2017 (peça 124), apresenta dois números emblemáticos: o
faturamento de 117 bilhões de reais alcançados em 2016 (também menciona que o
Brasil é o maior produtor do mundo); e em 2019 (peça 74, atualiza para 140
bilhões de reais em faturamento.
Um caminho de problematização desses números poderia estar em mostrar
com outros números da economia como esse setor se estabelece no Brasil.
4Considerando que o PIB do Brasil em 2020 foi de aproximadamente 7,5 trilhões de reais
(https://www.ibge.gov.br/explica/pib.php) , só as cooperativas representariam 2,6% do PIB.
3Essa confusão com os números parece proposital para sugestionar que os números em milhões
(quando se trata de pessoas) ou bilhões (quando se trata de faturamento) venham para impressionar.
Não obstante, mesmo que venhamos a usar os 34 milhões (da peça de 2017), isso revela que em
termos de empregabilidade não é um setor tão expressivo assim em comparação aos demais. A
população do Brasil em 2017 era de aproximadamente 208 milhões de pessoas, 212,5 milhões em
2020, sendo que a população economicamente ativa se encontra geralmente em torno de 65%
(BANCO MUNDIAL, 2017).
12
Confrontar, por exemplo, números de investimentos e subsídios governamentais em
relação ao retorno que o agronegócio devolve ao país, assim como a avaliação de
como tem se dado o incremento tecnológico e participação de máquinas no campo
em relação à dispensa de mão-de-obra etc. Apesar desses caminhos, voltemos às
contradições visíveis na própria campanha.
Uma contradição importante que encontramos na campanha é quando a todo
momento se revela, ainda que timidamente, em muitas ocasiões, o quanto a
agricultura familiar, os pequenos produtores rurais são os responsáveis pela
alimentação da população do país. Enquanto, a maior parte do agronegócio passa
longe da alimentação de sua própria população. Então, o que tenta fazer a
campanha? Tenta fundir a agricultura familiar ao agronegócio, independentemente
da rede que eventualmente exista. A intenção é que no agronegócio caiba o
pequeno produtor e o grande, porém situações em que os negócios correm em
paralelo e em muitos outros casos são diametralmente antagônicos, porque grande
produtor e pequeno produtor estão em lados e com objetivos opostos, onde em
comum o lugar que ocupam: o campo. A intenção da campanha é velar esses
conflitos, por vezes de forma cínica, como as duas peças intituladas “Orgânico é
agro” (7, 108 do quadro). A própria definição de orgânico vai no sentido contrário ao
que tem sido o agronegócio no Brasil, porque, enquanto o Orgânico deseja o
controle de pragas através de mecanismos naturais, distanciamento da monocultura,
uma agricultura diversificada, desenvolvimento de mercado paralelos, uso quase
zero de pesticidas etc., esses seriam caminhos que o agronegócio no capitalismo
não poderia trilhar. “Orgânico é agro” é a própria sofisticação do cinismo e da ironia.
E, dessa forma, continua a campanha da Rede Globo, buscando mostrar que
o agro é sustentável, moderno e includente, quando, na verdade, é exatamente o
contrário. Claro que uma parte dos grandes produtores do agronegócio não se no
lastro do atraso do capitalismo dependente que sempre tivemos, claro que não quer
se ver atrelado aos velhos senhores de engenho, às oligarquias ainda fortes nesta
América Portuguesa. Uma parte do agronegócio procura, no mínimo, garantir uma
capa de verniz a qual lhe permita acessar os mercados do mundo inteiro,
procurando obter certificações e ingressos internacionais para escoar seus produtos
e ainda manter prestígio. O fato é que essa distinção entre empresários clean do
agronegócio de um lado e empresários dirty do outro, é uma situação falaciosa
13
dentro do capitalismo periférico. As peças da propaganda mostram isso e vale
dizer que elas estão interessadas apenas no lado clean desse agronegócio.
Vejamos alguns exemplos, a seguir.
Na peça “Madeira é agro” (item 43 do quadro), o narrador chega dizer: “as
florestas plantadas ajudam a preservar o meio ambiente, o cultivo de árvores pelos
agricultores reduz a derrubada das florestas naturais (...)”. Até dizer: “(...) a
exportação de celulose e os produtos derivados da madeira renderam 12 bilhões de
dólares em 2019, o que faz da madeira plantada o mais importante produto agrícola
brasileiro depois da soja (...)”. Os trechos acima ficam tão estridentes, quando assim
separados, que até esquecemos o quanto esse conteúdo associado à estética da
propaganda nos hipnotiza a aceitar meia-verdades ou mentiras de fato. O narrador
chama de “florestas plantadas” as lavouras de eucalipto5. Como pode isso? E diz
que esse cultivo de árvore reduz o desmatamento. O desmatamento que ocorre nas
novas fronteiras? Mesmo porque onde se planta árvores como lavoura certamente é
porque não mais floresta. Por fim, a propaganda, com orgulho, anuncia que a
madeira plantada é o segundo maior produto agrícola brasileiro em exportação. A
exportação a que se refere é a de celulose e produtos de madeira. Não como não
conjecturar: quanto dessa exportação não sai das madeiras do desmatamento?
E sobre uma possível sustentabilidade ambiental por parte do agronegócio, é
possível? É bem provável que esse é um dos pontos que perpassou várias vezes
pelas peças, onde foi possível ver um esforço para esconder algo importante: o
agronegócio é insustentável em termos de ambiente, o agronegócio é antiecológico.
A peça “Produção sustentável é agro” (39) menciona como soluções para o meio
ambiente: o plantio direto, o uso da área degradada para o cultivo... É inacreditável o
que se ouve nessa peça, o texto diz que será possível dobrar a produção sem
5Esses desatinos não são privilégios da Rede Globo, vale a transcrição de um trecho de uma
reportagem do Jornal da Band de 11 de fevereiro de 2022 para apoiar o uso dos pesticidas pelos
agricultores: [repórter-âncora faz a chamada:] (...) especialistas e produtores rurais repercutem a
aprovação na câmara da nova lei dos defensivos agrícolas (...). [repórter:] seria um sonho se
produtor rural pudesse plantar e colher sem o uso de defensivos, mas é preciso fazer uma escolha...
[entrevistado, pesquisador do EMBRAPA:] precisamos lembrar que os insetos também gostam de
frutas, também gostam de hortaliças... Quem é que gosta de pegar uma fruta, um pêssego, por
exemplo, dar uma mordida e encontrar uma larva de moscas dentro? Você precisa manter umas
medidas de controle... (...) [repórter:] (...) nossos produtores perdem dinheiro, por isso a nova lei de
defensivos aprovada pela Câmara vai ajudar na salvação da lavoura (...), em vez de esperar até dez
anos pela liberação de um produto, a expectativa é que com a nova lei, os pesticidas (...) terão
liberação em no máximo dois anos (....), apenas o ministério da agricultura será o responsável (...)
[pelo] tema (...). [refestela o repórter].”
14
desmatar, desde que sejam usadas as terras degradadas por uma agropecuária
moderna. Ou seja, joga a solução para o futuro ou para situação das contingências.
E a cena alterna uma agropecuária moderna para uma imagem de floresta
preservada, mantém-se, na melhor das hipóteses, a proposta de
“Desenvolvimento(ismo) Sustentável, em que se coloca para as gerações futuras a
solução e não questiona no momento presente a busca desenfreada por aumento da
produção. Na melhor das hipóteses, o que mesmo é uma tentativa de amenizar a
vocação estrutural imposta ao agronegócio pelo capitalismo global, que é a busca de
produtividade imediatamente à revelia dos problemas ambientais (“passa boi, passa
boiada”), escondendo-se numa capa de verniz ao se dizer sustentável. Na peça
“Agro é tecnologia” (item 114 no quadro) vão se revelando emblematicamente, no
texto do narrador, de tal forma que, fora das imagens, não parece ser crível que
consigam dizer isso. Nessa peça falam em “florestas uniformes”, mais uma vez são
capazes de oferecer um termo para esconder, pois são, na verdade, lavouras de
árvores, eucaliptos, pinus, pinheiros etc. Ainda nessa peça (114), dizem que há,
hoje em dia, películas transparentes que dão durabilidade às frutas... Como assim,
películas? Que películas são essas? Que propriedades físico-químicas possuem?
Ainda que sejam boas para alimentação, chama atenção como é negada informação
à população. Definitivamente, agro não é tech.
Certamente, produtores rurais trabalhando por este país, especialmente os
pequenos e médios, os que realmente alimentam a população. Certamente,
também produtores de maior tamanho que cresceram no desenvolvimento de sua
atividade, através de trabalho, ciência, investimentos, inclusive com ousadia.
Sabemos que essas histórias dentro do capitalismo. Elementos da contradição,
semelhante aos trabalhadores que se fizeram e se organizaram ao longo da história
do trabalho, mesmo precisando vender sua força-de-trabalho sob um estado
opressor ou sob o poderio hegemônico de seu patrão, se organizaram em sindicatos
e centrais. Apesar desses senões, não podemos deixar de perceber a estrutura
excludente, nefasta, desumana que alguns setores dentro do sistema capitalista
podem alcançar se não forem freados. O Brasil dos últimos anos vem optando pela
reprimarização de sua economia, está cada vez mais subordinado ao capitalismo
global, enquanto assiste a países que buscam manter e desenvolver seu parque
industrial ampliando suas classes médias e elevando o bem-estar de sua população
15
em geral (como é o caso da China). Ou seja, se o capitalismo é ruim, o que
fazemos é ainda pior. Mesmo que o Brasil ainda continue entre as maiores
economias do mundo, isso prossegue com duas características: 1) ainda muito
longe da força econômica dos primeiros lugares desse ranking, em termos de PIB;
2) e o mais grave, mesmo relativamente rico em comparação ao resto do mundo e
mesmo que eventualmente oscile para cima, os nossos números sociais continuam
e continuarão terríveis, ao menos por bom tempo. Isso ocorre porque sempre
escolhemos que os setores mais atrasados e reacionários nos conduzam dentro do
capitalismo periférico que nos cabe, esses setores que crescem à revelia de sua
população e completamente apartados de um projeto de país. Nas peças (itens 76 e
110 do quadro) com o título “Boi é agro!”, diz-se que o Brasil é o maior exportador de
carne bovina do mundo, mostra como tudo desse animal é aproveitado (até o chifre
vira berrante) e que possuímos mais de 215 milhões de cabeças de gado, quer
dizer, temos mais bois do que gente. Na verdade, essas peças são representativas
do que vamos escolhendo para o Brasil séculos: nunca escolhemos o bem-estar
de nossa própria população, não escolhemos alimentá-la, não queremos sua
participação. Temos condição de alimentar alguns brasis, considerando nosso atual
momento, sem ter que apelar ao avanço das fronteiras agrícolas, basta ver nosso
potencial em criação de animais e do quanto exportamos de grãos para o mundo.
Essa campanha do “Agro: A Indústria-riqueza do Brasil” precisa mesmo ser
fantasiosa, precisa mesmo dizer que nossa criação bovina é moderna e sustentável,
porque precisa esconder que esses mais de 215 milhões de indivíduos estão
pisoteando o solo, estão avançando por áreas de preservação ambiental, estão
liberando gases de efeito estufa e, ainda tem isso, estão longe do que vamos
chamando de bem-estar animal...
Agro não é tudo. Agro não é pop. Agro não é tech. Agro é ruim! E todo
trabalhador do campo, agricultor familiar, todo produtor rural, todos deveriam dar um
sonoro não ao agronegócio. Nós não somos agro(negócio)!
16
Referências
ANJOS, M. B.; RÔÇAS, G.; PEREIRA, M.V. Análise de livre interpretação como
uma possibilidade de caminho metodológico. Ensino, Saúde e Ambiente. V12 (3),
27- 39, Dez. 2019.
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https://www.google.com/search?q=popula%C3%A7%C3%A3o+do+brasil+em+2017&
oq=popula%C3%A7%C3%A3o+do+brasil+em+2017&aqs=chrome.0.69i59l2j0i22i30j
69i64l3j69i60.11686j0j4&sourceid=chrome&ie=UTF-8. Acesso em fevereiro de 2022.
BAND. “Somos Agro” da Rede Bandeirante. Rede Bandeirantes. 2018. Disponível
em:
https://www.band.uol.com.br/videos/conheca-a-campanha-somos-agro-16368447.
Acesso em fevereiro de 2022.
BOMFIM, A. M. O agronegócio e seu rastro de mentiras e destruição: um estudo
sobre trabalho-educação e ambiente na perspectiva da luta de classes. Relatório de
Pesquisa de pós-doutorado. Programa de Pós-graduação em Educação.
Universidade Federal de Pernambuco. 2022.
KONDER, L. O futuro da filosofia da práxis: o Pensamento de Marx no século
XXI. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
KONDER, L. A Questão da Ideologia. São Paulo: Cia da Letras, 2002.
ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios & procedimentos. 8 ed. Campinas:
Pontes, 2009.
PORTAL G1. Agro: a Indústria-riqueza do Brasil. Disponível em:
https://g1.globo.com/economia/agronegocios/agro-a-industria-riqueza-do-brasil/playli
st/videos-agro-a-industria-riqueza-do-brasil.ghtml. Acesso em 17 de fevereiro de
2022.
17
V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
Reportagem fotográfica (acessar fotos)
VIAGEM DE CAMPO:
A EXTENSÃO DO CRIME AMBIENTAL NA BACIA DO RIO DOCE 1
Mahalia Aquino2
Rio Doce: o rio proibido. Vista da janela da residência de uma família de pescadores que se mudaram
para o bairro São Judas Tadeu (Colatina – Espírito Santo) - 10 de junho de 2022.
Autoria: Mahalia Aquino
2Professora de Geografia e Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: mahaliagcaquino@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1716949253761324. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1392-8487.
1Ensaio recebido em 29/07/2022. Aprovado pelos editores em 02/08/2022. Publicado em 10/11/2022.
DOI:https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.
1
“Morar à beira do rio é ter contato com a natureza. Hoje a gente não
tem mais esse contato com a natureza. Antes tínhamos o rio como
algo nosso. Escolhemos ser pescadores pelo direito e ir e vir, e de
ser livre.” Pescadora de Maria Ortiz, vila pesqueira em Colatina (ES).
Junho/2022.
Como pesquisadora do campo Trabalho-Educação, tenho valorizado o que
Edward P. Thompson chama de “história vista de baixo” ou “história vista pelos de
baixo”. Isso significa olhar a sociedade na sua historicidade pelo viés da classe
trabalhadora: operários, camponeses, ribeirinhos, quilombolas e outros homens e
mulheres que resistem como povos e comunidades tradicionais. São histórias de
vida e trabalho tecidas por memórias, tradições, valores e saberes violentamente
apagados pelas narrativas da classe dominante e pelo poderio do capital que
expropria territórios, e com eles, modos de vida calcados em relações estreitas aos
demais elementos da natureza.
Estar presente de corpo e alma nos espaços historicamente ocupados e
reivindicados pela classe trabalhadora; ouvir sobre anseios, vitórias e derrotas são
práticas que inspiram pesquisadores das ciências humanas e sociais e, também a
mim, como trabalhadora. Nessa perspectiva, não me caberia uma pesquisa apenas
ancorada em documentos ou pautada em relatos de fontes secundárias. Seria
necessário ir até a experiência, aos modos de existência e resistência de
trabalhadoras e trabalhadores. Em síntese, é uma possibilidade de apreender a
história sob o olhar daqueles que têm sido subjugados, pelo capital, à condição de
subalternidade.
Acredito que a indignação é o primeiro passo para a movimentação das
engrenagens da mudança. Sendo assim, para a pesquisa desenvolvida no
doutorado em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal Fluminense3, parto da indignação gerada pela forma com que
o meio ambiente seres humanos e natureza em relação –, vem sendo, cada vez
mais, explorado, expropriado e tornado mercadoria pelo modo de produção
capitalista, o qual é hegemônico em relação a outros modos de produzir a vida
social. Não por acaso, destruição, poluição, contaminação, fome, crimes e violência
3Sob orientação da Profa. Dra. Lia Tiriba, que esteve comigo na viagem de campo em junho de 2022.
2
ambiental são visíveis nos territórios ocupados por povos e comunidades
tradicionais.
Para essa reportagem fotográfica apresentada a Revista Trabalho Necessário,
o lócus da viagem de campo consiste na Bacia do Rio Doce4, região diretamente
atingida pelo crime ambiental que repercutiu no rompimento de uma das barragens
de rejeitos minerários do Complexo de Germano Fundão (Mariana MG), em
novembro de 2015. A barragem é de responsabilidade da mineradora Samarco e
suas acionistas, as multinacionais extrativistas Vale e BHP Billiton.
As primeiras localidades atingidas foram os subdistritos de Bento Rodrigues e
Paracatu de Baixo (na zona rural de Mariana). A enchente de lama também destrói o
distrito de Gesteira e centro urbano de Barra Longa (MG). De Barra Longa em diante
a contaminação se estende aos Rios Gualaxo do Norte (primeiro rio atingido), do
Carmo e Doce. A lama chegou a Regência Augusta (Linhares ES), no encontro
com o mar, na tarde do dia 21/11/2015. Veja o mapa abaixo:
4O Rio Doce localiza-se na região Sudeste, banha os estados de Minas Geais e Espírito Santo. Com
extensão de 879 km, o Rio Doce é um dos principais rios da Bacia Hidrográfica do Rio Doce e
abastece mais de três milhões de pessoas. Fonte: https://www.cbhdoce.org.br/institucional/a-bacia.
3
Mapa do percurso do rejeito de Mariana (MG) até Regência (Linhares – ES)
Fonte: Mahalia Aquino (arquivo pessoal)
O processo de chegada da lama até os municípios, distritos e vilas
pesqueiras foi caótico, com muita desinformação e ausência do poder público e das
empresas responsáveis em mediar, controlar e gerar explicações sobre o que estava
acontecendo. A chegada da empresa Samarco na região se resumiu a reuniões às
portas fechadas com comerciários, prefeitos, vereadores, presidentes das colônias
de pesca, enquanto a maioria da população atingida foi excluída, sem saber sequer
o que havia acontecido.
Com esse crime ambiental que devastou o Rio Doce e seus afluentes, os
modos de vida dos trabalhadores mudaram radicalmente. Para as pessoas que
vivem nas vilas pesqueiras foi uma grande tristeza vivenciar a morte em massa de
peixes. Pescadoras e pescadores foram convocados às pressas para salvar o
máximo de fauna antes da chegada da lama na foz do Rio Doce. E com a chegada
da lama, foram novamente convocados para tirar da água toneladas e toneladas de
peixes mortos da água contaminada. Para uma pescadora de Mascarenhas, em
entrevista realizada em junho de 2017, além da lembrança do cheiro forte no ar, “foi
desesperador ver os peixes correndo da água (...)”.
Entende-se que os desdobramentos do crime recaíram, de forma mais
adensada, sobre os pescadores, agricultores familiares, indígenas e quilombolas.
Esses sujeitos vivenciaram o rompimento de suas práticas econômico-culturais
(entre elas as ambientais), que tinham como ponto de partida o Rio Doce como
seus laços históricos de convivência, as formas de subsistência, o trabalho com a
pesca, seus conhecimentos tradicionais, entre outros. Suas práticas laborais e a
relação com o rio foram extintas pelo crime ambiental. Inicia-se assim, um longo
processo de exclusão de inúmeros pescadores e pescadoras de seus territórios, o
que perdura até hoje, quase 7 anos após o ocorrido. A expropriação desses modos
de vida faz parte de um projeto de violência ambiental do capital, que separa
(historicamente) seres humanos e natureza, trabalhadores e seus meios de
produção da existência.
Para essa reportagem fotográfica, tem-se como recorte espacial o estado do
Espírito Santo, margeando o rio principal até o seu encontro com o mar. A pesquisa
de campo ocorreu entre os dias 08 e 14 de junho de 2022 e foram entrevistados: I.
4
Pescadores nas vilas pesqueiras de Mascarenhas (Baixo Guandu ES), Maria Ortiz
(Colatina ES) e Povoação (Linhares ES); II. Trabalhadores rurais no
Assentamento Sezínio Fernandes de Jesus (Linhares ES), do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); III. Lideranças (e ex-pescadores) do bairro
São Judas Tadeu em Colatina ES, juntamente com representantes do Movimento
dos Atingidos por Barragens (MAB) que participaram da atividade da Roda de
Conversa sobre o crime ambiental5. Para realizar a pesquisa de campo, foi utilizado
como meio de transporte o trem de passageiros da Vale que se desloca pela Estrada
de Ferro Vitória a Minas (EFVM)6de Ipatinga (MG) com destino a Colatina (ES)7,
percorrendo as margens do Rio Doce.
Busca-se com esta reportagem fotográfica evidenciar o meio ambiente da
Bacia do Rio Doce após o crime do rompimento da barragem de Fundão e de como
esse ambiente não favorece, ou não propicia mais, as condições necessárias para a
realização do trabalho com a pesca e com a terra. O crime atingiu rios, mar, a
agricultura e a água que não pode ser bebida ou ser utilizada como meio de lazer.
Ou seja, a relação histórica entre trabalhadores ribeirinhos e o Rio Doce entre
seres humanos e natureza fora rompida. Apesar da beleza na paisagem retratada,
a contaminação, as precárias condições de vida e os riscos à saúde, são
evidenciados nas falas e nos corpos da classe trabalhadora ribeirinha, que convivem
diariamente com as consequências desse crime ambiental. Os impactos são
inúmeros, atingindo água, terra, ar, fauna e flora.
Sendo assim, retrato alguns aspectos ambientais da realidade vivenciada por
trabalhadores atingidos pelo crime, os quais tiveram seus modos de vida
expropriados e coexistem hoje com os problemas socioambientais, que estão longe
de ter resolução. Essas fotografias denunciam o abandono e sofrimento que passa a
classe trabalhadora atingida do Rio Doce, que encontra na luta coletiva um meio de
7A intenção inicial do campo era começar por Belo Horizonte, mas por conta das fortes chuvas
durante o verão de 2022 em Minas Gerais, o trajeto está interrompido até a estação Mário Carvalho,
em Timóteo (MG). Sendo assim, a estação escolhida para começar o trajeto pala EFVM, foi
Intendente Câmara, em Ipatinga (MG), pela facilidade de deslocamento por Juiz de Fora (MG), ponto
de partida da viagem.
6A estrada de ferro liga Belo Horizonte (MG) a Vitória (ES) e está sob concessão, até 2027, para a
Vale.
5A roda de conversa foi proposta pela pesquisadora e a orientadora, Lia Tiriba, como parte da
pesquisa de campo para a região.
5
falar sobre suas experiências e de se fazer ouvir. Desejamos que essa reportagem
se some à luta, e que as pessoas e a natureza não sejam esquecidas.
Deixemos que falem as imagens... Link de acesso às fotografias.
6
V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
BRASKEM E BRUMADINHO: O CINEMA E A POESIA EM CARLOS PRONZATO 1
Denise Belo2
Agora
Atravessado como uma estaca
No peito da lama
O corpo é subterrâneo
Gesto petrificado
Na solidão do mineral.
2Licenciada em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora de Língua
Portuguesa na rede municipal de Betim (Minas Gerais). E-mail: deniserbello@hotmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3223495468729899. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7404-6269.
1Ensaio recebido em 10/10/2022. Primeira avaliação 13/10/2022. Segunda avaliação 13/10/2022.
Aprovado em 14/10/2022. Publicado em 10/11/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.56159.
1
Nascido em Buenos Aires em 1959 para o mundo, Carlos Pronzato é escritor,
cineasta, teatrólogo, ativista social e anarquista. O interesse pelo universo
cinematográfico foi herdado de seu pai, Victor Pronzato, que era roteirista e ator,
músico compositor de inúmeras trilhas de filmes, programas de TV e teatro, dentre
outras coisas. Além da inspiração para a sétima arte, o pai tinha uma biblioteca onde
Pronzato iniciou também, ainda na infância, seu gosto pela literatura. Desde então,
Pronzato se dedica à produção cinematográfica e literária, evidência disso é que
lançou mais de 80 documentários e tem algumas dezenas de livros publicados. Seus
documentários são conhecidos por quem circula na militância política pelo Brasil
afora, pois, a maioria dos seus trabalhos tem como recorte questões sociais e
políticas, fundamentam-se em denunciar as tantas mazelas causadas pelo modo de
vida capitalista, culpabilizando seus mais diversos dirigentes: políticos, mineradoras,
organizações, dentre outros.
Uma das principais lutas contra o capitalismo se encontra no âmbito da luta
contra o ecocídio, pois o capitalismo mantém a prática de apropriação e
comercialização da natureza levando ao limite a nossa forma de subsistência,
transformando em mercadoria até mesmo os pedaços das montanhas. Segundo
essa lógica (KRENAK, 2019, p. 23):
(...) tudo é mercadoria, a ponto de projetar nela tudo o que somos
capazes de experimentar. A experiência das pessoas em diferentes
lugares do mundo se projeta na mercadoria, significando que ela é
tudo o que está fora de nós. Essa tragédia que agora atinge a todos
é adiada em alguns lugares, em algumas situações regionais nas
quais a política o poder político, a escolha política compõe
espaços de segurança temporária em que as comunidades, mesmo
quando esvaziadas do verdadeiro sentido do compartilhamento de
espaços, ainda são, digamos, protegidas por um aparato que
depende cada vez mais da exaustão das florestas, dos rios, das
montanhas, nos colocando num dilema em que parece que a única
possibilidade para que comunidades humanas continuem a existir é à
custa da exaustão de todas as outras partes da vida.
Fenômeno inédito na história humana forjado pelo capitalismo é a produção
da vida humana estar centrada na mercadoria, e para tanto é justificável a completa
destruição da natureza em prol de produzi-la incessantemente ao bel consumo. Mas
porque, como dizia Chico Mendes, “ecologia sem luta de classe é jardinagem” é que
se faz fundamental denunciar e inflamar as massas.
2
Por isso, no catálogo dos documentários sociais de Pronzato encontram-se
trabalhos com essa temática ambiental, como é o exemplo do Lama: o crime Vale no
Brasil, feito em parceria com Richardson Pontone, gravado em 2019 após o
rompimento da barragem do Córrego do Feijão em Brumadinho/Minas Gerais,
resultando em 272 pessoas mortas e 6 desaparecidas, além do desastre ambiental
que atingiu parte do rio Paraopeba, intoxicando e matando as formas de vida na
água. Atrelado a esse trabalho está o Alguma poesia para Brumadinho, título que foi
inspirado na obra Alguma Poesia de Carlos Drummond de Andrade, poeta que
sofreu com a mineração desde sua cidade natal Itabira/MG onde surgiu a
Companhia do Vale do Rio Doce, em 1942. Sobre Brumadinho, Pronzato escreveu:
O meio-dia
Cravou seu punhal
Na hora anunciada
E vertical
Nesses versos o poeta revela um dado sobre a tragédia de Brumadinho: o
rompimento da barragem se deu no início do horário de almoço, meio-dia, que é um
horário que mantém os ponteiros na vertical, posição marcante na relação entre a
mineração e a população, pois que não horizontalidade na tomada de decisões,
não diálogo, apenas o lucro sobrepujando a vida. Talvez tenha sido essa a
imagem poética projetada nos versos do autor.
Às margens do rio
Os peixes mortos
O sangue das folhas
E o dilacerado grito
Da paisagem
O rompimento da barragem do Córrego do Feijão espalhou rejeitos tóxicos
por boa parte da extensão do rio Paraopeba, causando a intoxicação dos peixes, o
que prejudicou, também, as comunidades ribeirinhas que tinham na pesca sua forma
de sobrevivência. A aldeia Naô Xohã do povo pataxó hã-hã-hãe, em São Joaquim
de Bicas, às margens do Paraopeba, bem como a ocupação Pátria Livre, do MST,
tiveram suas rotinas alteradas devido ao contágio do rio. Um crime que além de
ambiental configurou-se como humano, tendo não somente precarizado existências,
mas também ceifado vidas, como Pronzato registrou em seus poemas:
3
Dona Vicentina
Viu o filho partir
Funcionário da Vale
Em Córrego do Feijão
O dia foi o mesmo de todos os dias
O som do portão
O beijo no rosto
O até logo
A humanização de sua poesia encontra-se, inclusive, em trazer para os
versos a particularidade, um rosto definido e não abstrato, afinal de contas, o poeta
escreve com os pés nos trilhos. Dona Vicentina é uma das entrevistadas no
documentário. O período de luto na região do Córrego do Feijão em Brumadinho se
estendeu, e dados da Prefeitura de Brumadinho apontaram que o município
registrou alta de suicídio e prescrição de remédios após a tragédia. Os dados da
prefeitura mostram que o uso de antidepressivos por pacientes da rede pública de
saúde foi, em agosto de 2019, 60% maior que no mesmo período do ano de 2018.
Em relação aos ansiolíticos, o crescimento foi de 80%. Por isso, a importância de
transformar a tristeza que estagna na justa indignação que movimenta, transformar o
substantivo “luto” no verbo “luta”:
Queria ver milhares de punhos em alto
Na porta desta empresa
Rios de gente
Interrompendo o silêncio da manhã
Silêncio esse que foi interrompido brutalmente com o rompimento da
barragem no fatídico dia 25 de janeiro de 2019. O documentário, por sua vez,
também cumpre a importante função de denunciar o crime, de deixar registrado para
que não seja esquecido, e serve de instrumento de luta. É uma forma de amplificar a
voz das atingidas e atingidos pelo crime ambiental da Vale, que, aliás, não é o
primeiro: lembremo-nos de Mariana. O documentário Lama, o crime Vale no Brasil
4
conta com mais de 50 entrevistas de especialistas no assunto, moradores da região,
militantes de movimentos sociais e representantes de órgãos oficiais.
Além desse trabalho, no ano passado foi gravado o A Braskem passou por
aqui: a catástrofe de Maceió, documentário que denuncia a petroquímica Braskem
pelo afundamento de cinco bairros na capital alagoana, que vem causando enormes
rachaduras em edifícios e abrindo crateras nas ruas, tragédia que afeta mais de 50
mil pessoas por causa do lucro retirado das minas de sal subterrâneas. O
documentário traz depoimentos de moradores, associações de vítimas, líderes
comunitários, cientistas, militantes de movimentos sociais e representantes de
órgãos públicos.
5
Sobre esse episódio criminoso da ganância capitalista, Pronzato escreveu o
Poemas para resistir: o caso Braskem, uma coletânea com 20 poemas de
resistência feito sobre as ruínas dos edifícios abandonados. Coletânea que também
traz os rostos e amplifica a voz dos vitimados:
Dona Geni
Não saiu da sua casa
Resistiu até o fim
As paredes que escutaram o pranto
Quanto ela nasceu há 90 anos
Decidiram proteger
A última habitante do bairro
Foram solidárias
O teto de antigas telhas
– Testemunhas de chuvas e noites de estrelas –
Decidiu não aceitar as migalhas da Braskem
6
Dona Gení, moradora do bairro Pinheiros, um dos bairros afetados pela
catástrofe, não aceitou deixar sua residência. Resistiu até o fim.
Mas uma noite
A porta se abriu
Para deixar passar Dona Geni
O dia em que seu corpo
Decidiu partir
Os poemas de Pronzato contam história, são registros da vida do povo, do
operário, dos trabalhadores da sofrida América Latina, tão explorada por interesses
capitalistas. Poemas que seguem empunhando palavras e, de modo humano,
traduzindo o cansaço e persistência das lutas contra-hegemônicas que são travadas
em toda região dos tristes trópicos:
Até quando
Os braços vão segurar
Faixas de protesto?
Até quando
As vozes vão insistir
Neste deserto?
Os anos de luta se sucedem
A empresa provoca desistências
Esgota as paciências
Num plano certeiro e criminal
De tempo
O ânimo cede
A saúde vira um fio
Movido pelo vento
Paredes se erguem
Em torno do indivíduo
E a asfixia o elimina
Inexoravelmente
No entanto
Sempre há resistências
E essas empresas
Aliadas de governos
Sabem que tudo tem um preço
Algozes sempre foram pegos
Aqui
Ou no inferno.
7
A Braskem se instalou em Maceió ainda durante o regime militar, nos anos 70,
e durante todo o processo foram acontecendo acidentes sucessivamente,
sinalizando o que seria a presença da mineradora no estado de Alagoas. Desde
então, como disse uma das entrevistadas no documentário, “os lucros são privados
e os danos são coletivos”. As casas começaram a apresentar rachaduras e afundar,
fato que foi descrito no poema intitulado Resistência 1:
O que afunda
Não é uma casa
Paredes
Azulejos
Janelas tampadas com cimento
Portas fechadas
Pela última vez
O que afunda
Não é uma escola
Um Hospital
O campo de treinos
Do CSA
Tijolos infinitos
Como lágrimas de sal
O que afunda
É a luz
Do quarto das crianças
As flores que ficaram
Os gatos perdidos
No silêncio do bairro
O que afunda
Somos nós
Por fim, percebe-se que pelas lentes de sua câmera e pela esfera de sua
acurada caneta, Pronzato constata a situação de opressão e olha para ela com a
justa indignação de que nos fala Paulo Freire. Os documentários de denúncia e os
poemas de testemunho vão se construindo a partir de um olhar de dentro,
sintonizado com outros olhares que testemunharam a tragédia. Seus trabalhos
partem de uma longa trajetória de formação política fazendo-se na prática, de uma
consciência que se sabe sujeito da história. Um olhar que convoca para a luta, não
por pretensão de ser “poema de protesto”, mas por ser o autor um sujeito político,
que traz consigo mesmo, nas plasticidades da sua produção, a rosa da revolução,
flor que nasce do asfalto e, por vezes, da lama.
8
Para assistir ao documentário Lama, o crime Vale no Brasil (2019), acesse o seguinte link:
https://libreflix.org/i/lama-o-crime-vale-no-brasil#:~:text=LAMA%3A%20O%20Crime%20Vale%20no%
20Brasil%204.8&text=Vozes%20amplificadas%20dos%20atingidos%20e,Gerais%20no%20in%C3%A
Dcio%20de%202019.
Para assistir ao documentário A Braskem passou por aqui: a catástrofe de Maceió (2021), acesse o
link https://www.youtube.com/watch?v=zBOJbOGcBwo&t=1028s
Para conhecer mais do trabalho do autor, acesse o catálogo: http://www.lamestizaaudiovisual.com.br/
Canal de Carlos Pronzato no YouTube:
https://www.youtube.com/channel/UCpQbUHc34JoE-j_qQ8UOXCg
Referências
A BRASKEM PASSOU POR AQUI: a catástrofe de Maceió. Direção: Carlos
Pronzato. Brasil: La Mestiza Audiovisual, 2021. YouTube.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 50ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. Rio de Janeiro: Companhia das
Letras, 2019.
LAMA, O CRIME VALE NO BRASIL: a tragédia de Brumadinho. Direção: Carlos
Pronzato e Richardson Pontone. Brasil: La Mestiza Audiovisual, 2019. YouTube.
9
V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
PEDAGOGIA DAS ÁGUAS EM MOVIMENTO: EXPERIÊNCIA DE EDUCAÇÃO
POPULAR EM SAÚDE AMBIENTAL1
Alexandre Pessoa Dias2
Maria Amélia Costa3
Leonardo Maggi4
As águas do Brasil estão poluídas, eutrofizadas, assoreadas, soterradas,
turbulentas, capturadas em barragens, privatizadas e exportadas na forma de água
virtual por meio das commodities agrícolas e minerais.
O Brasil passa por uma crise ecológica derivada da emergência climática,
somada à destruição ambiental produzida pelo agro-minero-hidro-fóssil-negócio em
seu território. A crise estrutural do capital (MÉSZÁROS, 2011), tem ampliado crises
ecológica e sanitária que expande espacialmente e intensifica no tempo a
exploração do trabalho, a mercantilização da vida e amplia a vulnerabilidade
socioambiental e os danos à saúde das populações de baixa renda das cidades, das
periferias urbanas, do campo, das florestas e das águas (DIAS; CARNEIRO, 2021).
De acordo com o Painel Internacional das Mudanças Climáticas (IPCC),
diversas sociedades estão vivenciando efeitos da emergência climática por meio
da redução da biodiversidade, aumento do nível do mar, processos erosivos nas
regiões costeiras e ondas de calor. No Brasil, destacam-se os efeitos dos eventos
hidrológicos extremos, marcados pelo prolongamento das secas, pela frequência e
intensidade das inundações.
4Eng. Agrônomo, Mestre em Desenvolvimento Regional pela UNESP. Membro da Coordenação do
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). E-mail: leobmaggi@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9822623812208586.ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7797-524X.
3Geógrafa. Doutora em Ciência pela Clínica Médica/UFRJ. Mestre em Planejamento Urbano e
Regional pelo IPPUR/UFRJ. Tecnologista em Saúde Pública da Escola Politécnica de Saúde Joaquim
Venâncio (EPSJV/FIOCRUZ). E-mail: maria.costa@fiocruz.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5498261570436385.ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0569-4473.
2Engenheiro civil sanitarista. Doutor em Medicina Tropical pelo IOC/Fiocruz. Mestre em Engenharia
Ambiental pela UERJ. Professor - pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim
Venâncio/Fiocruz. E-mail: alexandre.pessoa@fiocruz.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6160512059771433.ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5594-7221.
1Resenha recebida em 02/05/2022. Aprovado pelos editores em 30/05/2022. Publicada em
10/11/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.54297.
1
Os problemas relacionados ao saneamento ambiental inadequado promovem
a degradação das bacias hidrográficas ampliando a insegurança hídrica; portanto,
um conjunto de ações precisam ser priorizadas para ampliar a capacidade de
adequação das populações diante da agudização dos impactos socioambientais que
não podem ser postergados para as futuras gerações. Os conflitos pela água se
amplificaram! A atuação dos atingidos pelas barragens, ampliada pela compreensão
da determinação social da saúde, está em fortalecer sua capacidade organizativa na
luta pelos seus direitos à saúde pública e pela soberania hidroenergética.
O livro em tela, publicado em 2021, pela Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz), em cooperação
com o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) constituíram, desde o início do
projeto, uma coordenação política-pedagógica (CPP). A publicação resulta da
sistematização do Curso de Educação Popular em Saúde Ambiental em
Comunidades: Pedagogia das Águas em Movimento, realizado em 2019, no
município de Cachoeiras de Macacu, Rio de Janeiro.
O curso objetivou avançar no estudo e desenvolvimento de práticas
teórico-metodológicas e científicas tendo nos princípios da educação popular em
saúde (diálogo, amorosidade, construção compartilhada do conhecimento,
problematização, emancipação e defesa da democracia participativa) aprofundar a
compreensão da realidade capaz de influenciar a organização popular no território,
de maneira que os participantes se reconhecessem agentes transformadores da
realidade.
A publicação foi estruturada em dois formatos - um livro e cinco fascículos que
abordam temas construídos coletivamente pela coordenação política-pedagógica e
com os autores, incluindo: (i) território, caminhos das águas e da saúde ambiental;
(ii) disputas socioambientais contemporâneas e os interesses que cercam nosso
território (iii) acesso e acessibilidade à água no Leste Metropolitano (iv) recuperação
e conservação ambiental: elementos para segurança hídrica no Leste Metropolitano
do Rio de Janeiro e (v) agroecologia e agroecoturismo.
O livro é estruturado seguindo os caminhos das águas, tendo como ponto de
partida (nascente) o território, sua história de lutas pela terra, os sujeitos
pedagógicos, agentes sociais e públicos envolvidos. No capítulo do per-curso do rio,
os afluentes são os princípios do curso: filosofia da práxis, estudo enquanto
2
construção social, organicidade, troca de experiências, auto-organização,
aprendizagem significativa e politécnica (RODRIGUES, 2009).
A estruturação e metodologia do curso são apresentadas enquanto
construção coletiva em constante transformação, utilizando diversos instrumentos
pedagógicos, onde os educadores se colocavam na condição de aprendizes como
preconiza a educação ambiental crítica e a educação popular em saúde. Os
educandos, por sua vez, exercitando a apresentação, seja com recurso dos mapas
falante, da arte e cultura, utilizando filtros de barro como material pedagógico para a
discussão sobre as águas e o saneamento domiciliar, ampliando o diálogo com as
escolas públicas do município. O próprio território em trabalhos de campo se torna o
espaço educador.
No capítulo da foz, a metáfora do encontro das águas representa a riqueza do
intercâmbio entre os saberes acadêmicos e populares e sua ampliação na busca da
compreensão da realidade, a partir de uma educação territorializada.
Os resultados indicam a importância da formação dos agentes populares em
saúde ambiental e as perspectivas de reaplicação dessa metodologia e do material
pedagógico em outros territórios a partir de temas geradores (FREIRE, 2005)
mobilizadores que expressam as necessidades das localidades.
Os fascículos indicam que a saúde foi abordada não como ausência de
doença, no modelo biomédico reducionista, mas a partir da determinação social da
saúde; considerando a necessidade de articulação das categorias produção,
trabalho, ambiente e saúde que não podem ser compreendidas desprovidas de
historicidade (TAMBELINNI, MIRANDA, 2022). Foram temas relacionados à
formação sociopolítica, econômica e ecológica e a constituição histórica do território
por meio das suas relações de conflitos e de cooperação.
A água foi abordada nas perspectivas multiescalares, e multidimensionais e, a
partir daí, foi sendo realizado um processo de territorialização por meio das ações
pedagógicas, de pesquisa e de trabalho coletivo.
A pedagogia das águas, constructo elaborado a partir das experiências da
EPSJV com os movimentos sociais do campo, da floresta e das águas, não apenas
indica a água como tema gerador na acepção da pedagogia freiriana (FREIRE,
2005). A água nos educa, o que possibilita o reconhecimento de sua relação com a
terra e a partir dos caminhos das águas uma compreensão espacial e histórica das
lutas das comunidades pelos direitos humanos à água, ao território e à saúde.
3
O desafio assumido pela EPSJV e o MAB foi de criar uma pedagogia em
movimento, capaz de apoiar moradores a reconhecerem a teia de contradições que
os cercam e os fundam, a partir de uma metodologia que permitisse todos serem
protagonistas pela sua realização, utilizando um arcabouço científico e devolvendo
essa nova interpretação da realidade em que vivem na forma de arte e de luta.
Processos de formação, participação e controle social devem ser ampliados
no país para o enfrentamento do racismo ambiental e das desigualdades
socioambientais a partir da formação de agentes populares de saúde ambiental. Sua
formação possibilitará o reconhecimento de conflitos nos territórios, seus atores,
interesses de classe e o papel dos grandes empreendimentos e do estado, a
exemplo das pesquisas e experiências em educação ambiental crítica, educação
popular em saúde. Seguindo os caminhos da educação territorializada (DIAS et al,
2021; CASTRO et al, 2017) estão ocorrendo outros processos formativos da
EPSJV com o MAB em Santa Catarina. A elaboração desses materiais pedagógicos
territorializados trazem experiências e lutas locais visando a organização
comunitária, necessário para a promoção de territórios sustentáveis e saudáveis.
Espera-se que possam ser reaplicados em outros territórios adequando-os a suas
realidades, como motivadores ao exercício e elaboração de processos de formação
tecnopolítica de outros agentes populares em saúde ambiental.
Referências
CASTRO, G. Curso Técnico em Meio Ambiente, ênfase em saúde ambiental das
populações do campo. In: CASTRO, G.; BÚRIGO, A.C. BRAGA, L.Q.V.;
BARCELOS, E.A.S. (org.). O curso. Rio de Janeiro: EPSJV, 2017. (Coleção Tramas
e Tessituras, 1). Disponível em: https://www.epsjv.fiocruz.br/series/livros/732. Acesso
em 03 de abril de 2022.
DIAS, A.P.; CAETANO, A.P.L.; MAGGI, L.; COSTA, M.A.; BORGES, S.; DINIZ, T.C.
(org.). Pedagogia das águas em movimento: experiência de educação popular em
saúde ambiental. Rio de Janeiro: EPSJV, 2021. Disponível em:
https://www.epsjv.fiocruz.br/pedagogia-das-aguas-em-movimento. Acesso em 03 de
abril de 2022.
DIAS, A.P.; CARNEIRO, F.F. Saúde das populações do campo da floresta e das
águas. In: Dicionário de Agroecologia e Educação. DIAS et al (coord). São Paulo:
Expressão Popular; Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio,
2021.
4
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 44ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria de transição. São Paulo:
Boitempo, 2011. 1102p.
RODRIGUES, J. Educação Politécnica. In: Dicionário da educação profissional
em saúde. Pereira, I.B.; Lima, J.C.F. (org.). 2ed.rev.ampl. Rio de Janeiro: EPSJV,
2009.
TAMBELLINI, A.T.; MIRANDA, A.C. Determinação social da saúde. In: Dicionário de
Agroecologia e Educação. Dias et al (coord.). São Paulo: Expressão Popular; Rio
de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, 2021.
5
V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
DICIONÁRIO DE EDUCAÇÃO E AGROECOLOGIA: A DENÚNCIA E O
ANÚNCIO DE PRÁXIS QUE VISEM À EMANCIPAÇÃO HUMANA1
Anakeila de Barros Stauffer2
Alexandre Pessoa Dias3
Maria Cristina Vargas4
O Brasil sofre, atualmente, uma profunda crise ecológica e, diante dessa
realidade, precisamos analisar o que denominamos de desenvolvimento, fruto do
ímpeto destruidor do capital que se apropria da natureza para manter sua sanha
acumuladora. O Painel Internacional das Mudanças Climáticas (IPCC, 2022)
demonstra cientificamente que vivemos numa época de emergência climática
mundial, de eventos extremos hidrológicos, de ondas de calor, de perda de
biodiversidade, do aumento do nível do mar e da erosão costeira, da espoliação e
destruição ecológica dos biomas. No caso brasileiro, tais eventos são
potencializados pela expansão desenfreada do agronegócio, incrementado pelas
políticas neoliberais, avançando incontrolavelmente com seu modelo de monocultura
hidrointensivo, químico-dependente e exportador de commodities.
Como analisa Mészáros (2011), a crise ecológica é mais uma face da crise
estrutural do capital que compromete a (re)produção da vida, exacerba a espoliação,
reduz os direitos ao trabalho, à terra, à água, às sementes, desmantelando a
democracia e os processos participativos. No Brasil, essa realidade é potencializada
4Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFRJ.
Militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Email: vargasmcristina@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5635160695041865. O
RCID: https://orcid.org/0000-0001-8645-8933.
3Doutor em Medicina Tropical pelo IOC/Fiocruz. Professor-pesquisador da Escola Politécnica de
Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz. E-mail: alexandre.pessoa@fiocruz.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6160512059771433. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5594-7221.
2Doutora em Ciências Sociais e Educação pela PUC-RJ. Pesquisadora e professora da Escola
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz, professora de Educação Especial e Inclusiva do
município de Duque de Caxias (RJ). E-mail: anakeila.stauffer@fiocruz.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3826070513693069. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4089-0891.
1Resenha recebida em 02/05/2022. Aprovado pelos editores em 30/05/2022.Publicado em
10/11/2022.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.54296.
1
pela fragilização das instituições do Estado e das políticas públicas de proteção
social e ambiental. Tal conjuntura impingida pelo capital e suas grandes
corporações, exige uma análise multiescalar e multidimensional, para que possamos
criar estratégias de reversão deste quadro.
Considerando a materialidade da vida sob o capital, e visando contribuir para
processos de resistência e de defesa da vida, foi organizado o Dicionário de
Agroecologia e Educação uma produção coletiva coordenada pela Escola
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) junto ao Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e com parceira da Editora Expressão
Popular.
O referido Dicionário busca dialogar com um público diverso educadores/as
e educandos/as das escolas do campo, das florestas, das águas e das cidades,
envolvidos em distintos processos de educação e de formação, estudantes e
trabalhadores de áreas como saúde, meio ambiente e agrárias, militantes nos
processos formativos e de organização da classe trabalhadora.
A obra é composta por 106 verbetes, escritos por 158 autores/as
(educadores/as, militantes, pesquisadores/as) de 68 instituições e universidades
públicas de pesquisa, institutos federais de educação, movimentos sociais, ONG’s e
redes. Como as veias da América Latina ainda sangram, envolveu autores de, pelo
menos, três países latino-americanos – Brasil, Guatemala e México.
Esta miríade de sujeitos possibilitou explicitar na obra que, desde suas
origens, a Agroecologia desenvolve metodologias de trabalho popular e diagnósticos
da realidade que, articuladas a sistemas de aperfeiçoamento e inovação horizontais
dos agroecossistemas, produzem uma diversidade de iniciativas nos distintos
biomas do país. A organização dessas experiências pelos movimentos populares
camponeses converteu a Agroecologia em diretriz programática e como único
projeto viável para o campesinato brasileiro, organizando forças para o
enfrentamento ao agronegócio.
A obra demonstra que a Agroecologia se anuncia como terreno fértil na
criação de novas relações de trabalho que visam a emancipação social, promove a
saúde nos territórios, a elaboração de políticas públicas que efetivem a soberania
alimentar, defenda a vida, a saúde e o ambiente. Dessa forma, a Agroecologia
compromete-se com a humanidade e seu futuro, numa perspectiva de totalidade.
2
A obra também explicita a relação entre Agroecologia e Educação,
ressaltando que as experiências educativas agroecológicas precisam estar
baseadas nos fundamentos e nas matrizes teóricas da Pedagogia do Trabalho e da
Educação Popular. A Educação é compreendida como ferramenta decisiva para a
construção de novas relações que intencionem a emancipação humana, mesmo
estando cerceada pelas relações sociais configuradas sob o capitalismo. A obra
almeja contribuir na constituição da consciência, fortalecendo e aprofundando a
ação educativa do/a educador/a do campo e da cidade, compreendendo que os
seres humanos são produtos deste tempo histórico, mas podem transformar as
circunstâncias e a si mesmos, se autoeducando enquanto sujeitos coletivos.
Interessante ressaltar, numa obra desse porte, sua construção metodológica.
Inicialmente foi realizada consulta às pessoas e instituições parceiras que produzem
sobre Agroecologia, para que indicassem verbetes para sua constituição. Com este
primeiro conjunto de potenciais verbetes, agrupou-se alguns conceitos e temáticas
em verbetes síntese e estabeleceu-se eixos agregadores. A partir desta organização
realizou-se uma oficina, em junho de 2018, no Rio de Janeiro, para que o material
fosse apresentado e discutido coletivamente. A partir desta oficina aprimoraram-se
os eixos, suas ementas e os verbetes. Constituiu-se, assim, quatro eixos: 1.
Metabolismo socioecológico: questão agrária, sociedade e natureza; 2. Agroecologia
e bases ecológicas da agricultura; 3. Organização popular, agroecologia e Estado; e
4. Educação, Saúde, Cultura e Agroecologia.
O primeiro eixo discute a complexa interdependência entre seres humanos e
natureza, analisando tal relação inscrita no modo de produção capitalista tardio que
cria o antagonismo campo e cidade, o conflito entre o agronegócio e o campesinato,
a depredação da natureza e a superexploração do trabalho, entre outros. Identifica
também os sujeitos que se rebelam, se organizam e lutam contra o sistema, suas
propostas e elaborações teóricas, na construção da Agroecologia. Aborda, enfim, as
tecnologias que impulsionaram o desenvolvimento do capital no campo e a
industrialização da agricultura, e as modernas tecnologias de manipulação da vida.
O segundo eixo Agroecologia e bases ecológicas da agricultura traz o
debate sobre a Agroecologia em sua dimensão de ciência, fornecendo as bases
teóricas e metodológicas para o manejo sustentável dos agroecossistemas,
estabelecendo o diálogo entre os conhecimentos tradicionais e os sistemas que
usam os recursos locais para minimizar a necessidade de insumos externos. Os
3
verbetes deste eixo trazem os princípios centrais da Agroecologia
compreendendo-a como um campo multidisciplinar de conhecimentos e das
práticas agroecológicas enquanto estratégias dos agricultores familiares, povos
indígenas, povos e comunidades tradicionais que lutam por autonomia e segurança
alimentar, nas suas relações internas e com o meio no qual estão inseridos.
O terceiro eixo Organização popular, agroecologia e Estado abarca a
Agroecologia como elemento dinâmico da totalidade de um projeto emancipatório
dos povos, não circunscrita a um projeto autárquico do campesinato, mas sim, a
uma perspectiva de superação da ruptura metabólica empreendida pelo
desenvolvimento do modo de produção capitalista. Nessa perspectiva, a
Agroecologia se relaciona dialeticamente entre a organização popular e o Estado,
uma vez que seus sujeitos trabalhadores do campo e da cidade se articulam e
se mobilizam, realizando o embate em torno dos aparelhos estatais e da efetivação
de políticas públicas.
O quarto eixo Educação, Saúde, Cultura e Agroecologia explicita a
necessidade de novas exigências formativas, na interface entre natureza, trabalho e
cultura em contraposição à pedagogia do capital. A relação entre Agroecologia e
Educação tem por centralidade o trabalho no campo, desenvolvido pelos
movimentos e sujeitos sociais em luta na direção da emancipação social
relacionando-se com a defesa da vida, da saúde e do ambiente, numa perspectiva
de totalidade. Fundamenta-se, assim, nos pressupostos da Pedagogia Socialista, da
Pedagogia do Movimento, da Educação do Campo e da Educação Popular. Engloba
as distintas formas de produzir e reproduzir a cultura e o conhecimento nos
processos educativos formais, não formais e informais, fomentando a constituição de
novas relações e práticas sociais.
Quem deseja sentidos fixos e imutáveis não se debruce sobre a obra. Sua
riqueza se encontra justamente na ousadia de apresentar uma diversidade de
concepções sobre a Agroecologia o que possibilitou a criação de conceitos, assim
como a ressignificação de alguns. O debate propiciado pela obra envolve, portanto,
convergências e contradições que explicitam a não neutralidade na construção do
conhecimento, entendendo-o como aproximações sucessivas sobre a realidade.
4
Referências
DIAS, A. P.; STAUFFER, A. B.; MOURA, L. H. G. e VARGAS, M. C. Dicionário de
Educação e Agroecologia. São Paulo: Expressão Popular; Rio de Janeiro: EPSJV,
2021. Disponível em
https://www.epsjv.fiocruz.br/publicacao/livro/dicionario-de-agroecologia-e-educacao.
Acesso em 07 de abril de 2022.
INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE (IPCC). Climate Change
2022: Impacts, Adaptation and Vulnerability. Summary for Policymakers. IPCC:
Working Group II to the Sixth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on
Climate Change, 2022. 36 p. Disponível em
<https://www.ipcc.ch/report/sixth-assessment-report-working-group-i/>. Acesso em
17 de dezembro de 2021.
MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria de transição. São Paulo:
Boitempo, 2011.
5
V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
CONTRADIÇÕES ENTRE TRABALHO, CAPITAL E VIDA: “A ASSIM CHAMADA
ACUMULAÇÃO PRIMITIVA” E SUA ATUALIDADE HISTÓRICA1
Mahalia Aquino2
Lia Tiriba3
Resumo
São analisados trechos do capítulo XXIV de O capital, de Karl Marx (2013), articulando-os à problemática
das relações seres humanos/ natureza mediadas pela produção destrutiva do capital e, em particular, pelas
políticas anti-ambientais do governo Jair Bolsonaro. Destaca-se a importância da obra no atual momento
em que o agronegócio e neoextrativismo destroem a flora e a fauna, desestruturando os modos de vida de
povos e comunidades tradicionais. Conclui-se que “a assim chamada acumulação primitiva” pode ser
considerada como acumulação permanente do capital, e que os crimes ambientais têm levado às últimas
consequências as contradições entre trabalho, capital e vida.
Palavras-chave: Karl Marx. Acumulação primitiva. Crime ambiental.
CONTRADICCIONES ENTRE TRABAJO, CAPITAL Y VIDA: LA ACTUALIDAD HISTÓRICA DE LA
LLAMADA ACUMULACIÓN PRIMITIVA
Resumen
Son analizadas citas del capítulo XXIV de El Capital, de Karl Marx (2013), articulando a la problemática de
las relaciones seres humanos/naturaleza, mediadas por la producción destructiva del capital y, en
particular, por las políticas anti-ambientales del gobierno Jair Bolsonaro. Se destaca la importancia de esta
obra en el actual momento en que el agronegocio y el neoextrativismo destruyen la flora y la fauna,
desestructurando los modos de vida de los pueblos y comunidades tradicionales. Se concluye que “la
llamada acumulación primitiva” puede ser considerada como acumulación permanente del capital, y que los
crímenes ambientales han llevado a las últimas consecuencias las contradicciones entre trabajo, capital y
vida.
Palavras-clave: Karl Marx. Acumulación primitiva. Crimen ambiental.
CONTRADICTIONS BETWEEN WORK, CAPITAL AND LIFE: THE HISTORICAL TOPICALITY OF “THE
SO-CALLED PRIMITIVE ACCUMULATION”
Abstract
Excerpts from chapter XXIV from The Capital, by Karl Marx (2013), are analyzed, being articulated with the
question of human beings/nature relations, mediated by the destructive production of capital and, in
particular, by the anti-environmental policies of Jair Bolsonaro’s government. The importance of such a work
is highlighted in the current moment when agrobusiness and neo-extractivism destroy the flora and fauna,
disorganizing the ways of life of traditional peoples and communities. It is concluded that "the so-called
primitive accumulation" can be considered as permanent accumulation of capital, and that environmental
crimes have led the contradictions between work, capital and life to the ultimate consequences.
Keywords: Karl Marx. Primitive accumulation. Environmental crime.
3Doutora em Ciências Políticas e Sociologia pela Universidade Complutense de Madrid. Professora
do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense.
E-mail:liatiriba@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2006259738336754.
ORCID: http://orcid.org/0000-0003-0117-4160.
2Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense.
Professora de Geografia. E-mail: mahaliagcaquino@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1716949253761324. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1392-8487.
1Artigo recebido em 03/07/2022. Aprovado pelos editores em 18/07/2022. Publicado em 10/11/2022.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.55199.
1
Introdução
Data de 1867 a publicação do Livro I de Das Kapital. Kritik der politischen
oerkonomia de Karl Marx. Interessante observar que, 155 anos depois, o capítulo
XXIV intitulado “A assim chamada acumulação primitiva” mantém sua atualidade
histórica. Sabemos que os textos se tornam clássicos pela sua capacidade de
transcender determinadas épocas históricas e, sendo assim, ajudam-nos a
compreender a realidade em que vivemos.
Na verdade, os escritos de Marx (2013) sobre o segredo da acumulação
primitiva, bem como o conjunto de sua obra sobre a sociedade produtora de
mercadorias nos ensinam que é infinita a ganância voraz dos homens de negócio,
ou melhor, daqueles que vivem da exploração do trabalho alheio. Ao longo da
história do capitalismo, a riqueza tem sido produzida à custa dos seres humanos e
dos demais elementos da natureza, o que significa não apenas a força de trabalho
se tornou uma mercadoria, mas a própria natureza.
Sendo parte integrante da natureza, sofrem os seres humanos e não
humanos; sofre também o Planeta Terra, ameaçado por pandemias, secas,
alagamentos e outras manifestações da natureza enlouquecida pelo
antropocentrismo e pelos desmandos do capital. Como advertia Engels (1979) em
“Dialética da Natureza”, as relações entre seres humanos e natureza, por serem
construídas em mão dupla e não de forma unidirecional, algum dia, mais cedo ou
mais tarde, poderia chover torrencialmente no deserto de Saara se dele retirarmos
uma grande quantidade de areia. O autor se refere nessa passagem de sua obra
que, a forma predatória e destrutiva com a qual agimos sobre a natureza, gera
consequências que modificam, permanentemente, todo um ecossistema.
Neste presente artigo, analisamos, em primeiro lugar, alguns trechos do
Capítulo XXIV de O capital, de Marx (2013), indicando sua atualidade histórica. Em
seguida, ao articular a problemática atual das relações seres humanos e natureza
mediadas pelo capital, reproduzimos notícias veiculadas em redes sociais que
atestam o caráter anti-ambiental das políticas públicas no governo Jair Bolsonaro.
Destacamos a relevância deste capítulo da obra de Marx (2013), tendo em
conta o atual momento em que o agronegócio e neoextrativismo têm destruído a
flora, fauna e desestruturando modos de vida de povos e comunidades tradicionais.
Por fim, indicamos que “a assim chamada acumulação primitiva” pode ser
2
considerada como a acumulação permanente do capital (BRANDÃO, 2010, p. 51),
resultado das contradições entre trabalho, capital e vida e que os “crimes
ambientais” tornam-se manifestações do processo dessa acumulação nos territórios.
Pecado capital e o segredo da acumulação primitiva
No capítulo XXIV, a crítica realizada por Marx (2013) teve como propósito
desmitificar a categoria acumulação primitiva do capital. Utilizada pelos economistas
clássicos, esses defendiam que o fenômeno havia se dado em um momento
histórico e que se constituiu como a base necessária para a acumulação do capital
e, portanto, para a constituição do modo de produção capitalista. Por ainda ser
compreendida como algo que ocorreu em um passado distante, chamamos a
atenção que o autor inicia sua argumentação apresentando elementos
historiográficos que nos indicam que as expropriações da acumulação primitiva são
parte integrante dos processos de expansão e dominação contínua do capitalismo
sobre o espaço geográfico.
Marx (2013) critica a perspectiva idílica de que aqueles sábios indivíduos que
souberam poupar e multiplicar suas riquezas, foram capazes de contratar aqueles
muitos vadios que não acumularam o suficiente para sobreviverem autonomamente.
Deram a esses a alternativa e a quantia (salário) para sua manutenção em troca de
um trabalho prestado. Mas, na verdade, essa perspectiva oculta a essência da
acumulação primitiva. Partindo das determinações desse sanguinário processo, o
autor descreve como ocorreram expropriações de terras dos camponeses na
Europa, afirmando que foi por meio da privação das massas populares de seus
meios de trabalho e de subsistência, que o processo de acumulação do capital teve
seu início.
Marx (2013) aponta que nem mesmo a presença de leis que permaneceram
em vigor por 150 anos, como a “lei de Henrique VII” (em vigor a partir de 1489),
impediu, na prática, que a classe dominante retirasse, de forma abrupta e sangrenta,
os meios de reprodução da vida dos trabalhadores do campo. Sem nenhum
resultado prático da referida lei, as expropriações continuaram avançando sobre as
terras comuns, da Igreja (a partir do século XVI) e do Estado. Foram sucessivas
demolições de casas, expulsão dos moradores e destruição de lavouras. Ocorreu a
expropriação (o roubo, a rapina) nas terras comunais, sendo implementado à força o
3
regime da propriedade privada, transformando os trabalhadores e seus meios de
produção da vida em capital4.
A expropriação dos camponeses, realizada de forma violenta, foi à mediação
necessária para a conformação dos trabalhadores a uma nova dinâmica de social,
cultural, econômica e de trabalho esse último não mais para a
sobrevivência/subsistência coletiva, mas para torna-se mercadoria voltado à
produção de valor. O monopólio da terra significou a divisão entre proprietários e não
proprietários. Ou seja, dá-se a “gênese dos arrendatários capitalistas” (MARX, 2013,
p. 529)5. Em síntese, “a assim chamada acumulação primitiva não é, por
conseguinte, mais do que o processo histórico de separação entre produtor e meio
de produção” de sua existência (MARX, 2013, p. 515).
Importante lembrar que na obra intitulada “A situação da classe trabalhadora
na Inglaterra”, publicado em 1845, Engels (2010) descreve, minuciosamente, a vida
nos aglomerados urbanos, onde, para fugir da fome, os antigos camponeses, agora
como proletariado, passam a viver apinhados, respirando ar poluído oriundo das
fábricas. Indignado, o autor descreve as precárias condições de vida do proletariado
nos bairros feios da cidade: alimentação, qualidade do ar, baixa higiene, lixo,
instrução, a privação dos prazeres/lazer, alcoolismo.
Nesse longo estudo de campo, Engels (2010, p. 69) destaca que se os
camponeses expropriados “têm sorte de encontrar trabalho, isto é, se a burguesia
lhe faz o favor de enriquecer à sua custa, espera-o um salário apenas para manter
vivo; se não encontrar trabalho e não temer a polícia, pode roubar; pode ainda
morrer de fome”. Sobre essa massa de trabalhadores entregues à própria sorte, o
autor assinala que, quando a classe dominante
(...) priva milhares de indivíduos do necessário à existência,
pondo-os numa situação que lhes é impossível subsistir; quando ela
[a classe dominante] está farta de saber que os indivíduos hão de
sucumbir nesta situação e, apesar disto a mantém [a exploração e
expropriação], então o que ela comete [a classe dominante] é um
assassinato, [que dizer um] assassinato social (ENGELS, 2010, p.
136)6.
6No livro “O campo e a cidade na história e na literatura”, Williams (2011) reconhece ter sido Engels
um dos primeiros a ver na cidade moderna uma consequência social do capitalismo. Para além de
5As páginas estão numeradas conforme a versão digital de “O Capital”, da Editora Boitempo que
consta em anexo na seção da revista ao qual esse texto se destina.
4Considerando que a luta de classes é, ao mesmo tempo, luta por valores, Thompson (1981) analisa
as experiências da plebe na Inglaterra do século XVIII para afirmar seus modos de vida e resistir ao
advento do modo de produção capitalista.
4
Sobre os processos de acumulação primitiva do capital, vale registrar que
Thompson (1987), em sua obra “Senhores e caçadores”, o autor estuda o longo
processo de expropriação das terras comunais, que levou à Lei Negra de 1723.
Essa Lei, a qual pode ser considerada como a primeira lei ambiental que busca a
preservação da Floresta de Windsor7sob o pretexto de conter a desordem na região
da floresta real, na verdade veio como forma de se contrapor à cultura costumeira e
ao direito costumeiro dos camponeses. A Lei8passa a ser cruelmente aplicada por
meio do perdão, prisão ou pena de morte.
Uma lei para punição mais eficaz de pessoas perversas e mal
intencionadas usando armas e disfarces e praticando agressões e
violências às pessoas e propriedades dos súditos de Sua Majestade,
e para o encaminhamento mais rápido dos infratores à justiça
(THOMPSON, 1987, p. 363).
Como comenta Thompson (1987), a longa extensão de arvoredos e matas
com diversas plantas silvestres da floresta, onde animais selvagens, inclusive os
cervos podiam correr à vontade, havia se tornado um local onde estava em jogo os
costumes em comum (THOMPSON, 1998)9em relação ao uso das terras comunais,
em detrimentos dos interesses da realeza, que se constituía como burguesia. Nesta
Floresta ainda hoje está o famoso Castelo de Windsor, utilizada como casa de
descanso e de veraneio da realeza inglesa.
Voltando ao Capítulo XXIV de O capital de Marx (2013), objeto de nossa
análise, a classe dominante buscou, por meio do Estado inglês, instituir, de forma
legal no século XVIII, o cerceamento (a usurpação) das terras comuns que
9Importante registrar que, ao considerar que a classe trabalhadora como formação tanto econômica
como cultural, o conjunto da obra do historiador marxista Edward Palmer Thompson retrata as
experiências vividas pela plebe, no Século XVIII, em defesa de seus modos de vida em contraposição
ao novo modo de vida que o capitalismo busca imprimir Inglaterra.
8Nesta obra, o Direito é concebido como realização cultural, o que querer a apreensão das
experiências de classe experiências estas entendidas como manifestação da luta de classes entre
os camponeses e nobreza, mediadas pela burocracia florestal. Criticando os marxistas estruturalistas
e em particular sobre a dicotomia entre superestrutura e infraestrutura, distingue a noção de poder
arbitrário e domínio da lei; Para Thompson (1987, p. 358), a “lei não foi apenas imposta de cima sobre
os homens: tem sido um meio onde outros conflitos têm se travado. Em parte, as próprias relações de
produção têm sentido nos termos de suas definições perante a lei: o trabalhador livre, o
trabalhador rural com direitos comunais, o habitante sem eles, o proletário não-livre, o grevista
consciente de seus direitos; o diarista rural sem terras que ainda pode processar o seu patrão”.
7Localizada em Windsor em Berkshire (Inglaterra, Reino Unido), com 48 km de circunferência,
abrangendo 40 mil hectares.
uma visão romântica de campo, afirma, na Inglaterra, a Revolução Industrial “não transformou a
cidade e o campo: ela baseou-se num capitalismo agrário altamente desenvolvido, tendo ocorrido
muito cedo o desaparecimento do campesinato tradicional” (WILLIAMS, 2011, p. 12).
5
pertenciam ao povo. Nesse sentido, é possível perceber que o Estado se configura
como uma mediação conivente para a expulsão das massas e para a destruição da
natureza natureza entendida enquanto bem público e parte fundante dos modos
de vida de comunidades tradicionais. No caso da Europa, a servidão, que garantia o
mínimo da sobrevivência camponesa dentro da instituição feudal, cai em desuso e é
substituída pelo trabalho assalariado e “livre” dentro dos moldes restritos da
sociedade do capital “a liberdade de manter os trabalhadores na escravidão!”
(MARX, 2013, p. 529).
Os processos de colonização na América Latina e África também
evidenciaram as inúmeras relações pautadas na expropriação da natureza, do
trabalho, da dependência econômica, de extermínio dos povos tradicionais e seus
modos de vida. As expropriações no período das grandes navegações, no século XV
início a um intenso processo de expropriação fora do continente europeu, não
dos recursos naturais, mas também da cultura a partir da aniquilação de povos
originários. Terra e cultura são expropriadas, apropriadas e transformadas em
mercadorias no processo da acumulação primitiva do capital nas colônias por parte
dos colonizadores10.
É possível compreender que faz parte do processo de expansão do
capitalismo à formação, cada vez mais constante, de trabalhadores expropriados.
Isso significa que a forma mais eficaz de produzir valor é a formação de uma massa
empobrecida de trabalhadores disponíveis para produção de capitais e suscetíveis a
aceitar submissão e condições de trabalho precárias. “Tais métodos conquistaram o
campo para a agricultura capitalista, incorporaram o solo ao capital e criaram para a
indústria urbana a oferta necessária de um proletariado inteiramente livre.” (MARX,
2013, p. 524). A situação da classe trabalhadora piora à medida que o capital
expande seus domínios e, em última instância, para Marx (2013, p. 533), a “violência
é a parteira de toda sociedade velha que está prenhe de uma sociedade nova. Ela
mesma é uma potência econômica”.
A transformação dos meios de vida dos trabalhadores em valor, bem como o
saque da terra (da natureza), continua subordinando os povos originários,
tradicionais e o conjunto da classe trabalhadora às necessidades produtivas do
10 Ver também o Capítulo XXV de O Capital, intitulado “A teoria moderna da colonização”, no qual
Marx (2013, p. 547), assegura que nas colônias europeias no Novo Mundo “o modo capitalista de
produção e acumulação e, portanto, a propriedade capitalista exige o aniquilamento da propriedade
privada baseado no trabalho próprio, isto é, a expropriação do trabalhador”.
6
capital. Sem ter alternativa, a grande massa de trabalhadores vende sua força de
trabalho ou, no caso da escravidão, é explorada ao limite pelos grandes
proprietários latifundiários –, transformando o seu trabalho em enriquecimento da
burguesia.
Ocorre, portanto, a separação entre trabalhadores e natureza, de seus objetos
e meios de trabalhos, que passam a serem subsumidos à lógica produtiva e
destrutiva do capital. Essa é a história do capitalismo: que se expande
geograficamente através do roubo, saque, escravização, assassinato, destruição do
meio ambiente e dos modos de vida de comunidades tradicionais, privando todos de
seus meios de subsistência e lançando-os a própria sorte no competitivo mercado
de trabalho.
Entendemos que, por não se tratar de algo que ocorreu em um passado
distante do capitalismo, é preciso trazer, para o centro do debate, as expropriações
como um processo que faz parte da acumulação permanente do capital até os dias
atuais. Assim, é fundamental trazer a crítica de Marx (2013) para o século XXI, em
pleno neoliberalismo e em meio às crises econômica, política e sanitária, nas quais o
Brasil se (também) submerso em crimes ambientais que destroem de forma
voraz –, territórios de indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pela usurpação das terras
e destruindo a cultura local, e buscando dar fim à propriedade comunal.
Como havia assegurado Luxemburgo (1970, p. 317), “o capitalismo aparece e
se desenvolve historicamente num meio social não capitalista”. Para sua própria
existência e realização, o capitalismo necessita “estar cercado de formas de
produção não capitalista” (LUXEMBURGO, 1970, p. 317), visando sua
desintegração e dissolução contínua. Tendo em conta o conjunto de políticas
econômicas, calcadas em práticas socioambientais que assolam o país, podemos
afirmar que ao largo do processo histórico de longa duração (BRAUDEL, 1965), o
capital, ainda hoje, adentra os territórios em que homens e mulheres produzem sua
existência tendo como horizonte a reprodução ampliada de vida, e não do capital
(TIRIBA, 2018). Sendo assim, como Brandão (2010, p. 51), podemos afirmar que se
trata de um longo processo de “acumulação primitiva permanente” do capital.
7
Brasil em chamas: a acumulação permanente do capital.
Trazendo os ensinamentos de Marx (2013) para contemporaneidade, não é
difícil reconhecer que o Estado brasileiro e sua desenvolvida legislação ambiental,
não é capaz (ou não quer se fazer capaz) de conter as expropriações calcadas
sobre ideário do agronegócio e do neoextrativismo11. Trata-se de um modelo
econômico pautado na exploração e importação das commodities (minerais e
agrícolas), que foi expandido territorialmente e economicamente por meio de
incentivos políticos, dos anos 2000 em diante.
Em diálogo com a crítica de Marx (2013) ao Estado, ao poder jurídico e sua
inutilidade em garantir os direitos à classe trabalhadora, é possível analisar que o
Estado brasileiro está em consonância com os interesses capitalistas para a
expropriação dos modos de vida de povos e comunidades tradicionais. Ou seja, ao
destituir o direito à natureza retira-se desses sujeitos a sua capacidade coletiva de
produzir seu próprio sustento, condicionando-os à sua própria sorte no competitivo
mercado de trabalho.
A devastação da natureza, e com ela, os conflitos e a luta de classe em torno
do meio ambiente têm sido recorrentes ao longo da história do Brasil, tendo se
intensificado no governo Jair Bolsonaro (2019-2022). O golpe parlamentar jurídico e
mediático de 2016, que colocou Michel Temer no poder, se configurou como
chave-mestre para o desmonte da Constituição de 1988, atingindo sobremaneira os
trabalhadores do campo e da cidade. A precarização do trabalho, a mercantilização
da saúde e da educação, o aumento do desemprego, da pobreza e da fome tem
repercutido na precarização da própria vida. Racismo estrutural, homofobia,
machismo, xenofobia e intolerância religiosa compõem o cenário de violência contra
homens e mulheres trabalhadoras.
Com o aprofundamento das políticas neoliberais e o crescimento da extrema
direita, também se tornaram opositores políticos os povos e comunidades
tradicionais, ou seja, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pantaneiros, seringueiros,
castanheiros, pescadores, pequenos agricultores e outras populações do campo,
das florestas e das águas. Sofrem os povos originários e tradicionais com a
11 Como, por exemplo, a Lei 6.938/81 que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente; a Lei
9.605/98 sobre os Crimes Ambientais; Lei 9.433/97 que institui a Política Nacional de Recursos
Hídricos e cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos; A Lei 12.651/2012,
também conhecida como novo "Código Florestal”; entre outras.
8
contaminação dos rios, do solo, com os processos de desertificação que destroem a
flora e a fauna, ameaçam a biodiversidade, contribuem para o aquecimento global e,
com isso, as mudanças climáticas.
Os perigos para a humanidade decorrem tanto do saque das riquezas
minerais e naturais consideradas na sua biodiversidade, quanto do próprio
aquecimento global. Para Fearnside (2018)12, a Amazônia “não é apenas uma vítima
do aquecimento global, é também uma fonte de emissões antropogênicas por
desmatamento, degradação florestal por exploração madeireira e incêndios e
emissões de represas hidrelétricas”.
Entre agosto de 2020 e julho de 2021, o desmatamento da Amazônia foi de
13 mil km²; em outubro de 2021, esta região teve 877 Km² devastados. No final de
novembro do mesmo ano, em Brotas, interior de São Paulo, centenas de búfalos
tinham sofrido abandono em uma fazenda onde não havia água, comida e nem
vegetação suficiente para alimentação dos animais. A área havia sido reduzida para
fins de plantação de soja (lembrando que o Brasil é o maior produtor de soja no
mundo).
A empresa de Agronegócio Estrondo13, que organiza um condomínio de
fazendas localizadas no Cerrado, e que produz e vende soja para ração de animais,
renova licença para desmatar 25 mil hectares de Cerrado, pressionando e
ameaçando as comunidades tradicionais com o uso da força policial. Sem falar que,
para incrementar a produtividade do agronegócio, foram aprovados 1.411 registros
de produtos agrotóxicos no governo Bolsonaro, nos últimos três anos. Como indica o
filme “O veneno está na mesa” (TENDLER, 2011) o Brasil se tornou, em 2008, o
maior consumidor de agrotóxicos: cada brasileiro consumia em média 5,2 litros de
agrotóxicos por ano.
Também, no final de 2021, garimpeiros fizeram um paredão com balsas no rio
Madeira para se livrar da fiscalização14. Em cinco anos, o garimpo ilegal destruiu
mais de 600 km de rios que correm nas das terras dos Munduruku, no Pará; o
ataque às comunidades indígenas atingidas pelo garimpo e pelo desmatamento
14 Ver a reportagem em:
https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2021/11/24/centenas-de-balsas-de-garimpo-ilegal-desafia
m-fiscalizacao-e-tomam-conta-de-trecho-do-rio-madeira-na-amazonia.ghtml, acesso em 01/07/2022,
às 12h57min.
13 Ver a reportagem em: https://reporterbrasil.org.br/estrondo/, acesso em 01/07/2022, às 11h56min.
12 Disponível em: https://amazoniareal.com.br/amazonia-e-o-aquecimento-global-1-resumo-da-serie,
acesso em 01/07/2022, às 11h52min.
9
geram abusos físicos e psicológicos; seus mandantes ameaçam suas lideranças de
morte.
A ocorrência do garimpo ilegal na região amazônica - em especial no Rio
Madeira e regiões do Pará (vale do Rio Tapajós) tem contaminado uma das bacias
hidrográficas mais importantes do mundo. A utilização do mercúrio afeta a saúde de
comunidades terras indígenas e provocam bruscas mudanças dos modos de vida de
comunidade ribeirinhas - que convivem com intenso fluxo gerado pelo comércio do
ouro e com a presença de forasteiros que se utilizam da violência, inclusive contra
as mulheres.
Nesse contexto de devastação da natureza, importante reconhecer que o
problema não radica na legalidade ou não legalidade do desmatamento e garimpo
ilegal, tanto que podemos destacar as constantes investidas das mineradoras Vale
S.A., Gerdau, Samarco, BHP Billiton, Sul Americana de Metais (SAM), entre outras,
na exploração de territórios de povos e comunidades tradicionais em diversas
regiões do Brasil.
Com metas de proteção ambiental que mais empurram o problema para
futuro, do que os resolve, o Estado brasileiro promete zerar o garimpo e
desmatamento ilegal em 2030 (sic). Em meio a esse caos ambiental, haverá meio
ambiente para ser salvo até lá? Como pode, por exemplo, um ribeirinho viver sem
rio, ou seja, como pode produzir sua existência, quando a água do rio está escassa
e/ou contaminada?
A expropriação dos modos de vida acontece, entre outras, nas comunidades
ribeirinhas da bacia do Rio Doce, atingidas pelo crime ambiental produzido, em
2015, pela Samarco e suas acionistas Vale e BHP (AQUINO, 2018b); acontece, em
maior ou menor grau, em todas as comunidades que sofrem com o avanço da
monocultura ou com a construção de hidroelétricas, barragens e estradas abrem
passagem para as commodities da mineração e do agronegócio.
Nesse contexto, o Estado forte, guardião do direito privado, mediado pelo
governo empresarial capitalista e por fábricas de sujeitos neoliberais (DARDOT;
LAVAL, 2017), promove a devastação socioambiental, aqui entendida como crime
ambiental anunciado e premeditado (AQUINO, 2018a). Mas, evidentemente, isso
não ocorre sem a resistência dos movimentos sociais, entre eles o Movimento dos
Atingidos por Barragem (MAB), Movimento pela Soberania Popular na Mineração
(MAM) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
10
Em nosso entendimento, a acumulação primitiva se manifesta através dos
crimes ambientais e esses são cada vez mais frequentes nos tempos atuais. Os
crimes ambientais podem se entendidos como um mecanismo de expulsão,
expropriação e violência contra os modos de produzir a vida de povos e
comunidades tradicionais através da destruição da natureza que é uma mediação
fundamental para a manutenção modos de vida tradicionais dessas comunidades,
principalmente, no âmbito do trabalho e da cultura desses sujeitos.
Em diálogo com Marx (2013), os crimes ambientais consistem como um meio
para o capital romper/destruir os meios e objetos de trabalho e sobrevivência de
trabalhadores e povos tradicionais. É a separação entre seres humanos e natureza
sob a ótica do bem comum e de sua relação ontológica do ser social, no qual, no
lugar é imposta violentamente –, a lógica do valor e o modo de produção
capitalista.
Ao longo de toda história, a classe trabalhadora e os povos tradicionais
resistem e lutam pela afirmação de seus modos de vida e pela defesa da natureza
(SOUZA, 2020). Organizados por meio dos movimentos sociais, mobilizam os
trabalhadores atingidos ou ameaçados pelos crimes ambientais na tentativa de
reverter à situação desigual que se estabelece sobre o meio ambiente.
Conclusão: acumulação permanente, ‘assassinato social’ e crime ambiental
No editorial da Revista Trabalho Necessário, número 36, cuja temática é
“Lutas no campo e o comum na América Latina”, indicamos que:
No pequeno planeta chamado Terra habitam 7,79 bilhões de
pessoas. Ainda que estudos sobre questões socioambientais nos
alertassem que a produção destrutiva do capital ameaça
sobremaneira a flora, a fauna e o próprio planeta, o COVID-19 nos
pegou desprevenidos, deixando-nos atônitos diante da ameaça de
morte de uma grande parte da humanidade. Ou desaparecemos
todos para renascer das cinzas? (TIRIBA; RODRIGUES; ANTUNES,
2020, p. 1).
Nesse contexto em que se acirram as contradições entre trabalho, capital e
vida, torna-se atual a expressão “assassinato social”, indicado por Engels (2010). O
termo também nos remete ao que compreendemos por crime ambiental, que em seu
sentido amplo, pode ser entendido como resultado, e ao mesmo tempo parte
11
integrante do longo processo de expropriação do povo do campo de sua base
fundiária.
Importante sublinhar as contradições entre trabalho, capital e vida se fazem
presentes não apenas durante a chamada acumulação primitiva do capital, que não
pode ser entendida como algo anterior ao capitalismo, mas como parte integrante
dos processos permanentes de reprodução ampliada do capital. Na perspectiva de
um conceito ampliado de “acumulação primitiva”, devemos considerá-la acumulação
permanente do capital, ou mesmo, como acumulação primitiva e permanente do
capital (BRANDÃO, 2010). Primitiva não apenas porque diz respeito à sua gênese,
mas também, no sentido pejorativo das formas violentas com que ela se dá, e nas
quais os seres humanos se animalizam.
Historicamente, os processos de acumulação ampliada do capital pressupõem
o desmonte dos modos de vida baseados na cultura costumeira de defesa do que é
ou deveria ser comum: os rios, o céu, os mares, a floresta. Mas como dizem Dardot
& Laval (2017), o comum se torna comum quando nós, seres humanos, na
prática, nos apresentamos e nos colocamos politicamente em sua defesa.
A luta pelo comum requer de nós um novo entendimento (e sentimento) em
relação à natureza, compreendendo a existência de uma racionalidade ambiental
(LEFF, 2006). Nessa perspectiva, Engels (1979) compreendeu que uma dialética
da natureza, na qual as relações estabelecidas a partir dela, são mutáveis ao longo
da história, sendo a natureza a base para o desenvolvimento e sobrevivência
humana. Dito de outra maneira, precisamos compreender as maneiras como,
historicamente, a natureza se comporta na relação com os seres humanos, que
também são natureza. Ou seja, como se esta relação dialética entre seres
humanos e natureza.
Conforme compreende Marx (2013, p. 522), ocorre uma clearing of estates
(clareamento das propriedades rurais, o que significa, na verdade, varrê-las de seres
humanos)”, na qual homens e mulheres trabalhadoras que, historicamente,
ocupavam as terras (até então comunais), são expulsos da terra. Natureza e seres
humanos passam, nesse sentido, a serem quantificados e valorados em capital. Mas
claro, resistências, lutas, embates, conflitos. A luta de classes em torno do direito
ao meio ambiente (ao acesso à terra, rios, florestas, ao alimento), permanece viva
até os dias atuais. Mesmo com a intensa violência e a ocorrência, cada vez mais
frequente, dos crimes ambientais, esse processo de resistência da classe
12
trabalhadora parte de uma luta pela reafirmação de seus modos de vida e contra as
expropriações do capital.
Os embates travados em torno das questões ambientais indicam que a
capacidade expropriativa do capital se aprofunda após 2018, com o início do
discurso e da política genocida do Governo de Jair Bolsonaro. O reforço às
desigualdades sociais, ao ódio e à morte faz com que o governo cumpra sua
proposta de “passar a boiada15 e não deixar pedra sobre pedra para trás. A política
de morte é alicerçada na violenta destruição ambiental e, com ela, a morte das
práticas econômicas e culturais que constituem os modos de vida alicerçados na
relação umbilical entre seres humanos e natureza base fundamental para a
reprodução social de povos e comunidades tradicionais.
Mesmo com a resistência desses povos e da classe trabalhadora em geral, os
ataques não cessam e os crimes ambientais são inúmeros. Povos/comunidades
tradicionais e demais trabalhadores/as do campo tem sido “repentinamente
arrancados de seu modo de vida costumeiro tampouco conseguiam se ajustar à
disciplina da nova situação.” (MARX, 2013, p. 524), impondo-os um modo de vida
condizente com a sociedade capitalista. Esse é meio pelo qual o capital se expande
e mantém seus domínios sobre a formação cada vez maior de uma massa de
trabalhadores disponíveis ao modo de produção capitalista, modo este que é
hegemônico em relação a outros modos de produção da existência.
Como dito, Marx (2013) fez a crítica ao conformismo do Estado frente aos
interesses da burguesia. O poder jurídico estatal se resume a estabelecer
parâmetros legais que vão beneficiar os grandes proprietários e pauperizar, ainda
mais, a classe trabalhadora. Por meio de influências e golpes, a burguesia toma
espaço nas esferas decisórias do Estado. Nas palavras de Marx (2013, p. 528),
“nada mais característico que o pretexto deste golpe de Estado burguês”: da
apropriação ou subversão do poder estatal para atender seus próprios interesses em
detrimento da massa de trabalhadores entregues à fome, doenças, más condições
de moradia e trabalho, por exemplo.
Algo corriqueiro no Brasil, em sua curta experiência democrática passou por
vários golpes (como o de 1964 e 2016, por exemplo), que favoreceram unicamente
ao capital estrangeiro e uma pequena parcela da sociedade brasileira os
15 Fazendo referência a fala do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, durante a reunião
ministerial ocorrida em 22 de abril de 2020, no início da pandemia do vírus COVID-19 no Brasil.
13
latifundiários, industriais e herdeiros –, enquanto o povo é reprimido, torturado, sem
direitos e vivendo sob “leis grotescas e terroristas” (MARX, 2013, p. 526).
Marx (2013), em sua reflexão sobre a acumulação primitiva, argumenta e
analisa que essa acumulação faz parte do modo de produção e dominação
capitalista. Passamos por um desmonte de direitos e destruição em massa do meio
ambiente que compromete em todos os âmbitos da sociedade. Para nós,
latino-americanos, a descoberta de ouro e prata levou ao extermínio de povos
indígenas e implementou o terror na caçada lucrativa por recursos humanos e
naturais do novo continente. Até a contemporaneidade, os crimes ambientais e o
terrorismo da aniquilação rondam entre nós. Para superar essa violência em escalas
cada vez mais alarmantes, Marx nos deu a resposta: somente com o fim do modo
de produção capitalista.
Desde o século XV, é crescente o aumento da violência contra camponeses e
povos originários. O extermínio desses modos de produzir a vida relacionada
intimamente à natureza vem ganhando espaço dentro da economia capitalista. A
destruição da natureza acarreta impactos muitas vezes permanentes e em uma
escala de destruição progressiva. Os crimes ambientais, por exemplo, se tornam
uma mediação que compromete diretamente os modos de vida de homens e
mulheres das comunidades tradicionais atingidas pelos processos subsequentes da
expropriação capitalista sobre o meio ambiente. Para esses sujeitos não resta
alternativa, a não ser resistir à migração para as cidades e lutar contra a sua
sujeição ao modo de vida capitalista.
Contra a ofensiva do capital, também em um movimento histórico de longa
duração, as populações originárias e tradicionais insistem em conservar seus modos
de vida, ainda que subordinados ao modo capitalista de produção da existência. No
horizonte do fim da sociedade produtora de mercadorias, eleger como objeto de
pesquisa as relações sociais de produção da vida em povos e comunidades
tradicionais, não significa, necessariamente, que nos situemos no campo da
ecologia ou das chamadas questões ambientais.
14
Para Nancy Fraser, em entrevista ao Blog da Boitempo16, o projeto por um
ecossocialismo radical, em nível global, deve ser concebido como uma luta
anticapitalista e, ao mesmo tempo, uma luta transambiental. Transambiental “por
que as contradições ecológicas do sistema são intrinsicamente enredadas com
outras contradições (econômica, política, social) e não podem ser resolvidas
abstraindo-se”. Para ela, o ecossocialismo, “desmantelaria a ‘lei do valor’, aboliria a
exploração e a expropriação e reinventaria as relações entre a sociedade humana e
a natureza não-humana, entre a produção de bens e o trabalho de cuidado, entre o
político e o econômico”.
Referências
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Fundão (Mariana MG) no Rio Doce e afluentes. Anais do II Seminário Estado,
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Paz e Terra, 1979.
ENGELS, F.. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Tradução B. A.
Schumann. Supervisão, apresentação e notas José Paulo Netto. São Paulo:
Boitempo, 2010.
16 A entrevista feita por Martín Mosquera para a Jacobin. Traduzida por Natanael Alencar e Isadora
Xavier. Publicada em 30 de novembro de 2021, sob o título “Só um radical ecossocialismo
democrático pode mudar o horizonte”. Disponível em:
https://blogdaboitempo.com.br/2021/11/30/so-um-radical-ecossocialismo-democratico-pode-mudar-o-
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15
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WILLIAMS, R. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.
16
2
3
NOTA DA EDIÇÃO ELETNICA
Com a finalidade de aprimorar a experiência de leitura no formato digital e manter a
coerência entre a versão eletrônica (em suas diversas plataformas de leitura) e a versão
impressa deste livro, optou-se por manter a numeração de páginas da versão impressa
nas remissões desta edição eletrônica. Desta forma, procurou-se manter unidade para
fins de referência e citação entre versão eletrônica e impressa. É possível que o leitor
perceba sutis diferenças de numeração entre as remissões e as numerações apresentadas
pela plataforma de leitura. Adverte-se, portanto, que o conteúdo original do livro se
mantém integralmente reproduzido.
13
Capítulo 24
A assim chamada acumulação primitiva
1. O segredo da acumulação primitiva
Vimos como o dinheiro é transformado em capital, como por meio do capital é
produzido mais-valor e do mais-valor se obtém mais capital. Porém, a acumulação do
capital pressupõe o mais-valor, o mais-valor, a produção capitalista, e esta, por sua vez,
a existência de massas relativamente grandes de capital e de força de trabalho nas
mãos de produtores de mercadorias. Todo esse movimento parece, portanto, girar
num círculo vicioso, do qual só podemos escapar supondo uma acumulação
“primitiva” (previous accumulation”, em Adam Smith), prévia à acumulação
capitalista, uma acumulação que não é resultado do modo de produção capitalista,
mas seu ponto de partida.
Essa acumulação primitiva desempenha na economia política aproximadamente o
mesmo papel do pecado original na teologia. Adão mordeu a maçã e, com isso, o
pecado se abateu sobre o nero humano. Sua origem nos é explicada com uma
anedota do passado. Numa época muito remota, havia, por um lado, uma elite
laboriosa, inteligente e sobretudo parcimoniosa, e, por outro, uma súcia de vadios a
dissipar tudo o que tinham e ainda mais. De fato, a legenda do pecado original
teológico nos conta como o homem foi condenado a comer seu pão com o suor de seu
rosto; mas é a história do pecado original econômico que nos revela como pode haver
gente que não tem nenhuma necessidade disso. Seja como for. Deu-se, assim, que os
primeiros acumularam riquezas e os últimos acabaram sem ter nada para vender, a
não ser sua própria pele. E desse pecado original datam a pobreza da grande massa,
que ainda hoje, apesar de todo seu trabalho, continua a não possuir nada para vender
a não ser a si mesma, e a riqueza dos poucos, que cresce continuamente, embora
muito tenham deixado de trabalhar. São trivialidades como essas que, por exemplo, o
sr. Thiers, com a solenidade de um estadista, continua a ruminar aos franceses,
outrora tão sagazes, como apologia da proprietéa. Mas tão logo entra em jogo a questão
da propriedade, torna-se dever sagrado sustentar o ponto de vista da cartilha infantil
como o único válido para todas as faixas etárias e graus de desenvolvimento. Na
história real, como se sabe, o papel principal é desempenhado pela conquista, a
subjugação, o assassínio para roubar, em suma, a violência. J á na economia política,
tão branda, imperou sempre o idílio. Direito e “trabalho foram, desde tempos
imemoriais, os únicos meios de enriquecimento, excetuando-se sempre, é claro, “este
ano”. Na realidade, os métodos da acumulação primitiva podem ser qualquer coisa,
menos idílicos.
Num primeiro momento, dinheiro e mercadoria são tão pouco capital quanto os
meios de produção e de subsistência. Eles precisam ser transformados em capital. Mas
essa transformação só pode operar-se em determinadas circunstâncias, que
514
contribuem para a mesma finalidade: é preciso que duas escies bem diferentes de
possuidores de mercadorias se defrontem e estabelam contato; de um lado,
possuidores de dinheiro, meios de produção e meios de subsistência, que buscam
valorizar a quantia de valor de que dispõem por meio da compra de força de trabalho
alheia; de outro, trabalhadores livres, vendedores da própria força de trabalho e, por
conseguinte, vendedores de trabalho. Trabalhadores livres no duplo sentido de que
nem integram diretamente os meios de produção, como os escravos, servos etc., nem
lhes pertencem os meios de produção, como no caso, por exemplo, do camponês que
trabalha por sua própria conta etc., mas estão, antes, livres e desvinculados desses
meios de produção. Com essa polarização do mercado estão dadas as condições
fundamentais da produção capitalista. A relação capitalista pressupõe a separação
entre os trabalhadores e a propriedade das condições da realização do trabalho. Tão
logo a produção capitalista esteja de, ela não apenas conserva essa separação, mas a
reproduz em escala cada vez maior. O processo que cria a relação capitalista não pode
ser senão o processo de separação entre o trabalhador e a propriedade das condições
de realização de seu trabalho, processo que, por um lado, transforma em capital os
meios sociais de subsistência e de produção e, por outro, converte os produtores
diretos em trabalhadores assalariados. A assim chamada acumulação primitiva não é,
por conseguinte, mais do que o processo histórico de separação entre produtor e meio
de produção. Ela aparece como “primitiva” porque constitui a pré-história do capital e
do modo de produção que lhe corresponde.
A estrutura econômica da sociedade capitalista surgiu da estrutura econômica da
sociedade feudal. A dissolução desta última liberou os elementos daquela.
O produtor direto, o trabalhador, só pôde dispor de sua pessoa depois que deixou
de estar acorrentado à gleba e de ser servo ou vassalo de outra pessoa. Para converter-
se em livre vendedor de força de trabalho, que leva sua mercadoria a qualquer lugar
onde haja mercado para ela, ele tinha, além disso, de emancipar-se do jugo das
corporações, de seus regulamentos relativos a aprendizes e oficiais e das prescrições
restritivas do trabalho. Com isso, o movimento histórico que transforma os produtores
em trabalhadores assalariados aparece, por um lado, como a libertão desses
trabalhadores da servidão e da coação corporativa, e esse é único aspecto que existe
para nossos historiadores burgueses. Por outro lado, no entanto, esses rem-
libertados só se convertem em vendedores de si mesmos depois de lhes terem sido
roubados todos os seus meios de produção, assim como todas as garantias de sua
exisncia que as velhas instituições feudais lhes ofereciam. E a história dessa
expropriação está gravada nos anais da humanidade com traços de sangue e fogo.
Os capitalistas industriais, esses novos potentados, tiveram, por sua vez, de
deslocar não apenas os mestres-artesãos corporativos, mas também os senhores
feudais, que detinham as fontes de riquezas. Sob esse aspecto, sua ascensão se
apresenta como o fruto de uma luta vitoriosa contra o poder feudal e seus privigios
revoltantes, assim como contra as corporações e os entraves que estas colocavam ao
livre desenvolvimento da produção e à livre exploração do homem pelo homem. Mas
se os cavaleiros da indústria desalojaram os cavaleiros da espada, isso só foi possível
porque os primeiros exploraram acontecimentos nos quais eles não tinham a menor
515
culpa. Sua ascensão se deu por meios tão vis quanto os que outrora permitiram ao
liberto romano converter-se em senhor de seu patronus [patrono].
O ponto de partida do desenvolvimento que deu origem tanto ao trabalhador
assalariado como ao capitalista foi a subjugação do trabalhador. O estágio seguinte
consistiu numa mudança de forma dessa subjugação, na transformação da exploração
feudal em exploração capitalista. Para compreendermos sua marcha, não precisamos
remontar a um passado tão remoto. Embora os prirdios da produção capitalista já
se nos apresentem esporadicamente, nos séculos XI V e XV, em algumas cidades do
Mediterrâneo, a era capitalista só tem início no culo XVI . Nos lugares onde ela
surge, a supressão da servidão já está muito consumada, e o aspecto mais brilhante
da Idade Média, a existência de cidades soberanas, há muito já empalideceu.
Na história da acumulação primitiva, o que faz época são todos os
revolucionamentos que servem de alavanca à classe capitalista em formação, mas,
acima de tudo, os momentos em que grandes massas humanas são despojadas súbita
e violentamente de seus meios de subsistência e lançadas no mercado de trabalho
como proletários absolutamente livres. A expropriação da terra que antes pertencia ao
produtor rural, ao camponês, constitui a base de todo o processo. Sua história assume
tonalidades distintas nos diversos países e percorre as várias fases em sucessão
diversa e em diferentes épocas históricas. Apenas na I nglaterra, e por isso tomamos
esse país como exemplo, tal expropriação se apresenta em sua forma clássicab 189.
2. Expropriação da terra pertencente à população rural
Na Inglaterra, a servidão havia praticamente desaparecido na segunda metade do
século XI V. A maioria da população
190 consistia naquela época, e mais ainda no século
XV, em camponeses livres, economicamente autônomos, qualquer que fosse o tulo
feudal a encobrir sua propriedade. Nos domínios senhoriais maiores, o arrendatário
livre tomara o lugar do bailiff (bailio), ele mesmo servo em outras épocas. Os
assalariados agcolas consistiam, em parte, em camponeses que empregavam seu
tempo livre trabalhando para os grandes proprietários, em parte, numa classe de
trabalhadores assalariados propriamente ditos, classe essa independente e pouco
numerosa, tanto em termos relativos como absolutos. Ao mesmo tempo, também
estes últimos eram, de fato, camponeses economicamente autônomos, pois, além de
seu salário, recebiam terras de 4 ou mais acres para o cultivo, além de cottages.
Ademais, junto com os camponeses propriamente ditos, desfrutavam das terras
comunais, sobre as quais pastava seu gado e que lhes forneciam também
combustíveis, como lenha, turfa etc.191 Em todos os países da Europa, a produção
feudal se caracteriza pela partilha do solo entre o maior número possível de vassalos.
O poder de um senhor feudal, como o de todo soberano, não se baseava na extensão
de seu registro de rendas, mas no número de seus súditos, e este dependia da
quantidade de camponeses economicamente autônomos192. I sso explica por que o solo
inglês, que depois da conquista normanda se dividiu em gigantescos baronatos, um
único dos quais costumava incluir 900 dos antigos senhorios anglo-saxônicos, era
entremeado de pequenas propriedades camponesas, apenas aqui e ali interrompidas
516
por domínios senhoriais maiores. Tais condões, somadas ao florescimento
simultâneo das cidades, que caracteriza o século XV, permitiam aquela riqueza
popular que o chanceler Fortescue descreve com tanta eloquência em seu Laudibus
Legum Angliae, mas excluíam a riqueza capitalista.
O prelúdio da revolução que criou as bases do modo de produção capitalista
ocorreu no último terço do século XV e nas primeiras cadas do século XVI . Uma
massa de proletários absolutamente livres foi lançada no mercado de trabalho pela
dissolução dos séquitos feudais, que, como observou corretamente sir J ames Steuart,
“por toda parte lotavam inutilmente casas e castelosc. Embora o poder real, ele
mesmo um produto do desenvolvimento burguês, em sua ânsia pela conquista da
soberania absoluta tenha acelerado violentamente a dissolução desses séquitos, ele
não foi, de modo algum, a causa exclusiva dessa dissolução. Ao contrário, foi o grande
senhor feudal que, na mais tenaz oposão à Coroa e ao Parlamento, criou um
proletariado incomparavelmente maior tanto ao expulsar brutalmente os camponeses
das terras onde viviam e sobre as quais possuíam os mesmos títulos jurídicos feudais
que ele quanto ao usurpar-lhes as terras comunais. O impulso imediato para essas
ações foi dado, na I nglaterra, particularmente pelo florescimento da manufatura
flamenga de lã e o consequente aumento dos preços da lã. A velha nobreza feudal fora
aniquilada pelas grandes guerras feudais; a nova nobreza era uma filha de sua época,
para a qual o dinheiro era o poder de todos os poderes. Sua divisa era, por isso,
transformar as terras de lavoura em pastagens de ovelhas. Em sua Description of
England. Prexed to Holinshed’s Chronicles, Harrison descreve como a expropriação dos
pequenos camponeses significa a ruína do campo. What care our great incroachers!
(Mas o que isso importa a nossos grandes usurpadores?) As habitações dos
camponeses e os cottages dos trabalhadores foram violentamente demolidos ou
abandonados à ruína.
Se consultamos diz Harrison “os invenrios mais antigos de cada domínio senhorial, vemos que inúmeras
casas e pequenas propriedades camponesas desapareceram, que o campo alimenta muito menos gente, que
muitas cidades estão arruinadas, embora algumas novas floresçam [...]. Eu teria algo a contar sobre cidades e
aldeias que foram destruídas para ceder lugar a pastagens de ovelhas e onde só restaram as casas dos antigos
senhores.”
As queixas dessas velhas crônicas são invariavelmente exageradas, mas ilustram
exatamente a impressão que a revolução nas condições de produção provocou nos
homens daquela época. Uma comparação dos escritos do chanceler Fortescue com os
de Thomas More evidencia o abismo entre os séculos XV e XVI . De sua idade de ouro,
como diz Thornton corretamente, a classe trabalhadora inglesa decaiu, sem qualquer
fase de transição, à idade de ferro.
A legislação se aterrorizou com esse revolucionamento. Ela ainda não havia
alcançado aquele ápice civilizacional em que a wealth of the nation”, isto é, a formação
do capital e a exploração e empobrecimento inescrupulosos das massas populares são
considerados a última Thule de toda a sabedoria de Estado. Em sua história de
Henrique VII, diz Bacon:
Naquele tempo” (1489) aumentaram as queixas sobre a transformação de terras de lavoura em pastagens” (para
criação de ovelhas etc.), ceis de vigiar com poucos pastores; e as propriedades arrendadas temporária, vitalícia
517
ou anualmente (dos quais vivia grande parte dos yeomend) foram transformados em domínios senhoriais. Isso
provocou uma decancia do povo e, em decorrência, uma decadência das cidades, igrejas, zimos [...]. Na cura
desse mal, foi admirável, naquela época, a sabedoria do rei e do Parlamento [...]. Adotaram medidas contra essa
usurpação que despovoava os domínios comunais (depopulating inclosures) e o despovoador regime de pastagens
(depopulating pasture) que o acompanhava.
Uma lei de Henrique VI I , de 1489, c. 19
e, proibiu a destruição de toda casa
camponesa que tivesse pelo menos 20 acres de terra. Numa lei 25f, de Henrique VI I I ,
confirma-se a disposição legal anterior. Diz-se, entre outras coisas, que
muitos arrendamentos e grandes rebanhos de gado, especialmente de ovelhas, concentram-se em poucas mãos,
provocando um aumento considerável das rendas fundiárias e, ao mesmo tempo, uma grande diminuição das
lavouras (tillage) e a demolição de igrejas e casas, de maneira que enormes massas populares se veem
impossibilitadas de sustentar a si mesmas e a suas famílias.
A lei ordena, por isso, a reconstrução das propriedades rurais arruinadas,
determina a proporção entre campos de cereais e pastagens etc. Um decreto de 1533 se
queixa de que um número considerável de proprietários possuíam 24 mil ovelhas e
restringe seu número a 2 mil193. As queixas populares e a legislação, que desde
Henrique VI I , e durante 150 anos, condenou a expropriação dos pequenos
arrendatários e camponeses, foram igualmente infrutíferas. O segredo de seu fracasso
nos é revelado por Bacon, sem que ele se aperceba disso.
A lei de Henrique VII diz ele em seus Essays, Civil and Moral (seção 29) “foi profunda e admirável por ter
estabelecido explorações agrícolas e casas rurais de determinado pado, isto é, por ter garantido aos lavradores
uma parcela de terra que os capacitava a trazer ao mundo súditos dotados de uma riqueza suficiente e de condição
não servil, conservando o arado nas mãos de proprietários e o de trabalhadores mercenários (to keep the plough
in the hand of the owners and not hirelings).193a
O que o sistema capitalista exigia, ao contrário, era uma posição servil das massas
populares, a transformação destas em trabalhadores mercenários e a de seus meios de
trabalho em capital. Durante esse peodo de transição, a legislação procurou também
conservar os 4 acres de terra contíguos ao cottage do assalariado agrícola e proibiu-lhe
abrigar subinquilinos em seu cottage. Ainda em 1627, sob Carlos I , Roger Crocker de
Fontmill foi condenado por ter construído, no solar de Fontmill, um cottage desprovido
dos 4 acres de terra como anexo permanente; ainda em 1638, sob Carlos I , nomeou-se
uma comissão real para a implementação das velhas leis, especialmente a que
estabelece os 4 acres de terra; também Cromwell proibiu a construção de qualquer
casa, num raio de 4 milhas ao redor de Londres, que não estivesse dotada de 4 acres de
terra. Ainda na primeira metade do século XVI I I havia queixas quando o cottage do
trabalhador agrícola não dispunha, como complemento, de 1 ou 2 acres de terra. Hoje,
tal trabalhador está feliz quando sua casa é dotada de uma pequena horta ou quando
pode arrendar, longe dela, umas poucas varas de terra.
Os proprietários fundrios e os arrendarios diz o dr. Hunter agem, nesse caso, de comum acordo. Uns
poucos acres no cottage tornariam os trabalhadores demasiado independentes.194
Um novo e terrível impulso ao processo de expropriação violenta das massas
populares foi dado, no século XVI , pela Reforma e, em consequência dela, pelo roubo
colossal dos bens da I greja. Na época da Reforma, a I greja católica era a proprietária
feudal de grande parte do solo inglês. A supressão dos monastérios etc. lançou seus
518
moradores no proletariado. Os próprios bens eclesiásticos foram, em grande parte,
presenteados aos rapaces favoritos do rei ou vendidos por um preço irrisório a
especuladores, sejam arrendatários ou habitantes urbanos, que expulsaram em massa
os antigos vassalos hereditários e ambarcaram suas propriedades. A propriedade,
garantida por lei aos camponeses empobrecidos, de uma parte dos dízimos da I greja
foi tacitamente confiscada195. Pauper ubique jacetg, exclamou a rainha Elizabeth após
um giro pela I nglaterra. No 43º ano de seu reinado não havia mais como impedir o
reconhecimento oficial do pauperismo, mediante a introdução dos impostos de
benefincia.
Os autores dessa lei se envergonharam de enunciar suas razões e, por isso, violando toda tradição, laaram-na ao
mundo sem nenhum preamble (exposição de motivos).”196
A lei 16 Carolus I , 4
h estabeleceu a perpetuidade desse imposto, e, na realidade,
somente em 1834 ela recebeu uma nova forma, mais rígida197. Esses efeitos imediatos
da Reforma não foram os mais perduráveis. A propriedade da I greja constituía o
baluarte religioso das antigas relações de propriedade da terra. Com a ruína daquela,
estas não podiam se manter198.
Ainda nas últimas cadas do século XVI I , a yeomanry, uma classe de camponeses
independentes, era mais numerosa que a classe dos arrendatários. Ela constituíra a
força principal de Cromwell e, como reconhece o próprio Macaulay, era superior aos
sórdidos fidalgos bêbados e seus lacaios, os curas rurais, obrigados a desposar a
“criada favorita” do senhor. Os assalariados rurais ainda eram coproprietários da
propriedade comunal. Em torno de 1750, a yeomanry havia desaparecido199 e, nas
últimas décadas do século XVI I I , o último resquício de propriedade comunal dos
lavradores. Abstraímos aqui as forças motrizes puramente econômicas da revolução
agrícola. O que procuramos são os meios violentos por ela empregados.
Sob a restauração dos Stuarts, os proprietários fundiários instituíram legalmente
uma usurpação, que em todo o continente também foi realizada sem formalidades
legais. Eles aboliram o regime feudal da propriedade da terra, isto é, liberaram esta
última de seus encargos estatais, “indenizaramo Estado por meio de impostos sobre
os camponeses e o restante da massa do povo, reivindicaram a moderna propriedade
privada de bens, sobre os quais só possuíam títulos feudais, e, por fim, outorgaram
essas leis de assentamento (laws of selement), que, mutatis mutandis, tiveram sobre os
lavradores ingleses os mesmos efeitos que o édito do tártaro Boris Godunov sobre os
camponeses russosi.
A Glorious Revolution(Revolução Gloriosa)
j conduziu ao poder, com Guilherme
I I I de Orange
200, os extratores de mais-valor, tanto proprietários fundiários como
capitalistas. Estes inauguraram a nova era praticando em escala colossal o roubo de
domínios estatais que, até então, era realizado apenas em proporções modestas. Tais
terras foram presenteadas, vendidas a pros irrisórios ou, por meio de usurpação
direta, anexadas a domínios privados201. Tudo isso ocorreu sem a mínima observância
da etiqueta legal. O patrimônio do Estado, apropriado desse modo fraudulento,
somado ao roubo das terras da I greja quando estas já não haviam sido tomadas
durante a revolução republicana –, constituem a base dos atuais domínios
519
principescos da oligarquia inglesa202. Os capitalistas burgueses favoreceram a
operação, entre outros motivos, para transformar o solo em artigo puramente
comercial, ampliar a superfície da grande exploração agrícola, aumentar a oferta de
proletários absolutamente livres, provenientes do campo etc. Am disso, a nova
aristocracia fundiária era aliada natural da nova bancocracia, das altas nanças rem-
saídas do ovo e dos grandes manufatureiros, que então se apoiavam sobre tarifas
protecionistas. A burguesia inglesa atuava em defesa de seus interesses tão
acertadamente quanto os burgueses suecos, que, ao contrário, em aliança com seu
baluarte econômico, o campesinato, apoiaram os reis na retomada violenta das terras
da Coroa em mãos da oligarquia (desde 1604, mais tarde nos reinados de Carlos X e
Carlos XI).
A propriedade comunal absolutamente distinta da propriedade estatal
anteriormente considerada – era uma antiga instituição germânica, que subsistiu sob o
manto do feudalismo. Vimos como a violenta usurpação dessa propriedade comunal,
em geral acompanhada da transformação das terras de lavoura em pastagens, tem
início no final do século XV e prossegue durante o século XVI . Nessa época, porém, o
processo se efetua por meio de atos individuais de violência, contra os quais a
legislação lutou, em vão, durante 150 anos. O progresso alcançado no século XVI I I está
em que a própria lei se torna, agora, o veículo do roubo das terras do povo, embora os
grandes arrendatários também empreguem paralelamente seus pequenos e
independentes métodos privados203. A forma parlamentar do roubo é a das Bills for
Inclosures of Commons (leis para o cercamento da terra comunal), decretos de
expropriação do povo, isto é, decretos mediante os quais os proprietários fundiários
presenteiam a si mesmos, como propriedade privada, com as terras do povo. Sir
Francis Morton Eden refuta sua própria argumentão espirituosa de advogado, na
qual procura apresentar a propriedade comunal como propriedade privada dos
latifundiários que assumiram o lugar dos senhores feudais, quando exige “uma lei
parlamentar geral para o cercamento das terras comunais”, admitindo, com isso, ser
necessário um golpe de Estado parlamentar para transformar essas terras em
propriedade privada, e, por outro lado, quando reivindica ao poder legislativo uma
“indenização” para os pobres expropriados204.
Enquanto o lugar dos yeomen independentes foi ocupado por tenants-at-will,
arrendatários menores sujeitos a ser desalojados com um aviso prévio de um ano, isto
é, um bando servil e dependente do arbítrio do landlord, o roubo sistemático da
propriedade comunal, ao lado do roubo dos domínios estatais, ajudou especialmente a
inchar aqueles grandes arrendamentos, que, no século XVI I I , eram chamados de
fazendas de capital205 ou arrendamentos de mercador206, e a “liberar a população
rural para a instria, como proletariado.
No entanto, o século XVI I I ainda não compreendia, na mesma medida que a
compreendeu o século XI X, a identidade entre riqueza nacional e pobreza do povo.
Disso resulta a mais encarniçada pomica na literatura econômica da época em torno
d o inclosure of commons [Cercamento de terras comuns]. Da grande quantidade de
material de que disponho, apresento aqui algumas poucas passagens, pois assim se
possível obter uma ideia viva das circunstâncias.
520
Em muitas paróquias de Hertfordshire” escreve uma pena indignada “24 arrendamentos, cada um deles com
uma média de 50 a 150 acres, foram fundidos em 3 arrendamentos.”207 “Em Northamptonshire e Lincolnshire
tem predominado o cercamento das terras comunais, e a maior parte dos novos senhorios surgidos dos
cercamentos foi convertida em pastagens; em razão disso, hoje muitos senhorios não têm 50 acres sob o arado,
onde antes eram arados 1.500 acres [...]. Rnas de antigas habitações, celeiros, currais etc.” o os únicos vesgios
dos antigos habitantes. Em alguns lugares, 100 casas e famílias foram reduzidas [...] a 8 ou 10 [...]. Na maioria das
paróquias em que o cercamento se deu há apenas 15 ou 20 anos, o número de proprietários fundiários é muito
pequeno em comparação com o daqueles que cultivavam a terra no regime de campos abertos. Não é nada
incomum ver 4 ou 5 ricos pecuaristas usurparem senhorios recém-cercados, que antes encontravam-se em mãos
de 20 a 30 arrendatários e outros tantos pequenos proprietários e camponeses. Estes últimos e suas famílias foram
expulsos de suas propriedades juntamente com muitas outras famílias, que eram por eles ocupadas e
mantidas.”208
O que o landlord vizinho anexava, sob o pretexto do cercamento, não era apenas
terra alqueivada, mas eram frequentemente terras cultivadas comunalmente ou
mediante um determinado pagamento à comunidade.
Refiro-me aqui ao cercamento de campos abertos e terras já cultivadas. Mesmo os autores que defendem os
inclosures admitem que estes últimos aumentam o monopólio dos grandes arrendamentos, elevam os preços dos
meios de subsistência e provocam despovoamento [...] e mesmo o cercamento de terras desertas, como o praticam
agora, despoja os pobres de uma parte de seus meios de subsistência e incha arrendamentos que já o grandes
demais.”209 Quando” diz o dr. Price a terra cai em mãos de alguns poucos grandes arrendarios, os
pequenos arrendarios” (anteriormente caracterizados por ele como uma multio de pequenos proprietários e
arrendatários, que se mantêm a si mesmos e a suas famílias com o produto das terras cultivadas por eles mesmos e
com as ovelhas, aves, porcos etc. que criam nas terras comunais, tendo assim pouca necessidade de comprar
meios de subsistência) “se transformam em pessoas que têm de obter sua subsistência trabalhando para outrem e
que são forçadas a ir ao mercado para obter tudo de que precisam [...]. É possível que mais trabalho seja realizado,
porque há mais compulsão para isso [...]. Cidades e manufaturas crescerão, porque mais pessoas em busca de
trabalho serão impelidas para elas. Essa é a forma como a concentração dos arrendamentos naturalmente opera e o
modo como efetivamente tem operado, neste reino, muitos anos.”210
Assim ele resume o efeito global dos inclosures:
Em termos gerais, a situação das classes inferiores do povo tem piorado em quase todos os sentidos; os pequenos
proprietários fundiários e arrendarios foram rebaixados à condição de jornaleiros e trabalhadores mercenários,
ao mesmo tempo que se tornou cada vez mais dicil ganhar a vida nessa condição.”211
Com efeito, a usurpação da terra comunal e a conseguinte revolução da agricultura
surtem efeitos tão agudos sobre os trabalhadores agrícolas que, segundo o próprio
Eden, entre 1765 e 1780 o salário desses trabalhadores começou a cair abaixo do
mínimo e a ser complementado pela assistência oficial aos pobres. Seu salário, diz ele,
“já não bastava para satisfazer as necessidades vitais mais elementares”.
Oamos ainda por um instante um defensor dos enclosures e adversário do dr.
Price.
Não é correto concluir que haja despovoamento pelo fato de não se ver mais gente desperdiçando seu trabalho
em campo aberto [...]. Se, as a conversão dos pequenos camponeses em gente que tem de trabalhar para
outrem, mais trabalho é posto em movimento, isso constitui, de fato, uma vantagem que a nação qual os
convertidos naturalmente o pertencem) deve desejar [...]. O produto será maior se seu trabalho combinado for
empregado num arrendamento: desse modo, formar-se-á produto excedente para as manufaturas e, por meio
deste, as manufaturas, uma das minas de ouro desta nação, se multiplicao em proporção à quantidade de cereais
produzida.”212
A imperturbabilidade estoica com que o economista político encara as violações
mais inescrupulosas do “sagrado direito de propriedadee os atos de violência mais
grosseiros contra as pessoas, sempre que estes sejam necessários para produzir as
521
bases do modo de produção capitalista, demonstra-nos, entre outros, o “filantpico”
sir F. M. Eden, que, além de tudo, apresenta certa tendência tory. Toda a série de
pilhagens, horrores e opressão que acompanha a expropriação violenta do povo, do
último terço do século XV até o fim do século XVI I I , induz Eden apenas a esta
“confortável” reflexão final:
Era necessário estabelecer a proporção correta (due) entre as terras de lavoura e de pastagens. Ainda durante o
século XIV, e na maior parte do século XV, para cada acre de pastagens havia 2, 3 e até mesmo 4 acres de lavoura.
Em meados do século XVI, essa proporção transformou-se em 2 acres de pastagens para 2 acres de lavoura; mais
tarde, 2 acres de pastagens para 1 acre de lavoura, até que, por fim, alcaou-se a proporção correta de 3 acres de
pastagens para 1 acre de lavoura.”
No século XI X, naturalmente, perdeu-se até mesmo a lembrança do nexo entre o
lavrador e a propriedade comunal. Para não falar de tempos posteriores, que farthing
de indenização recebeu alguma vez a população rural pelos 3.511.770 acres de terras
comunais que lhes foram roubados entre 1810 e 1831 e que os landlords presentearam
aos landlords mediante o parlamento?
O último grande processo de expropriação que privou os lavradores da terra foi a
assim chamada clearing of estates (clareamento das propriedades rurais, o que significa,
na verdade, varrê-las de seres humanos). Todos os métodos ingleses até agora
observados culminaram no “clareamento”. Como vimos na parte anterior, ao
descrevermos a situação moderna, agora, quando já não há camponeses
independentes a serem varridos, passou-se ao “clareamento” dos cottages, de modo
que os trabalhadores agrícolas já não encontram o espaço necessário para suas
moradias, nem mesmo sobre o solo cultivado por eles. Mas o real significado de
clearing of estates só se pode aprender na terra prometida da moderna literatura de
romance, na alta Escócia. Lá, o processo se distingue por seu caráter sistemático, pela
magnitude da escala em que foi executado com um só golpe (na I rlanda, os senhores
fundiários o implementaram ao ponto de varrer várias aldeias ao mesmo tempo; na
alta Escócia, trata-se de áreas do tamanho de ducados alemães) e, finalmente, pela
forma particular da propriedade fundiária subtraída.
Os celtas da alta Escia formavam clãs, sendo cada um deles o proprietário do solo
em que se assentava. O representante do clã, seu chefe ou “grande homem”, era
apenas o proprietário titular desse solo, do mesmo modo como a rainha da I nglaterra
é a proprietária titular do solo nacional inteiro. Quando o governo inglês logrou
reprimir as guerras intestinas desses “grandes homens e suas contínuas incursões
nas planícies da baixa Escócia, os chefes dos clãs não abandonaram de modo nenhum
seu velho ofício de bandoleiros; apenas modificaram a forma. Por conta própria,
transformaram seu direito titular de propriedade em direito de propriedade privada, e,
como os membros do clã impusessem resistência, decidiram expulsá-los por meios
violentos.
“Com o mesmo direito, um rei da I nglaterra poderia ser autorizado a lançar seus
súditos ao mar”, diz o prof. Newman213. Essa revolução, que teve início na Escócia
depois do último levante do pretendentek, pode ser acompanhada em suas primeiras
fases, nas obras de sir J ames Steuart
214 e J ames Anderson215. No século XVI I I ,
proibiu-se também a emigração dos gaélicos expulsos de suas terras, a fim de impeli-
522
los violentamente para Glasgow e outras cidades fabris216. Como exemplo dos
métodos dominantes no século XI X
217, bastam aqui os “clareamentosrealizados por
ordem da duquesa de Sutherland. Essa pessoa, instruída em matérias econômicas,
decidiu, logo ao assumir o governo, aplicar um remédio econômico radical,
transformando em pastagens de ovelhas o condado inteiro, cuja população já fora
reduzida a 15 mil em consequência de processos de tipo semelhante. De 1814 até 1820,
esses 15 mil habitantes, aproximadamente 3 mil famílias, foram sistematicamente
expulsos e exterminados. Todos os seus vilarejos foram destruídos e incendiados;
todos os seus campos transformados em pastagens. Soldados britânicos foram
incumbidos da execução dessa tarefa e entraram em choque com os nativos. Uma anciã
morreu queimada na cabana que ela se recusara a abandonar. Desse modo, a duquesa
se apropriou de 794 mil acres de terras que desde tempos imemoriais pertenciam ao
clã. Aos nativos expulsos ela designou cerca de 6 mil acres de terras, 2 acres por
família, na orla marítima. Até então, esses 6 mil acres haviam permanecido ermos, e
seus proprietários não haviam obtido renda nenhuma com eles. Movida por seu nobre
sentimento, a duquesa chegou ao ponto de arrendar o acre de terra por 2 xelins e 6
pence às pessoas do c que por séculos haviam vertido seu sangue pela família
Sutherland. Toda a terra roubada ao clã foi dividida em 29 grandes arrendamentos,
destinados à criação de ovelhas; cada arrendamento era habitado por uma só família,
em sua maioria servos ingleses de arrendatários. No ano de 1825, os 15 mil gaélicos já
haviam sido substituídos por 131 mil ovelhas. A parte dos aborígines jogada na orla
marítima procurou viver da pesca. Tornaram-se anbios, vivendo, como diz um
escritor inglêsl, metade sobre a terra, metade na água e, no fim das contas, apenas
metade em ambas218.
Mas os bravos gaélicos deviam pagar ainda mais caro por sua idolatria romântica
de montanheses pelos “grandes homensdo clã. O cheiro de peixe subiu ao nariz dos
grandes homens. Estes farejaram algo lucrativo nesse assunto e arrendaram a orla
marítima aos grandes comerciantes de peixes de Londres. Os glicos foram expulsos
pela segunda vez219.
Por último, no entanto, uma parte das pastagens para ovelhas foi reconvertida em
reserva de caça. Na I nglaterra, como é sabido, não há florestas propriamente ditas. Os
animais que vagam pelos parques dos grandes são inquestionavelmente gado
doméstico, gordo como os aldermen [conselheiros municipais] londrinos. A Escócia é,
assim, o último asilo da “nobre paixão”.
Nas Terras Altas” diz S omers em 1848 as áreas florestais se ampliaram muito. Aqui, temos, de um lado de
Gaick, a nova floresta de Glenfeshie, e , do outro lado, a nova floresta de Ardverikie. Na mesma linha, temos o
Bleak-Mount, um imenso deserto, recém-inaugurado. De leste a oeste, das vizinhaas de Aberdeen até os
penhascos de Oban, uma linha contínua de florestas, ao passo que, em outras regiões das Terras Altas,
encontram-se as novas florestas de Loch Archaig, Glengarry, Glenmoriston etc. [...]. A transformação de sua terra
em pastagens de ovelhas [...] impeliu os gaélicos para terras estéreis. Agora, o veado começa a substituir a ovelha e
lança os gaélicos numa miséria ainda mais massacrante [...]. As florestas de caça219a e o povo não podem existir
um ao lado do outro. Um ou outro tem inevitavelmente de ceder espaço. Se no próximo quarto de século
deixarmos que as florestas de caça continuem a crescer em número e tamanho, como ocorreu no último quarto de
século, logo o se encontra mais nenhum gaélico em sua terra natal. Esse movimento entre os proprietários das
Terras Altas se deve, por um lado, à moda, aos pruridos aristocráticos, à paixão pela caça etc.; por outro lado,
porém, eles praticam o comércio da caça exclusivamente com um olho no lucro. Pois é fato que uma parte das
terras montanhosas, convertida em reserva de caça, é em muitos casos incomparavelmente mais lucrativa do que
523
se convertida em pastagens de ovelhas [...]. O aficionado que procura uma reserva de caça só limita sua oferta pelo
tamanho de sua bolsa [...]. Nas Terras Altas, foram impostos sofrimentos o menos cruéis do que aqueles
impostos à Inglaterra pela política dos reis normandos. Aos veados foi dado mais espaço, enquanto os seres
humanos foram acossados num círculo cada vez mais estreito [...] Roubou-se do povo uma liberdade atrás da
outra [...]. E a opressão ainda cresce diariamente. Clareamento e expulsão do povo são seguidos pelos proprietários
como princípios inexoráveis, como uma necessidade agcola, do mesmo modo como são varridos as árvores e os
arbustos nas florestas da América e da Austrália, e a operação segue sua marcha tranquila, adequada aos
negócios.”220
O roubo dos bens da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios estatais, o furto
da propriedade comunal, a transformação usurpatória, realizada com inescrupuloso
terrorismo, da propriedade feudal e clânica em propriedade privada moderna, foram
outros tantos métodos idílicos da acumulação primitiva. Tais todos conquistaram o
campo para a agricultura capitalista, incorporaram o solo ao capital e criaram para a
indústria urbana a oferta necessária de um proletariado inteiramente livre.
3. Legislação sanguinária contra os expropriados desde o
final do século XV. Leis para a compreso dos salários
Expulsos pela dissolução dos séquitos feudais e pela expropriação violenta e
intermitente de suas terras, esse proletariado inteiramente livre não podia ser
absorvido pela manufatura emergente com a mesma rapidez com que fora trazido ao
mundo. Por outro lado, os que foram repentinamente arrancados de seu modo de vida
costumeiro tampouco conseguiam se ajustar à disciplina da nova situação.
Converteram-se massivamente em mendigos, assaltantes, vagabundos, em parte por
predisposição, mas na maioria dos casos por força das circunstâncias. I sso explica o
surgimento, em toda a Europa ocidental, no final do culo XV e ao longo do século
XVI , de uma legislação sanguinária contra a vagabundagem. Os pais da atual classe
trabalhadora foram inicialmente castigados por sua metamorfose, que lhes fora
imposta, em vagabundos e paupers. A legislação os tratava como delinquentes
“voluntários e supunha depender de sua boa vontade que eles continuassem a
trabalhar sob as velhas condições, já inexistentes.
Na Inglaterra, essa legislação teve início no reinado de Henrique VII.
Henrique VI I I , 1530: mendigos velhos e incapacitados para o trabalho recebem
uma licença para mendigar. Em contrapartida, açoitamento e encarceramento para os
vagabundos mais vigorosos. Estes devem ser amarrados a um carro e açoitados até
sangrarem; em seguida, devem prestar juramento de retornarem à sua terra natal ou
ao lugar onde tenham residido durante os últimos três anos e de “se porem a
trabalhar” (to put himself to labour). Que ironia cruel! Na lei 27 Henrique VI I I
m, reitera-
se o estatuto anterior, porém diversas emendas o tornam mais severo. Em caso de uma
segunda prisão por vagabundagem, o indivíduo deveser novamente açoitado e ter a
metade da orelha cortada; na terceira reincidência, porém, o u deve ser executado
como grave criminoso e inimigo da comunidade.
Eduardo VI : um estatuto do primeiro ano de seu reinado, 1547, estabelece que
quem se recusar a trabalhar deveser condenado a se tornar escravo daquele que o
denunciou como vadio. O amo deve alimentar seu escravo com pão e água, caldos
fracos e os restos de carne que lhe param convenientes. Ele tem o direito de forçá-lo
524
a qualquer trabalho, mesmo o mais repugnante, por meio de açoites e agrilhoamento.
O escravo que fugir e permanecer ausente por 14 dias secondenado à escravidão
perpétua e deveser marcado a ferro na testa ou na face com a letra S; se fugir pela
terceira vez, se executado por alta traição. Seu dono pode vendê-lo, legá-lo a
herdeiros ou alugá-lo como escravo, tal como qualquer outro bem móvel ou gado
doméstico. Os escravos que tentarem qualquer ão contra os senhores também
deverão ser executados. Os juízes de paz, assim que informados, deverão perseguir os
velhacos. Quando se descobrir que um vagabundo esteve vadiando por 3 dias, ele
deverá ser conduzido à sua terra natal, marcado com um ferro em brasa no peito com a
letra V e acorrentado para trabalhar nas estradas ou ser utilizado em outras tarefas. Se
o vagabundo informar um lugar de nascimento falso, seu castigo seo de se tornar
escravo vitalício dessa localidade, de seus habitantes ou da corporação, além de ser
marcado a ferro com um S. Todas as pessoas m o direito de tomar os filhos dos
vagabundos e mantê-los como aprendizes: os rapazes até os 24 anos, as moças até os
20. Se fugirem, eles deverão, até atingir essa idade, ser escravos dos mestres, que
poderão acorrentá-los, oitá-los etc., como bem o quiserem. Todo amo tem permissão
para pôr um anel de ferro no pescoço, nos braços ou nas pernas de seu escravo, para
poder reconhe-lo melhor e estar mais seguro de sua posse221. A última parte desse
estatuto prevê que certos pobres devem ser empregados pela localidade ou pelos
indivíduos que lhes deem de comer e de beber e queiram encontrar trabalho para eles.
Esse tipo de escravos paroquiais subsistiu na I nglaterra até o avançar do século XI X,
sob o nome de roundsmen (circulantes).
Elizabeth, 1572: mendigos sem licea e com mais de 14 anos de idade devem ser
severamente açoitados e ter a orelha esquerda marcada a ferro, caso ninguém queira
tomá-los a serviço por 2 anos; em caso de reincidência, se com mais de 18 anos de
idade, devem ser executados, caso ninguém queira tomá-los a serviço por 2 anos; na
segundan reincidência, serão executados sem misericórdia, como traidores do Estado.
Estatutos similares: 18 Elizabeth, c. 13o e os do ano 1597221a.
J aime I : alguém que vagueie e mendigue se declarado um desocupado e
vagabundo. Os juízes de paz, nas Pey Sessionsp, têm autorização para mandar oitá-
los em público e encarcerá-los, na primeira ocorrência, por 6 meses, e na segunda, por
2 anos. Durante seu tempo na prisão, serão açoitados tanto e tantas vezes quanto os
juízes de paz considerarem conveniente... Os vagabundos incorrigíveis e perigosos
devem ser marcados a ferro no ombro esquerdo com a letra Rq e condenados a
trabalho forçado, e se forem apanhados de novo mendigando devem ser executados
sem perdão. Essas disposições legais, vigentes até o começo do século XVI I I , só foram
revogadas por 12 Ana c. 23.
Leis semelhantes foram promulgadas na França, onde, em meados do século XVI I ,
estabeleceu-se um reino de vagabundos (royaume des truands), em Paris. Ainda nos
primeiros anos de reinado de Luís XVI (ordenança de 13 de julho de 1777) dispôs-se
que todo homem de constituição saudável, entre 16 e 60 anos, caso desprovido de
meios de existência e do exercício de uma profissão, devia ser mandado às galés. De
modo semelhante, o estatuto de Carlos V para os Pses Baixos, de outubro de 1537, o
primeiro édito dos Estados e Cidades da Holanda, de 19 de março de 1614, e o plakaatr
525
das Províncias Unidas de 25 de julho de 1649 etc.
Assim, a população rural, depois de ter sua terra violentamente expropriada, sendo
dela expulsa e entregue à vagabundagem, viu-se obrigada a se submeter, por meio de
leis grotescas e terroristas, e por força de açoites, ferros em brasa e torturas, a uma
disciplina necessária ao sistema de trabalho assalariado.
Não basta que as condições de trabalho apareçam num polo como capital e no
outro como pessoas que não têm nada para vender, a não ser sua força de trabalho.
Tampouco basta obrigá-las a se venderem voluntariamente. No evolver da produção
capitalista desenvolve-se uma classe de trabalhadores que, por educação, tradão e
hábito, reconhece as exigências desse modo de produção como leis naturais e
evidentes por si mesmas. A organização do processo capitalista de produção
desenvolvido quebra toda a resistência; a constante geração de uma superpopulação
relativa mantém a lei da oferta e da demanda de trabalho, e, portanto, o salário, nos
trilhos convenientes às necessidades de valorização do capital; a coerção muda
exercida pelas relações econômicas sela o domínio do capitalista sobre o trabalhador.
A vioncia extraeconômica, direta, continua, é claro, a ser empregada, mas apenas
excepcionalmente. Para o curso usual das coisas, é possível confiar o trabalhador às
“leis naturais da produção”, isto é, à dependência em que ele mesmo se encontra em
relação ao capital, dependência que tem origem nas próprias condições de produção e
que por elas é garantida e perpetuada. Diferente era a situação durante a nese
histórica da produção capitalista. A burguesia emergente requer e usa a força do
Estado para “regular” o salário, isto é, para comprimi-lo dentro dos limites favoráveis
à produção de mais-valor, a fim de prolongar a jornada de trabalho e manter o próprio
trabalhador num grau normal de dependência. Esse é um momento essencial da assim
chamada acumulação primitiva.
A classe dos assalariados, surgida na segunda metade do século XI V, constituía
nessa época, e também no século seguinte, apenas uma parte muito pequena da
população, cuja posição era fortemente protegida, no campo, pela economia
camponesa independente e, na cidade, pela organização corporativa. No campo e na
cidade, mestres e trabalhadores estavam socialmente próximos. A subordinação do
trabalho ao capital era apenas formal, isto é, o próprio modo de produção não possa
ainda um caráter especificamente capitalista. O elemento variável do capital
preponderava consideravelmente sobre o constante. Por isso, a demanda de trabalho
assalariado crescia rapidamente com cada acumulação do capital, enquanto a oferta de
trabalho assalariado a seguia apenas lentamente. Grande parte do produto nacional,
mais tarde convertida em fundo de acumulação do capital, ainda integrava, nessa
época, o fundo de consumo do trabalhador.
A legislação sobre o trabalho assalariado, desde sua origem cunhada para a
exploração do trabalhador e, à medida de seu desenvolvimento, sempre hostil a ele222,
foi iniciada na Inglaterra, em 1349, pelo Statute of Labourers [Estatuto dos
trabalhadores] de Eduardo I I I . A ele corresponde, na França, a ordenança de 1350,
promulgada em nome do rei J oão. As legislações inglesa e francesa seguem um curso
paralelo e são idênticas quanto ao conteúdo. Na medida em que os estatutos dos
trabalhadores procuram impor o prolongamento da jornada de trabalho, não voltarei a
526
eles, pois esse ponto já foi examinado anteriormente (capítulo 8, item 5).
O Statute of Labourers foi promulgado em razão das reclamações insistentes da
Câmara dos Comuns.
Antes diz ingenuamente um tory os pobres exigiam salários tão altos que ameaçavam a indústria e a
riqueza. Hoje, seu sario é o baixo que igualmente ameaça a indústria e a riqueza, mas de outra maneira, e
talvez com muito maior perigo do que eno.”223
Uma tarifa legal de salários foi estabelecida para a cidade e para o campo, para o
trabalho por peça e por dia. Os trabalhadores rurais deviam ser contratados por ano, e
os da cidade, “no mercado aberto”. Proibia-se, sob pena de prisão, pagar salários mais
altos do que o determinado por lei, mas quem recebia um salário mais alto era punido
mais severamente do que quem o pagava. Assim, as seções 18 e 19 do Estatuto dos
Aprendizes da rainha Elizabeth impunham 10 dias de prisão para quem pagasse um
salário mais alto, e 21 dias para quem o recebesse. Um estatuto de 1360 tornava mais
rigorosas as penas e, inclusive, autorizava o patrão a empregar a coação sica para
extorquir trabalho pela tarifa legal de salário. Todas as combinações, convênios,
juramentos etc. pelos quais pedreiros e carpinteiros se vinculavam entre si, eram
declarados nulos e sem valor. Desde o século XI V até 1825, ano da revogação das leis
anticoalizão, considerava-se crime grave toda coalizão de trabalhadores. O esrito do
estatuto trabalhista de 1349 e de seus descendentes se revela muito claramente no fato
de que o Estado impõe um salário máximo, mas de modo algum umnimo.
No século XVI , como se sabe, a situação dos trabalhadores piorou
consideravelmente. O salário em dinheiro subiu, mas não na proporção da depreciação
do dinheiro e ao consequente aumento dos preços das mercadorias. Na realidade,
portanto, o salário caiu. Todavia, permaneceram em vigor as leis voltadas a seu
rebaixamento, acompanhadas dos cortes de orelhas e das marcações a ferro daqueles
“que ninguém quis tomar a seu serviço”. O estatuto dos aprendizes 5 Elizabeth c. 3
autorizou os juízes de paz a fixar certos salários e a modificá-los de acordo com as
estações do ano e os preços das mercadorias. J aime I estendeu essa regulação do
trabalho aos tecees, fiandeiros e a todas as categorias possíveis de trabalhadores224,
e Jorge II estendeu as leis anticoalizão a todas as manufaturas.
No período manufatureiro propriamente dito, o modo de produção capitalista
estava suficientemente fortalecido para tornar a regulação legal do salário tão
inaplicável como supérflua, mas se preferiu conservar, para o caso de necessidade, as
armas do velho arsenal. A lei 8 J orge I I ainda proibia que os oficiais de alfaiataria
recebessem, em Londres e arredores, salários acima de 2 xelins e 71/2 pence por dia,
salvo em casos de luto público; a lei 13 J orge I I I c. 68 transferiu aos juízes de paz a
regulamentação dos salários dos tecees de seda; em 1796, foram necessárias duas
sentenças dos tribunais superiores para decidir se os mandatos dos juízes de paz
sobre salários também valiam para os trabalhadores não agrícolas; em 1799, uma lei do
Parlamento confirmou que o salário dos mineiros da Escócia devia ser regulado por
uma lei da época da rainha Elizabeth e por duas leis escocesas, de 1661 e 1671. O
quanto as condões se haviam alterado nesse ínterim o demonstra um fato inaudito,
ocorrido na Câmara Baixa inglesa. Aqui, onde mais de 400 anos se haviam fabricado
leis fixando o máximo que o salário não deveria, em nenhum caso, ultrapassar,
527
Whitbread propôs que se fixasse um salário nimo legal para os jornaleiros agrícolas.
Pi opôs-se, porém admitiu que “a situação dos pobres era cruel (cruel)”. Por fim, em
1813, as leis de regulação dos salários foram revogadas. Elas eram uma ridícula
anomalia, desde que o capitalista passara a regular a fábrica por meio de sua legislação
privada, deixando que o imposto de beneficência complementasse o salário do
trabalhador rural até o mínimo indispensável. As disposições do Estatuto do Trabalho
sobre contratos entre patrões e assalariados, prazos para demissões e questões
análogas, que permitem apenas uma ão civil contra o patrão por quebra contratual,
mas uma ão criminal contra o trabalhador que cometer essa mesma infração,
permanecem em pleno vigor até o momento atual.
As cruéis leis anticoalizões caíram em 1825, diante da atitude ameaçadora do
proletariado. Apesar disso, caíram apenas parcialmente. Alguns belos resíduos dos
velhos estatutos desapareceram somente em 1859. Finalmente, a lei parlamentar de 29
de junho de 1871 pretendeu eliminar os últimos vestígios dessa legislação classista,
reconhecendo legalmente as trades’ unions. Mas uma lei parlamentar da mesma data
(An act to amend the criminal law relating to violence, threats and molestations) restaurou,
de fato, a situação anterior sob nova forma. Por meio dessa escamoteação parlamentar,
os meios a que os trabalhadores podem recorrer numa greve ou lock-out (greve dos
fabricantes coligados, realizada mediante o fechamento simultâneo de suas fábricas)
são subtraídos ao direito comum e submetidos a uma legislação penal de exceção, cuja
interpretação cabe aos próprios fabricantes, em sua condição de jzes de paz. Dois
anos antes, a mesma Câmara dos Comuns e o mesmo sr. Gladstone, com a proverbial
honradez que os distinguem, haviam apresentado um projeto de lei que abolia todas
as leis penais de exceção contra a classe trabalhadora. Pom, jamais se permitiu que
tal projeto chegasse a uma segunda leitura, e assim a questão foi protelada até que o
“grande partido liberal”, por meio de uma aliança com os tories, ganhou finalmente a
coragem de se voltar resolutamente contra o mesmo proletariado que o conduzira ao
poder. Não satisfeito com essa traição, o “grande partido liberal” autorizou os jzes
ingleses, sempre a abanar o rabo a serviço das classes dominantes, a desenterrar as
proscritas leis sobre “conspiraçõese a aplicá-las às coalizões de trabalhadores. Como
vemos, o parlamento inglês só renunciou às leis contra as greves e trades unions contra
sua vontade e sob a pressão das massas, depois de ele mesmo ter assumido, por cinco
séculos e com desavergonhado egoísmo, a posição de uma permanente trades union
dos capitalistas contra os trabalhadores.
J á no início da tormenta revolucionária, a burguesia francesa ousou despojar
novamente os trabalhadores de seu recém-conquistado direito de associação. O
decreto de 14 de junho de 1791 declarou toda coalizão de trabalhadores como um
“atentado à liberdade e à Declaração dos Direitos Humanos”, punível com uma multa
de 500 libras e privação, por um ano, dos direitos de cidadania ativa225. Essa lei, que
por meio da polícia estatal impõe à luta concorrencial entre capital e trabalho
obstáculos convenientes ao capital, sobreviveu a revoluções e mudanças dinásticas.
Mesmo o regime do Terrort a manteve intocada. Apenas muito recentemente ela foi
riscada do Code Pénal [código penal]. Nada mais característico que o pretexto deste
golpe de Estado burguês. Ainda que seja desejável” diz Le Chapelier “que o
528
salário ultrapasse seu vel atual, para que, desse modo, aquele que o receba escape
dessa dependência absoluta condicionada pela privação dos meios de primeira
necessidade, que é quase a dependência da escravidão”, os trabalhadores não devem
ser autorizados, contudo, a pôr-se de acordo sobre seus interesses, a agir em comum e,
por meio disso, a mitigar sua “dependência absoluta, que é quase a dependência da
escravidão”, porque assim feririam a “a liberdade de seus ci-devant maîtres [antigos
amos], dos atuais empresários (a liberdade de manter os trabalhadores na
escravidão!), e porque uma coalizão contra o despotismo dos antigos mestres das
corporações adivinhe equivaleria a restaurar as corporações abolidas pela
constituição francesa!226
4. Gênese dos arrendatários capitalistas
Depois de termos analisado a violenta criação do proletariado inteiramente livre, a
disciplina sanguinária que os transforma em assalariados, a sórdida ão do Estado,
que, por meios policiais, eleva o grau de exploração do trabalho e, com ele, a
acumulação do capital, perguntamo-nos: de onde se originam os capitalistas? Pois a
expropriação da população rural, diretamente, cria apenas grandes proprietários
fundiários. No que diz respeito à gênese do arrendatário, poderíamos, por assim dizer,
tocá-la com a mão, pois se trata de um processo lento, que se arrasta por muitos
séculos. Os próprios servos, e ao lado deles também pequenos proprietários livres,
encontravam-se submetidos a relações de propriedade muito diferentes, razão pela
qual também foram emancipados sob condões econômicas muito diferentes.
Na I nglaterra, a primeira forma de arrendatário é a do bailiff, ele mesmo um servo
da gleba. Sua posição é análoga a do villicusu da Roma Antiga, porém com um raio de
ação mais estreito. Durante a segunda metade do século XI V, ele é substituído por um
arrendatário, a quem o landlord provê sementes, gado e instrumentos agrícolas. Sua
situação não é muito distinta da do camponês. Ele apenas explora mais trabalho
assalariado. Não tarda em se converter em metayer [meeiro], meio arrendatário. Ele
investe uma parte do capital agrícola, o landlord a outra. Ambos repartem entre si o
produto global em proporção determinada por contrato. Essa forma desaparece
rapidamente na I nglaterra e lugar ao arrendatário propriamente dito, que valoriza
seu capital próprio por meio do emprego de trabalhadores assalariados e paga ao
landlord, como renda da terra, uma parte do mais-produto, em dinheiro ou in natura.
No século XV, enquanto o camponês independente e o servo agrícola que
trabalha ao mesmo tempo como assalariado e para si mesmo se enriquecem com seu
próprio trabalho, a situação do arrendatário e seu campo de produção continuam
medíocres. A revolução agrícola, que ocorre no último terço do século XV e se estende
por quase todo o século XVI (com exceção, porém, de suas últimas décadas),
enriqueceu o arrendatário com a mesma rapidez com que empobreceu a população
rural227. A usurpação das pastagens comunais etc. permite-lhe aumentar, quase sem
custos, o número de suas cabeças de gado, ao mesmo tempo que o gado lhe fornece
uma maior quantidade de adubo para o cultivo do solo.
No século XVI , a isso se soma mais um elemento de importância decisiva. Naquela
529
época, os contratos de arrendamento eram longos, frequentemente por 99 anos. A
contínua queda no valor dos metais nobres e, por conseguinte, do dinheiro, rendeu
frutos de ouro ao arrendatário. Ela reduziu, abstraindo as demais circunstâncias
anteriormente expostas, o vel do salário. Uma fração deste último foi incorporada ao
lucro do arrendatário. O constante aumento dos preços do cereal, da lã, da carne, em
suma, de todos os produtos agrícolas, inchou o capital monetário do arrendatário sem
o concurso deste último, enquanto a renda da terra, que ele tinha de pagar, estava
contratualmente fixada em valores monetários ultrapassados228. Desse modo, ele se
enriquecia, a um só tempo, à custa de seus trabalhadores assalariados e de seu
landlord. Não é de admirar, pois, que a I nglaterra, no fim do século XVI , posssse
uma classe de “arrendatários capitalistas”, consideravelmente ricos para os padrões da
época229.
5. Efeito retroativo da revolão agcola sobre a indústria.
Criação do mercado interno para o capital industrial
A intermitente e sempre renovada expropriação e expulsão da população rural
forneceu à indústria urbana, como vimos, massas cada vez maiores de proletários,
totalmente estranhos às relações corporativas, uma sábia circunstância que faz o velho
Adam Anderson (não confundir com J ames Anderson), em sua história do corcio,
crer numa intervenção direta da Providência. Temos de nos deter, ainda por um
momento, no exame desse elemento da acumulação primitiva. À rarefação da
população rural independente, que cultivava suas próprias terras, correspondeu um
condensamento do proletariado industrial, do mesmo modo como, segundo Geoffroy
Saint-Hilaire, o condensamento da matéria cósmica em um ponto se explica por sua
rarefação em outro230. Em que pese o número reduzido de seus cultivadores, o solo
continuava a render tanta produção quanto antes, ou ainda mais, porque a revolução
nas relações de propriedade fundiária era acompanhada de métodos aperfeiçoados de
cultivo, de uma maior cooperação, da concentração dos meios de produção etc., e
porque não só os assalariados agrícolas foram obrigados a trabalhar com maior
intensidade231, mas também o campo de produção sobre o qual trabalhavam para si
mesmos se contraiu cada vez mais. Com a liberação de parte da população rural,
liberam-se também seus meios alimentares anteriores. Estes se transformam, agora,
em elemento material do capital variável. O camponês deixado ao u tem de adquirir
de seu novo senhor, o capitalista industrial, e sob a forma de salário, o valor desses
meios alimentares. O que ocorre com os meios de subsistência também ocorre com as
matérias-primas agrícolas locais da indústria. Elas se convertem em elemento do
capital constante.
Suponha, por exemplo, que uma parte dos camponeses da Vestfália, que no tempo
de Frederico I I fiavam linho, ainda que não de seda, fosse violentamente expropriada e
expulsa da terra, enquanto a parte restante fosse transformada em jornaleiros de
grandes arrendatários. Ao mesmo tempo, ergueram-se grandes fiações e tecelagens de
linho, nas quais os “liberadospassaram a trabalhar, agora por salários. O linho tem
exatamente o mesmo aspecto de antes. Não se modificou nem uma única de suas
530
fibras, mas uma nova alma social instalou-se em seu corpo. Ele constitui, agora, uma
parte do capital constante dos patrões manufatureiros. Antes, ele era repartido entre
inúmeros pequenos produtores, que, com suas famílias, o cultivavam e fiavam em
pequenas porções; agora, ele se concentra nas mãos de um capitalista, que coloca
outros para fiar e tecer para ele. Anteriormente, o trabalho extra gasto na fiação do
linho resultava em receita complementar para inúmeras famílias camponesas ou, à
época de Frederico I I , em impostos pour le roi de Prusse [para o rei da Prússia]. Ele se
realiza, agora, no lucro de poucos capitalistas. Os fusos e teares, antes esparsos pelo
interior, agora se concentram em algumas grandes casernas de trabalho, do mesmo
modo que os trabalhadores e a matéria-prima. E fusos, teares e matéria-prima, que
antes constituíam meios de existência independentes para fiandeiros e tecelões, de
agora em diante se transformam em meios de comandá-los232 e de deles extrair
trabalho não pago. Quando se observa as grandes manufaturas, bem como os grandes
arrendamentos, não se percebe que são constituídos de muitos pequenos centros de
produção, nem que se formaram pela expropriação de muitos pequenos produtores
independentes. No entanto, um olhar imparcial não se deixa enganar. À época de
Mirabeau, o leão da revolução, as grandes manufaturas ainda eram chamadas de
manufactures réunies, oficinas reunidas, assim como falamos de lavouras reunidas.
Veem-se apenas diz Mirabeau as grandes manufaturas, onde centenas de seres humanos trabalham sob as
ordens de um diretor e que são habitualmente chamadas de manufaturas reunidas (manufactures unies). Já
aquelas onde há um número muito grande de operários trabalhando de modo disperso, e cada um por sua
própria conta, quase não merecem atenção. São colocadas em segundo plano. Trata-se de um erro grave, pois só
estas últimas constituem um componente realmente importante da riqueza do povo [...]. A brica reunida
(fabrique unie) enriquece prodigiosamente um ou dois emprerios, mas os trabalhadores são apenas jornaleiros
melhor ou pior remunerados e não têm qualquer participao no bem-estar do empresário. Na fábrica separada
(fabrique sépae), ao contrário, ninguém fica rico, mas uma porção de trabalhadores se encontra em situação
confortável [...]. O número de trabalhadores aplicados e parcimoniosos crescerá, pois eles mesmos reconhecem
que uma vida baseada na prudência e na atividade é um meio de melhorar substancialmente sua situação, em vez
de obter um pequeno aumento salarial que nunca pode significar algo importante para o futuro e cujo único
resultado será, no máximo, que os homens vivam um pouco melhor, mas sempre com uma mão na frente e outra
atrás. As manufaturas individuais e separadas, geralmente vinculadas à pequena agricultura, o as únicas
livres.”233
A expropriação e expulsão de uma parte da população rural não só libera
trabalhadores para o capital industrial, e com eles seus meios de subsistência e seu
material de trabalho, mas cria também o mercado interno.
De fato, os acontecimentos que transformam os pequenos camponeses em
assalariados, e seus meios de subsistência e de trabalho em elementos materiais do
capital, criam para este último, ao mesmo tempo, seu mercado interno.
Anteriormente, a família camponesa produzia e processava os meios de subsistência e
matérias-primas que ela mesma, em sua maior parte, consumia. Essas matérias-primas
e meios de subsistência converteram-se agora em mercadorias; o grande arrendatário
as vende e encontra seu mercado nas manufaturas. Fios, panos, tecidos grosseiros de
lã, coisas cujas matérias-primas se encontravam no âmbito de toda família camponesa
e que eram fiadas e tecidas por ela para seu consumo próprio, transformam-se, agora,
em artigos de manufatura, cujos mercados são formados precisamente pelos distritos
rurais. A numerosa clientela dispersa, até então condicionada por uma grande
531
quantidade de pequenos produtores, trabalhando por conta própria, concentra-se
agora num grande mercado, abastecido pelo capital industrial234.
Desse modo, a expropriação dos camponeses que antes cultivavam suas próprias
terras e agora são apartados de seus meios de produção acompanha a destruição da
indústria rural subsidiária, o processo de cisão entre manufatura e agricultura. E
apenas a destruição da indústria doméstica rural pode dar ao mercado interno de um
país a amplitude e a sólida consistência de que o modo de produção capitalista
necessita.
No entanto, o período manufatureiro propriamente dito não provocou uma
transformação radical. Recordemos que a manufatura só se apodera muito
fragmentariamente da produção nacional e tem sempre como sua ampla base de
sustentação o artesanato urbano e a indústria subsidiária doméstica e rural. Toda vez
que a manufatura destrói essa indústria doméstica em uma de suas formas, em ramos
particulares de negócio e em determinados pontos, ela provoca seu ressurgimento em
outros, pois tem necessidade dela, até certo grau, para o processamento da matéria-
prima. Ela produz, assim, uma nova classe de pequenos lavradores, que cultivam o
solo como atividade subsidiária e exercem como negócio principal o trabalho
industrial para a venda dos produtos à manufatura, diretamente ou por meio do
comerciante. Essa é uma causa, embora não a principal, de um fenômeno que,
inicialmente, desconcerta o investigador da história inglesa. A partir do último teo
do século XV, tal pesquisador encontra reclamações contínuas, interrompidas apenas
durante certos intervalos, sobre o avanço da economia capitalista no campo e a
aniquilação progressiva do campesinato. Por outro lado, volta sempre a reencontrar
este campesinato, ainda que em menor número e em situação cada vez pior235. A
causa principal é a seguinte: a I nglaterra é predominantemente, ora cultivadora de
trigo, ora criadora de gado, em peodos alternados, e com essas atividades varia o
tamanho da empresa camponesa. Somente a grande indústria proporciona, com as
máquinas, o fundamento constante da agricultura capitalista, expropria radicalmente a
imensa maioria da população rural e consuma a cisão entre a agricultura e a indústria
doméstica rural, cujas raízes – a ação e a tecelagem ela extirpa236. Portanto, é só ela
que conquista para o capital industrial todo o mercado interno237.
6. Gênese do capitalista industrial
A nese do capitalista industrial238 não se deu de modo tão gradativo como a do
arrendatário. Sem dúvida, muitos pequenos mestres corporativos, e mais ainda
pequenos artesãos independentes, ou também trabalhadores assalariados,
transformaram-se em pequenos capitalistas e, por meio da exploração paulatina do
trabalho assalariado e da correspondente acumulação, em capitalistas sans phrase [sem
floreios]. Durante a infância da produção capitalista, as coisas se deram, muitas vezes,
como na infância do sistema urbano medieval, quando a questão de saber qual dos
servos fugidos devia se tornar mestre ou criado era geralmente decidida com base na
data mais ou menos recente de sua fuga. Entretanto, a marcha de lesma desse todo
não correspondia em absoluto às necessidades comerciais do novo mercado mundial,
532
que fora criado pelas grandes descobertas do fim do século XV. Mas a I dade Média
havia legado duas formas distintas do capital, que amadureceram nas mais diversas
formações socioeconômicas e, antes da era do modo de produção capitalista, já valiam
como capital quand même [em geral]: o capital usurário e o capital comercial.
Hoje em dia, toda a riqueza da sociedade passa primeiro pelas mãos do capitalista [...] ele paga a renda ao
proprietário da terra, o salário ao trabalhador, ao coletor de imposto e dízimo aquilo que estes reclamam e guarda
para si mesmo uma parte grande que na realidade é a maior e, além disso, aumenta a cada dia do produto
anual do trabalho. O capitalista pode agora ser considerado o primeiro proprierio de toda a riqueza social, ainda
que nenhuma lei lhe tenha concedido o direito a essa propriedade [...]. Essa mudança na propriedade foi realizada
pela cobraa de juros sobre o capital [...] e não é menos estranho que os legisladores de toda a Europa tenham
procurado deter esse processo mediante leis contra a usura [...]. O poder do capitalista sobre a riqueza inteira do
país é uma revolão completa no direito de propriedade, e por meio de que lei ou série de leis ela foi
realizada?239
O autor deveria ter dito que revoluções não se fazem por meio de leis.
O regime feudal no campo e a constituição corporativa nas cidades impediram o
capital monetário, constituído pela usura e pelo comércio, de se converter em capital
industrial240. Essas barreiras caíram com a dissolução dos séquitos feudais e com a
expropriação e a parcial expulsão da população rural. A nova manufatura se instalou
nos portos marítimos exportadores ou em pontos do campo não sujeitos ao controle
do velho regime urbano e de sua constituição corporativa. Na I nglaterra se assistiu,
por isso, a uma amarga luta das corporate townsv contra essas novas incubadoras
industriais.
A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a
escravização e o soterramento da população nativa nas minas, o começo da conquista e
saqueio das Índias Orientais, a transformação da África numa reserva para a caça
comercial de peles-negras caracterizam a aurora da era da produção capitalista. Esses
processos idílicos constituem momentos fundamentais da acumulação primitiva. A
eles se segue imediatamente a guerra comercial entre as nações europeias, tendo o
globo terrestre como palco. Ela é inaugurada pelo levante dos Países Baixos contra a
dominação espanhola, assume proporções gigantescas na guerra antijacobina inglesa e
prossegue ainda hoje nas guerras do ópio contra a China etc.
Os diferentes momentos da acumulação primitiva repartem-se, agora, numa
sequência mais ou menos cronológica, principalmente entre Espanha, Portugal,
Holanda, França e I nglaterra. Na I nglaterra, no fim do século XVI I , esses momentos
foram combinados de modo sistêmico, dando origem ao sistema colonial, ao sistema
da dívida pública, ao moderno sistema tributário e ao sistema protecionista. Tais
métodos, como, por exemplo, o sistema colonial, baseiam-se, em parte, na violência
mais brutal. Todos eles, porém, lançaram mão do poder do Estado, da violência
concentrada e organizada da sociedade, para impulsionar artificialmente o processo de
transformação do modo de produção feudal em capitalista e abreviar a transão de
um para o outro. A violência é a parteira de toda sociedade velha que está prenhe de
uma sociedade nova. Ela mesma é uma potência econômica.
Sobre o sistema colonial cristão, afirma W. Howi, um homem que faz do
cristianismo uma especialidade:
As barbaridades e as iníquas crueldades perpetradas pelas assim chamadas raças cristãs, em todas as reges do
533
mundo e contra todos os povos que conseguiram subjugar, não encontram paralelo em nenhuma era da história
universal e em nenhuma raça, por mais selvagem e inculta, por mais desapiedada e inescrupulosa que fosse.”241
A história da economia colonial holandesa e a Holanda foi a nação capitalista
modelar do século XVI I “apresenta-nos um quadro insuperável de traição, suborno,
massacre e infâmia”242. Nada é mais característico que seu sistema de roubo de
pessoas, aplicado nas ilhas Celebes para obter escravos para J ava. Os ladrões de
pessoas eram treinados para esse objetivo. O ladrão, o intérprete e o vendedor eram os
principais agentes nesse negócio, e os príncipes nativos eram os principais
vendedores. Os jovens sequestrados eram mantidos escondidos nas prisões secretas
das ilhas Celebes até que estivessem maduros para serem enviados aos navios de
escravos. Um relatório oficial diz: “Esta cidade de Macassar, por exemplo, está repleta
de prisões secretas, uma mais abominável que a outra, abarrotadas de miseráveis,
vítimas da cobiça e da tirania, acorrentados, arrancados violentamente de suas
famílias”.
Para se apoderar de Málaca, os holandeses subornaram o governador portugs.
Este, em 1641, deixou-os entrar na cidade. Os invasores apressaram-se à casa do
governador e o assassinaram, a fim de se “absterem” de pagar-lhe as £21.875
prometidas como suborno. Onde pisavam, seguiam-nos a devastação e o
despovoamento. Banjuwangi, uma província de J ava, contava, em 1750, com mais de 80
mil habitantes; em 1811, apenas 8 mil. Eis o doux commerce [doce comércio]!
É sabido que a Companhia I nglesa das Índias Orientais obteve, além do domínio
político nas Índias Orientais, o monopólio do comércio de chá, bem como do comércio
chinês em geral e do transporte de produtos para a Europa. Mas a navegação costeira
na Índia e entre as ilhas, assim como o comércio no interior da Índia, tornaram-se
monopólio dos altos funcionários da Companhia. Os monopólios de sal, ópio, bétel e
outras mercadorias eram minas inesgotáveis de riqueza. Os próprios funcionários
fixavam os preços e espoliavam à vontade o infeliz indiano. O governador-geral
participava nesse comércio privado. Seus favoritos obtinham contratos em condições
mediante as quais, mais astutos que os alquimistas, criavam ouro do nada. Grandes
fortunas brotavam de um dia para o outro, como cogumelos; a acumulação primitiva
realizava-se sem o adiantamento de 1 único xelim. O processo judicial de Warren
Hastings está pleno de tais exemplos. Eis um caso. A certo Sullivan é atribdo um
contrato de fornecimento de ópio, e isso no momento de sua partida em missão
oficial para uma região da Índia totalmente afastada dos distritos de ópio. Sullivan
vende seu contrato por £40.000 a certo Binn. Este, por sua vez, vende-o, no mesmo dia,
por £60.000, e o último comprador e executor do contrato declara que, depois disso
tudo, ainda obteve um lucro enorme. Segundo uma lista apresentada ao Parlamento,
de 1757 a 1766 a Companhia e seus funcionários deixaram-se presentear pelos indianos
com £6 milhões! Entre 1769 e 1770, os ingleses provocaram um surto de fome por meio
da compra de todo arroz e pela recusa de revendê-lo, a não ser por preços fabulosos243.
O tratamento dispensado aos nativos era, naturalmente, o mais terrível nas
plantações destinadas exclusivamente à exportão, como nas Índias Ocidentais e nos
países ricos e densamente povoados, entregues à matança e ao saqueio, como o México
e as Índias Orientais. Tampouco nas colônias propriamente ditas se desmentia o
534
caráter cristão da acumulação primitiva. Esses austeros e virtuosos protestantes, os
puritanos da Nova I nglaterra, estabeleceram em 1703, por decisão de sua assembly
[assembleia], um prêmio de £40 para cada escalpo indígena e cada pele-vermelha
capturado; em 1720, um prêmio de £100 para cada escalpo; em 1744, depois de
Massachuses-Bay ter declarado certa tribo como rebelde, os seguintes pros: £100 da
nova moeda para o escalpo masculino, a partir de 12 anos de idade; £105 para
prisioneiros masculinos, £50 para mulheres e crianças capturadas, £50 para escalpos de
mulheres e crianças! Algumas cadas mais tarde, o sistema colonial vingou-se nos
descendentes que nesse ínterim haviam se tornado rebeldes dos piedosos pilgrim
fathers [pais pelegrinos]x. Com incentivo e pagamento inglês, foram mortos a golpes
de tomahawkw. O Parlamento britânico declarou os cães de caçay e o escalpelamento
como “meios que Deus e a Natureza puseram em suas mãos”.
O sistema colonial amadureceu o comércio e a navegação como plantas num
hibernáculo. As “sociedades Monopoliaz (Lutero) foram alavancas poderosas da
concentração de capital. Às manufaturas em ascensão, as colônias garantiam um
mercado de escoamento e uma acumulação potenciada pelo monopólio do mercado.
Os tesouros espoliados fora da Europa diretamente mediante o saqueio, a escravização
e o latrocínio refluíam à metpole e lá se transformavam em capital. A Holanda,
primeiro país a desenvolver plenamente o sistema colonial, encontrava-se já em 1648
no ápice de sua grandeza comercial. Encontrava-se “de posse quase exclusiva do
comércio com as Índias Orientais e do tráfico entre o sudoeste e o nordeste europeu.
Sua pesca, frotas e manufaturas sobrepujavam as de qualquer outro país. Os capitais
da República eram talvez mais consideráveis que os de todo o resto da Europa
somados”aa.
Gülich se esquece de acrescentar: em 1648, a massa do povo holandês já estava
mais sobrecarregada de trabalho, mais empobrecida e brutalmente oprimida do que as
massas populares do resto da Europa somadas.
Hoje em dia, a supremacia industrial traz consigo a supremacia comercial. No
período manufatureiro propriamente dito, ao contrário, é a supremacia comercial que
gera o predomínio industrial. D o papel preponderante que o sistema colonial
desempenhava nessa época. Ele era o “deus estranho” que se colocou sobre o altar, ao
lado dos velhos ídolos da Europa, e que, um belo dia, lançou-os por terra com um só
golpe. Tal sistema proclamou a produção de mais-valor como finalidade última e única
da humanidade.
O sistema de crédito público, isto é, das dívidas públicas, cujas origens
encontramos em Gênova e Veneza já na I dade Média, tomou conta de toda a Europa
durante o período manufatureiro. O sistema colonial, com seu comércio marítimo e
suas guerras comerciais, serviu-lhe de incubadora. Assim, ele se consolidou
primeiramente na Holanda. A dívida pública, isto é, a alienação [Veräusserung] do
Estado seja ele despótico, constitucional ou republicano imprime sua marca sobre
a era capitalista. A única parte da assim chamada riqueza nacional que realmente
integra a posse coletiva dos povos modernos é... sua dívida pública243a. D que seja
inteiramente coerente a doutrina moderna segundo a qual um povo se torna tanto
mais rico quanto mais se endivida. O crédito público se converte no credo do capital. E
535
ao surgir o endividamento do Estado, o pecado contra o Espírito Santo, para o qual não
há perdão, cede seu lugar para a falta de fé na dívida pública.
A dívida pública torna-se uma das alavancas mais poderosas da acumulação
primitiva. Como com um toque de varinha mágica, ela infunde força criadora no
dinheiro improdutivo e o transforma, assim, em capital, sem que, para isso, tenha
necessidade de se expor aos esforços e riscos inseparáveis da aplicação industrial e
mesmo usurária. Na realidade, os credores do Estado não dão nada, pois a soma
emprestada se converte em títulos da dívida, facilmente transfeveis, que, em suas
mãos, continuam a funcionar como se fossem a mesma soma de dinheiro vivo. Porém,
ainda sem levarmos em conta a classe de rentistas ociosos assim criada e a riqueza
improvisada dos financistas que desempenham o papel de intermediários entre o
governo e a nação, e abstraindo também a classe dos coletores de impostos,
comerciantes e fabricantes privados, aos quais uma boa parcela de cada empréstimo
estatal serve como um capital caído do céu, a dívida pública impulsionou as
sociedades por ações, o comércio com papéis negociáveis de todo tipo, a agiotagem,
numa palavra: o jogo da Bolsa e a moderna bancocracia.
Desde seu nascimento, os grandes bancos, condecorados com títulos nacionais, não
eram mais do que sociedades de especuladores privados, que se colocavam sob a
guarda dos governos e, graças aos privilégios recebidos, estavam em condições de
emprestar-lhes dinheiro. Por isso, a acumulação da dívida pública não tem indicador
mais infalível do que a alta sucessiva das ões desses bancos, cujo desenvolvimento
pleno data da fundação do Banco da I nglaterra (l694). Esse banco começou
emprestando seu dinheiro ao governo a um juro de 8%, ao mesmo tempo que o
Parlamento o autorizava a cunhar dinheiro com o mesmo capital, voltando a emprestá-
lo ao público sob a forma de notas bancárias. Com essas notas, ele podia descontar
letras, conceder empréstimos sobre mercadorias e adquirir metais preciosos. Não
demorou muito para que esse dinheiro de crédito, fabricado pelo próprio banco, se
convertesse na moeda com a qual o Banco da I nglaterra tomava empréstimos ao
Estado e, por conta deste último, pagava os juros da dívida pública. Não lhe bastava
dar com uma mão para receber mais com a outra: o banco, enquanto recebia,
continuava como credor perpétuo da nação até o último tostão adiantado. E assim ele
se tornou, pouco a pouco, o receptáculo imprescindível dos tesouros metálicos do país
e o centro de gravitão de todo o crédito comercial. À mesma época em que na
I nglaterra deixou-se de queimar bruxas, começou-se a enforcar falsificadores de notas
bancárias. Nos escritos dessa época, por exemplo, nos de Bolingroke, pode-se apreciar
claramente o efeito que produziu nos contemporâneos o aparecimento súbito dessa
malta de bancocratas, financistas, rentistas, corretores, stockjobbers [bolsistas] e les
da Bolsa243b.
Com as dívidas públicas surgiu um sistema internacional de crédito, que
frequentemente encobria uma das fontes da acumulação primitiva neste ou naquele
povo. Desse modo, as perversidades do sistema veneziano de rapina constituíam um
desses fundamentos ocultos da riqueza de capitais da Holanda, à qual a decadente
Veneza emprestou grandes somas em dinheiro. O mesmo se deu entre a Holanda e a
I nglaterra. J á no começo do século XVI I I , as manufaturas holandesas estavam
536
amplamente ultrapassadas, e o país deixara de ser a nação comercial e industrial
dominante. Um de seus negócios principais, entre 1701 e 1776, foi o empréstimo de
enormes somas de capital, especialmente à sua poderosa concorrente, a I nglaterra.
Algo semelhante ocorre hoje entre I nglaterra e Estados Unidos. Uma grande parte dos
capitais que atualmente ingressam nos Estados Unidos, sem certidão de nascimento, é
sangue de crianças que acabou de ser capitalizado na Inglaterra.
Como a dívida pública se respalda nas receitas estatais, que m de cobrir os juros
e demais pagamentos anuais etc., o moderno sistema tributário se converteu num
complemento necessário do sistema de empréstimos públicos. Os empréstimos
capacitam o governo a cobrir os gastos extraordinários sem que o contribuinte o
perceba de imediato, mas exigem, em contrapartida, um aumento de impostos. Por
outro lado, o aumento de impostos, causado pela acumulação de dívidas contraídas
sucessivamente, obriga o governo a recorrer sempre a novos empréstimos para cobrir
os novos gastos extraordinários. O regime fiscal moderno, cujo eixo é formado pelos
impostos sobre os meios de subsistência mais imprescindíveis (portanto, pelo
encarecimento desses meios), traz em si, portanto, o germe da progressão automática.
A sobrecarga tributária não é, pois, um incidente, mas, antes, um princípio. Razão pela
qual na Holanda, onde esse sistema foi primeiramente aplicado, o grande patriota de
Wi o celebrou em suas máximas como o melhor sistema para fazer do trabalhador
assalariado uma pessoa submissa, frugal, aplicada e... sobrecarregada de trabalho. A
influência destrutiva que esse sistema exerce sobre a situação dos trabalhadores
assalariados importa-nos aqui, no entanto, menos que a violenta expropriação do
camponês, do artesão, em suma, de todos os componentes da pequena classe dia.
Sobre isso não há divergência, nem mesmo entre os economistas burgueses. Sua
eficácia expropriadora é ainda reforçada pelo sistema protecionista, uma de suas
partes integrantes.
O grande papel que a dívida pública e o sistema fiscal desempenham na
capitalização da riqueza e na expropriação das massas levou um bom número de
escritores, como Cobbe, Doubleday e outros, a procurar erroneamente naquela a
causa principal da miséria dos povos modernos.
O sistema protecionista foi um meio artificial de fabricar fabricantes, de expropriar
trabalhadores independentes, de capitalizar os meios de produção e de subsistência
nacionais, de abreviar violentamente a transição do modo de produção antigo para o
moderno. A patente desse invento foi ferozmente disputada pelos Estados europeus,
que, a serviço dos extratores de mais-valor, perseguiram esse objetivo não só
saqueando seu próprio povo, tanto direta, por meio de tarifas protecionistas, quanto
indiretamente, por meio de prêmios de exportação etc., mas também extirpando
violentamente toda a indústria dos países que lhes eram contíguos e deles dependiam,
como ocorreu, por exemplo, com a manufatura irlandesa de por obra da I nglaterra.
No continente europeu, que seguia o modelo de Colbert, o processo foi simplificado
ainda mais, e parte do capital original do industrial passou a fluir diretamente do
tesouro do Estado.
“Por que”, exclama Mirabeau, “procurar tão longe a causa do fulgor manufatureiro
da Saxônia antes da Guerra dos Sete Anos? 180 milhões de dívidas públicas!244
537
Sistema colonial, dívidas públicas, impostos escorchantes, protecionismo, guerras
comerciais etc., esses rebentos do período manufatureiro propriamente dito cresceram
gigantescamente durante a infância da grande indústria. O nascimento desta última é
celebrado pelo grande rapto herodiano dos inocentes. Como a marinha real, as
fábricas recrutam por meio da coerção. Sir F. M. Eden, tão impassível diante dos
horrores da expropriação da população rural, que se viu despojada de suas terras
desde o último terço do século XV até a época desse autor, isto é, o final do século
XVI I I , e que tão vaidosamente se regozija com esse processo, por ele considerado
“necessário” para “estabelecera agricultura capitalista e “a proporção devida entre
lavoura e pastagem”, não provas, no entanto, da mesma compreensão econômica
no que diz respeito à necessidade do roubo de crianças e da escravidão infantil para a
transformação da empresa manufatureira em empresa fabril e o estabelecimento da
devida proporção entre capital e força de trabalho. Diz ele:
Talvez mereça a atenção do público a questão de se uma manufatura, que, para ser operada de modo eficaz, tem
de saquear cottages e workhouses em busca de crianças pobres, que seo divididas em turmas, esfalfadas durante a
maior parte da noite e terão seu descanso roubado; uma manufatura que, além disso, amontoa uma multidão de
pessoas de ambos os sexos, de diferentes idades e inclinações, de tal modo que a contaminação do exemplo tem
necessariamente de levar à depravação e à licenciosidade, se tal manufatura pode aumentar a soma da felicidade
nacional e individual.”245
Em Derbyshire, Noinghamshire e especialmente em Lancashire” diz Fielden “a maquinaria recém-
inventada foi empregada em grandes fábricas, instaladas junto a correntezas capazes de girar a roda-d’água. Nesses
lugares, afastados das cidades, requeriam-se subitamente milhares de braços, e principalmente Lancashire, a
então comparativamente pouco povoado e infértil, agora necessitava, antes de mais nada, de uma população. O
que mais se requisitava eram dedos pequenos e ágeis. Logo surgiu o costume de buscar aprendizes (!) nas
diferentes workhouses paroquiais de Londres, Birmingham e outros lugares. E assim muitos, muitos milhares
dessas pequenas criaturas desamparadas, entre os 7 e os 13 ou 14 anos, foram despachadas para o norte. Era
habitual que o patrão” (isto é, o ladrão de criaas) vestisse, alimentasse e alojasse seus aprendizes numa casa de
aprendizes, próxima à brica. Capatazes eram designados para vigiar o trabalho. O interesse desses feitores de
escravos era sobrecarregar as criaas de trabalho, pois a remuneração dos primeiros era proporcional à
quantidade de produto que se conseguia extrair da criança. A consequência natural foi a crueldade [...]. Em
muitos distritos fabris, especialmente de Lancashire, essas criaturas inocentes e desvalidas, consignadas aos
senhores de bricas, foram submetidas às torturas mais pungentes. Foram acossadas aa morte por excesso de
trabalho [...] foram açoitadas, acorrentadas e torturadas com os maiores requintes de crueldade; em muitos casos,
foram esfomeadas até restar-lhes pele e ossos, enquanto o chicote as mantinha no trabalho. Sim, em alguns
casos, foram levadas ao suicídio! [...] Os belos e românticos vales de Derbyshire, Noinghamshire e Lancashire,
ocultos ao olhar do público, converteram-se em lúgubres ermos de tortura e, com frequência, de assassinato! [...]
Os lucros dos fabricantes eram enormes. Mas isso só aguçava mais sua voracidade de lobisomem. Implementaram
o trabalho noturno, isto é, depois de terem esgotado um grupo de operários pelo trabalho diurno, já dispunham
de outro grupo pronto para o trabalho noturno; o grupo diurno ocupava as camas que o grupo noturno acabara
de deixar, e vice-versa. Em Lancashire, dizia a tradição popular que as camas nunca esfriavam.246
Com o desenvolvimento da produção capitalista durante o período manufatureiro,
a opinião pública europeia perdeu o que ainda lhe restava de pudor e consciência. As
nações se jactavam cinicamente de toda infâmia que constitsse um meio para a
acumulação de capital. Leia-se, por exemplo, os ingênuos anais comerciais do ínclito
A. Anderson. Neles é trombeteado como triunfo da sabedoria política inglesa o fato de
que, na paz de Utrecht, a I nglaterra arrancara dos espanhóis, pelo Tratado de
Asientoab, o privigio de explorar também entre a África e a Arica espanhola o
tráfico de negros, que até então ela só explorava entre a África e as Índias Ocidentais
inglesas. A I nglaterra obteve o direito de guarnecer a América espanhola, até 1743,
538
com 4.800 negros por ano. I sso proporcionava, ao mesmo tempo, uma cobertura oficial
para o contrabando britânico. Liverpool teve um crescimento considerável graças ao
tráfico de escravos. Esse foi seu método de acumulação primitiva, e até hoje a
“respeitabilidadede Liverpool é o Píndaro do tráfico de escravos, que cf. o escrito
citado do dr. Aikin, de 1795 “eleva até a paixão o esrito de empreendimento
comercial, forma navegantes afamados e rende quantias enormes de dinheiro”ac. Em
1730, Liverpool empregava 15 navios no tráfico de escravos; em 1751, 53; em 1760, 74;
em 1770, 96; e, em 1792, 132.
Enquanto introduzia a escravidão infantil na I nglaterra, a indústria do algodão
dava, ao mesmo tempo, o impulso para a transformação da economia escravista dos
Estados Unidos, antes mais ou menos patriarcal, num sistema comercial de
exploração. Em geral, a escravidão disfarçada dos assalariados na Europa necessitava,
como pedestal, da escravidão sans phrase do Novo Mundo247.
Tantae molis erat [tanto esforço se fazia necessário]ad para trazer à luz as “eternas
leis naturais do modo de produção capitalista, para consumar o processo de cisão
entre trabalhadores e condições de trabalho, transformando, num dos polos, os meios
sociais de produção e subsistência em capital, e, no polo oposto, a massa do povo em
trabalhadores assalariados, em “pobres laboriosos livres, esse produto artificial da
história moderna248. Se o dinheiro, segundo Augier, “vem ao mundo com manchas
naturais de sangue numa de suas faces249, o capital nasce escorrendo sangue e lama
por todos os poros, da cabeça aoss250.
7. Tendência histórica da acumulação capitalista
No que resulta a acumulação primitiva do capital, isto é, sua nese histórica? Na
medida em que não é transformação direta de escravos e servos em trabalhadores
assalariados, ou seja, mera mudança de forma, ela não significa mais do que a
expropriação dos produtores diretos, isto é, a dissolução da propriedade privada
fundada no próprio trabalho.
A propriedade privada, como antítese da propriedade social, coletiva, só existe
onde os meios e as condições externas do trabalho pertencem a pessoas privadas. Mas,
conforme essas pessoas sejam os trabalhadores ou os não trabalhadores, a
propriedade privada tem também outro caráter. Os infinitos matizes que ela exibe à
primeira vista refletem apenas os estágios intermediários que existem entre esses dois
extremos.
A propriedade privada do trabalhador sobre seus meios de produção é o
fundamento da pequena empresa, e esta última é uma condição necessária para o
desenvolvimento da produção social e da livre individualidade do próprio trabalhador.
É verdade que esse modo de produção existe também no interior da escravidão, da
servidão e de outras relações de dependência, mas ele floresce, libera toda a sua
energia, só conquista a forma clássica adequada onde o trabalhador é livre proprietário
privado de suas condições de trabalho, manejadas por ele mesmo: o camponês, da
terra que cultiva; o artesão, dos instrumentos que manuseia como um virtuoso.
Esse modo de produção pressupõe o parcelamento do solo e dos demais meios de
539
produção. Assim como a concentração destes últimos, ele também exclui a cooperação,
a divisão do trabalho no interior dos mesmos processos de produção, a dominação e a
regulação sociais da natureza, o livre desenvolvimento das forças produtivas sociais.
Ele só é compatível com os estreitos limites, naturais-espontâneos, da produção e da
sociedade. Querer eternizá-lo significaria, como diz Pecqueur com razão, “decretar a
mediocridade geralae. Ao atingir certo nível de desenvolvimento, ele engendra os
meios materiais de sua própria destruição. A partir desse momento, agitam-se no seio
da sociedade forças e paixões que se sentem travadas por esse modo de produção. Ele
tem de ser destruído, e é destruído. Sua destruição, a transformação dos meios de
produção individuais e dispersos em meios de produção socialmente concentrados e,
por conseguinte, a transformação da propriedade nanica de muitos em propriedade
gigantesca de poucos, portanto, a expropriação que despoja grande massa da
população de sua própria terra e de seus próprios meios de subsistência e
instrumentos de trabalho, essa terrível e dificultosa expropriação das massas
populares, tudo isso constitui a pré-história do capital. Esta compreende uma série de
métodos violentos, dos quais passamos em revista somente aqueles que marcaram
época como métodos da acumulação primitiva do capital. A expropriação dos
produtores diretos é consumada com o mais implacável vandalismo e sob o impulso
das paixões mais infames, abjetas e mesquinhamente execráveis. A propriedade
privada constituída por meio do trabalho próprio, fundada, por assim dizer, na fusão
do indivíduo trabalhador isolado, independente, com suas condições de trabalho, cede
lugar à propriedade privada capitalista, que repousa na exploração de trabalho alheio,
mas formalmente livre251.
Tão logo esse processo de transformação tenha decomposto suficientemente, em
profundidade e extensão, a velha sociedade; tão logo os trabalhadores se tenham
convertido em proletários, e suas condões de trabalho em capital; tão logo o modo de
produção capitalista tenha condões de caminhar com suas próprias pernas, a
socialização ulterior do trabalho e a transformação ulterior da terra e de outros meios
de produção em meios de produção socialmente explorados e, por conseguinte, em
meios de produção coletivos –, assim como a expropriação ulterior dos proprietários
privados assumem uma nova forma. Quem se expropriado, agora, não é mais o
trabalhador que trabalha para si próprio, mas o capitalista que explora muitos
trabalhadores.
Essa expropriação se consuma por meio do jogo das leis imanentes da própria
produção capitalista, por meio da centralização dos capitais. Cada capitalista liquida
muitos outros. Paralelamente a essa centralização, ou à expropriação de muitos
capitalistas por poucos, desenvolve-se a forma cooperativa do processo de trabalho em
escala cada vez maior, a aplicação técnica consciente da cncia, a exploração planejada
da terra, a transformação dos meios de trabalho em meios de trabalho que só podem
ser utilizados coletivamente, a economia de todos os meios de produção graças a seu
uso como meios de produção do trabalho social e combinado, o entrelaçamento de
todos os povos na rede do mercado mundial e, com isso, o caráter internacional do
regime capitalista. Com a diminuição constante do número de magnatas do capital,
que usurpam e monopolizam todas as vantagens desse processo de transformação,
540
aumenta a massa da miséria, da opressão, da servidão, da degeneração, da exploração,
mas também a revolta da classe trabalhadora, que, cada vez mais numerosa, é
instruída, unida e organizada pelo próprio mecanismo do processo de produção
capitalista. O monopólio do capital se converte num entrave para o modo de produção
que floresceu com ele e sob ele. A centralização dos meios de produção e a
socialização do trabalho atingem um grau em que se tornam incompatíveis com seu
invólucro capitalista. O entrave é arrebentado. Soa a hora derradeira da propriedade
privada capitalista, e os expropriadores são expropriados.
O modo de apropriação capitalista, que deriva do modo de produção capitalista, ou
seja, a propriedade privada capitalista, é a primeira negação da propriedade privada
individual, fundada no trabalho próprio. Todavia, a produção capitalista produz, com a
mesma necessidade de um processo natural, sua própria negação. É a negação da
negação. Ela não restabelece a propriedade privada, mas a propriedade individual
sobre a base daquilo que foi conquistado na era capitalista, isto é, sobre a base da
cooperação e da posse comum da terra e dos meios de produção produzidos pelo
próprio trabalho.
A transformação da propriedade privada fragmentária, baseada no trabalho
próprio dos indivíduos, em propriedade capitalista, é, naturalmente, um processo
incomparavelmente mais prolongado, duro e dificultoso do que a transformação da
propriedade capitalista já fundada, de fato, na organização social da produção em
propriedade social. Lá, tratava-se da expropriação da massa do povo por poucos
usurpadores; aqui, trata-se da expropriação de poucos usurpadores pela massa do
povo252.
541
V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
Dissertação de Mestrado1
NASCIMENTO, Patrícia Maria Pereira do2.A Educação Profissional Diante da
Educação Ambiental Crítica: um estudo interdisciplinar de um curso Técnico em
Segurança do Trabalho numa Unidade de Conservação3. 2018. 112f. Dissertação
(Mestrado) - Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ensino de Ciências,
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ),
Campus Nilópolis, Rio de Janeiro.
Resumo Expandido
O ponto de partida da pesquisa é a vinculação da Educação Profissional com
Educação Ambiental, assim, utilizou-se de visitas técnicas em Unidades de
Conservação (UC) com estudantes do curso Técnico em Segurança do Trabalho
(TST) como instrumento de observação e análise da relação ser humano x natureza
(WILLIAMS, 2011). Nosso pressuposto foi que a Educação Ambiental Crítica
(EA-Crítica) (LOUREIRO, 2012) constitui um caminho favorável para a elaboração
de atividades didáticas nos ambientes de formação profissional e que podem romper
com as dualidades: (a) ser humano versus natureza; (b) ambiente produtivo versus
ambiente natural, em cursos de Educação Profissional de Nível Médio.
Escolhemos esse curso, primeiro por fazer parte de minha atuação
profissional por mais de dez anos e porque seria uma oportunidade de reflexão
3Uma versão de uma das atividades que compõe a visita técnica realizada na Unidade de
Conservação durante a construção da pesquisa na disciplina Prática de Ensino Supervisionada 2
(PES-II), ofertada pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências, na modalidade Mestrado
Profissional (PROPEC-MP/IFRJ-Nilópolis) foi apresentada no formato de comunicação oral no XIII
Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências - XIII ENPEC EM REDES - 27 de
setembro a 01 de outubro 2021, com o seguinte título - Educação Ambiental Crítica em uma Prática
de Ensino Supervisionada: experiências em um Curso Técnico em Segurança do Trabalho.
2Doutoranda e Mestre em Ensino de Ciências do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
do Rio de Janeiro (IFRJ) no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ensino de Ciências
(PROPEC-IFRJ). Graduada em Ciências Biológicas pela Universidade do Grande Rio
(UNIGRANRIO-RJ). Atua como docente no curso Técnico em Segurança do Trabalho no Senac/RJ
desde 2011. Email:prof.pattynascimento@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9696813281691492.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8654-8506.
1Resumo expandido recebido em 26/07/2022. Aprovado pelos editores em 18/08/2022. Publicado em
10/11/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.55412.
1
sobre minha prática docente e segundo por ser o TST4um dos cargos principais
dentro de uma empresa de médio e grande porte. Esse profissional é parte
integrante do Serviço Especializado em Engenharia de Segurança e Medicina do
Trabalho (SESMT), grupo responsável pelo monitoramento dos procedimentos
operacionais em uma atividade, pela prevenção de riscos que possam resultar em
possíveis incidentes e/ou acidentes de trabalho e por desenvolver programas de
melhorias contínuas junto ao meio ambiente e à saúde do trabalhador.
Para tanto, foi proposto para os docentes desses cursos parâmetros de
elaboração de atividades didáticas a partir da abordagem crítica e da utilização da
visita técnica como ferramenta de trabalho docente. Essa ação visou contribuir na
formação dos estudantes do curso de TST, promovendo uma educação um pouco
mais emancipatória (apesar de todas as contradições do setor) na qual o discente
consiga refletir criticamente sobre os acontecimentos da realidade. Os parâmetros
propostos para os docentes fazem parte do produto educacional fruto das atividades
exercidas ao longo da pesquisa.
A reflexão sobre o contexto do ambiente de trabalho contribuiu na tomada de
decisão desses profissionais, na possibilidade de enfrentarem as dificuldades para
realizarem alguma atividade nas empresas ao qual irão atuar no futuro, de modo que
os estudantes terão uma visão integral da realidade para fazer a reflexão e não
apenas apreender técnicas pré-concebidas para agir mecanicamente. Essa
compreensão é o caminho para torná-los ativos nas decisões em que houver a
necessidade de transformação do meio ambiente.
O objetivo foi verificar as potencialidades do uso de UC como local para se
trabalhar a EA a partir da abordagem crítica dentro do curso TST, como forma de
superar o caráter tecnicista na formação desse profissional. Os objetivos
secundários foram: (i) relacionar os debates sobre Educação Profissional e EA; (ii)
dialogar com as possibilidades de uso público com o fazer do TST em UC; (iii)
debater a formação do TST a partir do Catálogo Nacional dos Cursos Técnicos; (iv)
elaborar um manual em formato e-book com parâmetros para a preparação de
atividades a serem realizadas em uma UC, com pressupostos teóricos da EA-Crítica
e favorecendo práticas de uso público, a partir da visita técnica realizada no Parque
Estadual da Pedra Branca (PEPB).
4A lei 7.410/1985 regulamenta a profissão do técnico em Segurança do Trabalho.
2
Definimos quatro capítulos na dissertação, onde o primeiro apresentou a
trajetória das UC no Brasil com a intenção de situar o leitor sobre as possibilidades
de uso público (VALLEJO, 2015) do PEPB e sua articulação com o ensino
profissional, além da apresentação do perfil do TST e sua integração dentro das
unidades. No segundo capítulo foi apresentado nosso referencial teórico que
sustentou a linha da pesquisa, articulada entre uma educação profissional e a
EA-Crítica.
No terceiro capítulo, delimitamos a metodologia da pesquisa e o caminho
traçado para a construção dos diferentes instrumentos de coleta de dados. Nele
também mostramos os participantes, os cenários da pesquisa, as ações
pedagógicas realizadas e os percalços encontrados. No quarto capítulo, discutimos
os resultados encontrados ao longo da pesquisa, o Produto Educacional e a
validação realizada junto aos docentes atuantes no curso TST sobre as atividades
que o compõem. As considerações finais encerram a dissertação.
Os estudantes do curso TST faziam parte de uma rede particular de ensino
localizada em Duque de Caxias. À época da pesquisa tinham entre 16 e 18 anos e
estavam matriculados no ano do ensino médio concomitante. Iniciamos a
problematização nas atividades em sala de aula e partimos para a visita técnica com
uma estrutura metodológica em que unisse questões teóricas e práticas, seguindo o
caminho: Pesquisa Participante Visita Prévia na UC (visita para verificação da UC);
Grupo Focal (na instituição de ensino como avaliação diagnóstica); Visita Técnica
(na UC com os estudantes e as diferentes atividades didáticas).
As atividades realizadas na UC formam: (i) visita ao espaço Museal
(observação das características e riscos do local); (ii) trilha na rota da trilha do mel
(projeto Espaço Doce - habitat de abelhas nativas sem ferrão) os estudantes tiveram
contato com as abelhas e observação dos impactos ambientais; (iii) inspeção na
estação de tratamento da CEDAE (observação do método de tratamento, uso da
água e dos conflitos com os moradores do parque; (iv) grupo focal (debate sobre os
aspectos observados ao longo da visita técnica).
De acordo com os depoimentos colhidos na visita técnica notamos que ela
cooperou e auxiliou a elucidar a compreensão dos estudantes sobre EA, a
visualizarem a existência da dicotomia ser humano e natureza e as potencialidades
de atuação do TST em ações de uso público.
3
No início a visão que tinham era rasa, e de se ouvir falar sobre a EA, inclusive
com algumas nuances da visão conservadora; no entanto, quando experimentaram
da visita na observação e diálogo em um local como uma UC, que apresenta a
possibilidade do uso público e a participação da sociedade, a partir de uma
abordagem crítica, os discentes entenderam a importância da relação reflexiva junto
ao meio ambiente para se obter alguma mudança na sociedade.
Uma última ação foi feita no parque, com a participação dos docentes
especialistas do curso TST. Eles foram levados ao PEPB para validar a atividade
realizada com os estudantes. Percorreram os mesmos caminhos e em seguida
preencheram uma ficha de validação, onde aprovaram as ações de modo a ser
possível sua reprodução. O que contribuiu para a finalização do produto
educacional.
O Produto Educacional5, fruto da presente pesquisa foi criado no modelo de
um eletronic book (e-book), ou seja, um livro em formato digital, uma vez que essa
configuração tem a capacidade de facilitar a divulgação por meio virtual. Nosso
e-book apresenta parâmetros orientadores para a realização de atividades didáticas
que podem ser utilizadas no curso de TST e/ou outros que abordam a EA em seu
currículo.
O livro é composto de duas partes. Na primeira são apresentados parâmetros
norteadores para os docentes elaborarem as atividades. Os parâmetros foram
pensados para serem orientadores na construção de atividades
didático-pedagógicas. Ao construir um planejamento, que serve como um guia de
orientação, o docente precisa considerar os seguintes aspectos: a ordem
sequencial, a objetividade, a coerência e a flexibilidade. Tais parâmetros ajudarão a
traçar o caminho para o desenvolvimento das atividades e apresentar rotas para
fugir de possíveis impasses no trajeto.
Na segunda parte do e-book, apresentamos os roteiros das atividades
didáticas, frutos da experiência como docente em curso técnico de nível médio. Elas
foram elaboradas e ressignificadas a partir de nossa reflexão, da performance dos
estudantes no seu cotidiano em sala de aula e durante as visitas técnicas realizadas
5O produto educacional está registrado na plataforma EDUCAPES e pode ser acessado pelo link:
https://educapes.capes.gov.br/handle/capes/431264
4
ao longo de nossa atuação no curso. As atividades presentes no produto são a visita
técnica, o grupo focal, o quiz, e o júri simulado.
A participação dos estudantes em todo o processo da pesquisa serviu de
ponto de apoio para se confirmar que, ao se trabalhar com a abordagem crítica na
EA, o educando pode superar a visão conservadora e romper com a ideia do
ambiente natural visto como distante do produtivo, ou seja, que as ações praticadas
pelo ser humano reflete de forma direta ou indireta no ambiente, sendo possível
provocar impacto na natureza, tanto de cunho positivo como negativo.
Referências
LOUREIRO, F. Sustentabilidade e Educação: um olhar da ecologia política. São
Paulo: Cortez, 2012.
VALLEJO, L. R. et. al. Uso Público em Unidades de Conservação: Planejamento,
turismo, lazer, educação e impactos. 2015. Niterói: Alternativa, 2015.
WILLIAMS, R. Ideias sobre a natureza. In: Cultura e Materialismo.São Paulo:
UNESP, 2011. p. 90-114.
5
V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
Tese de Doutorado1
SOUZA, Vanessa Marcondes de2,.“Educação para permanecer no território”: a
luta dos povos caiçaras frente a expansão do capital em Paraty-RJ, 2017. 112f.
Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Psicossociologia de
Comunidades e Ecologia Social (EICOS) pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ).
Resumo expandido
O município de Paraty-RJ, por conta de sua história vinculada aos grandes
ciclos econômicos do país (ouro, cana-de-açúcar e café), possui uma reconhecida
diversidade sociocultural, forjadas nesses contextos, constituída por povos
tradicionais caiçaras, indígenas e quilombolas.
A Península da Juatinga é a região mais isolada do município, o acesso às
dezenas de comunidades dessa região se faz pelo mar ou por longas trilhas, não
havendo acesso por estradas. Os residentes dessa localidade se autorreconhecem
como povos tradicionais caiçaras. Esses grupos enfrentam diversos conflitos
socioambientais decorrentes dos diferentes modos de uso e apropriação do território
em disputa e suas formas de regulação (especulação imobiliária, grilagem de terras,
leis ambientais), ameaçando a permanência em seus territórios tradicionais.
Diante do modelo de desenvolvimento econômico que se estabeleceu no
município e da sua inserção na dinâmica industrial capitalista, a educação escolar se
tornou necessária como condição objetiva e material de existência desses povos,
uma vez que a falta de escolas em algumas comunidades e a impossibilidade de
2Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social
(EICOS) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora de Ciências e Biologia.
E-mail: vanessamarcondes@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2462602472243239.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5866-0050. Defendida em março de 2017, sob orientação do
Prof. Dr. Carlos Frederico Bernardo Loureiro. Disponível em:
http://pos.eicos.psicologia.ufrj.br/wp-content/uploads/2017_DOUT_Vanessa_Marcondes_de_Souza.p
df.
1Resumo expandido recebido em 25/08/2022 . Aprovado pelos editores em 25/08/2022. Publicado
em 10/11/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.55710.
1
concluir o ensino básico em outras têm trazido uma série de dificuldades, tais como:
impossibilidade de tirar diversos documentos (como a carteira de pescador); a perda
de benefícios do governo; pressão do conselho tutelar para a matrícula de crianças
e jovens na escola; migração compulsória para outros lugares.
A luta política em particular pelo acesso à educação escolar dos povos e
comunidades tradicionais, como parte constitutiva de suas lutas pelo direito de
reproduzir seus modos de vida, está inserida no contexto da resistência contra o
sistema do capital. Esta se estabelece na contradição entre modos de vida
tradicionais, que historicamente educam pela oralidade e pela vivência, e as
necessidades desses grupos de se apropriar da linguagem, do código escrito e de
um conjunto de instrumentos legais e institucionais que regulam a sociedade
moderna capitalista. Esse processo contraditório os leva a lutar e exigir uma
escolarização pública (a partir da sua realidade e sua organização sociocultural) na
afirmação de seus direitos e busca de reconhecimento de suas tradições, modo de
vida e protagonismo.
Desta forma, esta pesquisa teve como objetivo geral analisar a relação entre a
luta pela permanência no território tradicional dos povos caiçaras da Península da
Juatinga e o acesso à educação escolar, explicitando os conflitos territoriais que os
expropriam dos seus meios de produção e a disputa em torno do projeto de
educação pela conquista da hegemonia frente à expansão do capital em Paraty.
Para tanto, foram realizadas entrevistas com caiçaras, lideranças do Fórum
de Comunidades Tradicionais movimento social local -, representante do Sindicato
dos servidores públicos municipais de Paraty, professores que atuam nas escolas
localizadas nas comunidades tradicionais, coordenadores das escolas e da
Secretaria Municipal de Educação.
A presente pesquisa teve como fundamento teórico metodológico o
materialismo histórico-dialético (MARX, 2011; GRAMSCI, 2007; 2001). A estrutura
do texto está dividida em quatro capítulos. O primeiro capítulo traz um debate sobre
povos e comunidades tradicionais e a origem histórica dos povos caiçaras no
município de Paraty. Traz também o conceito de território utilizado nesta pesquisa,
tendo como principal referencial Harvey (2006) e Porto-Gonçalves (2006) e os
conflitos nos quais os povos tradicionais caiçaras estão submetidos diante da
expansão capitalista sob seus territórios. Para isso, apresentou-se também as
2
Unidades de Conservação presentes no município de Paraty e as formas como elas
vêm sendo apropriadas pelas classes dominantes, reforçando o quadro de conflitos
na região. Por último, fez-se um debate de como a educação escolar vem se
conformando como uma questão de justiça ambiental, cuja conceituação é
apresentada, principalmente, através de Acselrad (2010) e Martinez-Alier (2011).
No segundo capítulo, apresenta-se os dados sobre a situação e a realidade
do oferecimento da educação formal no município de Paraty e os elementos de
expropriação aos quais os povos caiçaras estão submetidos através da negação do
acesso à educação escolar. Discute-se também o processo de disputa pelo projeto
de educação entre diferentes classes na sociedade capitalista, apresentando quem
são os agentes que tencionam essa disputa em Paraty.
No terceiro capítulo, apresentamos a discussão sobre o empresariamento da
educação pública e as implicações do oferecimento de uma educação vinculada aos
interesses hegemônicos às classes populares. Em seguida, apresenta-se a proposta
educacional da Fundação Roberto Marinho e como esta se materializou em Paraty.
Tanto o capítulo 2, quanto o capítulo 3, têm como principal orientação teórica
Algebaile (2009), Fontes (2006), Leher (2010; 2003), Martins (2009), Martins e
Neves (2010), Mendonça (2007) e Saviani (2011; 2008).
No quarto capítulo, à luz da Ecologia Política e Educação Ambiental Crítica
(LOUREIRO, 2012), discutimos a relação entre a educação e a luta pelo território,
apresentando o Fórum de Comunidades Tradicionais e suas ações políticas em
busca de uma educação crítica. Finalizando este capítulo, buscamos dialogar e
contribuir na construção de uma proposta que leve em consideração as relações
sociais estabelecidas e impostas nesses territórios.
Podemos concluir que a escola vem sendo reivindicada pelos povos
tradicionais, mas a educação escolar não é uma realidade pronta, estando em
disputa, cabendo às lutas sociais consolidá-la como uma instituição de fato pública.
Evidencia-se uma clara disputa pelo projeto de educação em Paraty. De um lado, o
poder público, através de parcerias públicas privadas, ofereceu, entre 2011 e 2015,
uma educação escolar aligeirada vinculada à ideologia das classes dominantes, que
através dos seus aparelhos privados de hegemonia, como a Fundação Roberto
Marinho, subordinaram a classe trabalhadora ao empresariado, contribuindo, através
da educação, para reproduzir uma ideologia de fim dos conflitos de classe,
3
enfraquecendo a luta histórica de resistência contra os mecanismos de expropriação
e dominação social.
Do outro lado, temos os povos tradicionais, organizados no Fórum de
Comunidades Tradicionais, lutando por uma educação que fortaleça não o
movimento, mas, principalmente, que garanta a permanência dos povos tradicionais
em seus territórios, construindo uma outra hegemonia.
Se antes a expulsão dos caiçaras de seus territórios se dava de modo violento
(coerção), atualmente se basicamente por mecanismos materiais e ideológicos
de convencimento (consenso) dos caiçaras para aderirem ao projeto hegemônico de
sociedade. Tais mecanismos materiais envolvem dificuldades de continuarem
exercendo suas práticas tradicionais, a negação de direitos sociais e a precarização
dos seus modos de vida, que apoiados em uma malha discursiva, reproduzida pela
educação escolar, difunde uma ideologia favorável à vida urbano-industrial como
única opção, levando-os a deixar seus territórios em busca de acesso às políticas
públicas e a direitos, na certeza de melhores condições de vida na cidade.
Referências
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justiça ambiental. Estudos Avançados, 24 (68), 2010.
ALGEBAILE, E. Escola pública e a pobreza no Brasil: a ampliação para menos.
Rio de Janeiro: Lamparina, FAPERJ, 2009.
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década de 1980. In: LIMA, J.; NEVES, L.M.W. (Org.). Fundamentos da educação
escolar do Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006.
GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Volume 3. Maquiavel: notas sobre o estado e
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GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Volume 2. Os intelectuais. O princípio
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HARVEY, D. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2006.
LEHER, R. A reforma do Estado: o privado conta o público. Trabalho, educação e
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dominantes dominam. In: NEVES, L.M.V. (org.) Direita para o social e esquerda
4
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São Paulo: Cortez, 2012.
MARTINEZ-ALIER, J. M. O ecologismo dos pobres. São Paulo: Contexto, 2011.
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produção do capital. 29ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
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contemporâneo. Juiz de Fora: UFJF, 2009.
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seus intelectuais orgânicos. In: NEVES, L. M. V. (org.) Direita para o social e
esquerda para o capital: intelectuais da nova pedagogia da hegemonia no Brasil.
São Paulo: Xamã, 2010.
MENDONÇA, S. R. Estado e políticas públicas: considerações político-conceituais.
Outros Tempos, v. 1, 2007.
PORTO-GONÇALVES, C. W. A globalização da natureza e a natureza da
globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
SAVIANI, D. Escola e democracia. Edição comemorativa. Campinas: Autores
Associados, 2008.
SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 1 ed.
Campinas: Autores Associados, 2011 (a).
5
V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
TRATADO DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL PARA SOCIEDADES SUSTENTÁVEIS
TRINTA ANOS DEPOIS: HAVERÁ MAIS 30?1
Marcelo Stortti2
Michelle Sato3
Celso Sanchez4
e todas e todos que construíram as memórias de luta do Fórum Global
Escrito para a seção “Memória e Documentos” da Revista Trabalho
Necessário (TN 43), o objetivo deste texto consiste em fazer uma breve reflexão e
teorização sobre o Tratado de Educação Ambiental”. Na primeira parte é resgatado
o contexto histórico-cultural de sua data de publicação na Rio-92. Depois, são
analisados os desdobramentos do Tratado na sociedade, demonstrando como
resultados as centenas de políticas públicas e de pesquisas e programas de
formação no campo das pesquisas. Na terceira parte são analisadas as concepções
teóricas acerca do processo de construção desse documento. E no final,
apresenta-se como esse “Tratado” ainda tem um papel fundamental na sociedade
atual.
*****
4Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO-Brasil).
Docente da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Estado Rio de Janeiro
(UNIRIO-Brasil). E-mail: celso.sanchez@hotmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3777970267731343.ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5634-023X.
3Pós-doutorado em Educação no Canadá (Montréal), na Espanha (Coruña) e na Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO-Brasil). Docente da Universidade Federal de Mato
Grosso no Programa de Pós-Graduação em Educação. Grupo Pesquisador em Educação Ambiental.
E-mail: michelesato@gmail.com.ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9834-4642.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8536226415824413.
2Doutor em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO-Brasil).
Pesquisador do Grupo de Estudos em Educação Ambiental Desde El Sur (GEASur) da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO-Brasil). E - mail: marcelostortti@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2106651931972194.ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1400-9834.
1Artigo recebido em 01/08/2022. Aprovado pelos editores em 03/09/2022.. Publicado em
10/11/2012.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.55046.
1
O caminho que nos fazia chegar até a Eco-92 e suas tendas verde e brancas
estendidas no Aterro do Flamengo, pintavam aquele cenário, como o que hoje
Krenak chamaria de “paraquedas coloridos”. O início da década de 1990 nos
obrigava atravessar muitas avenidas, hiperinflação, eleições diretas frustrantes para
presidente, a morte inesperada de Tancredo, o Brasil dos anos 1990 vivia de sustos.
Havia um cheiro de ditadura ainda, que não saía das narinas pelas injustiças
e atrocidades causadas pelo golpe de 1964. A dor foi intensa e se prolongou nos
ecos da ditadura, repressão, cortes das liberdades de expressão, controle e
manipulação da imprensa e período de muito medo. E hoje, o que mudou?
Continuamos sob a hegemonia militar, agora misturada com igreja evangélica da
Idade Média e com a emissão de gases estufa do agronegócio.
Entravam em choque as contradições que nos constituem, expostas ali nos
1,2 milhão de metros quadrados, entre o centro e a zona Sul da cidade do Rio de
Janeiro que sediou a conferência oficial da ONU para debater o meio ambiente: a
Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, ou
simplesmente a Rio- 92. Evento considerado “divisor de águas” no Brasil, com início
de inúmeras políticas ecologistas a partir desta data, inclusive a abertura de vários
programas de pós-graduação com o ambiente em suas políticas.
No Aterro, a Eco-92 ou Fórum Global, reunia outra fauna, flora e outros
“seres” diferentes dos engravatados que selavam acordos sobre clima,
biodiversidade e Agenda 21. Nas tendas circulavam diferentes sotaques, pessoas
com roupas coloridas, trajes indianos, monges tibetanos, jovens com seus bottons e
reivindicações, cabelos compridos e raspados e sacolas coloridas carregando
sonhos encharcados de utopias.
Em uma dessas tendas, o “fogo no canavial da fazenda” era lançado e um
outro mundo era pensado e gestado. E o sentir-pensar-fazer da educação ambiental
pulsava nos corações dos presentes para construir um documento internacional que
tornou a Carta de princípios da educação ambiental: “Tratado de Educação
Ambiental Para Sociedades Sustentáveis e de Responsabilidade Global5”.
E que saudade daqueles tempos, de ver a liderança indígena, o grande
cacique Raoni exibindo a pele de uma onça e sendo irônico dizendo que queria
5Um encontro de gerações com o Tratado no coração: versos, imagens e poéticas, mas sobretudo
um compromisso político que hoje orienta a educação ambiental brasileira:
https://observatorioea.blogspot.com/p/tratado-ea.html.
2
vendê-la a algum “gringo” que pagasse mais, assim como os governantes queriam
vender o Brasil. Ah, que saudade enorme de ver Paulo Freire dizer:
Na história da experiência de viver, que caracteriza a experiência dos
outros animais, das árvores e da experiência humana, nós, homens e
mulheres, fomos os únicos capazes de inventar a existência. (...) Nós
temos que colocar a existência decentemente a frente à vida, em sua
contradição com a vida, em sua dialética, de tal maneira que a
existência não mate a vida e que a vida não pretenda acabar com a
existência, para defender os riscos que a existência lhe impõe. Isso
para mim faz parte dessa briga pelo verde. Lutar pelo verde, tendo
certeza de que sem homem e mulher o verde não tem cor.
(VIEZZER; OVALES, 1995, p. 14).
Depois de 30 anos olhando para o Tratado, podemos ver como ele
permanece atual e quanto de suas reivindicações hoje não apenas contemporâneas,
mas ainda parecem ser distantes de concretização em função do caótico momento
de retrocesso político e de colapso ambiental. Nesse período, aprimoramos os
discursos da questão ambiental, criando diferentes e diversos movimentos de
institucionalização da educação ambiental. Um dos exemplos é o caso da Política
Nacional de Educação Ambiental, de 1999, com evidente inspiração nas diretrizes e
princípios destacados no Tratado. Infelizmente, vale ressaltar que o atual governo de
Bolsonaro busca destruir as vanguardas conseguidas, destruindo as políticas
ambientais e deixando os espaços ao agronegócio - maior responsável pela emissão
de Gases de Efeito Estufa (GEE) no Brasil (SATO, 2021).
Esse documento internacional ainda ajudou a constituir grupos de pesquisa
para fundamentar determinados discursos e debates em torno da educação
ambiental. Com especial atenção à América Latina, a Educação Ambiental se
revestiu de uma narrativa política e, portanto, com argumentos para muito além da
ingênua conservação da natureza, com políticas explícitas da intrínseca relação
entre humano e natureza.
O Tratado traz à tona a responsabilidade das sociedades e dos governos à
saúde ambiental, em contrapartida do discurso hegemônico que prioriza o individual
em detrimento do coletivo e comunitário. A Carta de Princípios é essencial, porque
desafia a hegemonia instituída do “desenvolvimento” sustentável, sob a tática
instituinte de “sociedades sustentáveis”. Esta política dialoga com as atuais teorias
do Capitaloceno (MOORE, 2016), que denuncia as disparidades socioeconômicas,
3
dando nomes, endereços e telefones dos maiores emissores de GEE, que são as
minorias atuando internacionalmente na promoção da riqueza individual e gerando a
injustiça socioambiental na Terra.
Como podemos observar nas palavras de Paulo Freire e nas muitas vozes
mundiais, o Tratado considera esse processo educativo permanente, em diálogo
com as responsabilidades sobre a equidade ambiental de todas as formas de vida e
as suas diferentes inventividades sobre a própria existência e as suas experiências
de viver, ser e existir no mundo. Também busca fazer uma leitura de mundo “outra” e
refletir sobre os valores e caminhos que possam surgir para transformar a realidade
imposta pelo sistema mundo capitalista colonial em nível local, nacional e planetário.
O Observatório da Educação Ambiental (Observare) republicou recentemente
o Tratado na sua íntegra, com seus 16 princípios6: a educação como um direito de
todos; baseada em um modelo freireano, onde todos somos educandos e
educadores. A sua base é o pensamento crítico e inovador em todos os modos
formais e não formais; ela permite constituir sujeitos que valorizam e obedecem a
autodeterminação, a soberania, as culturas e a territoriania dos povos originários,
dos povos de terreiro, dos quilombolas e de diferentes grupos sociais em situação
de vulnerabilidade. Assume que a educação ambiental é um ato político; apresenta
uma perspectiva holística, embasada na relação integrada do ser humano com a
natureza. Visa incentivar e fortalecer os grupos populares da sociedade; valorizar e
estimular as diferentes formas de conhecimentos e saberes. Requer a publicização e
enfrentamento dos conflitos socioambientais; ampliação dos diálogos entre
diferentes segmentos da sociedade e entre os indivíduos; democratizar os meios de
comunicação de massa; desenvolver a eticidade, o respeito e a solidariedade a
biodiversidade, os seus ciclos vitais e a exploração das diferentes formas de vida.
O Tratado estimula a universalização da educação permanente e incentiva
atividades pedagógicas de maneira presencial, remota ou de forma difusa, para
diferentes idades e segmentos da sociedade. A educação ambiental é muito
importante pois possibilita a troca de saberes entre os indivíduos da sociedade e as
suas diferentes culturas, permitindo que saberes milenares sejam compartilhados.
6A arte é do artista russo, Vladimir Gerasimov, que na ocasião, permitiu a licença para usarmos as
imagens: https://1drv.ms/b/s!ArAwKvScjHNvhL09_uvlvQVaAH7yUA.
4
Possibilita, igualmente, a divulgação e a abertura dos diálogos entre os diversos e
diferentes saberes: leste e oeste; norte e sul; saberes científicos, tradicionais ou
outros saberes que, por direito, não possuem hierarquia em suas legítimas
existências. Esse modelo pensado fora do sistema mundo capitalista colonial tenta
diminuir as relações de poder entre educando e educadores buscando construir
novas relações e estabelecer que todos somos eternos aprendizes de alguns
saberes e fazeres e mestres de outras formas de conhecimento.
Esse processo educativo pode estar embasado no pensamento crítico, que
pode estar associado por um determinado ponto de vista pela Escola de Frankfurt,
por meio de Max Horkheimer e a sua ilustre publicação “teoria tradicional e teoria
crítica”. Que na concepção desse autor pode ser diferenciada como:
A teoria em sentido tradicional, cartesiano, (...) organiza a
experiência à base da formulação de questões que surgem em
conexão com a reprodução da vida dentro da sociedade atual. (...) A
gênese social dos problemas, as situações reais, nas quais a ciência
é empregada e os fins perseguidos em sua aplicação, são por ela
mesma considerada exterior. A teoria crítica da sociedade, ao
contrário, tem como objeto os humanos/os homens7como produtores
de todas as suas formas históricas de vida. As situações efetivas,
nas quais a ciência se baseia, não é para ela uma coisa dada. O que
é dado não depende apenas da natureza, mas também do poder do
humano/homem sobre ela (HORKHEIMER, 1983a, p.163-164).
Como podemos observar, a teoria crítica proposta por Horkheimer envolve um
olhar para além da pura análise das transformações econômicas, pois trata-se de
um prognóstico do contexto local, de reflexões sobre as dificuldades que os sujeitos
sociais têm em se emancipar das amarras da dominação e da opressão, envolvendo
um outro olhar sobre os processos educativos para a emancipação e a construção
de um pensamento e ações com viés crítico.
Esse intelectual pode ter contribuído também com outros princípios do
Tratado, com a sua preocupação pelos processos psicológicos dos sujeitos e as
transformações que ocorrem na dimensão cultural, chamando atenção para a
necessidade de envolver outras áreas da sociedade, como lazer, as atividades
artísticas, esportivas, religiosas, os direitos de todos os seres coexistentes na
natureza entre outros.
7No texto traduzido de Horkheimer, prevalece a linguagem sexista (do “HOMEM”). Contudo,
consideramos que seja uma linguagem sexista e colonizadora, dissonante com os princípios do
Tratado. Por isso, os autores modificaram a linguagem da citação sob a licença poético-política.
5
Nesse novo momento de rememorar esses dias e essas ideias, dialogando
com a tenebrosa realidade atual de desmonte de direitos e aumento de exploração e
opressão, vale a pena lembrar da reflexão de Horkheimer (1983b) que a classe
trabalhadora tinha sido subsumida pelo modelo capitalista, através da dimensão
mercantil da indústria de cultura de massa e não desenvolvia o seu papel de
antagonista desse modelo de desenvolvimento e de modos de ser e viver
explorados no mundo.
Trinta anos depois da publicação do Tratado, estamos muito distantes de
alcançar seus objetivos e aspirações. Entretanto, apesar dos desmontes em função
das políticas de extrema direita instaladas no Brasil em 2018, avanços nos
campos teóricos e ideológicos, que seguem mobilizando diversas gerações e não
podem ser parados. As universidades públicas estão mais diversas e com isso,
novos temas têm entrado em pauta nas pesquisas e conhecimentos antes
negligenciados, estão ganhando evidência e sendo valorizados; o racismo, o
machismo e a LGBTfobia não são mais tolerados como três décadas; os debates
sobre questões ambientais estão cada vez mais presentes no cotidiano das pessoas
e tem sido amplificados com as novas tecnologias.
Referências
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escolhidos: Benjamin, Horkheimer, Adorno, Habermas. São Paulo: Abril Cultural,
1983a.
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Textos escolhidos: Benjamin, Horkheimer, Adorno, Habermas. São Paulo: Abril
Cultural, 1983b.
MOORE, J.. Anthropocene or Capitalocene? Nature, history, and the crisis of
capitalism. Oakland: PM Press. 2016.
SATO, M. Aurora e crepúsculo do capitaloceno. In: SATO, M & DALLA-NORA, G.
(Orgs). Turbilhão de ventanias e farrapos, entre brisas e esperançares. Cuiabá:
Ed Sustentável, p. 9-18, 2021.
VIEZZER; M.; OVALES, O. Manual Latino-Americano de Educ-ação ambiental.
São Paulo: Gaia, 1994.
6
SEGUNDA JORNADA
INTERNACIONAL DE
EDUCAÇÃO AMBIENTAL
PARA SOCIEDADES
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RESPONSABILIDADE
GLOBAL 2008 - 2012
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Segunda Jornada Internacional de Educação Ambiental • 32 • Segunda Jornada Internacional de Educação Ambiental
C
omo numa grande “carava-
na”, vão se somando à Jornada
pessoas, grupos e instituições
comprometidas com a edu-
cação para sociedades sustentáveis com
responsabilidade global. A Jornada é uma
iniciativa de organizações da sociedade
civil que buscam trabalhar em interface
com diversos atores sociais, particular-
mente com órgãos de governos, empre-
sas públicas e privadas, bem como meios
de comunicação para incidir em políti-
cas públicas, na formação de gestores e
formadores de opinião e especialmente
educadoras e educadores socioambien-
tais. Acompanhe os passos desta Jornada:
Momentos de Encontros Glo-
bais presenciais: a Segunda Jor-
nada de EA marcou presença em
eventos globais, nacionais e regionais como:
Fórum Social Mundial, Fórum Mundial de
Educação (Belém, Brasil, 2009); Reunião
de Avaliação de Meio Termo da Década
do Desenvolvimento (Bonn, Alemanha,
2009); V Congresso Internacional de EA
(Montreal, Canadá, 2009); FISC Fórum
Internacional da Sociedade Civil e CON-
FINTEA VI Conferência das Nações
Unidas sobre Educação de Adultos (Be-
lém, Brasil, 2009); VI Congresso Ibero-
Americano de Educação Ambiental (Bue-
nos Aires, Argentina, 2009); VI Fórum
Brasileiro de EA (Rio de Janeiro, Brasil,
2009); COP 16 (Dinamarca, 2009) e COP
17 (México, 2010); Conferência das Par-
tes pelo Clima e VI Assembleia Mundial
do ICAE (Suécia, 2011); Seminário Ibe-
ro-Americano sobre o Holocausto (Jerusa-
lém, Israel, 2011); Workshop Internacional
de EA (Guarulhos, Brasil, 2011); Encontro
Cultivando Água Boa Rumo a RIO +20,
da Itaipu Binacional (Foz de Iguaçu, Brasil,
2011). Como preparação estratégica à RIO
+20, a Jornada se integra com atividades
autogestionadas ao Fórum Social Temáti-
co e Fórum Mundial de Educação (Porto
Alegre, Brasil, 2012) e ao VII Fórum Bra-
sileiro de EA (Salvador, Brasil, 2012).
Comunicação Global/Local:
além da alimentação partici-
pativa do site do Tratado; com
o apoio do ICAE , em dezembro 2011/
Janeiro 2012, a Jornada estabeleceu uma
articulação internacional através de um
Fórum Virtual para intercâmbio de ini-
ciativas e aprendizagens da Rede de Edu-
cadoras e Educadores Ambientais.
Materiais Ecopedagógicos em
apoio à Educ-Ação Socioam-
biental: a Jornada está produ-
zindo, disseminando e promovendo in-
tercâmbio de materiais ecopedagógicos
impressos, em áudio, visuais e eletrônicos
sobre temas ligados ao Tratado, buscando
apoiar a mobilização local, regional e in-
ternacional.
Comitê Facilitador Interna-
cional do Tratado: consolidado
a partir de 2010, é o responsá-
vel pela coordenação permanente das ati-
vidades da Rede do Tratado de EA, desde
a preparação, realização e articulação dos
eventos da Segunda Jornada no contexto
da RIO +20, e a sua continuidade pós RIO
+20 com a construção da “Rede Planetária
do Tratado de Educação Ambiental”.
O
Tratado de Educação Am-
biental para Sociedades
Sustentáveis e Responsa-
bilidade Global resultou da
Jornada Internacional de
Educação Ambiental reali-
zada no Rio de Janeiro, em 1992, durante
o Fórum Global da Eco/92, paralelo à
Conferência das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento – Rio/92.
Construído durante um ano de traba-
lho internacional, o Tratado contou com
a participação de educadoras e educadores
de adultos, jovens e crianças de oito regiões
do mundo (América Latina, América do
Norte, Caribe, Europa, Ásia, Estados Ára-
bes, África e Pacífi co do Sul). Inicialmente
publicado em cinco idiomas, ele serviu de
apoio a ações educativas, inspirou a criação
de Organizações da Sociedade Civil e Re-
des de Educação Ambiental, bem como, ao
longo dos anos, inspirou políticas públicas
de Educação Ambiental.
Em 2006, o Tratado foi revisitado por
pesquisa via internet e em um encontro pre-
sencial no V Congresso Ibero-Ameri-
cano de Educação Ambiental (Joinville,
Santa Catarina/Brasil). Também foi
tema de workshop durante a Assem-
bleia do ICAE - Conselho Internacional
de Educação de Adultos (Nairobi/Quê-
nia, 2007) e foi divulgado no Congres-
so Internacional sobre os 30 anos da
Carta de Educação Ambiental de Tbilisi
(Ahmedabad/India, 1997). Essas ações e
eventos internacionais permitiram cons-
tatar a atualidade do Tratado e deram
origem à Jornada Internacional de
Educação Ambiental, iniciada em 2008
e chegando fortalecida a Rio +20.
A Segunda Jornada espera sensibilizar,
mobilizar e aglutinar o maior número de
movimentos pelo Planeta que caminham
na direção da construção de sociedades
sustentáveis, com pessoas que se ecoedu-
cam e educam umas as outras na pers-
pectiva do diálogo permanente. Assumida
por ONGs brasileiras e internacionais, a
Jornada conta com o apoio de governos,
empresas, universidades e abre oportuni-
dades para mobilizar novos olhares sobre
o Tratado de Educação Ambiental, man-
tendo sua característica participativa em
âmbito planetário.
Uma nova
Jornada de
Educão
Ambiental
Os passos da Jornada
Aprofundamento e ampliação da re-
exão internacional sobre o Tratado de
Educação Ambiental para Sociedades
Sustentáveis e Responsabilidade Global,
com leituras integradas e diálogos junto
aos documentos planetários: Carta
da Terra, Carta das Responsabilida-
des Humanas, Declaração Universal
dos Direitos Humanos, Declaração do
Rio92, entre outros.
Processo participativo internacional
com desdobramentos possíveis em polí-
ticas públicas na perspectiva da educação
ambiental com cidadãs e cidadãos
ecoeducados e que ecoeducam.
Presença efetiva da Educação Ambien-
tal inclusiva e permanente baseada nos
princípios do Tratado em processos
nacionais, regionais e internacionais.
Produção, disseminação e intercâmbio
de materiais ecopedagógicos de apoio à
construção de sociedades sustentáveis
com responsabilidade global.
Plano de Ação do Tratado com base
nos princípios e valores que o regem.
Criação do Círculo do Tratado
de Educação Ambiental com Plano
de Ação atualizado para assegurar,
de forma permanente e contínua, o
encaminhamento das propostas emer-
gentes da Jornada e a criação e animação
da Rede Planetária do Tratado de Edu-
cação Ambiental.
Este Tratado, assim como a edu-
cação, é um processo dinâmi-
co em permanente construção.
Deve portanto propiciar a re-
exão, o debate e a sua pró-
pria modifi cação. Nós signatá-
rios, pessoas de todas as partes do mundo,
comprometidos com a proteção da vida
na Terra, reconhecemos o papel central da
educação na formação de valores e na ação
social. Nos comprometemos com o pro-
cesso educativo transformador através do
envolvimento pessoal, de nossas comuni-
dades e nações para criar sociedades sus-
tentáveis e equitativas. Assim, tentamos
trazer novas esperanças e vida para nos-
so pequeno, tumultuado, mas ainda assim
belo planeta.
Introdução
Consideramos que a educação ambien-
tal para uma sustentabilidade equitativa
é um processo de aprendizagem perma-
nente, baseado no respeito a todas as for-
mas de vida. Tal educação afi rma valores e
ações que contribuem para a transforma-
ção humana e social e para a preservação
ecológica. Ela estimula a formação de so-
ciedades socialmente justas e ecologica-
mente equilibradas, que conservam entre
si relação de interdependência e diversi-
dade. Isto requer responsabilidade indi-
Tratado de Educão
Ambiental para
Sociedades Sustentáveis e
Responsabilidade Global
A
Jornada Internacional de Edu-
cação Ambiental é um momento
histórico para quem acredita que
a educação ambiental é o centro
de nossas ações cotidianas e de nossas vidas
na construção de sociedades sustentáveis.
Você é nosso convidado especial para co-
nhecer, integrar e praticar, em sua realidade
e atuação local, os princípios deste Tratado,
estabelecendo as devidas conexões com a re-
alidade planetária. Conheça (págs. 08 e 09)
as 22 diretrizes do Plano de Ação que po-
dem apoiar e direcionar a sua participação!
Como você pode participar?
vidual e coletiva a nível local, nacional e
planetário. Consideramos que a prepara-
ção para as mudanças necessárias depende
da compreensão coletiva da natureza sis-
têmica das crises que ameaçam o futuro
do planeta. As causas primárias de pro-
blemas como o aumento da pobreza, da
degradação humana e ambiental e da vio-
lência podem ser identifi cadas no modelo
de civilização dominante, que se baseia em
superprodução e superconsumo para uns e
subconsumo e falta de condições para pro-
duzir por parte da grande maioria. Consi-
deramos que são inerentes à crise a erosão
dos valores básicos e a alienação e a não
participação da quase totalidade dos in-
divíduos na construção de seu futuro. É
fundamental que as comunidades plane-
jem e implementem suas próprias alter-
nativas às políticas vigentes. Dentre estas
alternativas está a necessidade de aboli-
ção dos programas de desenvolvimento,
ajustes e reformas econômicas que man-
têm o atual modelo de crescimento com
seus terríveis efeitos sobre o ambiente
e a diversidade de espécies, incluindo a
humana. Consideramos que a educação
ambiental deve gerar com urgência mu-
danças na qualidade de vida e maior cons-
ciência de conduta pessoal, assim como
harmonia entre os seres humanas e destes
com outras formas de vida.
SEJA PARCEIRO (A)
DESTA INICIATIVA! ASSINE O TRA-
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A IMPLEMENTAR A REDE PLANETÁRIA DO TRA-
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www.tratadoeducacao
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Segunda Jornada Internacional de Educação Ambiental • 5
A
Jornada Internacional de Edu-
cação Ambiental é um momento
histórico para quem acredita que
a educação ambiental é o centro
de nossas ações cotidianas e de nossas vidas
na construção de sociedades sustentáveis.
Você é nosso convidado especial para co-
nhecer, integrar e praticar, em sua realidade
e atuação local, os princípios deste Tratado,
estabelecendo as devidas conexões com a re-
alidade planetária. Conheça (págs. 08 e 09)
as 22 diretrizes do Plano de Ação que po-
dem apoiar e direcionar a sua participação!
4 • Segunda Jornada Internacional de Educação Ambiental
Resultados esperados da Jornada
de Educão Ambiental – Rio+20
Tratado de Educação
Ambiental para
Tratado de Educão
Ambiental para
Tratado de Educão
Sociedades Sustentáveis e
Ambiental para
Sociedades Sustentáveis e
Ambiental para
Responsabilidade Global
Segunda Jornada Internacional de Educação Ambiental • 76 • Segunda Jornada Internacional de Educação Ambiental
1 A educação é um direito de todos,
somos todos aprendizes e educadores.
2 A educação ambiental deve ter como
base o pensamento crítico e inovador, em
qualquer tempo ou lugar, em seus modos
formal, não formal e informal, promo-
vendo a transformação e a construção da
sociedade.
3 A educação ambiental é individual
e coletiva. Tem o propósito de formar
cidadãos com consciência local e plane-
tária, que respeitem a autodeterminação
dos povos e a soberania das nações.
4 A educação ambiental não é neutra,
mas ideológica. É um ato político, ba-
seado em valores para a transformação
social.
5 A educação ambiental deve envolver
uma perspectiva holística, enfocando a
relação entre o ser humano, a natureza e
o universo de forma interdisciplinar.
6 A educação ambiental deve estimular
a solidariedade, a igualdade e o respeito
aos direitos humanos, valendo-se de es-
tratégias democráticas e interação entre
as culturas.
7 A educação ambiental deve tratar as
questões globais críticas, suas causas e
inter-relações em uma perspectiva sis-
têmica, em seu contexto social e histó-
rico. Aspectos primordiais relacionados
ao desenvolvimento e ao meio ambiente
tais como população, saúde, democracia,
fome, degradação da fl ora e fauna devem
ser abordados dessa maneira.
8 A educação ambiental deve facili-
tar a cooperação mútua e equitativa nos
processos de decisão, em todos os níveis
e etapas.
9 A educação ambiental deve recupe-
rar, reconhecer, respeitar, refl etir e utili-
zar a história indígena e culturas locais,
assim como promover a diversidade cul-
tural, linguística e ecológica. Isto implica
uma revisão da história dos povos na-
tivos para modifi car os enfoques etno-
cêntricos, além de estimular a educação
bilíngue.
10 A educação ambiental deve esti-
mular e potencializar o poder das diver-
sas populações, promover oportunidades
para as mudanças democráticas de base
que estimulem os setores populares da
sociedade. Isto implica que as comuni-
dades devem retomar a condução de seus
próprios destinos.
11 A educação ambiental valoriza as
diferentes formas de conhecimento. Este
é diversifi cado, acumulado e produzido
socialmente, não devendo ser patenteado
ou monopolizado.
12 A educação ambiental deve ser
planejada para capacitar as pessoas a tra-
balharem confl itos de maneira justa e
humana.
13 A educação ambiental deve pro-
mover a cooperação e o diálogo entre in-
divíduos e instituições, com a fi nalidade
de criar novos modos de vida, baseados
em atender às necessidades básicas de
todos, sem distinções étnicas, físicas, de
gênero, idade, religião, classe ou mentais.
14 A educação ambiental requer a
democratização dos meios de comuni-
cação de massa e seu comprometimento
com os interesses de todos os setores da
sociedade. A comunicação é um direito
inalienável e os meios de comunicação
de massa devem ser transformados em
um canal privilegiado de educação, não
somente disseminando informações em
bases igualitárias, mas também promo-
vendo intercâmbio de experiências, mé-
todos e valores.
15 A educação ambiental deve inte-
grar conhecimentos, aptidões, valores,
atitudes e ações. Deve converter cada
oportunidade em experiências educativas
de sociedades sustentáveis.
16 A educação ambiental deve ajudar
a desenvolver uma consciência ética so-
bre todas as formas de vida com as quais
compartilhamos este planeta, respeitar
seus ciclos vitais e impor limites à explo-
ração dessas formas de vida pelos seres
humanos.
Princípios da
Educão para
Sociedades
Sustentáveis e
Responsabilidade
Global
Segunda Jornada Internacional de Educação Ambiental • 98 • Segunda Jornada Internacional de Educação Ambiental
Segunda Jornada Internacional de Educação Ambiental •
Segunda Jornada Internacional de Educação Ambiental •
1 Transformar as declarações deste
Tratado e dos demais produzidos pela
Conferência da Sociedade Civil duran-
te o processo da Rio92 em documen-
tos a serem utilizados na rede formal de
ensino e em programas educativos dos
movimentos sociais e suas organizações.
2 Trabalhar a dimensão da educação
ambiental para sociedades sustentáveis
em conjunto com os grupos que elabo-
raram os demais tratados aprovados du-
rante a Rio92.
3 Realizar estudos comparativos entre
os tratados da sociedade civil e os pro-
duzidos pela Conferência das Nações
Unidas para o Meio Ambiente e De-
senvolvimento – UNCED e utilizar as
conclusões em ações educativas.
4 Trabalhar os princípios deste Trata-
do a partir das realidades locais, esta-
belecendo as devidas conexões com a
realidade planetária, objetivando a cons-
cientização para a transformação.
5 Incentivar a produção de conheci-
mento, políticas, metodologias e práticas
de Educação Ambiental em todos os es-
paços de educação formal, informal, não
formal, para todas as faixas etárias.
6 Promover e apoiar a capacitação
de recursos humanos para preservar,
conservar e gerenciar o ambiente,
como parte do exercício da cidadania
local e planetária.
7 Estimular posturas individuais e
coletivas, bem como políticas institucio-
nais que revisem permanentemente
a coerência entre o que se diz e o que
se faz, os valores de nossas culturas,
tradições e histórias.
8 Fazer circular informações sobre o
saber e as memórias populares e sobre
iniciativas e tecnologias apropriadas ao
uso dos recursos naturais.
9 Promover a corresponsabilidade
dos gêneros feminino e masculino
sobre a produção, reprodução e manu-
tenção da vida.
10 Estimular e apoiar a criação e o
fortalecimento de associações de produ-
tores, de consumidores e de rede de co-
mercialização que sejam ecologicamente
responsáveis.
11 Sensibilizar as populações para
que constituam Conselhos Populares
de Ação Ecológica e Gestão do Am-
biente visando investigar, informar, de-
bater e decidir sobre problemas e polí-
ticas ambientais.
12 Criar condições educativas, jurí-
dicas, organizacionais e políticas para
exigir dos governos que destinem parte
signifi cativa de seu orçamento à educa-
ção e meio ambiente.
13 Promover relações de parceria e
cooperação entre ONGs e movimentos
sociais e as agências da ONU (UNES-
CO, PNUMA, FAO entre outras), a
nível nacional, regional e internacional,
a fi m de estabelecerem em conjunto as
prioridades de ação para educação, meio
ambiente e desenvolvimento.
14 Promover a criação e o fortale-
cimento de redes nacionais, regionais
e mundiais para a realização de ações
conjuntas entre organizações do Norte,
Sul, Leste e Oeste com perspectiva pla-
netária (exemplos: dívida externa, direi-
tos humanos, paz, aquecimento global e
população e produtos contaminados).
15 Garantir que os meios de comuni-
cação se transformem em instrumentos
educacionais para a preservação e conser-
vação de recursos naturais apresentando
a pluralidade de versões com fi dedigni-
dade e contextualizando as informações.
Estimular transmissões de programas ge-
rados pelas comunidades locais.
16 Promover a compreensão das
causas dos hábitos consumistas e agir
para a transformação dos sistemas que
os sustentam, assim como para a trans-
formação de nossas próprias práticas.
17 Buscar alternativas de produção
autogestionária e apropriadas econômica
e ecologicamente, que contribuam para
uma melhoria da qualidade de vida.
18 Atuar para erradicar o racismo,
o sexismo e outros preconceitos; e con-
tribuir para um processo de reconheci-
mento da diversidade cultural, dos di-
reitos territoriais e da autodeterminação
dos povos.
19 Mobilizar instituições formais e
não formais de educação superior para
o apoio ao ensino, pesquisa e extensão
em educação ambiental e à criação, em
cada universidade, de centros interdisci-
plinares para o meio ambiente.
20 Fortalecer as organizações e mo-
vimentos sociais como espaços privi-
legiados para o exercício da cidadania
e melhoria da qualidade de vida e do
ambiente.
21Assegurar que os grupos de ecolo-
gistas popularizem suas atividades e que
as comunidades incorporem em seu co-
tidiano a questão ecológica.
22 Estabelecer critérios para a
aprovação de projetos de educação
para sociedades sustentáveis, discutindo
prioridades sociais junto às agências
nanciadoras.
As organizações que assinam este Tratado se
propõem a implementar as seguintes diretrizes:
Plano de Ação
Segunda Jornada Internacional de Educação Ambiental • 11
Reservar uma parte signifi cativa de seus recursos para o desenvolvimento de programas
educativos relacionados com a melhoria do ambiente e com a qualidade de vida.
Reivindicar dos governos que destinem um percentual signifi cativo do Produto Interno
Bruto para a implantação de Programas de Educação Ambiental em todos os setores da
administração pública, com participação direta de ONGs e movimentos sociais.
P
ropor políticas econômicas que estimulem empresas a desenvolver e aplicar tecnologias
apropriadas e a criar programas de educação ambiental como parte de treinamentos de
pessoal e para a comunidade em geral.
Incentivar as agências nanciadoras a alocar recursos signifi cativos a projetos dedicados
à educação ambiental, além de garantir a sua presença em outros projetos a serem apro-
vados, sempre que possível.
Contribuir para a formação de um sistema bancário planetário das ONGs e movimen-
tos sociais, cooperativo e descentralizado que se proponha a destinar uma parte de seus
recursos para programas de educação e seja ao mesmo tempo um exercício educativo de
utilização de recursos fi nanceiros.
10 • Segunda Jornada Internacional de Educação Ambiental
Difundir e promover em todos os países o Tratado de Educação Ambiental para Socie-
dades Sustentáveis e Responsabilidade Global através de campanhas individuais e co-
letivas, promovidas por ONGs, movimentos sociais e outros.
Estimular e criar organizações, ONGs e Movimentos Sociais para implantar, imple-
mentar, acompanhar e avaliar os elementos deste Tratado.
P
roduzir materiais de divulgação deste Tratado e de seus desdobramentos em ações edu-
cativas, sob forma de textos, cartilhas, cursos, pesquisas, eventos culturais, programas de
mídia, feiras de criatividade popular, meios virtuais e outros.
Estabelecer um Comitê Facilitador Internacional para dar continuidade às propostas
deste Tratado.
Estimular, criar e desenvolver Redes de Educadoras e Educadores ambientais.
Organizações dos movimentos sociais-ecologistas, mulheres, jovens, grupos étnicos, ar-
tistas, agricultores, sindicalistas, associações de bairros e outros.
ONGs comprometidas com os movimentos sociais de caráter popular.
Profi ssionais de educação interessados em implantar e implementar programas vol-
tados à questão ambiental tanto nas redes formais de ensino, como em outros espaços
educacionais.
Responsáveis pelos meios de comunicação capazes de aceitar o desafi o de um trabalho
transparente e democrático, iniciando uma nova política de comunicação em massa.
Cientistas e instituições científi cas com postura ética e sensíveis ao trabalho conjunto
com as organizações dos movimentos sociais.
Grupos religiosos interessados em atuar junto as organizações dos movimentos sociais.
Governos locais e nacionais capazes de atuar em sintonia/parceria com as propostas
deste Tratado.
Empresários(as) comprometidos(as) em atuar dentro de uma lógica de recuperação e
conservação do meio ambiente e de melhoria continua da qualidade de vida, condizen-
tes com os princípios e propostas deste Tratado.
Comunidades alternativas que experimentem novos estilos de vida condizentes com os
princípios e propostas deste Tratado.
Sistema de Coordenação,
Monitoramento e Avaliação.
Todos os que assinam e/ou aderem a este
Tratado concordam em:
Recursos
Todas as organizações que assinam
o presente Tratado se comprometem a:
Grupos a serem envolvidos
Este Tratado é dirigido para:
Segunda Jornada Internacional de Educação Ambiental • 1312 • Segunda Jornada Internacional de Educação Ambiental Imagens: Vladimir Gerasimov; Arte: Michèle Sato
Tratado de Educão
Ambiental em minha vida
LEIA, INSPIRESE E REFLITA COMO CADA PRINCÍPIO DO
TRATADO DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL PODE FAZER PARTE
E/OU JÁ FAZ DE SUAS AÇÕES
O que mais chama a minha atenção na leitura
do Tratado de Educação Ambiental (págs. 6 e 7) é:
Eu assumo os princípios deste Tratado de Educação Ambiental
e me comprometo a divulgá-los e aplicá-los em minha vida.
Assinado(a)
Envie sua assinatura também para
www.tratadoeducacaoambiental.net
Signatários do Tratado de Educação Ambiental
14 • Segunda Jornada Internacional de Educação Ambiental Segunda Jornada Internacional de Educação Ambiental • 15
Somos Todos Aprendizes
Secretaria executiva no Brasil
CEAG – Centro de Educação Ambiental de Guarulhos
CESCAR – Coletivo Educador de São Carlos
Instituto ComSol
Instituto Ecoar
Instituto Paulo Freire
Instituto Marina Silva
Instituto Supereco
Laboratório de Educação OCA/USP
REBEA – Rede Brasileira de Educação Ambiental
REJUMA – Rede de Juventude pelo Meio Ambiente e Sustentabilidade
Aidil Borges NEREA
Andrée de Ridder Vieira Instituto Supereco
Celita Echer ICAE
Denise Alves OCA/USP
Diogo Damasceno REJUMA
Francis Quimpo CES-PHI
Hierald E. Kane-Osorto Siglo XXIII USA
Isabel Dominguez CESCAR
Jacqueline Guerreiro REBEA
Joaquim Pinto NEREA/Portugal
José Vicente de Freitas MEC
Júlia Tomshisky Instituto Paulo Freire
Luciana Ferraz Brahma Kumaris/Brasil
Marcela Ballara ICAE
Marcos Sorrentino OCA/USP
Maria Cristina Vieira REABA
Maria Henriqueta Raymundo Prefeitura de Suzano
Marta Benevides Siglo XXIII
Mauri Schneider Linha Ecológica
Michèle Sato Rede Lusófona de EA
Miriam Dualib Instituto Ecoar
Moema Viezzer ComSol
Mônica Simons CEAG/P.M.G
Nelida Cespedes CEAAL
Nilo Diniz MMA
Ninon Machado Instituto Ipanema
Patrícia Jaramillo REPEM
Pedro Aranha Major Groups/PNUMA
Rachel Trajber IMAS
Robbie Guevara ASPBAE
Sandro Martinez Porro Centro de Saberes e Cuidados
Socioambientais da Bacia do Prata
Sheila Ceccon Instituto Paulo Freire
Silvana Vitorassi Itaipu Binacional
Comissão organizadora internacional
Coordenação Internacional
Moema Viezzer
“SOMOS TODOS APRENDIZES
Além de assinar o Tratado de Educação Ambiental, você pode, em suas
redes de conexões, divulgar os princípios deste Tratado, conseguir mais
signatários(as), realizar Jornadas Locais ou Setoriais, partilhar suas experiên-
cias de Educação para Sociedades Sustentáveis com Responsabilidade Global.
Seja você também um dos
CONECTORES DA APRENDIZAGEM TRANSFORMADORA
na Rede Planetária do Tratado de Educação Ambiental!
A
s
s
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õ
e
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Para mais informações, acesse:
www.tratadoeducacaoambiental.net
Educadores
Associações
Órgãos Públicos
Empresas
Sindicatos
Cooperativas
Mídias
ONGs
Esta iniciativa faz parte dos Tratados dos Povos pela Sustentabilidade
e do GT Educação RIO+20
Projeto Gráco: Alexandre DeRuiz
Comitê Facilitador Internacional
Patrocínio
Parcerias e Cooperação
Ministério do
Meio Ambiente
Ministério da
Educação
LISTA DE PARECERISTAS DE 2022 - COMITÊ CIENTÍFICO E PARECERISTAS
AD HOC
Pareceristas TN 41, V.20 (Jan-Abr), 2022
Alexandre Maia do Bonfim – IFRJ
Ana Motta - UFF
Claudio Fernandes da Costa – IEARJ/UFF
Domingos Barros Nobre – IEAR/UFF (Ad hoc)
Elaine Martins Moreira – UFRJ (Ad hoc)
Emilie Faedo – UFF (Ad hoc)
Isabela Pedroso – COLUNI/UFF (Ad hoc)
Jaqueline Ventura - UFF
Jacqueline Botelho – ESS/UFF
Jetson Loureiro – UFSE (Ad hoc)
José Carlos do Amaral Junior – IDRP (Ad hoc)
José Luiz Cordeiro Antunes - UFF
Lea Calvão - UFF
Leonilde Servolo de Medeiros – UFRRJ (Ad hoc)
Lia Tiriba - UFF
Marcelo Lima - UFES
Maria Cristina Paulo Rodrigues – ESS/UFF
Maria da Graça Silva - UEPA (Ad hoc)
Maria José Andrade de Souza - UNIFESSPA (Ad hoc)
Mariana Paladino – UFF (Ad hoc)
Marisol Valencia Orrego – UFRRJ (Ad hoc)
Monica Ribeiro – UFPR
Raimunda Soares – UFF (Ad hoc)
Roberta Lobo – UFRRJ (Ad hoc)
Ronaldo Marcos de Lima Araújo – UFPA
Suenya Santos – UFF (Ad hoc)
William Kennedy do Amaral Souza - IFRO
Pareceristas TN 42, V.20 (Maio-Ago), 2022
Allan Kenji Seki – UFSC (Ad hoc)
André Feitosa - EPSJV/FIOCRUZ
Camila Azevedo - UFF/Neddate (Ad hoc)
Caridad Pérez García – UCPEJV/Cuba
Cláudio Fernandes da Costa – IEAR/UFF
Cleci Korbes – UFPR (Ad hoc)
Domingos Leite Lima Filho (UTFPR)
Dora Henrique da Costa – UFF
Eduardo da Costa Pinto D’Ávila – IFRJ – Duque de Caxias (Ad hoc)
Jacqueline Botelho – ESS/UFF
Jesús Jorge Pérez García – PURJ (Ad hoc)
José Luiz Cordeiro Antunes – UFF
José Rodrigues - UFF
Kênia Miranda – UFF (Ad hoc)
Lia Tiriba – UFF
Luciane Nascimento – UFBF (Ad hoc)
Marcos Barreto – UFF
Marcos Lamarão - IFF / Macaé-RJ (Ad hoc)
Maria Cristina Paulo Rodrigues – ESS/UFF
Nora Rut Krawczyk – UNICAMP (Ad hoc)
Ramon de Oliveira - UFPE
Regis Arguelles da Costa – UFF
Renata Peres Barbosa – UFPR (Ad hoc)
Roberto Leher – UFRJ
Rosana de Fátima Silveira Jammal Padilha – IFPR (Ad hoc)
Sandra Regina de Oliveira Garcia – UEL (Ad hoc)
Vanessa Campos de Lara Jakimiu – UFC (Ad hoc)
Pareceristas TN 43, V.20 (Set-Dez), 2022
Alexandre Maia do Bonfim – IFRJ
Aline Caldeira Soares- UFRJ (Ad hoc)
Ana Motta – UFF
Ana Violeta Ribeiro Durão – FIOCRUZ (Ad hoc)
Angela Rabello Maciel de Barros Tamberlini - UFF
Bianca Aparecida Lima – UFV (Ad hoc)
Caroline Bahniuk – UNB (Ad hoc)
Cláudio Fernandes da Costa – IEAR/UFF
Doriedson Rodrigues - UFPA
Edson Caetano – UFMT
Inny Accioly – UFF (Ad hoc)
Jacqueline Botelho – ESS/UFF
José Luiz Cordeiro Antunes – UFF
Kathiucha Bertollo – UFOP (Ad hoc)
Lia Tiriba – UFF
Luiz Augusto de Oliveira Gomes – Neddate/UFF (Ad hoc)
Márcio Douglas – UFRRJ (Ad hoc)
Marcio Gomes da Silva – UFV /MG – (Ad hoc)
Maria das Graças Lustosa - UFF (Ad hoc)
Maylta Brandão – IFRJ (Ad hoc)
Percival Tavares da Silva – UFF (Ad hoc)
Reginaldo Costa – UFF (Ad hoc)
Ronaldo Marcos de Lima Araújo - UFPA
Sandra Luciana Dalmagro – UFSC (Ad hoc)
Sandra Morais – Neddate/UFF
Sonia Maria Rummert - UFF
Tássia Gabriele Balbi de Figueiredo e Cordeiro – IFF/EBTT (Ad hoc)
William Kennedy do Amaral Souza - IFRO