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V.22, nº 47 / jan - abr (2024) ISSN: 1808-799 X


Universidade Federal Fluminense Faculdade de Educação

NEDDATE - NÚCLEO DE ESTUDOS, DOCUMENTAÇÃO E DADOS SOBRE TRABALHO E EDUCAÇÃO REVISTA TRABALHO NECESSÁRIO:

Redação: R. Professor Waldemar Freitas Reis, s/n°, bloco D, sala 525, Gragoatá - São Domingos, Niterói - RJ, CEP 24210-201 - revistatrabalhonecessario@gmail.com


EDITORAS

Lia Tiriba e Jacqueline Botelho


CONSELHO EDITORIAL

Caridad Perez García (UCPEJV – Cuba), Celso Ferretti (UNISO - Brasil), Gaudêncio Frigotto (UFF / UERJ- Brasil), José Claudinei Lombardi (UNICAMP – Brasil), Maria Ciavatta (UFF - Brasil), Roberto Leher (UFRJ - Brasil), Tomás Rodrigues Villasante (UCM – Espanha), Sonia Maria Rummert (UFF - Brasil) e Virgínia Fontes (UFF / EPJV / Fiocruz - Brasil).


COMITÊ CIENTÍFICO

Alexandre Maia do Bomfim (IFRJ), Ana Motta (UFF), André Feitosa (EPSJV/FIOCRUZ), André Martins (UFJF), Andrea Araújo Vale (UFF), Anita Handfas (UFRJ), Angela Siqueira (UFF), Angela Tamberlini (UFF), Claudio Fernandes da Costa (UFF), Célia Regina Vendramini (UFSC), Daniela Motta (UFJF), Dante Moura (IFRN), Deise Mancebo (UERJ), Domingos Leite Lima Filho (UTFPR), Dora Henrique da Costa (UFF), Doriedson do Socorro Rodrigues (UFPA), Edison Oyama (UFRR), Edson Caetano (UFMT), Eneida Oto Shiroma (UFSC), Eraldo Leme Batista (UNIVAS-MG), Eveline Algebaile (UERJ), Filippina Chinelli (EPSJV/FIOCRUZ), Flávio Anício (UFRRJ), Francisco José Lobo Neto (FIOCRUZ), Guadelupe Teresinha Bertussi (UNAM e UFSC), Hajime Nozaki (UFMS e UFJF), Henrique Tahan Novaes (UNESP), Ivo Tonet (UFAL), Jacqueline Botelho (UFF), Jaqueline Ventura (UFF), João dos Reis da Silva Jr. (UFSCar), José dos Santos Souza (UFRRJ), José Luiz Cordeiro Antunes(UFF), Júlio Cesar França Lima (FIOCRUZ), Justino de Souza Junior (UFC), Kátia Lima (UFF), Laura Souza Fonseca (UFRGS), Lea Calvão (UFF),Lia Tiriba (UFF), Lígia Klein (UFPR), Luciana Requião (UFF), Marcelo Lima (UFES), Maria Clara Bueno Fischer (UFRGS), Maria Cristina Paulo Rodrigues (UFF), Maria Inês do Rego Monteiro Bomfim (UFF), Maria de Fátima Félix Rosar (UNICAMP), Marcia Alvarenga (UERJ), Mariléia Maria da Silva (UDESC), Marisa Brandão (CEFET-RJ), Marise Ramos (UERJ,FIOCRUZ), Myriam Feldfeber (UBA - Argentina), Ney Luiz Teixeira Almeida (UERJ), Olinda Evangelista (UFSC), Ramon de Oliveira (UFPE), Raquel Varela (Universidade Nova de Lisboa- Portugal), Roberto Leher (UFRJ), Ronaldo Lima (UFPA), Rosilda Benacchio (UFF), Rui Canário (Universidade de Lisboa – Portugal), Sandra Maria Siqueira (UFBA), Sandra Morais (UNIRIO), Sérgio Lessa (UFAL), Susana Vasconcellos Jimenez (UFC), ), Sonia Maria Rummert (UFF), Tatiana Dahmer (UFF), Valdemar Sguissardi (UFSCar), Vania Motta (UFRJ), William Kennedy do Amaral Souza (IFRO) e Zuleide Silveira (UFF).


ORGANIZAÇÃO DA TN 46 (2023)


Ana Elizabeth Alves e Maria Clara Bueno Fischer (UESB – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, MINKA/Neddate - Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho-Educação), Jesus Jorge Pérez García e Dora Lígia Marquês (Cemarna – Centro de Estudios de Medio Ambiente y Recursos Naturales / UPR – Universidad Pinar del Rio - Cuba), Boris Maranõn e Hilda Caballero (Instituto de Investigaciones Económicas / UNAM – Universidad Autónoma de México).


ASSISTENTES/COLABORADORES DE EDIÇÃO


Daniel Tiriba, José Luiz Cordeiro Antunes (UFF), Lândhor Borges Camello (UFF) e William Kennedy do Amaral Souza (IFRO)


FOTO DA CAPA

“Passado, presente, futuro”, foto de Octacílio Barbosa Segundo cedida em janeiro/2024.


MONTAGEM DA CAPA

Daniel Tiriba

V.22, nº 47/ jan - abr (2024) ISSN: 1808-799 X


Indexado por / Indexed by



Apoio:



Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá/SDC/UFF Bibliotecária:

Mahira de Souza Prado CRB-7/6146


V.22, nº 47, 2024 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799X


Editorial


AS VEIAS ABERTAS DA AMÉRICA LATINA DIANTE DAS PRESSÕES DE UMA CIVILIZAÇÃO DECADENTE1


No senso comum dizem que o Ano Novo só começa depois do carnaval, quando tudo volta a funcionar. Para algumas culturas, o Ano Novo acontece mais adiante, diferenciando-se do calendário padrão. O Ano Novo também representa um certo esperançar para nossas diversas ações, para a construção de um novo mundo, possível e necessário para toda a diversidade humana.

Quando damos uma parada para as festas, férias e recessos, com o sentido de revigorar as forças para aguentar os trancos, o mundo não pára e a luta entre capital-trabalho, também não. Diante disso, é que temos que ficar com “um olho na missa e outro olho no padre”. Em síntese, para a investida constante do capital e de seus representantes, temos que ficar atentos, o que exige esforços redobrados, principalmente nas repercussões para a Nuestra América Latina, pois projetos perversos se encontram postos, exigindo reflexões profundas e ações consistentes para problemas que historicamente atravessam os cotidianos da Classe Trabalhadora. Esse é o sentido da publicação da TN 47 - Trabalho, história e memória dos povos de "Nuestra América" - Tomo 2 (primeiro número de 2024), ou seja, ajudar no processo de reflexão e ações profícuas. Foi com esse compromisso, que a partir de outubro de 2023, esse número da Revista Trabalho Necessário começou a ser tecido pelas organizadoras e editores. O título deste Editorial diz tudo.

O processo de pilhagem das riquezas da América Latina é atualíssimo. Tal processo torna-se sofisticado com a transformação dos recursos naturais em commodities para fins de exportação, demonstrando a capacidade dos dominantes em apresentar o processo de saque e escamoteamento como etapa de


1 Editorial recebido em 19/02/2024. Aprovado pelos editores em 22/02/2024. Publicado em 22/02/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.62030.

desenvolvimento. No cumprimento da agenda ultra neoliberal, a extrema-direita latino-americana parece desembarcar dos velhos navios europeus para operar o projeto imperialista que a favorece. Ataques desmedidos aos direitos sociais da classe trabalhadora estão na ordem do dia, apresentados como medidas necessárias ao enfrentamento da crise.

Em resposta às determinações neoliberais anunciadas pelo governo Javier Milei, em janeiro de 2024, abrindo o ano, as Centrais Sindicais argentinas convocaram ampla jornadas de lutas. Na toada das ações da extrema-direita na América Latina, Milei põe em marcha medidas inconstitucionais como o Decreto de Necessidade e Urgência (DNU), cuja finalidade máxima é a promoção da privatização e mercantilização, com aumento no custo de vida, ameaças à soberania nacional, abrindo possibilidades para que grandes extensões de terras possam estar em mãos estrangeiras, com desregulação do mercado, e proposta de “modernização” trabalhista, facilitando demissões. Milei buscou garantir, de forma arbitrária, a ampliação de poderes do presidente da República através da chamada Lei Ônibus, cuja finalidade é garantir até 2025 que sejam postos em andamento os interesses do FMI, com texto base aprovado na Câmara, em fevereiro de 2024.

O cenário argentino, ao repetir as pautas recentes do governo Bolsonaro, coloca as liberdades democráticas, a memória dos crimes das ditaduras latino-americanas como parte fundamental da resistência anticapitalista em Nuestra América, que busca, pela luta social, se livrar de todo movimento de pilhagem já denunciado por Galeano em Veias Abertas da América Latina.

Na particularidade brasileira, os crimes de Bolsonaro tornam-se cada vez mais evidentes, e a classe trabalhadora organizada pede sua prisão imediata, sem anistia, em protesto ao genocídio vivido pela maioria negra e periférica durante a pandemia da Covid-19, e em desagravo aos duros golpes à democracia, expressos nos ataques aos direitos sociais.

A marcha imperialista estadunidense não poderia se esquecer de Cuba, cujos processos de americanização são galopantes. Referência das lutas pelo socialismo e berço da organização política dirigida por Fidel Castro e Guevara, a ilha representa a memória viva da resistência anti-imperialista - como sobrevivente de um bloqueio que asfixiou Cuba desde a década de 1960 - graças à experiência de um modo de vida onde saúde e educação são valores primordiais, o que demonstra a força de sua Revolução Socialista.

Em novembro de 2023, a Assembleia Geral da ONU pediu o fim do bloqueio à Cuba. Com sede em Miami, a chamada Patriotic Foundation (Fundação Patriótica), semente contrarrevolucionária, esteve organizando ações armadas contra Cuba, cujo objetivo era impor a pedagogia norte-americana de Biden.

Em 29 de janeiro deste ano, Machu Picchu entrou no seu quinto dia de paralisação contra a privatização nos acessos ao sítio arqueológico. Torna-se escancarada a investida capitalista pela privatização da vida e dos territórios. Diante desse descompromisso, o respeito à cultura do povo inca não passa aos defensores da mercantilização da vida como mera perda de tempo.

Diante de um cenário árduo, a Colômbia oferece ao campo progressista um aceno ao fortalecimento do ensino superior público. No final do ano de 2023, o governo colombiano assinou um decreto que regulamenta a Lei 2307/23 e assegura a gratuidade dos cursos de graduação nas instituições públicas de ensino superior para grupos específicos. A medida também irá abranger cursos técnicos, tecnológicos e profissionais. “No país, a gratuidade da educação contempla apenas o ensino primário e parte do secundário. A Colômbia conta com universidades e escolas públicas, porém não gratuitas, o que define tais ações como uma conquista relevante do campo progressista.

O debate sobre a América Latina precisa ser ampliado no campo crítico com o fortalecimento da Universidade Pública, gratuita e de qualidade, capaz de promover discussões importantes como a relação Universidade e Sociedade. Somente uma universidade que cumpra seu papel social de instituição social poderá pautar a defesa das liberdades democráticas e fortalecer a ampliação de direitos sociais. Fora desse contexto, a Universidade atua como organização social, como braço estratégico do mercado na sociedade, tornando ainda mais audaciosa a ação danosa da agenda ultra neoliberal.

O mundo atravessa uma de suas mais graves crises humanitárias. O genocídio do povo palestino, com os ataques do exército de Israel, matando mulheres, crianças e idosos, deixa às claras o caráter colonialista e racista do capitalismo na modernidade, que não possui compromisso com a civilização. Israel sempre buscou apoio na América Latina, onde América Central, do Sul e Caribe ainda mantêm relações diplomáticas com este país, exceto Cuba, Venezuela e Bolívia.

Em 18 de fevereiro, o atual presidente do Brasil, Lula da Silva, durante Conferência da União Africana na Etiópia comparou o genocídio de Gaza com o Holocausto sofrido pelos judeus, com forte protesto de grupos pró-Israel no país. A extrema-direita sionista, que é promovida por Netanyahu, precisa ser rechaçada em todo o planeta para que o povo palestino possa ter acesso à ajuda humanitária. Organizações sionistas estão presentes em diversas partes do mundo, incluindo Brasil, propondo um massacre étnico.

Como nos anunciou Aimé Césaire, uma civilização incapaz de resolver os problemas que o seu funcionamento suscita, é uma civilização decadente. O autor denuncia que a dita civilização europeia, que exporta para o mundo sua pedagogia colonialista, foi incapaz de resolver o problema colonial e do proletariado, incentivando um “pedantismo cristão” capaz de equiparar cristianismo à civilização e “paganismo” à selvageria, de onde “só podiam decorrer abomináveis consequências colonialistas e racistas, cujas vítimas haveriam de ser os índios, os amarelos, os negros” (CESAIRE, p.163).

Especificamente para o campo educativo brasileiro, para a área Trabalho-Educação, em especial, o processo de disputa sobre a Reforma do Ensino Médio, a organização da BNC Formação, a mercantilização da educação, a utilização, tanto para o bem como para o mal, das novas tecnologias (a presença marcante da AI - Inteligência Artificial), interfere no processo formativo da Classe Trabalhadora e de seus filhos/as, que se faz presente nestas duas décadas do Século XXI. Isso sem tecer as repercussões desta disputa perversa para os Periódicos Científicos e o perigo posto para as Ciências Abertas. Entretanto, a disponibilidade para as lutas, as resistências emblemáticas construídas pelos Movimentos Sociais e Populares, demonstram que o processo de disputa continua posto, mas não dado definitivamente.

Assim, contra essas atrocidades, a América Latina impõe-se historicamente como um território de resistências anticolonialistas. A memória de Guevara, Fidel Castro, Simón Bolívar, Mariátegui, Camilo Cienfuegos, Toussaint Louverture, Thereza de Benguela, Chico Mendes, Irmã Dorothy, Tupac Amaru, entre tantos lutadores e lutadoras que ainda vivem, precisa estar pujante nas lutas cotidianas da classe trabalhadora, livre da pedagogia colonialista que insiste em impor hierarquias e naturalizar desigualdades sócio-econômicas, em prol do projeto capitalista que coloca o lucro acima da vida em todo o mundo. Esse é o nosso esperançar que

abordamos no início deste Editorial. Esperamos que a leitura dos textos, deste número da TN, nos inspirem.

Os trabalhadores desta terra defendem bravamente as riquezas do povo, para o povo. Salve o povo latino-americano e sua resistência! Presente Carlos Walter Porto- Gonçalves, nosso homenageado. Boa leitura e Avante!


Jacqueline Botelho e Lia Tiriba Editoras da TN 47


Referências


ANDES. Colômbia ofertará gratuidade do ensino superior público para determinados segmentos populacionais. Disponível em: www.andes.br. Acesso em fevereiro de 2024.

BRASIL DE FATO. No Peru, negociações travam e Machu Picchu tem mais um dia de greve contra privatizações. Brasil de Fato. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2024/01/29/no-peru-negociacoes-travam-e-machu-pi cchu-tem-mais-um-dia-de-greve-contra-privatizacoes. Acesso em fevereiro de 2024.

CESÁIRE, A. Discurso sobre o colonialismo. Textos Escolhidos. RJ: Cobogó, 2022.

FARINELLI, V ; PAIK, R. Milei vence primeira batalha legislativa e aprova texto base da Lei Ônibus na Câmara. Brasil de Fato. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2024/02/02/milei-vence-primeira-batalha-legislativa-e

-aprova-texto-base-da-lei-onibus-na-camara. Acesso em fevereiro de 2024.

V.22, nº 47, 2024 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799X


APRESENTAÇÃO: TRABALHO, HISTÓRIA E MEMÓRIA DOS POVOS DE "NUESTRA AMÉRICA" - TOMO 21


Ana Elizabeth Santos Alves2 Boris Marañon Pimentel3 Dora Lídia Marqués Delgado4 Hilda Caballero Aguilar5 Jesus Jorge Pérez García6 Maria Clara Bueno Fischer7


Uma criança nos mira na foto de capa do número TN 47 – Tomo II. Seu corpo está protegido por corpos de adultos vestidos com roupas que, de imediato, marcam sua identidade como povos andinos de Nuestra América. Onde eles estão? Para onde estariam indo? Que passado, presente e futuro carrega como herança e como projeto, esta criança andina? O que ela representa no contexto da resistência histórica aos genocídios dos colonizadores, e, também, de reafirmação dos seus modos de vida, em que pese ter sofrido pressões da cultura dominante – como

1 Apresentação recebida em 06/02/2024. Aprovada pelos editores em 09/02/2024. Publicada em 22/02/2024.DOI:https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.62029

2 Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Bahia - Brasil. Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Bahia - Brasil.

E-mail: ana_alves183@hotmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6609391193846733. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0603-2113.

3 Doutor em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Nacional do México (UNAM), México. Professor do Instituto de Investigações Econômicas da Universidade Nacional do México (UNAM).

E-mail: maranonboris@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6713-7499.

4 Doutora em Ciências Pedagógicas pela Universidade de Pinar del Río, Cuba. Professora da Universidade de Pinar del Río. E-mail: doraly@upr.edu.cu.

ORCID: http://orcid.org/0000-0003-0060-0455.

5 Doutora em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Nacional do México (UNAM), México Professora do Instituto de Investigações Econômicas da Universidade Nacional do México (UNAM).

E-mail: hildac@unam.mx. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3370-8454.

6 Doutor em Ciências Pedagógicas pelo Instituto Central de Ciências Pedagógicas, Cuba. Educador do Núcleo de Educação de Jovens e Adultos na Pontifícia Universidade Católica (NEAD/PUC), Rio de Janeiro - Brasil. E-mail: jerjor2014@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4393462117070720. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3691-8262.

7 Doutora em Educação pela Universidade de Nottingham - Inglaterra. Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Rio Grande do Sul - Brasil.

E-mail: mariaclara180211@gmail.com. Lattes https://lattes.cnpq.br/3835786000876089. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2289-5282.

mencionamos na apresentação do Tomo I publicado na TN 46? Com que ferramentas teórico-políticas e simbólicas estamos analisando esses processos históricos vis a vis a conjuntura atual?

No plano mundial, durante 4 meses, assistimos à agressão sionista contra a população palestina em Gaza. Bombardeios indiscriminados em zonas residenciais, escolas, hospitais, mesquitas e ambulâncias ceifaram a vida de 28.000 pessoas, sendo a maioria delas crianças e mulheres, bem como feriram mais de 60.000 pessoas. São 2,3 milhões de palestinos na parte sul da Faixa de Gaza sem acesso a alimentos, habitação e tratamento médico.

Tal situação é descrita não como uma crise humanitária, mas como uma crise da humanidade. Revela uma profunda crise do capitalismo e da hegemonia dos Estados Unidos. Revela também o declínio final da racionalidade moderno-colonial e instrumental, a mesma que orienta a ação dos principais países poderosos do planeta, especialmente os Estados Unidos e a União Europeia. Países que defendem, do ponto de vista político e militar o Estado Sionista de Israel, são os fornecedores de armas que estimulam e sustentam o negócio lucrativo da guerra.

Na América Latina, em especial, recentes acontecimentos econômico-político-ideológicos têm causado profundas preocupações por parte dos setores progressistas e de esquerda; expressões concretas de questões geopolíticas mais amplas que indicamos na apresentação da TN 46 – Tomo I. A mesma racionalidade moderno-colonial e instrumental, a título de exemplo, está sendo implantada na Argentina e no Equador. Na Argentina, o novo presidente Javier Milei propaga um discurso apologético do empresário como herói e benfeitor social. Reduz os subsídios aos transportes e à energia, entre outros aspectos, afetando os direitos conquistados por diversos setores sociais. Assistimos nesse país um processo de alinhamento, promovido por um governo de ultradireita, recém-eleito pelo povo argentino – com expressiva votação entre o segmento juvenil, ao receituário ultra neoliberal, que vem sendo acompanhado de iniciativas de repressão ao livre exercício dos direitos democráticos. Uma síntese exemplar disso é o recente “decretaço” de Milei, com mais de 360 medidas de desregulamentação da economia em diversos setores da vida do povo e de uma repressão brutal contra os participantes dos protestos. Mas, o povo argentino resiste – a pátria não se vende, se defende - como mostra o videodocumentário Decretazo. El DNU de Javier Milei, de Carlos Pronzado, que pode ser visto neste número da Trabalho Necessário

Temos assistido, também, a expansão do crime organizado e da violência vivida no Equador, o que revela o aprofundamento do neoliberalismo naquele país, sob governo de direita, incluindo a privatização do sistema de segurança e o avanço de medidas antidemocráticas no país. As políticas neoliberais dos últimos anos provocaram o avanço da desigualdade e pobreza do país; uma das causas sociais para a atração de jovens por parte do crime organizado. Destaca-se também que a relação com o governo estadunidense, incluindo estratégicos acordos de segurança externa e interna têm revelado o avanço do alinhamento da política externa equatoriana com a dos Estados Unidos da América. Esta fragilidade fica evidente quando se sabe que o exército norte-americano poderá realizar operações temporárias dentro do território equatoriano, pondo em questão a soberania do Estado-Nação, e se teme que as tropas norte-americanas se instalem definitivamente no território equatoriano, país de onde se retiraram em 2009, durante o governo do presidente Rafael Correa.

Diante dessa crise generalizada de sentido é necessário promover um diálogo de saberes, a partir de racionalidades solidárias e libertadoras que nos permitam pensar o momento atual e abrir outros horizontes de possibilidade na relação entre os seres humanos com a Mãe Terra. Lutar por um mundo onde não tenham relações de dominação e exploração e nenhuma forma de opressão. Para entender e enfrentar os desafios que se colocam para os povos latino-americanos é necessário, adentrar-se nas suas múltiplas facetas e analisá-los à luz as relações entre trabalho, história e memória dos povos de "Nuestra América" – eixo temático dos números 46 e 47 da Revista Trabalho Necessário.

Na publicação do número 47 da Revista Trabalho Necessário, apresentamos textos que nos auxiliam a pensar, dialeticamente, o nosso passado, presente e futuro, com o apoio de reflexões teóricas de reconhecidos pensadores da Latinoamérica. Outros artigos analisam experiências concretas, especialmente sobre educação popular, agroecológica e povos indígenas que compõem um enorme campo, rico e diverso de fazeres educativos que expressam crítica, resistência e ajudam a criar o novo. A referência aos 40 anos do MST, contemplada neste número, é paradigmática das faces de prefiguração concreta do novo que, em meio a inúmeras contradições, persiste em sua gestação em nossa América. Assim, apostamos que o conjunto das reflexões expressas nas diferentes seções da TN 47

– Tomo II poderá ajudar a leitora e o leitor a entender um pouco mais sobre nosso povo.

Neste número, na seção “Homenagem”, elegemos o geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves, professor titular da UFF, professor visitante da UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina e colaborador direto de movimentos sociais na luta pela terra e pelo território, falecido em setembro de 2023. O texto Carlos Walter Porto-Gonçalves e as geo-grafias desde os de baixo, escrito por Valter do Carmo Cruz (UFF), aborda a importância de sua obra para a geografia e as ciências sociais. A produção do autor é considerada fundamental para renovar o “horizonte teórico-metodológico, ético e político de leitura da geograficidade social”.

Na seção “Textos Clássicos” brindamos o número da TN 47 – Tomo II, com dois textos. O primeiro texto Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina é do pensador peruano Aníbal Quijano. Convidamos o também sociólogo peruano Roberto Espinoza para apresentar Quijano ao leitor. Ele narra a vida e a obra do autor a partir da sua convivência pessoal e em movimentos sociais, de 1974 até a sua morte em 2018. No texto Aníbal Quijano: rupturas vitales para la descolonialidad del poder Espinoza argumenta o quanto o pensador peruano contribuiu com a construção de teorias no campo das Ciências Sociais e também a sua participação nos movimentos sociais na busca por “horizontes alternativos de sentido” para a humanidade e sintetiza o seu legado nesta afirmação: “insumisión contra todo tipo de poder y de opresiones, del color político o ideológico que fuese”.

Matheus de Carvalho Barros (UFRJ), apresenta o segundo texto da Seção Clássicos. Em Capitalismo selvagem e o modo autocrático de dominação burguesa em Florestan Fernandes expõe os principais postulados teóricos do capítulo sete da obra A Revolução Burguesa no Brasil, publicada por Florestan Fernandes em 1975”; ao mesmo tempo em que analisa as formulações do autor acerca do capitalismo e das classes dominantes brasileiras. Em anexo, o texto O modelo autocrático – burguês de transformação capitalista, capítulo 7 do livro A Revolução Burguesa no Brasil, de Florestan Fernandes.

Na seção “Artigos do número temático”, temos nove (9) artigos, escritos por autoras e autores de países latino-americanos, a exemplo da Bolívia, Cuba, Chile, Peru, México, Equador e Brasil, que compõem esta edição.

O artigo A escola latino-americana de agroecologia (ELAA) e a questão científico-técnica nas relações de dependência, escrito por Willian Lepinski, Iuri

Michelan Barcat e Mário Lopes Amorim (UTFPR) apresenta reflexões sobre “a formação da Escola Latino-Americana de Agroecologia (ELAA), originária dos movimentos dos trabalhadores no campo, em uma perspectiva macrossocial”. Argumentam que a “dinâmica pedagógica-laboral da ELAA ilustra tanto os avanços quanto os atuais limites das concepções científico-técnicas na expansão internacional do capitalismo”.

Luís Humberto Márquez Delgado, Dora Lilia Márquez Delgado e Niurka Castillo Rocubert (Universidad de Pinar del Rio, Cuba) são os autores do texto Perspectivas teóricas del proceso de formación ambiental de los directivos del poder popular en Cuba. O objetivo do artigo é divulgar ao público leitor “perspectivas teóricas que sustentam o processo de formação ambiental de governantes do Poder Popular em Cuba” para contribuir com solução de problemas locais, considerando as diretrizes da atual política ambiental cubana presentes na Constituición de la República de Cuba (2019).

O artigo Educación, indianismo y socialismo: la escuela Ayllu de Warisata (1931-40) y las escuelas indígenas de Ecuador (1944-63) foi escrito por

J. Fabian Cabaluz Ducasse (Universidad de Playa Ancha, Chile). O autor descreve “experiências históricas educacionais que articulam ideias e práticas de raízes indianistas e socialistas na Escola Ayllu de Warisata, desenvolvidas na Bolívia durante grande parte da década de 1930; e as experiências das escolas indígenas desenvolvidas no Equador entre 1944 e 1963”.

Nayar López Castellanos (Universidad Nacional Autónoma de México – UNAM) apresenta o artigo México: política y gobierno en la cuarta transformación, cujo objetivo é analisar o governo mexicano de Andrés Manuel López Obrador e as grandes transformações que ocorreram nos últimos cinco anos sem perturbar, no entanto, as estruturas do capitalismo. O autor situa essas transformações “no contexto regional, destacando diferenças e semelhanças com relação a outros países que passaram por governos locais de centro esquerda”.

El mundo del trabajo en el pensamiento de José Carlos Mariátegui, de César Germaná (Universidad Nacional Mayor de San Marcos, Peru), analisa os estudos de Mariátegui sobre o Peru nos anos 1920, ressaltando a atualidade das reflexões teóricas e políticas desse autor na compreensão dos problemas da América Latina e do mundo contemporâneo, como também o seu pensamento na construção de um projeto alternativo de sociedade.

Ocio y trabajo en clave de buen vivir. reflexiones para construir otro futuro, escrito por Alberto Acosta (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais – FLACSO). Neste texto, o autor do livro O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos (2016) reflete sobre a ideologia do desenvolvimento como alimento da Modernidade centrada na ideia de progresso. Apresenta reflexões sobre o fenômeno do lazer e a sua mercantilização, a alienação do trabalho e do lazer como fundamentos da acumulação do capital. Propõe “reflexões e ações que demandam a construção de sociedades radicalmente diferentes”.

Renné da Glória Andrade, Marisa Oliveira Santos e Ana Elizabeth Santos Alves (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia) são autoras do artigo Os sentidos milenares do minka e as peculiaridades dos povos do campo na Bahia. Minka é um termo de origem quéchua, que significa trabalho coletivo. Abordam a etimologia da palavra Minka e a sua atualidade histórica, a partir de pesquisas sobre povos do campo no estado da Bahia, no Brasil.

Luís Eduardo da Conceição Chagas e Lia Tiriba (UFF), escrevem o artigo Para analisar modos de vida: Raymond Williams e estruturas de sentimentos em Torto Arado. Os autores analisam no romance Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, a categoria estrutura de sentimentos desenvolvida por Williams, escritor galês do campo do materialismo cultural. Refletem sobre “formas de fazer, sentir e pensar de determinados grupos sociais, entendidas como elementos constitutivos do processo histórico”.

Pedagogia da alternância em Rondônia: proposta de educação para além do capital é escrito por Diana da Silva Ribeiro e Arminda Rachel Botelho Mourão (UFAM). As autoras buscam compreender a contribuição dessa pedagogia para a atualidade educacional no Brasil. Apresentam a história do movimento da Pedagogia da Alternância e da educação. Como resultado do estudo mostram as “possibilidades de povos vivenciarem algumas experiências pedagógicas que se caracterizam como educação contra hegemônica, mesmo dentro de uma estrutura capitalista”.

Na seção “Outras Temáticas”, Marcos Antônio Macedo das Chagas (ISERJ) escreve o artigo Trabalho como centralidade marxista no século atual e os princípios de uma educação popular brasileira para a coletividade. O autor analisa referências bibliográficas marxistas com o objetivo de compreender os fundamentos do pensamento de Hegel, Gramsci e Lukács para refletir sobre

educação pública de tempo integral e horário ampliado para os setores populares e gêneros diversos. Tal análise toma como exemplo os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs/CIEPs-RJ), idealizados e materializados por Darcy Ribeiro, entre os anos 1983-1987.

Conhecimento estético-artístico no Ensino Médio Integrado: a utilidade do “inútil”, escrito por Carlos Eduardo de Souza e Sandra Soares Della Fonte (IFMG), analisa o retrocesso educacional representado pelo “Novo Ensino Médio” (Lei nº 13.415 de 2017).” Os autores defendem um ensino demarcado pelo conhecimento estético-artístico, fundamental para a formação humana e construção do sujeito omnilateral, na medida em que tal conhecimento pode questionar as investidas conservadoras do empresariado.

Por último, apresentamos o texto A apropriação do pensamento gramsciano no livro “lazer e educação” de Nelson Carvalho Marcellino, escrito por Bernardo Jordano Gomes (UFMG), Marcelo Paula de Melo (UFRJ) e Rebeca Signorelli Miguel (UEMG). Os autores analisam as obras de Gramsci e de estudiosos sobre o filósofo, além de textos marxistas, para “entender de que forma o livro “Lazer e Educação” (1995), de Nelson Carvalho Marcellino se apropria do pensamento gramsciano e qual foi a profundidade e qualidade dessas apropriações. ”

Na seção “Resenha”, sugerimos a leitura do livro Contabilidade popular: diálogos insurgentes de uma construção em rede, organizado por Anna Carla Ferreira Silva, Bárbara Luandy Freitas de Souza, Flávia Almeida Pita, Maria Luiza D.

A. Barbosa, Matheus Sehn Korting. A resenha foi escrita por Ana Paula dos Santos de Oliveira (Rede Nacional de Advogados Populares – RENAP) e Sidélia Luíza de Paula Silva (Fundação Osvaldo Cruz – Observatório de territórios sustentáveis da Bocaina).

A Entrevista deste número é sobre o tema Poder comunal e educação popular na América Latina, realizada pela professora Maria Clara Bueno Fischer (UFRGS). O entrevistado é Claudio Nascimento, educador popular e estudioso das experiências e teorizações sobre autogestão em nível internacional. O entrevistado oferece uma arguta e rica contribuição para pensarmos o poder comunal e suas imbricações com os movimentos sociais e os processos de educação popular em Nuestra América.

Na seção “Ensaio”, exibimos o vídeo documentário Decretazo. El DNU de Javier Milei, disponível no Youtube. Foi produzido por Carlos Pronzato, cineasta

argentino, residente no Brasil, escritor, poeta, teatrólogo e ativista social. Como artista multifacético, suas obras audiovisuais, teatrais e literárias destacam-se pelo compromisso com a cultura, a memória e as lutas populares. O vídeo documentário mostra diversas manifestações populares, panelaços, contra a política econômica e social proposta por Javier Milei, em 20/12/2023.

Compõe também esta seção o texto Quatro décadas do MST: reforma agrária e educação escrito pelo professor Gaudêncio Frigotto (UERJ/UFF). O autor relata os 40 anos de criação do MST, celebrados em 2024, por meio do registro da luta pela reforma agrária, da luta pelo direito à terra e pela educação. Gaudêncio destaca que nessas lutas, os sujeitos do campo com a sua cultura se formam “por inteiro para uma sociedade sem dominação de classe”.

Na seção “Teses e dissertações” publicamos três (3) resumos. O primeiro é o resumo expandido da tese Resistencias andinas y buen vivir frente al extractivismo minero durante las últimas décadas. Una perspectiva decolonial: el caso de Quimsacocha-loma Larga en Ecuador y Conga en Perú defendida por Yamile Alvira Briñez em 2022, orientada por Doctor Raúl Eduardo Cabrera Amador, na Universidad Autónoma Metropolitana UAM, Xochimilco. A pesquisa investigou a resistência andina e as práticas coletivas orientadas para o Bem Viver, lideradas por povos indígenas.

Como parte da homenagem a Carlos Walter Porto-Gonçalves, publicamos duas produções acadêmicas por ele orientadas na Universidade Federal Fluminense ((POSGEO-UFFPPG, UFF). UFF). Geografías superpuestas. Conflictos y formación territoriales en las frontera internas colombianas. La Sierra de la Macarena 1948-2013 é uma tese defendida por Lina María Hurtado Gómez em 2016. Trata-se de resumo da pesquisa que discute a formação territorial como teoria e método. Nela é analisado como as relações conflituosas entre diferentes territorialidades produzem, formam e transformam o espaço geográfico e os sentidos da existência, por meio de relações sociais e de poder, em períodos de longa duração.

Também orientada por Carlos Walter Porto-Gonçalves (POSGEO-UFFPPG, UFF) foi a dissertação de mestrado Políticas ambientais e conflitos territoriais no Acre, Brasil: O Sistema Estadual De Incentivos A Serviços Ambientais (SISA), defendida por Diogo Loibel Sandonato, defendida no ano de 2015. Tem como objetivo “analisar as propostas e efeitos do planejamento, regulamentação e

execução de políticas e projetos relacionados ao capitalismo verde no Acre, especialmente o SISA, e os potenciais conflitos territoriais gerados”.

Na seção “Memória e documentos” a professora e pesquisadora Maria Ciavatta (UFF) narra como foi a entrevista “Recuperar uma visão utópica” realizada nos anos 1990 por ela e pela professora Célia Frazão Linhares a Hugo Zemelman, importante intelectual latino-americano. Como lembra Ciavatta, “O professor Zemelman (1931-2013) merece ser louvado como uma fonte inesgotável de conhecimento, de generosidade, de agradável e culta convivência. Sociólogo e epistemólogo, dedicou-se aos estudos de direito, de sociologia rural e de educação”. Em anexo, o texto original da entrevista.


Desejamos a todas e todos uma ótima leitura!

V.22, nº 47, 2024 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799X


CARLOS WALTER PORTO-GONÇALVES E AS GEO-GRAFIAS DESDE OS DE BAIXO1


Valter do Carmo Cruz2



1 Homenagem recebida em 29/01/2024. Aprovado em 01/02/2024. Publicado em 22/02/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.61703.

2 Doutor em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói - Brasil. Professor do Departamento e do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: valtercruz@id.uff.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2006814557828882.

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8136-7389.

Resumo


Homenageamos Carlos Walter Porto-Gonçalves, apresentando um quadro das contribuições de sua obra para a geografia e para ciências sociais. Apontamos chaves de leitura que indicam as linhas de força que constituem seu pensamento e apontam para um renovado horizonte teórico-metodológico, ético e político de leitura da geograficidade social: i) a Geografia como verbo: as geo-grafias desde os de baixo e das r-existências; ii) o conflito como chave de leitura da geograficidade do social: a tensão de territorialidades; iii) a ecologia política da questão ambiental e as lutas por reapropriação social da natureza; iv) a reinvenção dos territórios na América Latina/Abya Yala/Quilombola.

Palavras-chaves: Carlos Walter Porto-Gonçalves; Geo-grafias desde os debaixo; R-existências; ecologia política; a reinvenção dos territórios.


CARLOS WALTER PORTO-GONÇALVES Y LAS GEO-GRAFÍAS DESDE ABAJO


Resumen


Homenajeamos al geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves presentando una síntesis de las contribuciones de su obra a la geografía y a las ciencias sociales. Señalamos claves de lectura que indican las líneas de fuerza que componen su pensamiento y apuntan a un renovado horizonte teórico-metodológico, ético y político de lectura de la geografícidad de lo social: i) La geografía como verbo: geo-grafías desde abajo y de r-existencias; ii) el conflicto como clave de lectura de la geograficidad de lo social: la tensión de las territorialidades; iii) la ecología política de la cuestión ambiental y las luchas por la reapropiación social de la naturaleza; iv) la reinvención de los territorios en América Latina/Abya Yala/Quilombola.

Palavras-clave: Carlos Walter Porto-Gonçalves; Geo-grafias desde os debaixo; R-existências; ecologia política; a reinvenção dos territórios.


CARLOS WALTER PORTO-GONÇALVES AND THE GEOGRAPHIES FROM BELOW


Abstract


We pay tribute to Carlos Walter Porto-Gonçalves by presenting a list of his contributions to geography and the social sciences. We point out the key points that indicate the lines of force that constitute his thought and point to a renewed theoretical-methodological, ethical and political horizon for reading social geography: i) Geography as a verb: geo-graphies from below and of r-existences; ii) conflict as a key to reading the geography of the social: the tension of territorialities; iii) the political ecology of the environmental question and the struggles for the social reappropriation of nature; iv) the reinvention of territories in Latin America/Abya Yala/Quilombola.

Keywords: Carlos Walter Porto-Gonçalves; Geo-graphies from below; R-existences; political ecology; the reinvention of territories

Introdução


O apanhador de desperdícios

Uso a palavra para compor meus silêncios. Não gosto das palavras fatigadas de informar.

Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão.

Tipo água pedra sapo. Entendo bem o sotaque das águas

Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes.

Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis.

Tenho em mim um atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso.

Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios: Amo os restos como as boas moscas. Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.

Porque eu não sou da informática: Eu sou da invencionática. Só uso a palavra para compor meus silêncios.

(Manoel de Barros)

No último dia 6 setembro de 2023, perdemos Carlos Walter Porto-Gonçalves, um grande geógrafo e intelectual, um pensador da Geografia ou, como ele preferia, das geo-grafias. Carlos Walter foi um pensador das geo-grafias dos povos, das comunidades e dos movimentos sociais, de suas territorialidades, saberes, lutas e r-existências. Um pensador original, criativo e provocativo que abriu novos horizontes de sentido para pensarmos a questão ambiental, agrária e a Geografia dos movimentos sociais. Um pensador que formou e inspirou gerações no Brasil e na América Latina e deixou como legado uma vida dedicada à construção de uma ciência geográfica crítica e comprometida com a vida e as lutas dos de baixo.

Carlos Walter Porto Gonçalves é um intelectual oriundo da classe popular e do subúrbio carioca. Apesar dessa origem humilde, teve sua formação em instituições de grande prestígio, como o Colégio Pedro II e a Universidade Federal do Rio de Janeiro, instituição na qual cursou graduação, mestrado e doutorado em Geografia. De sua trajetória profissional, podemos destacar que ele foi professor da Pontifícia Universidade Católica – PUC - do Rio de Janeiro e da Universidade Federal Fluminense, nessa última instituição ele trabalhou por mais de 30 anos e se aposentou como professor titular em 2019. Na Universidade Federal Fluminense, coordenava o LEMTO - Laboratório de Estudos sobre Movimentos Sociais e Territorialidade, em que desenvolveu inúmeras pesquisas e ajudou a formar várias gerações de geógrafos, tanto na graduação como na pós-graduação.

Para além dessa trajetória institucional, Carlos Walter costumava se definir como um intelectual em movimento. Ele teve sua trajetória, desde o início, marcada pela construção de uma geografia militante e a produção de um pensamento crítico. Seus principais temas de pesquisa e militância foram a questão ambiental e a questão agrária, os conflitos territoriais e ambientais e movimentos sociais e as lutas dos povos e comunidades do campo, das águas e das florestas pelo direito à dignidade, ao território e à vida. Trabalhou, especialmente com a realidade amazônica, também se dedicou ao cerrado brasileiro e refletiu sobre processos geopolíticos mais amplos na América Latina e no sistema do mundo moderno colonial.

Dentre os geógrafos brasileiros, Carlos Walter Porto Gonçalves foi, sem dúvida, o mais conectado e enraizado ao pensamento crítico latino-americano. Nos últimos 20 anos, sua interlocução com os intelectuais e com os movimentos sociais de todo continente latino-americano foi intensa, especialmente com os campos da ecologia política e do chamado pensamento descolonial latino-americano. Participou de vários grupos de trabalho da CLACSO, circulou por muitos fóruns intelectuais e de militância, organizou eventos aqui no Brasil com pensadores latino-americanos, ajudou na tradução de livros no Brasil que divulgavam alguns pensadores latino-americanos, como Enrique Leff, Pablo González Casanova, Anibal Quijano, Enrique Dussel, Edgardo Lander, Arturo Escobar, Raúl Zibechi, entre outros. Teve vários de seus livros publicados em diferentes países da América Latina e orientou trabalhos de pesquisas de mestrado e doutorado de estudantes de outros países da América Latina.

Carlos Walter Porto-Gonçalves produziu e publicou centenas de artigos e dezenas de livros autorais e coletivos dos quais destacamos: sobre a análise crítica da questão ambiental e reflexões sobre os conceitos de natureza e meio ambiente: “Paixão da Terra: ensaios críticos de Ecologia e Geografia” (publicado em 1984); “Os (Des)caminhos do Meio Ambiente” (publicado em 1989); “O Desafio Ambiental” (publicado em 2006); “A globalização da natureza e a natureza da globalização” (publicado em 2008). Sobre a temática amazônica e sobre o cerrado e as lutas dos povos e comunidades dessas regiões: “Amazônia, Amazônias” (publicado em 2001); “Geografando nos Varadouros do Mundo: da territorialidade seringalista (o seringal) à territorialidade seringueira (a Reserva Extrativista)” (publicado em 2003); “Amazônia- encruzilhada Civilizatória: tensões territoriais em curso” (publicado em

2017); “Horizontes Amazônicos: para repensar o Brasil e o mundo”; (publicado em 2021); “Dos Cerrados e de suas riquezas: de saberes vernaculares e de conhecimento cientifico” (publicado em 2019). Sobre a geopolítica do sistema mundo, a América Latina e os movimentos sociais: “A Nova des-Ordem Mundial” (publicado em 2006); “Territorialidades y lucha por el territorial en América Latina” (publicado em 2011); “Movimientos sociales, nuevas territorialidades y sustentabilidade” (publicado em 2002).

Por conta da sua vasta e densa obra, Carlos Walter teve uma carreira premiada e reconhecida pelo seus pares; recebeu o Prêmio Chico Mendes na Categoria de Ciência e Tecnologia pelo Ministério do Meio Ambiente, em 2004; o Prêmio Casas de las Américas em Literatura Brasileira, em 2008, em Havana, Cuba, por seu livro “A globalização da natureza e a natureza da globalização”; o Prêmio Geógrafo de Destaque - Manoel Correia de Andrade, outorgado pela ANPEGE, em 2017; o Prêmio Milton Santos de Mérito Geográfico, outorgado pelo XVII Encontro de Geógrafos da América Latina, em 2019, Quito - Equador. Mas talvez a maior premiação e reconhecimento que recebeu foram diversas homenagens por parte dos movimentos sociais, povos e comunidades em luta, pelos diversos cantos do Brasil no momento de sua partida.

Assim, o objetivo deste artigo é realizar uma homenagem ao grande geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves através da apresentação de um quadro sintético das principais contribuições intelectuais de sua obra para a Geografia e para as Ciências Sociais em geral. Sem a pretensão de sermos exaustivos, apontaremos algumas chaves de leitura que indicam as principais linhas de força que constituem o seu pensamento e que apontam para um horizonte teórico-metodológico, ético e político que oferece um renovado olhar sobre a geograficidade social : i) a Geografia como verbo: as geo-grafias desde os de baixo e das r-existências; ii) o conflito como chave de leitura da geograficidade do social: a tensão de territorialidades; iii) a ecologia política da questão ambiental e as lutas por reapropriação social da natureza; iv) a reinvenção dos territórios na América Latina/Abya Yala/Quilombola.

Geografia como verbo: as geo-grafias desde os de baixo e das r-existências


Por meio dessa experiência, foi possível vislumbrar um novo sentido para a Geografia. Afinal, o que os seringueiros estavam fazendo era grafar a terra, marcar a terra, dando um outro sentido à terra, enfim, estavam geografando. Percebi, então, que a Geografia não é um

substantivo, simplesmente. Que geografia pode significar, também, o ato de marcar a terra, enfim, ser um verbo, uma ação. Entrevi, então, que havia uma possibilidade teórica de fazer Geografia a partir daqueles segmentos da sociedade que se organizam para lutar por direitos. Senti que era possível uma Geografia que não fosse necessariamente "funcionária do rei”. E que movimento social é, rigorosamente, a recusa de um lugar socialmente posto e, assim, a busca de uma nova organização do espaço, de uma nova ordem material-simbólica, de um novo magma de significações (PORTO-GONÇALVES, 2003b, p.54).

A Geografia como disciplina tem uma história vinculada ao Estado e aos poderes coloniais e capitalistas. O trabalho dos geógrafos esteve, historicamente, ligado aos processos geopolíticos de exploração, dominação, guerras e conquistas. O saber geográfico sempre foi um saber estratégico: pensar, organizar, planejar, dominar, governar o espaço sempre foi uma ferramenta, um instrumento e prerrogativa dos grupos dominantes (LACOSTE, 1988; PORTO-GONÇALVES, 2002a). Essa íntima história do saber geográfico com o Estado e os grupos dominantes forjou uma episteme, um saber produzido a partir de “um olhar de cima e de longe”, uma “leitura de sobrevoo” ou de uma “visão de sobrevoo” sobre os espaços, territórios, paisagens e lugares (SOUZA, 2007)3. Carlos Walter Porto-Gonçalves problematizou essa tradição e insistiu que a tarefa da construção de uma geo-grafia crítica deveria começar pelo deslocamento do seu lugar de enunciação do estado e dos grupos dominantes para ser uma ciência que deveria ser pensada e construída a partir e com os de baixo4, com suas lutas, saberes e territórios, uma geografia desde os grupos subalternizados ou, nas palavras do autor, uma geografia desde os debaixo, uma geografia das r-existências (PORTO-GONÇALVES, 2003b; 2016).

Para pensar essa geografia desde os debaixo, uma geografia das r-existências, Carlos Walter Porto-Gonçalves propõe um outro deslocamento: pensar


3 Tradicionalmente, as profissões espaciais, a começar pela Geografia, procedem a uma espécie de “visão de sobrevôo” e nitidamente a privilegiam enxergando e analisando as sociedades e seus espaços quase sempre “do alto” e “de longe”, como que em uma perspectiva de “vôo de pássaro” ou, no caso de fenômenos representáveis, por meio de escalas cartográficas muito pequenas (de planisfério, por exemplo), como um distanciamento ainda maior. Essa perspectiva é, de certa forma, aquela do olhar do Estado, ou do olhar que é próprio do Estado (e basta conhecer a história da disciplina para compreender que decerto isso não é mera coincidência); considerar os homens e os grupos “de longe”, sem adentrar as suas casas, sem mergulhar em seu quotidiano, sem sentir os odores da pobreza, sem ouvir os sons do desespero ou os gritos da libertação. É desse ângulo que pode-se dizer que muitos pesquisadores têm negligenciado (ou banalizado) aspectos importantes do estudo dos produtores do espaço, mesmo no caso em que abraçam uma perspectiva de crítica social (anticapitalista e de oposição ao Estado capitalista). (SOUZA, 2007: 103-104).

4 Inspirado no historiador E. P. Thompson que formulou a proposta de uma “história vista de baixo”.

a geo-grafia não como substantivo, mas sim como verbo. É desse modo que podemos falar, na sua leitura, de geo-grafias, em que os diferentes movimentos sociais re-significam o espaço e, assim, com novos signos, grafam a terra, geografam, reinventando a sociedade. A geo-grafia que o referido autor produziu foi uma geo-grafia da ação, das práticas socioespaciais, dos sujeitos. Por isso, podemos afirmar que ele foi um geógrafo, um pensador dos povos, das comunidades e dos movimentos sociais na luta pela afirmação de seus territórios e suas territorialidades, ou seja, uma geografia das r-existências territoriais. Mas o que significa fazer uma geografia das r-existências territoriais? Significa pensar que os povos, as comunidades, as classes e os movimentos sociais, quando lutam pelo direito aos seus territórios, não lutam somente para resistir contra os que os exploram, dominam, oprimem e estigmatizam, mas também lutam por uma determinada forma de existência, um determinado modo de vida e de produção, por diferenciados modos de conhecer, sentir, agir e pensar (PORTO-GONÇALVES, 2001a). A geo-grafia das r-existências de Carlos Walter Porto-Gonçalves é afirmativa da diversidade ontológica, epistêmica e das formas e modos de vidas.

O estilo de pensamento crítico de Carlos Walter era marcado não só pela prática da denúncia, mas também por gestos de anúncios, para usar uma feliz expressão de Paulo Freire. A partir de uma inspiração no pensamento de Cornelius Castoriadis, sua obra é marcada por não só pensar os sujeitos, os processos e as práticas sociais que estão já instituídos e institucionalizados, mas privilegiar os processos, os sujeitos e as práticas instituintes. Ele insistia em suas reflexões que, para entendermos a geograficidade do social, precisamos considerar os processos históricos de larga duração, pensando o espaço e os territórios como resultados da acumulação desigual de tempos5. Mas, para pensar a historicidade, não é só considerar a memória e a história como passado, mas também pensar como se instituem as práticas que inauguram, no presente, o futuro, germinado através das experiências dos sujeitos e processos instituintes. (PORTO-GONÇALVES, 2002a; 2006c).


5 Carlos Walter Porto-Gonçalves tinha, como uma característica marcante de seu trabalho intelectual, uma forma profana de dialogar com as ideias e os conceitos criados por outros autores. Ele se apropriava, prolongava, interpretava de maneira muito singular certas teses teóricas de outros autores. É dessa forma, fazendo uma leitura assinada, que ele tomou emprestada a ideia do espaço como acumulação desigual de tempos de Milton Santos e tornou-se uma pista analítica central no seu fazer geográfico nas últimas décadas.

Então, pensar, historicamente, a geograficidade do social é pensar o presente denso de historicidade, mas também aberto às possibilidades de futuro, a história e o espaço como criação aberta pela força das lutas dos de baixo. Carlos Walter Porto-Gonçalves estava, o tempo todo, atento a como nascia um novo, como se inscrevia na realidade difícil de exploração, dominação e opressão a potência de vida dos grupos subalternizados, valorizando processos instituintes de territórios e contra espaços de r-existência, utopia, emancipação e autodeterminação.


O conflito como chave de leitura da geograficidade do social: a tensão de territorialidades


Começo a vislumbrar um possível caminho teórico onde vejo que as lutas sociais e os conflitos são momentos/lugares privilegiados do ponto de vista epistemológico. Afinal, num conflito determinado existem, pelo menos, duas visões de um determinado problema que está sendo posto como questão por aqueles e aquelas diretamente interessados/as. Assim, a contradição deixa de ser uma lógica (dialética?) abstrata e passa a ser entendida como contradição em estado prático e, desse modo, aberta às vicissitudes históricas e geográficas por meio das quais os grupos/classes sociais se forjam (PORTO-GONÇALVES, 2017e, p.16).

Outra ideia-chave nos trabalhos de Carlos Walter Porto-Gonçalves é o papel do antagonismo, do conflito e da conflitividade no entendimento da geograficidade do social e suas dinâmicas espaciais, ambientais e territoriais. Para o autor, precisamos pensar a geograficidade do social não a partir da ordem e dos ordenamentos, que é a tradição epistêmica e política da geografia como uma ciência conservadora, uma ciência que produziu seu saber, seu discurso a partir do lócus de enunciação do Estado e dos grupos dominantes. O discurso geográfico se estruturou por uma gramática do desejo de ordem, uma certa obsessão com o tema da organização do espaço, do planejamento e da gestão territorial, ambiental, urbana etc. Mas, segundo o autor, fazer uma geografia crítica exige pensar em outro registro, através de um outra gramática, de outro ângulo de problematização: pensar a geograficidade a partir das instabilidades, dos antagonismos, dos conflitos, da conflitividade, dos des-ordenamentos, ou melhor dizendo, da tensão dialética entre ordem-desordem.

O autor insistiu muito nos seus trabalhos na tese de que o conflito é uma chave privilegiada de compreensão política e epistêmica para pensar a geograficidade. Assim, sua insistência era uma aposta teórica, metodológica e

empírica (PORTO-GONÇALVES, 2003). Nos últimos 20 anos, ele realizou um sistemático acompanhamento dos dados sobre os conflitos no campo brasileiro através de um trabalho em conjunto com a pastoral da terra-CPT, o que resultou numa série de sistematizações e interpretações inovadoras sobre debate da questão agrária, tentando identificar e cartografar tendências e padrões estruturais e conjunturais de conflitividade, oferecendo pistas para uma interpretação sobre a atual complexificação da questão agrária brasileira (PORTO-GONÇALVES, 2006a; PORTO-GONÇALVES; ALENTEJANO, 2010; PORTO-GONÇALVES; CUIN, 2014;

PORTO-GONÇALVES; LEÃO, 2020).

Em seus textos, ele abordava não só a noção de conflitos agrários no sentido clássico, mas também de conflitos ambientais, conflitos territoriais, a tensão de territorialidades. O conflito está no centro de sua leitura territorial da sociedade, pois é no conflito que se revelam os diferentes sentidos de território. Tais sentidos são as diferentes matrizes de racionalidades (horizontes ontológicos, epistêmicos, ético-políticos), materializadas em diferentes formas de governo, em diferentes práticas espaciais de uso-significado do território, as quais são muitas vezes incompatíveis e incomensuráveis, uma vez que a forma de dominação, controle e uso do território por um agente pode implicar a impossibilidade da vida de outros (CRUZ, 2020).

Os conflitos ou as tensões de territorialidades retratados em suas pesquisas eram uma tensão entre as geo-grafias do des-envolvimento e as geo-grafias comunitárias. Para o autor, podemos falar de uma geo-grafia do des-envolvimento em que os diferentes agentes capitalistas inscrevem lógicas territoriais, práticas e usos que re-significam o espaço tirando o envolvimento (a autonomia) que cada cultura e cada povo mantém com o seu espaço, com o seu território; é subverter o modo como cada povo mantém suas próprias relações de homens e mulheres entre si e destes com a natureza; é não só separar homens e mulheres da natureza, como também separá-los entre si, individualizando-os. Des-envolver é envolver cada um (os desterritorializados) em uma nova configuração societária, a capitalista, através de técnicas e dispositivos sociais e políticos empregados para promover esse des-envolvimento, tais como os novos cercamentos das terras e dos recursos naturais, ou melhor, a privatização das terras e dos recursos (PORTO-GONÇALVES, 2008).

A territorialização do capital através dos grandes projetos de des-envolvimento do agronegócio, os projetos mineiro-metalúrgicos, petroquímicos, as grandes usinas hidrelétricas, as estradas, os portos, as hidrovias, as ferrovias etc., todos são dispositivos territoriais capazes de suspender, em termos políticos, jurídicos e normativos, toda a complexidade e a diversidade territorial dos espaços nos quais se instalam. Ao se constituírem pelos signos da modernidade capitalista, expressam, em intensidade, concentração e centralização de capital, os modos mais violentos de expansão de relações capitalistas. Assim, para se realizarem, esses projetos solapam as condições de realização de outras geo-grafias de povos, grupos e comunidades. O capital expande seu domínio territorial sobre espaços que não estavam até hoje plenamente incorporados aos circuitos da acumulação global. Esses verdadeiros "fundos territoriais" (MORAES, 2011) se transformam em novas fronteiras nas quais a acumulação se realiza por dispositivos e mecanismos de espoliação, o que significa, entre outras coisas, um violento processo de apropriação e expropriação de recursos naturais, terras e territórios (HARVEY, 2013).

Esses projetos provocam processos de grandes rupturas e fraturas metabólicas que afetam paisagens, ecossistemas e toda a dinâmica geo-bio-física das áreas onde são implantados, promovendo mudanças e reestruturação socioespacial e ambiental na escala local e até regional, provocando desequilíbrios que destroem as condições materiais de reprodução da vida. Essas fraturas afetam os territórios dos camponeses, extrativistas, povos e comunidades tradicionais, quilombolas, indígenas que vivem da terra, do mar, da floresta, dos mangues, dos vales, montanhas, campos, chapadas, dos lagos, das várzeas etc. (BARCELOS, 2018). Os conflitos ambientais/territoriais resultantes do encontro entre territórios corporativos e territórios comunitários são, portanto, resultantes da tensão de territorialidades com diferentes sentidos ontológicos do território (diferentes lógicas de apropriação, controle, uso e significação existencial do espaço). De um lado, a lógica espoliativa, os regimes de expropriação e sua gramática de violência e, de outro, a afirmação da terra e dos recursos como expressão do comum, como território de vida. (CRUZ, 2023; PORTO-GONÇALVES, 2017a).


A ecologia política da questão ambiental e as lutas por reapropriação social da natureza


O desafio ambiental está no centro das contradições do mundo moderno-colonial. Afinal, a ideia de progresso e, sua versão mais atual, desenvolvimento é, rigorosamente, sinônimo de dominação da natureza! Portanto, aquilo que o ambientalismo apresentará como desafio é, exatamente, o que o projeto civilizatório, nas suas mais diferentes visões hegemônicas, acredita ser a solução: à ideia de dominação da natureza do mundo moderno-colonial, o ambientalismo coloca-nos diante da questão de que há limites para a dominação da natureza. (PORTO-GONÇALVES, 2008 p.61).

E trata-se de um patrimônio de conhecimentos construídos em grande parte numa relação com e não contra natureza, o que abre perspectivas de diálogo, sobretudo num momento onde o acervo de conhecimento científico e tecnológico produzido sob o primado da dominação da natureza está sendo colocado em questão, como no caso das mudanças climáticas, da perda de solos, da erosão genética. Esse rico e diversificado patrimônio de conhecimentos dos povos originários, dos camponeses e dos cimarrones/quilombolas nos convida a um diálogo com o conhecimento científico convencional. (PORTO-GONÇALVES, 2012 p.31).

No pensamento crítico e na geografia brasileira, Carlos Walter Porto-Gonçalves teve sua trajetória intelectual e de militância ligada à questão ambiental, às temáticas ambientais lidas pelas lentes da ecologia política. Ocupou-se de temas como as lutas pela terra, água, energia, os conflitos ambientais e territoriais, as lutas por reapropriação social da natureza etc., além de participar do debate mais epistemológico da relação sociedade-natureza, ao problematizar os conceitos de ambiente e de natureza.

O tema ambiental chegou para o autor através das lutas sociais por reapropriação social da natureza. Inicialmente, pelas lutas dos pescadores do norte

fluminense (em Campos de Goytacazes), posteriormente, pelas lutas dos seringueiros no Acre pela defesa da floresta em pé e criação das reservas extrativistas e, depois, pelas lutas dos povos dos cerrados no centro-oeste e nordeste brasileiro nas lutas pela água e pela agroecologia.

Em sua trajetória, o autor recusou a dicotomia sociedade x natureza, geografia física x geografia humana tão marcantes no campo da geografia, o que se reflete na sua leitura mais integradora da realidade espacial, territorial e ambiental. Ele nunca deixou de considerar a dimensão físico-ecológica ou metabólica da produção social do espaço e da constituição dos territórios e territorialidades. Ele nunca deixou de pensar a materialidade no sentido radical, incluindo a inscrição metabólica das relações sociais. O autor considerou a dimensão físico-ecológica como uma dimensão fundante da materialidade e das lutas e conflitos sociais.

Seus livros “Paixão da terra” (1984), “(Des)caminhos do meio ambiente” (1989), “O desafio ambiental” (2006), “A globalização da natureza e a natureza da globalização” (2008) e toda sua pesquisa sobre a Amazônia atestam seu sistemático esforço intelectual e político de refletir sobre o debate ambiental considerando a complexidade do tema. Sua leitura da questão ambiental é feita pelas lentes da ecologia política. Assim, conceitos como natureza e ambiente são pensados e problematizados a partir das relações sociais de poder, desigualdades e conflitos entre classes, grupos étnico-raciais, gêneros, países e regiões considerando as formas diferenciadas de inserção dos territórios e grupos sociais no modo de produção, consumo e descarte dos recursos naturais, gerando o que o autor chamava de uma geografia desigual dos proveitos e dos rejeitos. (PORTO-GONÇALVES, 2008). Para o autor, as formas de apropriação social da natureza e seus benefícios, bem como os impactos, os riscos e as vulnerabilidades ambientais estão atravessados pelas desigualdades, conflitos e lutas sociais. Na sua leitura da ecologia política se articulam as relações sociais de poder com as dinâmicas físico-ecológicas (os fluxos de matéria e energia), sendo a inscrição metabólica da sociedade atravessada pelas clivagens de poder e desigualdades.

Na sua leitura, há uma crítica consistente ao processo capitalista de apropriação social da natureza e as suas consequências. Mas sua crítica vai para além dessa dimensão mais diretamente vinculada ao modo de produção, consumo e descarte capitalista. O autor fazia também uma crítica, de caráter mais filosófico, ao processo civilizatório e à racionalidade ocidental moderno-colonial e sua lógica de

dominação da natureza. Sua crítica incluía uma radical problematização das ideias de desenvolvimento, progresso e a crença no desenvolvimento da técnica e tecnologia (desenvolvimento das forças produtivas) como solução para todos os problemas sociais e ambientais (PORTO-GONÇALVES, 1989; 2008).

‘Essa crítica civilizatória questionava a obsessão pela ideia de crescimento econômico, industrialização e urbanização que atravessa tanto o pensamento conservador quanto o pensamento dito progressista. Isso porque, nessa visão moderno-colonial, ancorada numa racionalidade que prega a dominação da natureza, os povos originários, camponeses, quilombolas, povos das florestas e demais comunidades historicamente comunalizadas, sociedades com a natureza e não contra a natureza são vistos como selvagens, inferiores e seus saberes, suas tecnologias ancestrais, sua memória biocultural são desvalorizados ou invisibilizados pela lógica capitalista moderno-colonial-utilitarista (PORTO-GONÇALVES, 2017c; 2019).

Diferentemente da crença de que a solução para a questão ambiental está no desenvolvimento das tecnologias moderno-coloniais de dominação, extração e colonização da natureza, o autor apostava nos saberes e nas tecnologias ancestrais de afirmação da vida construídos na relação com a natureza e não contra a natureza, um repertório de práticas e saberes acumulados pelos povos originários, camponeses, quilombolas e demais comunidades historicamente comunalizadas que vivem da terra, do mar, da floresta, dos mangues, dos vales, montanhas, campos, chapadas, dos lagos, das várzeas etc. que têm muito a nos ensinar na maneira de bem viver e habitar esse planeta.

Para Carlos Walter, as lutas desses povos e comunidades em defesa dos rios, das florestas, da terra, das riquezas minerais etc. é uma luta em defesa da vida, que tensiona e politiza os processos e os sentidos de apropriação social da natureza. A questão ambiental aponta que não nos parece haver horizonte de futuro sem debatermos como garantiremos as condições materiais de reprodução da vida, e são essas lutas que tensionam nossa atual crise civilizatória, fazem-nos repensar os processos de produção e consumo e os limites da natureza. Suas agendas, portanto, ultrapassam suas particularidades e, nelas, outros horizontes de sentidos se constroem como uma aposta pela vida.

Sua leitura da ecologia política da questão ambiental implica articular três registros críticos: uma crítica ao modo de produção/consumo/descarte capitalista

produtor de desigualdades ambientais, uma crítica vinculada à dimensão civilizatória e à racionalidade moderno-colonial que está ancorada na ideia de dominação da natureza e, por último, um aprendizado com os saberes, as tecnologias e as memórias bioculturais dos povos e comunidades que ancestralmente se constituíram como sociedades com a natureza e não contra a natureza. (PORTO-GONÇALVES, 2017c; 2019).


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A reinvenção dos territórios na América Latina/ Abya Yala/Quilombola


A Luta pelo Território –Essa consigna retira o caráter substantivo desse conceito, até recentemente visto como base natural do Estado. Até então, o território estava naturalizado. Com a consigna “luta pela vida, pela dignidade e pelo território” o conceito de território é desnaturalizado. Ao ressignificarem o conceito de território, resolvem a velha demanda campesina por terra e, ao mesmo tempo, a demanda pelo reconhecimento étnico-cultural, onde muitos desses movimentos querem ser reconhecidos como povos, nacionalidades (Equador) ou comunidades (Bolívia). Enfim, Território é igual a Terra + Cultura através das relações de poder. O conceito de território é, assim, deslocado do seu sentido jurídico-político consagrado como “base do estado” e passa a ser disputado por diferentes segmentos da sociedade que portam diferentes sentidos para estar na terra, indicando que não há território sem territorialidade e, assim, desnaturalizam esse debate chamando a atenção para o processo de apropriação do espaço geográfico- processo de territorialização. (PORTO-GONÇALVES, 2017d, p.27).

Como afirmamos anteriormente, Carlos Walter Porto-Gonçalves estava, o tempo todo, atento a como nascia um novo, como se inscrevia na realidade a potência de vida dos grupos subalternizados, valorizando os processos e as práticas instituintes, a história e o espaço como criação aberta pela força das lutas dos de baixo que reinventam seus territórios num gesto de r-existência e autodeterminação.

Na busca de uma genealogia pela reinvenção dos territórios numa perspectiva dos subalternizados, o autor identificava como um momento constitutivo o final da década de 1980, quando, segundo ele, são identificadas sensíveis mudanças na dinâmica política dos conflitos sociais do mundo rural da América Latina/ Abya Yala/Quilombola, sobretudo através da emergência de uma diversidade de ‘novas’ vozes, de ‘novos’ sujeitos políticos, protagonistas que emergem na cena pública e nas arenas políticas.

Nesse período, começam a ganhar força e objetivação, em forma de movimentos sociais, as reivindicações de uma diversidade de agentes e forças sociais, historicamente marginalizados e invisibilizados, que se tornam protagonistas na luta por direitos e justiça em todo o continente. Muitos desses ‘novos’ personagens, agora protagonistas, eram tidos como forças sociais que pertenciam ao passado e que, inevitavelmente, seriam incorporados ou, simplesmente, desapareceriam no processo de modernização capitalista. Contrariando esse diagnóstico, camponeses, indígenas, afrodescendentes, povos e comunidades geo-historicamente comunalizados, longe de serem personagens anacrônicos,

tornam-se protagonistas da reinvenção dos territórios e da invenção de outros possíveis futuros.

Nesse sentido, os movimentos indígenas ganham força em países como a Bolívia, Equador, México, Chile, Brasil; as comunidades afrodescendentes, também historicamente invisibilizadas, ganham força e expressão no Brasil, na Colômbia, no Equador; o movimento camponês reinventa-se através das lutas da Via Campesina e, no Brasil, ganha grande destaque a ação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Esses novos/velhos protagonistas emergem no espaço público e inauguram novas agendas e bandeiras de lutas. A Marcha pela Dignidade e pelo Território, organizada pelo movimento indígena boliviano, em 1990, representa um dos marcos desse processo. No mesmo ano, no Equador, o movimento indígena equatoriano também organiza uma marcha com o mesmo título. Quatro anos depois, em janeiro de 1994, o mundo assiste, atônito, ao levante zapatista em Chiapas, no México, um movimento que trazia, também, como prioridade na sua agenda de luta, o direito à dignidade, à autonomia e ao território.

Segundo Porto-Gonçalves (2001c), no caso brasileiro, especialmente na Amazônia, a partir de então, começa a se esboçar uma nova ‘geo-grafia’ que aponta para um processo de emergência de diversos movimentos sociais (indígenas, ribeirinhos, pequenos agricultores, seringueiros, varzeiros, castanheiros, populações quilombolas, mulheres quebradeiras de coco etc.), que lutam pela afirmação das territorialidades e identidades territoriais como elemento de ‘r-existência’ das ‘comunidades tradicionais’. Esses movimentos apontam para um processo de politização da própria cultura e de modos de vida ‘tradicionais’, ou seja, para um processo de politização dos ‘costumes em comum’6, valorizando a memória, a ancestralidade e os saberes tradicionais na construção das identidades socioculturais e sociopolíticas, afirmando um duplo processo que, ao mesmo tempo, direciona-as para o passado, buscando, nas tradições e na memória, sua força e, apontando para o futuro, sinalizam para projetos alternativos de produção e organização comunitária, bem como de afirmação e participação política.

6 Expressão usada por Thompson (1998) para se referir à emergência de uma consciência política e de uma cultura plebeia rebelde que buscava, nos costumes e na tradição, a legitimidade das suas lutas para a afirmação de determinadas formas de direitos consuetudinários e da economia moral em oposição à economia capitalista e do direito liberal. Os camponeses resistem, em nome do costume, às racionalizações econômicas e inovações (como o cercamento de terras comuns, a disciplina no trabalho e os mercados ‘livres’ não regulados de grãos) que governantes, comerciantes ou patrões buscavam impor. Trata-se de atribuir um conteúdo emancipatório para as culturas tradicionais normalmente vistas como sinônimas de conservadorismo.

Nesse novo contexto, emerge a construção de ‘novas’ identidades coletivas surgidas de velhas condições sociais e étnicas, como é o caso das populações indígenas e negras, ou remetendo-se a uma determinada relação com a natureza (seringueiro, castanheiro, pescador, mulher quebradeira de coco) ou, ainda, expressando uma condição derivada da própria ação dos chamados ‘grandes projetos’ de modernização implantados na região, como estradas, hidrelétricas, projetos de mineração, entre outros (‘atingido’, ‘assentado’, ‘deslocado’). Trata-se de um processo de ressignificação política e cultural que esses grupos sociais vêm fazendo da sua experiência cultural e da sua forma de organização política. Nesse contexto, as comunidades tradicionais organizam-se, ganhando visibilidade e protagonismo, constituindo-se e afirmando-se como sujeitos políticos na luta pelo exercício ou mesmo pela invenção de direitos relacionados a suas territorialidades e identidades territoriais.

Nessas lutas, o território tem funcionado como um dispositivo de agenciamento político. Essa categoria é uma espécie de catalisador das energias emancipatórias na luta por direitos e justiça. O direito ao território é uma espécie de condensador de outras formas de direitos, o direito à habitação, à produção, à terra, à água, aos recursos naturais, à soberania alimentar e hídrica, à afirmação dos modos de vida, das identidades, memórias, ancestralidades, dos sentidos ontológicos de ser e existir. O território é sustentação de um projeto de autodeterminação e autonomia do bem viver dos povos e comunidades (CRUZ, 2013).

Quando tais grupos reivindicam o direito aos seus territórios, estão reivindicando uma autonomia material e simbólica. O direito a um território próprio significa o direito às formas próprias de produzir materialmente sua existência e, também, a valorização e o respeito às suas peculiares formas de dar sentido ao mundo através de uma memória, de uma linguagem, de um imaginário, de formas de saberes que constituem sua existência, sua cultura e cosmologia. O território agrega uma espessura, uma densidade, pois traz os conteúdos históricos e existenciais desses grupos, uma vez que é suporte material da cultura, da memória, da ancestralidade e dos saberes acumulados ao longo do tempo.


Considerações finais


É nesse contexto conflitivo que outras geografias vêm sendo engendradas. E desses lugares de r-existência é que tenho retirado grande parte de minha inspiração para esboçar uma teoria social crítica desde a Geografia a partir dos que vêm grafando a terra, geografando. (PORTO-GONÇALVES 2017e p.41).

O trabalho de Carlos Walter Porto-Gonçalves é marcado por um certo ecletismo no uso de autores, ideias e conceitos oriundos de matrizes metodológicas distintas das quais ele se apropriava de forma autoral, fazia uma leitura assinada sem preocupação com interdições epistêmicas ou ideológicas a priori. Era um pensador heterodoxo e criativo, o que podia dar a falsa impressão de que ele não tinha um caminho metodológico claro e coerente que orientasse seus trabalhos. O que tentamos demonstrar neste texto é que essa percepção é imprecisa, vez que, embora o autor tivesse uma concepção de método aberta e arejada, conseguimos identificar em sua obra um horizonte teórico-metodológico, ético e político potente do fazer geográfico que oferece um renovado olhar sobre a geograficidade social.

O autor sugere pensar a geografia como verbo partindo das ações, das práticas e dos protagonistas das lutas sociais, uma geografia dos de baixo, dos grupos subalternizados e da resistência tencionando a tradição da disciplina que está ligada ao estado e aos grupos dominantes. Em sua leitura da geograficidade, tensiona o discurso geográfico que se estruturou por uma gramática do desejo de ordem, organização e planejamento do espaço, sendo o conflito, para ele, uma chave analítica privilegiada tanto no sentido político, epistêmico quanto metodológico. O conflito está no centro de sua leitura territorial da sociedade, pois é no conflito que se revelam os diferentes sentidos de território.

É da luta dos movimentos indígenas, camponeses, quilombolas e dos mais diversos povos e comunidades geo-historicamente comunalizados que transformaram a luta pelo direito território em uma luta por dignidade e uma aposta na vida que essa geografia se inspira e se nutre. Valorizar as experiências e os saberes dos povos, classes, comunidades ou movimentos em luta era traço marcante do pensamento de Carlos Walter Porto-Gonçalves. Era um intelectual extremamente atento e sensível aos saberes das lutas e das r-existências, valorizava as epistemes, os saberes outros e o diálogo intercultural entre diferentes matrizes de racionalidade. Ele afirmava que não há territórios sem práticas sociais e não existem práticas sociais que não tenham inscritos nelas saberes. Como os saberes inscritos nas práticas e nos territórios nem sempre estão escritos, são pouco vistos, escutados e valorizados pela racionalidade ocidental-moderno-colonial.

O autor insistia que aprendera muito com os saberes dos povos, classes, comunidades ou movimentos em luta. Reconhecia que muitas de suas formulações teóricas eram resultado do diálogo, de uma sintonia de escuta desses saberes da luta e da r-existência produzido pelos seringueiros, indígenas, camponeses e quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais, especialmente na Amazônia e no cerrado brasileiro. Por isso, defendia que a produção do conhecimento científico e o pensamento crítico se realizasse em diálogo constante com as experiências de luta e r-existência. Isso o levou, nos últimos anos, a ampliar e aprofundar o debate sobre o diálogo de saberes e o diálogo entre matrizes de racionalidade e toda uma reflexão sobre a descolonização do saber e da ciência. (PORTO-GONÇALVES, 2006b; 2017b).

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ANÍBAL QUIJANO: RUPTURAS VITALES PARA LA DESCOLONIALIDAD DEL PODER1


Roberto Espinoza2


Aníbal Quijano


1 Artigo recebido em 05/10/2023. Aprovado pelos editores em 17/01/2024. Publicado em 22/02/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.60134

2 Roberto Espinoza es sociólogo por la Universidad Católica del Perú (PUCP), Perú. Consultor Independiente. Correo: ayamtai08@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/009-0000-6239-2140.

Aníbal Quijano ha dejado aportes sustanciales sobre teorías, apuestas y

*cuestiones abiertas3* para las ciencias sociales, pero, sobre todo, para los

*movimientos de la sociedad* y la búsqueda de *horizontes de sentido alternativos*. La actitud de insumiso vital, en la teoría y en la práctica, que, con acierto, mencionara Danilo Quijano, sintetiza mucho de su legado: insumisión contra todo tipo de poder y de opresiones, del color político o ideológico que fuese. Uno de sus textos clásicos es “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina, publicado en portugués por CLACSO - Consejo Latinoamericanos de Ciencias Sociales, en 2005, y que adjuntamos a los lectores de la Revista Trabalho Necessário (TN 47).


Capitalismo de Estado y autonomía política


Conocí a Aníbal en 1974, y trabajamos juntos en muchos procesos y jornadas políticas y sociales, hasta su fallecimiento, y en su memoria y homenaje, quisiera transmitir el testimonio siguiente.

Sembró el ejemplo y la inspiración, de una vida dedicada a la lucha contra el patrón de poder del sistema-mundo capitalista de la Modernidad Colonialidad, para su transformación o “mutación”4 sustancial. No fue una vida dedicada al arribismo, oportunismo, violentismo, para administrar, “asaltar” o co-gobernar ese poder, sino para insertarse en las tendencias o procesos sociales, embrionarios o emergentes, que apuntaban a diluir, socializar, mutar, todo tipo de poder, y que resumió en la última etapa de su vida, en la perspectiva de la *descolonialidad del poder*. Insistió en la opción (social y personal) por la construcción democrática de una sociedad radicalmente democrática, en lo que llamó un nuevo tipo de “autoridad social pública”, basada en la * forma social comunal *, más allá de la forma Estado Nación.

Como ha sido destacado, por él mismo y otros autores, resaltó la perspectiva y el ejemplo de que solo se puede conocer la sociedad y sus tendencias, desde dentro y durante la acción concreta de la lucha por transformarla.

Una vida de lucha teórica y política para la descolonialidad del poder, del saber, ser y sentir. Constituye una herencia de ruptura teórica, política, académica, activista, vital, personal, ética y estética, contra todo tipo de poder: el del capital,

3 Las frases entre asteriscos y cursivas, provienen de Aníbal Quijano, salvo indicación distinta.

4 Expresión surgida en un debate animado por Aníbal Quijano en el Foro Social Mundial 2005.

pero también el de las diversas burocracias estatalistas. Por todo ello, resulta imposible (y hasta incoherente) reducir a Aníbal Quijano, simplemente al aporte académico o teórico, que es y será trascendental, y asumiendo también la importancia que ello pueda tener.

¿Qué rastros hay de ese ejemplo y trayectoria vital de insumisión? Habría que partir de su participación en las luchas y revueltas populares de los años 50 al 705, pero prefiero dar testimonio de lo que conocí directamente, como homenaje a un querido maestro, líder y sobre todo compañero de tantas jornadas, desvelos, incertidumbres y desafíos. Y ya que le molestaría cualquier forma de “culto a la personalidad”, haremos el esfuerzo de contextualizar a Aníbal en la historia de las luchas sociales donde se sumergió desde los años 70 en adelante, procesos donde convergió, activó, debatió, aprendió, aportó y teorizó.

El gobierno militar del Perú, en los 70 tenía atrapada a gran parte de la izquierda peruana (y parte de la internacional) confundida e ilusionada con las reformas nacionalistas, influidos por los dogmas y fantasías de la “burguesía nacional” e incluso, hasta dispuesta a diluir al movimiento sindical en una central gobiernista y subordinar los demás movimientos barriales, campesinos, magisteriales y populares a ese “nacionalismo” desde arriba y desde las fuerzas armadas6.

El desafío de la autonomía política luchaba por abrirse paso, y el sociólogo Quijano, opta por sumergirse en ese proceso, no opta por hacer “carrera arribista” universitaria o “ingeniería social” en alguna ONG; sino que opta por converger y fundirse en ese intenso proceso de autonomización política de los trabajadores de aquellos años e impulsando la revista “Sociedad y Política” (SyP)7. Inserción en el movimiento social y vientos frescos en la teoría política de la izquierda, no por casualidad, los mismos pasos que siguió el amauta José Carlos Mariátegui con la revista Amauta y la construcción de organizaciones sociales.

El número 4 de la revista SyP8 que dirigía, es requisado de la imprenta y kioskos por la policía del gobierno militar, por atreverse a demostrar que no había tal

5Manuel Valladares, indaga algo similar en las décadas anteriores http://revistasinvestigacion.unmsm.edu.pe/index.php/sociales/article/view/16024/13771.

6 Desarrollado en el facsímil de “Sociedad y Política” que dirigió Aníbal Quijano, entre 1972 y 1983. https://fondodeculturaeconomica.mitienda.pe/producto/sociedad-y-politica-1972-1983-edicion-facsimil ar.

7 Sociedad y Política N°1 https://www.dropbox.com/s/ikcty7ptftlpbm6/Revista001.pdf?dl=0.

8 Revista requisada https://www.dropbox.com/s/llijo2uhndq947y/Revista-Extra004.pdf?dl=0.

“revolución” sino una variante de capitalismo de estado, con concentración del ingreso junto con corporativismo, que confluye con el emergente capital financiero e industrial, en nombre de lo cual se pretendía subordinar y castrar al movimiento popular, y era indispensable poner por delante la independencia y autonomía política.

Fue deportado en 1974 por hacer crítica teórica consecuente, y a su regreso al país, la acción política no se detuvo y la revista “SyP” no se limitó a los puestos de venta, sino que pasó a ser expuesta, discutida y debatida en múltiples espacios populares en el país, y especialmente en eventos sindicales, campesinos, barriales y estudiantiles.

Esa energía y articulaciones desplegadas, dio lugar a que en 1976 se funde el Movimiento Revolucionario Socialista (MRS)9 compuesto por líderes y lideresas de sindicatos textiles, metalúrgicos, mineros, magisteriales, así como por dirigentes Aymaras, campesinos, barriales, universitarios y profesores. Activistas que abrían paso a las teorías y acciones críticas, cuestionando el predominante “marxismo-leninismo” dogmático, economicista, sectario, estatalista, y sobre todo, muy ambicioso de “poder”, desarrollándose críticas frontales a la adicción del poder gremial-estatal-electoral.

Miles de horas de Aníbal en reuniones, evaluaciones, redacción de volantes, manifiestos, debates de coyuntura, análisis para “SyP Quincenal”10, y para el vocero del MRS, el periódico “Revolución Socialista”11. Un MRS que nacía cuestionando el “centralismo democrático” de las izquierdas, y de cómo éste servía para encubrir los cacicazgos y dictaduras internas partidarias, y la construcción de maquinarias políticas adictas de poder. Un “rarísimo” MRS que nacía no para “hegemonizar” ni tener “arrastre electoral” sino para aportar directa y humildemente a la auto-organización popular, a su autonomía contra todo tipo de burocracias y de poderes, y con esa bandera, sumergirse en el volcán social de esos tiempos [QUIJANO, 2014, p. 569).

Curiosamente, aunque no casualmente, “SyP” era muy debatida por la izquierda peruana, esté o no encandilada con el gobierno militar, pero poco o nunca


9 MRS. Disponible en: https://www.dropbox.com/s/tdm4v2eoc4lu9f9/MRS%202.jpg?dl=0.

10 SyP: Disponible en: https://www.dropbox.com/scl/fo/5kbg0vypvhyo3d3ckth60/h?rlkey=pjgtv2sa6ieu5qse98woy4kzo&dl=0. 11 Disponible en: https://www.dropbox.com/s/zzfti631c2kbnn5/Rev%20Socialista%201.jpg?dl=0.

citada explícitamente. Ahí se inicia, y por largo tiempo en adelante, el doble rasero del aparente respeto con las propuestas de Quijano y la revista, simultáneo a su bloqueo y marginación por la parroquial política peruana, aunque no pudo impedir su presencia y trascendencia internacional.

En esos años, el partido aprista pretendía doblegar y amansar a los trabajadores textiles, siendo enfrentados por el “Comité de Lucha Textil” para defender con autonomía política la escala móvil de salarios ya conquistada. El aluvión social de “rescate” del arenal de Villa El Salvador, a 25 kms del centro de lima, es penetrado por el aparato de control político del gobierno militar, el “Sistema Nacional de Movilización Social” (SINAMOS) ante lo cual vuelve a emerger y expresarse, esa tendencia social de autonomía política, a través de Comunidad Urbana Autogestionaria de Villa El Salvador (CUAVES) (QUIJANO, 2020, p. 77) para defender su proceso de autoorganización, autogobierno y autogestión social. Los maestros del SUTEP son aprisionados por un partido maoísta que opta por burocratizar al gremio, monopolizarlo, rompiendo su frente único, y surge de nuevo, la reacción autónoma de democratización radical de la organización mediante elecciones universales dirigenciales, traducidas en un maestro un voto. En Puno, se cuestionaba los límites “campesinistas” sindicales, y se avanzaba en la autonomía colectiva originaria como “Unión de Comunidades Aymaras” articulando las estructuras comunales territoriales.

Experiencias claves de autonomización obrera, barrial, magisterial y Aymara, donde Aníbal estuvo presente, y donde debatió, acompañó, aportó, y sobre todo aprendió, en procesos, del cual formaban parte miembros del MRS y líderes populares y activistas, como Apolinario Rojas, Leopoldo Rubio, Estela Carbo, Pedro Chamber, Julio Pedro Armacanqui, Elena Caro, Jesús Cocha, Jorge Cristóbal, Bonifacio Cruz, Roberto Martínez, entre tantos otros.

En esa vorágine, fueron germinando y madurando las intuiciones y opciones de autonomía, democracia radical, autogobierno, comunidad, que más adelante serán parte sustancial de nuevos horizontes teóricos y epistemológicos. Quijano aportó señalando como estas apuestas estaban presentes de modo semejante en la práctica y teoría mariateguista, pero también, que podía rastrearse en una larga historia de rebeldías y herejías, desde Rosa Luxemburgo cuestionando a Lenin, el soviet heróico de Kronstadt masacrado por los bolcheviques y el ejército rojo y su

jefe León Trotsky, tal como fue debatido entre él y Ernest Mandel en una larga noche de polémica en Lima, sobre los sesgos trotskistas del “estado obrero” a pesar de la larga represión estatalistas a las autonomías populares desde Kronstadt y los consejos obreros y populares en Europa del Este.

Quedó cada vez más claro, en el MRS, que en los procesos de transformación social del siglo veinte, se evidenciaba esa tensión entre el poder popular, la democracia radical, la socialización del poder, y la partidarización, burocratización, estatalización y posterior represión y regresión del cambio social, desde las propias “izquierdas”.


La socialización de todo tipo de poder


Entre los años 70-80, asumir esa perspectiva, era un auténtico sacrilegio, sancionado con la fácil estigmatización: de “trotskista, anarquista, basista, largo plazista, etc,” que no casualmente reaparece una y otra vez en décadas posteriores. Se nadó (y se sigue nadando) contra la corriente, y los esfuerzos autonomistas fueron lamentablemente reprimidos, burocratizados, cooptados, divididos y marginalizados, tanto a nivel popular como de las izquierdas. Las expresiones mayores de esta contradicción fueron las crisis de la CUAVES y las de la Alianza Revolucionaria de Izquierda (ARI)12, ambas frustraciones, azuzadas por las ambiciones y borracheras electoreras.

A pesar de todo, más de 10 años de experiencia autonomista de la CUAVES (QUIJANO, 1998) demostró que era posible construir una ciudad desde la nada en el arenal, con base en la autoorganización, autogestión, autonomía, poder popular, democracia directa, basada en una estructura territorial y sus asambleas iniciadas en las manzanas de 24 lotes familiares, seguida en la asamblea de 22 manzanas de cada uno de los 70 grupos residenciales, que además funcionaban teniendo al centro (tanto geográfico como social) los bienes y servicios comunales (parque, educación inicial, tópico de salud, olla común) y culminaba las históricas Convenciones de toda la población, para una vez más, adoptar decisiones colectivas


12 MRS y ARI: disponible en: https://es.scribd.com/document/376077403/ARI-Por-que-se-rompio-pdf https://www.dropbox.com/s/qizso01wleguykb/ARI%20-%20Por%20qu%C3%A9%20se%20rompi%C3

%B3.pdf?dl=0.

sobre sus necesidades, derechos y frente al gobierno militar supuestamente “revolucionario”.

Los migrantes de regiones a Lima, de dicha población, construyeron, crearon y recrearon o adaptaron, sus estructuras y vivencias “comunales” de gobierno propio sobre todos los aspectos de la vida social. Apolinario Rojas, comunero andino de “san pedro de Casta” y dirigente obrero textil, lideró ese emblemático proceso de autogobierno popular urbano, y lo compartió y enseñó al MRS, logrando apasionarlo en esa gran apuesta. Y Aníbal Quijano, se sumerge en esa “escuela de la CUAVES” y la enriqueció, precisando la perspectiva de la *socialización del poder * (QUIJANO, 2014) en lugar de la “toma del poder” o la “dictadura del proletariado” encubriendo la de las burocracias.

Gran parte de la izquierda no lo entendió y prefirió destruir la CUAVES: los violentistas, acusando que el autogobierno comunal era auto explotación, y los otros, prefiriendo sustituirlo por la burocracia municipal. Los extremos coincidieron, y una vez más los “poderes partidarios” sacrificaron el poder comunitario. Décadas después, y quizás aprendiendo de la historia, los 20,000 Purépecha de Michoacán, de la municipalidad de Cherán Keri (MARTÍNEZ, 2018), ante la violencia y corrupción generalizada de la tala ilegal y el narcotráfico, deciden cerrar el municipio y vivir sin partidos políticos, funcionando con base en su consejo comunitario con los bienes y servicios colectivos. Desde el 2011, resisten en ese proceso que ha obligado al estado mexicano a transferirles las funciones y presupuesto del inútil y clausurado municipio del estado uni-nacional.

El ARI fue la primera gran “Alianza Revolucionaria de Izquierda” (MRS, 1980) en el Perú, en la cual el MRS y Aníbal Quijano participaron activamente. Quedará en la memoria el mitin del ARI en Villa El Salvador, junto a Hugo Blanco, impulsor de la rebelión Quechua en el Cusco, donde Aníbal inicia su mensaje, recordando el poema de César Vallejo: “Jamás, señor ministro de salud, fue la salud más mortal” (VALLEJO, 1987).

Se buscó cambiar la borrachera electorera, con propuestas de innovación para implementar “una estrategia electoral no electorera” (QUIJANO, 2014, p. 545), es decir, basada y controlada por la organización popular, como años después se intentará practicar en diversos países. Pero en el Perú, esa era otra herejía más, que debió enfrentar la reacción del ya fuerte virus electorero de gran parte de las

izquierdas, y que llevó a la explosión del rompimiento del ARI por el simple cuoteo o repartija de curules parlamentarias.

Ya se evidenciaba, lo que sería la larga cadena mental de la izquierda de que “salvo el poder, todo es ilusión”13. Curiosamente coinciden en este fetiche autoritario, tanto desde el violentismo (Sendero, MRTA) como desde el electorerismo, de la mayor parte de la izquierda peruana. El poder-aparato cosificado en el Estado, para capturarlo vía la violencia terrorista o vía el marketing electoral, inclusive a pesar de o sin importar, que los abismos y desgarramientos sociales se mantuviesen. Producidos los enfrentamientos y las derrotas, el MRS se disuelve, pero no desaparecieron las apuestas, los horizontes, los principios y la ética aprendida. Y como prefigurando lo que se venía, desde el mundo del arte surgió la respuesta al verticalismo, invirtiendo la frase hacia “Salvo la Ilusión, todo es Poder” (CISNEROS, 1993).

Paralelamente explotaba la URSS, y todo el llamado campo socialista regresaba al capitalismo, convirtiéndose los “ortodoxos” jerarcas del partido, en los “renovadores” nuevos burgueses, aunque manteniendo la verticalidad del poder de siempre. Fukuyama decreta el fin de la historia y en el Perú el fujimorismo junto a Sendero, imponen una muy pesada y violenta lápida sangrienta a toda idea de cambio social. Era un momento de inmensa derrota, que llamaba a la urgencia de evaluación total, de poner en cuestión todo lo pensado, pero manteniendo la visión esencial de cómo luchar en esos nuevos y duros tiempos contra todo tipo de poder.


Eurocentrismo y Descolonialidad del Poder


Y al igual que en los años 50 desde la cárcel, luego en los 70 en el MRS, y una vez más, desde los años 90, Aníbal resiste y busca dar respuesta a las grandes cuestiones de la profunda derrota histórica sufrida en el Perú y el mundo por las izquierdas y los socialismos. Una vez más, la opción no era ni fue replegarse a la observación, especulación, o peor, a la “ingeniería social” para oxigenar las viejas estructuras de opresión y explotación. Había que evaluar todo y entender por qué


13 Atribuida a Lenin, y central en el autoritarismo de Sendero Luminoso https://lyricstranslate.com/es/sendero-luminoso-salvo-el-poder-lyrics.html.

pasó lo que pasó y como evitar que vuelva a pasar, o como diría Rita Segato, años después y con acierto, “para no volver a meter la pata en el mismo hueco”14.

En esa larga búsqueda, emerge de nuevo *la sociedad en movimiento*, y los pueblos originarios emergen nuevamente, a través de los impulsos de las autonomías Miskito, Sumo y Rama en Nicaragua, la plurinacionalidad en Ecuador con la CONAIE, el autogobierno Tzotzil y Tojolabal del zapatismo en México, las autonomías originarias en Bolivia, los movimientos amazónicos, la lucha de afrodescendientes en el mundo, de los Quilombolas en Brasil, y los Dalits en la India, contra el racismo y opresión del poder estatal y mercantil.

Aníbal se vincula a esa *sociedad en movimiento*, los acompaña, entra a sus debates, y una vez más, aprende, y devuelve, con el aporte clave de la crítica sustancial al lado oscuro de la colonialidad en la modernidad, con sus traumas constitutivos del racismo social, político, ambiental y epistemológico, y ayuda a que emerja la perspectiva de la *Descolonialidad del poder, saber y del ser* (QUIJANO, 2014, p. 777 y 847).

Quijano reanima el debate de una izquierda que estaba arrinconada, proponiendo que fuimos derrotados por ser sutiles prisioneros del eurocentrismo, y no solo en el Perú sino a nivel mundial. Aportó con ese debate al impulso del Foro Social Mundial, por “Un mundo, donde quepan varios Mundos” lanzado desde Chiapas por el Zapatismo (CECEÑA, 2004); y no solo “un mundo” en la versión estatalista eurocéntrica, y participa activamente en la IV Cumbre Continental de Pueblos Indígenas (ADITAL, 2009)15. Vuelve a insertarse en la nueva emergencia de las articulaciones globales de las luchas locales, para cambiar el capitalismo mundial o sistema mundo moderno-colonial.


14 Mensaje personal, aunque se alude también en https://cedla.org/reflexiones-sobre-la-crisis/rita-segato-respuesta-a-una-polemica-distorsionada/.

15 Video https://www.youtube.com/watch?v=CtfyLoJ6xdc.

Anibal Quijano y líderes Kichwa, Mayas y Mohawk,

en la IV Cumbre Continental de Pueblos Indígenas, Puno, 2009.

Insistió firmemente en la necesidad de superar el eurocentrismo, como el modo de recordar, pensar, interpretar y actuar, generado en 500 años de capitalismo, y del cual han bebido también las izquierdas, donde asimilamos de modo “natural” múltiples herencias de la modernidad/colonialidad, como son aquellas referidas a los mitos y las trampas del “desarrollo”, “partido”, “estado”, “democracia”, “domino de la naturaleza”, “patriarcado”; como enfoques predominantes de una racionalidad instrumental.

Aníbal, vuelve a abrir polémica, insistir en las cuestiones abiertas más que en dogmas de manuales envejecidos, y sembrar nuevos surcos y horizontes alternativos, sobre las anteojeras y cárceles mentales de larga duración, que impidieron “ver” que esa modernidad estaba genéticamente constituida con base en el genocidio y ecocidio de la conquista colonial basada en el cuento eficaz de la idea de “raza” que se entrecruza con las opresiones de clase y género. Y que continúa hasta hoy con la persistencia del racismo sobre todo ontológico y epistemológico.

Ceguera que generó y sigue generando errores sucesivos: El capitalismo no se “origina” por la “productividad” europea, sino por el despojo del Abya Yala. Los “modos de producción” no son etapas sucesivas ineludibles y homogéneas, sino que se trata de un * patrón de poder de la modernidad colonialidad cuya heterogeneidad histórico estructural es permanente* (QUIJANO, 2014, p. 75-121). El crecimiento de

las “fuerzas productivas” no puede ser infinito ni idolatrado con la tecnolatría. No solo existen clases sociales, sino racismo, patriarcado, antropocentrismo. “La” “democracia” y “el” “estado”, modernos, no son las únicas e ineludibles estructuras de autoridad. Aníbal, resalta el inmenso error de no rescatar, que, entre el individualismo y el estatismo, existió y sigue existiendo aún la *forma social “comunal* (QUIJANO, 1988). (andina, amazónica, urbana) que entrelaza la forma

*individual-social* sin caer en el individualismo, y lo entrelaza a lo *publico-social” u otra forma de autoridad pública sin reducirse a lo estatal.

No le interesó entonces, a Quijano ser rector, concejal, ministro, embajador, menos aún congresista o “cacique partidario”. No podía tampoco vivir solo como académico ni solo como “político”. Todo eso era parte del poder, y optó por vivir para entender al Poder, a todo tipo de poder, para desnudarlo, desmontarlo, desentrañarlo y luchar, como decía, *aunque sea como minoría de a uno, desde dentro o desde fuera, pero siempre en contra*16.

Es indispensable resaltar su ejemplo de vida personal, sus apuestas vitales y políticas, y sus aportes teóricos, que son sustanciales en este periodo de crisis del patrón de poder de la eurocéntrica modernidad colonial, expresado en la crisis civilizatoria, donde se combinan y retroalimentan los conflictos en todas las dimensiones de la hydra de la colonialidad del poder y su control y opresiones sobre raza, sexo, trabajo, naturaleza, subjetividad y autoridad.


La actualidad del aporte de Quijano


Las cuestiones y horizontes que abre Aníbal Quijano, aportan a las nuevas generaciones, un nuevo horizonte ante la gran decepción de varias izquierdas eurocéntricas en el Perú, Abya Yala y el mundo. Aporta una perspectiva teórica para salir de las trampas y telarañas del eurocentrismo, y su eje principal el racismo no solo social, sino epistemológico y del estado centrismo. Para superar una ideología de izquierda con epistemología de derecha. Para dejar de querer ser lo que no somos (QUIJANO, [2000] 2014, p. 807).


16Comunicación personal, y aludida en chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/http://www.desco.org.pe/recursos/sites/indice/1 49/640.pdf o en: https://www.facebook.com/watch/live/?ref=watch_permalink&v=1441763512915373.

Converge y aporta a los pueblos originarios, con un enfoque para que sus luchas por autodeterminación y vida plena se concreten a través de la descolonialidad del poder, del saber y del ser, del conjunto de la sociedad en cada país.

Un enfoque de que no puede realizarse plenamente la autodeterminación o autogobierno de los pueblos originarios, sin descolonialidad social, bajo el riesgo del aislamiento en el fundamentalismo etnocéntrico (QUIJANO, 2014, p. 635-666); pero tampoco las propuestas de descolonialidad pueden resistir a las tentaciones del academicismo y oportunismo, sino se engarzan y aterrizan en las luchas territoriales de los pueblos.

Un enfoque de que no se puede retornar al pasado originario, pero si que se puede caminar al futuro sobre las huellas de los antepasados.

En general, su pensamiento y práctica dialoga, con otras luchas sociales, planteando que el poder no es solo el estado, no solo lucha de clases en general, demostrando las desviaciones del materialismo histórico dogmático y sus fracasos en el siglo anterior y en lo que va del presente. Planteando que hay que ir más allá, y que el poder es una red profunda de cinco tentáculos de opresión: entre sexos géneros, de explotación del plusvalor del trabajo, del imaginario y subjetividad con el mito de las razas, de imposición de la inevitabilidad del estado uninacional, y del dominio infinito de la naturaleza.

Dialoga con la diversidad de la “sociedad en movimiento”, llamando a la articulación entre las luchas, sin jerarquías ni “contradicciones principales”, de la convergencia horizontal entre los pueblos originarios, feministas, sindicalistas, juventudes, ambientalistas, artistas, académicos, que resumiera coloquialmente en

*pateando cada uno su pelota, pero hacia el mismo arco*.

Cierro aquí este testimonio, y permítanme una nota final personal con el compañero y su recuerdo: Aníbal, pusiste en la mesa profundos cuestionamientos y horizontes alternativos, por lo cual, con la perspectiva de la *descolonialidad del poder* caminando en todos los continentes, aunque partiste físicamente, sin embargo sigues estando presente entre las herejías y rebeldías que no cesan, y que a pesar de posibles e inevitables extravíos o derrotas, emergerán y resurgirán, una y otra vez, porque a pesar de todo, como señalaste *Esto no es sólo una utopía,

estamos comenzando a convivir con el futuro. Podemos ser derrotados, incluso el mundo puede terminarse, pero no tiene vuelta atrás* (QUIJANO, 2009).

Entonces Aníbal, resulta que no te habrías ido, sino que sigues presente, activo y polémico, en nuestros sueños y desafíos, lo cual agradecemos profundamente, y seguiremos encontrándonos y agrupándonos, frente a todas las sombras, caras y dobleces que tendrá la crisis de la modernidad-colonialidad. Impulsamos ahora una “Red por Descolonialidad y Autogobierno”; y en esos caminos y trajines, nos seguiremos encontrando.


Referencias


ADITAL. Perú: Cumbre indígena continental se reúne en Puno, 2009. Disponible en: https://www.biodiversidadla.org/Principal/Prensa/Peru_Cumbre_indigena_continental

_se_reune_en_Puno.

CECEÑA, A. E. Los desafíos del mundo en que caben todos los mundos y la subversión del saber histórico de la lucha. IIEc-ERA, n.16, 2004, Chiapas, México. Disponible en: https://chiapas.iiec.unam.mx/No16/ch16cecena.html.

CISNEROS, A. Salvo la ilusión todo es poder. Chasqui, Revista Latinoamericana de Comunicación, Ecuador, n. 46, p. 57-61, 1993.

QUIJANO, A. Por la Imaginación Política: Red de Descolonialidad y Autogobierno Social, Perú, 2020. Disponible en: https://bookscompany.pe/products/por-la-imaginacion-politica-anibal-quijano.

QUIJANO, A. Cuestiones y horizontes, Buenos Aires: CLACSO, 2014.

QUIJANO, A. Otro horizonte de sentido histórico. ALAI. América Latina en Movimiento, Quito n. 441, 2009.

QUIJANO, A. La economía popular y sus caminos en América Latina. Lima: Mosca Azul Editores, 1998. Disponible en: https://catalogo.cedinci.org/cgi-bin/koha/opac-detail.pl?biblionumber=39640.

QUIJANO, A. Modernidad, identidad y utopía en América Latina. Lima: Sociedad y Politica ediciones, 1988. Disponible en: https://antropologiadeoutraforma.files.wordpress.com/2013/04/quijano-anibal-modern idad-identidad-y-utopia-en-america-latina-1988.pdf.

QUIJANO, A. Poder y Democracia en el Socialismo. En: Cuestiones y Horizontes. Antología esencial. Buenos Aires: CLACSO, 2014. Disponible en: http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20140506052228/eje2-6.pdf.

QUIJANO, A. Los usos de la democracia burguesa. En: Cuestiones y Horizontes. Antología esencial. Buenos Aires: CLACSO, 2014. Disponible en: https://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20140506051819/eje2-5.pdf.


MARTÍNEZ, M. F. Cherán k’eri. 5 años de autonomía. por la seguridad, justicia y la reconstitución de nuestro territorio. Ra Ximhai, México, v. 14, n. 2, p. 233-236, 2018.


MRS. ¿Por qué y cómo se desintegró?: Documento del Movimiento Revolucionario Socialista. Perú: Ediciones Sociedad y Política, 1980.


VALLEJO, C. Obra poética. Bogotá: Editorial Oveja Negra, 1987. Disponible en: https://www.poesi.as/cv39023.htm.

Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina

Titulo

Quijano, Anibal - Autor/a;

Autor(es)

A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas

latino-americanas

En:

Buenos Aires

Lugar

CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales

Editorial/Editor

2005

Fecha


Colección

Colonialismo; Modernidad; Capitalismo; Poder Politico; Sociedad; Historia;

Eurocentrismo; America Latina;

Temas

Capítulo de Libro

Tipo de documento

http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/sur-sur/20100624103322/12_Quijano.pdf

URL

Reconocimiento-No comercial-Sin obras derivadas 2.0 Genérica

http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.0/deed.es

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Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina1


Aníbal Quijano*


A globalização em curso é, em primeiro lugar, a culminação de um processo que começou com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um novo padrão de poder mundial. Um dos eixos fundamentais desse padrão de poder é a classificação social da população mundial de acordo com a idéia de raça, uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo. Esse eixo tem, portanto, origem e caráter colonial, mas provou ser mais duradouro e estável que o colonialismo em cuja matriz foi estabelecido. Implica, conseqüentemente, num elemento de colonialidade no padrão de poder hoje hegemônico. No texto abaixo, o propósito principal é o de colocar algumas das questões teoricamente necessárias sobre as implicações dessa colonialidade do poder com relação à história da América Latina2.


  1. A América e o novo padrão de poder mundial

    A América constitui-se como o primeiro espaço/tempo de um padrão de poder de vocação mundial e, desse modo e por isso, como a primeira id-entidade da modernidade. Dois processos históricos convergiram e se associaram na produção do referido espaço/tempo e estabeleceram-se como os dois eixos fundamentais do novo padrão de poder. Por um lado, a codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados na idéia de raça, ou seja, uma supostamente distinta estrutura biológica que situava a uns em situação natural de inferioridade em relação a outros. Essa idéia foi assumida pelos conquistadores como o principal elemento constitutivo, fundacional, das relações de dominação que a conquista exigia. Nessas bases, conseqüentemente, foi classificada a população da América, e mais tarde do mundo, nesse novo padrão de poder. Por outro lado, a articulação de todas as formas históricas de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos, em torno do capital e do mercado mundial 3.


    Raça, uma categoria mental da modernidade

    A idéia de raça, em seu sentido moderno, não tem história conhecida antes da América 4. Talvez se tenha originado como referência às diferenças fenotípicas entre conquistadores e conquistados, mas o que importa é que desde muito cedo foi construída como referência a supostas estruturas biológicas diferenciais entre esses grupos.

    A formação de relações sociais fundadas nessa idéia, produziu na América identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e redefiniu outras. Assim, termos com espanhol e português, e mais tarde europeu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou país de origem, desde então adquiriram também, em relação às novas identidades, uma conotação racial. E na medida em que as relações sociais que se estavam configurando eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes, com constitutivas delas, e, conseqüentemente, ao padrão de dominação que se impunha. Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação social básica da população.

    Com o tempo, os colonizadores codificaram como cor os traços fenotípicos dos colonizados e a assumiram como a característica emblemática da categoria racial. Essa codificação foi inicialmente estabelecida, provavelmente, na área britânico-americana. Os negros eram ali não apenas os explorados mais importantes, já que a parte principal da economia dependia de seu trabalho. Eram, sobretudo, a raça colonizada mais importante, já que os índios não formavam parte dessa sociedade colonial. Em

    conseqüência, os dominantes chamaram a si mesmos de brancos5.

    Na América, a idéia de raça foi uma maneira de outorgar legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista. A posterior constituição da Europa como nova id-entidade depois da América e a expansão do colonialismo europeu ao resto do mundo conduziram à elaboração da perspectiva eurocêntrica do conhecimento e com ela à elaboração teórica da idéia de raça como naturalização dessas relações coloniais de dominação entre europeus e não-europeus. Historicamente, isso significou uma nova maneira de legitimar as já antigas idéias e práticas de relações de superioridade/inferioridade entre dominantes e dominados. Desde então demonstrou ser o mais eficaz e durável instrumento de dominação social universal, pois dele passou a depender outro igualmente universal, no entanto mais antigo, o intersexual ou de gênero: os povos conquistados e dominados foram postos numa situação natural de inferioridade, e conseqüentemente também seus traços fenotípicos, bem como suas descobertas mentais e culturais6. Desse modo, raça converteu-se no primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial nos níveis, lugares e papéis na estrutura de poder da nova sociedade. Em outras palavras, no modo básico de classificação social universal da população mundial.


    O Capitalismo: a nova estrutura de controle do trabalho

    Por outro lado, no processo de constituição histórica da América, todas as formas de controle e de exploração do trabalho e de controle da produção-apropriação-distribuição de produtos foram articuladas em torno da relação capital-salário (de agora em diante capital) e do mercado mundial. Incluíram-se a escravidão, a servidão, a pequena produção mercantil, a reciprocidade e o salário. Em tal contexto, cada umas dessas formas de controle do trabalho não era uma mera extensão de seus antecedentes históricos. Todas eram histórica e sociologicamente novas. Em primeiro lugar, porque foram deliberadamente estabelecidas e organizadas para produzir mercadorias para o mercado mundial. Em segundo lugar, porque não existiam apenas de maneira simultânea no mesmo espaço/tempo, mas todas e cada uma articuladas com o capital e com seu mercado, e por esse meio entre si. Configuraram assim um novo padrão global de controle do trabalho, por sua vez um novo elemento fundamental de um novo padrão de poder, do qual eram conjunta e individualmente dependentes histórico-estruturalmente. Isto é, não apenas por seu lugar e função como partes subordinadas de uma totalidade, mas também porque sem perder suas respectivas características e sem prejuízo das descontinuidades de suas relações com a ordem conjunta e consigo mesmas, seu movimento histórico dependia desse momento em diante de seu pertencimento ao padrão global de poder. Em terceiro lugar, e como conseqüência, para preencher as novas funções cada uma delas desenvolveu novos traços e novas configurações histórico-estruturais.

    Na medida em que aquela estrutura de controle do trabalho, de recursos e de produtos consistia na articulação conjunta de todas as respectivas formas historicamente conhecidas, estabelecia-se, pela primeira vez na história conhecida, um padrão global de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos. E enquanto se constituía em torno de e em função do capital, seu caráter de conjunto também se estabelecia com característica capitalista. Desse modo, estabelecia-se uma nova, original e singular estrutura de relações de produção na experiência histórica do mundo: o capitalismo mundial.


    Colonialidade do poder e capitalismo mundial

    As novas identidades históricas produzidas sobre a idéia de raça foram associadas à natureza dos papéis e lugares na nova estrutura global de controle do trabalho. Assim, ambos os elementos, raça e divisão do trabalho, foram estruturalmente associados e reforçando-se mutuamente, apesar de que nenhum dos dois era necessariamente dependente do outro para existir ou para transformar-se.

    Desse modo, impôs-se uma sistemática divisão racial do trabalho. Na área hispânica, a Coroa de Castela logo decidiu pelo fim da escravidão dos índios, para impedir seu total extermínio. Assim, foram confinados na estrutura da servidão. Aos que viviam em suas comunidades, foi-lhes permitida a prática de sua antiga reciprocidade –isto é, o intercâmbio de força de trabalho e de trabalho sem mercado– como uma forma de reproduzir sua força de trabalho como servos. Em alguns casos, a nobreza indígena, uma reduzida minoria, foi eximida da servidão e recebeu um tratamento especial, devido a seus papéis como intermediária com a raça dominante, e lhe foi também permitido participar de alguns dos ofícios nos quais eram empregados os espanhóis que não pertenciam à nobreza. Por outro lado, os negros foram reduzidos à escravidão. Os espanhóis e os portugueses, como raça dominante, podiam receber salários, ser

    comerciantes independentes, artesãos independentes ou agricultores independentes, em suma, produtores independentes de mercadorias. Não obstante, apenas os nobres podiam ocupar os médios e altos postos da administração colonial, civil ou militar.

    Desde o século XVIII, na América hispânica muito dos mestiços de espanhóis ou mulheres índias, já um estrato social extenso e importante na sociedade colonial, começaram a ocupar os mesmos ofícios e atividades que exerciam os ibéricos que não eram nobres. Em menor medida ou sobretudo em atividades de serviço ou que requeriam talentos ou habilidades especiais (música, por exemplo), também os mais “abrancados” entre os mestiços de mulheres negras e ibéricos (espanhóis ou portugueses), mas demoraram a ver legitimados seus novos papéis, já que suas mães eram escravas. A distribuição racista do trabalho no interior do capitalismo colonial/moderno manteve-se ao longo de todo o período colonial.

    No curso da expansão mundial da dominação colonial por parte da mesma raça dominante –os brancos (ou do século XVIII em diante, os europeus)– foi imposto o mesmo critério de classificação social a toda a população mundial em escala global. Conseqüentemente, novas identidades históricas e sociais foram produzidas: amarelos e azeitonados (ou oliváceos) somaram-se a brancos, índios, negros e mestiços. Essa distribuição racista de novas identidades sociais foi combinada, tal como havia sido tão exitosamente logrado na América, com uma distribuição racista do trabalho e das formas de exploração do capitalismo colonial. Isso se expressou, sobretudo, numa quase exclusiva associação da branquitude social com o salário e logicamente com os postos de mando da administração colonial.

    Assim, cada forma de controle do trabalho esteve articulada com uma raça particular. Conseqüentemente, o controle de uma forma específica de trabalho podia ser ao mesmo tempo um controle de um grupo específico de gente dominada. Uma nova tecnologia de dominação/exploração, neste caso raça/trabalho, articulou-se de maneira que aparecesse como naturalmente associada, o que, até o momento, tem sido excepcionalmente bem-sucedido.


    Colonialidade e eurocentramento do capitalismo mundial

    A privilegiada posição ganhada com a América pelo controle do ouro, da prata e de outras mercadorias produzidas por meio do trabalho gratuito de índios, negros e mestiços, e sua vantajosa localização na vertente do Atlântico por onde, necessariamente, tinha de ser realizado o tráfico dessas mercadorias para o mercado mundial, outorgou aos brancos uma vantagem decisiva para disputar o controle do comércio mundial. A progressiva monetarização do mercado mundial que os metais preciosos da América estimulavam e permitiam, bem como o controle de tão abundantes recursos, possibilitou aos brancos o controle da vasta rede pré-existente de intercâmbio que incluía sobretudo China, Índia, Ceilão, Egito, Síria, os futuros Orientes Médio e Extremo. Isso também permitiu-lhes concentrar o controle do capital comercial, do trabalho e dos recursos de produção no conjunto do mercado mundial. E tudo isso, foi, posteriormente, reforçado e consolidado através da expansão e da dominação colonial branca sobre as diversas populações mundiais.

    Como se sabe, ou controle do tráfico comercial mundial pelos grupos dominantes, novos ou não, nas regiões do Atlântico onde tinham suas sedes, impulsionou um novo processo de urbanização nesses lugares, a expansão do tráfico comercial entre eles, e desse modo a formação de um mercado regional crescentemente integrado e monetarizado graças ao fluxo de metais preciosos procedentes da América. Uma região historicamente nova constituía-se como uma nova id-entidade geocultural: Europa, mais especificamente Europa Ocidental7. Essa nova id-entidade geocultural emergia como a sede central do controle do mercado mundial. No mesmo movimento histórico produzia-se também o deslocamento de hegemonia da costa do Mediterrâneo e da costa ibérica para as do Atlântico Norte-ocidental.

    Essa condição de sede central do novo mercado mundial não permite explicar por si mesma, ou por si só, por que a Europa se transformou também, até o século XIX e virtualmente até a crise mundial ocorrida em meados de 1870, na sede central do processo de mercantilização da força de trabalho, ou seja, do desenvolvimento da relação capital-salário como forma específica de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos. Em quanto isso, todas as demais regiões e populações incorporadas ao novo mercado mundial e colonizadas ou em curso de colonização sob domínio europeu permaneciam basicamente sob relações não-salariais de trabalho, ainda que desde cedo esse trabalho, seus recursos e seus produtos se tenham articulado numa cadeia de transferência de valor e de benefícios cujo controle cabia à Europa Ocidental. Nas regiões não-européias, o trabalho assalariado concentrava-se quase exclusivamente entre os brancos.

    Não há nada na relação social mesma do capital, ou nos mecanismos do mercado mundial, em geral no capitalismo, que implique a necessidade histórica da concentração, não só, mas sobretudo na Europa, do trabalho assalariado e depois, precisamente sobre essa base, da concentração da produção industrial capitalista durante mais de dois séculos. Teria sido perfeitamente factível, como o demonstra o fato de que assim de fato ocorreu após 1870, o controle europeu-ocidental do trabalho assalariado de qualquer setor da população mundial. E provavelmente mais benéfico para os europeus ocidentais. A explicação deve ser, pois, buscada em outra parte da história. O fato é que já desde o começo da América, os futuros europeus associaram o trabalho não pago ou não-assalariado com as raças dominadas, porque eram raças inferiores. O vasto genocídio dos índios nas primeiras décadas da colonização não foi causado principalmente pela violência da conquista, nem pelas enfermidades que os conquistadores trouxeram em seu corpo, mas porque tais índios foram usados como mão de obra descartável, forçados a trabalhar até morrer. A eliminação dessa prática colonial não termina, de fato, senão com a derrota dos encomendeiros, em meados do século XVI. A reorganização política do colonialismo ibérico que se seguiu implicou uma nova política de reorganização populacional dos índios e de suas relações com os colonizadores. Mas nem por isso os índios foram daí em diante trabalhadores livres e assalariados. Daí em diante foram adscritos à servidão não remunerada. A servidão dos índios na América não pode ser, por outro lado, simplesmente equiparada à servidão no feudalismo europeu, já que não incluía a suposta proteção de nenhum senhor feudal, nem sempre, nem necessariamente, a posse de uma porção de terra para cultivar, no lugar de salário. Sobretudo antes da Independência, a reprodução da força de trabalho do servo índio se fazia nas comunidades. Mas mesmo mais de cem anos depois da Independência, uma parte ampla da servidão indígena era obrigada a reproduzir sua força de trabalho por sua própria conta8. E a outra forma de trabalho não-assalariado, o não pago simplesmente, o trabalho escravo, foi restrita, exclusivamente, à população trazida da futura Africa e chamada de negra.

    A classificação racial da população e a velha associação das novas identidades raciais dos colonizados com as formas de controle não pago, não assalariado, do trabalho, desenvolveu entre os europeus ou brancos a específica percepção de que o trabalho pago era privilégio dos brancos. A inferioridade racial dos colonizados implicava que não eram dignos do pagamento de salário. Estavam naturalmente obrigados a trabalhar em benefício de seus amos. Não é muito difícil encontrar, ainda hoje, essa mesma atitude entre os terratenentes brancos de qualquer lugar do mundo. E o menor salário das raças inferiores pelo mesmo trabalho dos brancos, nos atuais centros capitalistas, não poderia ser, tampouco, explicado sem recorrer-se à classificação social racista da população do mundo. Em outras palavras, separadamente da colonialidade do poder capitalista mundial.

    O controle do trabalho no novo padrão de poder mundial constituiu-se, assim, articulando todas as formas históricas de controle do trabalho em torno da relação capital-trabalho assalariado, e desse modo sob o domínio desta. Mas tal articulação foi constitutivamente colonial, pois se baseou, primeiro, na adscrição de todas as formas de trabalho não remunerado às raças colonizadas, originalmente índios, negros e de modo mais complexo, os mestiços, na América e mais tarde às demais raças colonizadas no resto do mundo, oliváceos e amarelos. E, segundo, na adscrição do trabalho pago, assalariado, à raça colonizadora, os brancos.

    Essa colonialidade do controle do trabalho determinou a distribuição geográfica de cada uma das formas integradas no capitalismo mundial. Em outras palavras, determinou a geografia social do capitalismo: o capital, na relação social de controle do trabalho assalariado, era o eixo em torno do qual se articulavam todas as demais formas de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos. Isso o tornava dominante sobre todas elas e dava caráter capitalista ao conjunto de tal estrutura de controle do trabalho. Mas ao mesmo tempo, essa relação social específica foi geograficamente concentrada na Europa, sobretudo, e socialmente entre os europeus em todo o mundo do capitalismo. E nessa medida e dessa maneira, a Europa e o europeu se constituíram no centro do mundo capitalista.

    Quando Raúl Prebisch criou a célebre imagem de “Centro-Periferia” (The American Economic Review, 1959; ECLA, 1960; Baer, 1962), para descrever a configuração mundial do capitalismo depois da Segunda Guerra Mundial, apontou, sabendo-o ou sem saber, o núcleo principal do caráter histórico do padrão de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos, que formava parte central do novo padrão mundial de poder constituído a partir da América. O capitalismo mundial foi, desde o início, colonial/moderno e eurocentrado. Sem relação clara com essas específicas características históricas do capitalismo, o próprio conceito de “moderno sistema-mundo” desenvolvido, principalmente, por Immanuel Wallerstein (1974-1989; Hopkins e Wallerstein, 1982) a partir de Prebisch e do conceito marxiano de capitalismo mundial, não poderia ser apropriada e plenamente entendido.

    Novo padrão de poder mundial e nova inter-subjetividade mundial

    Já em sua condição de centro do capitalismo mundial, a Europa não somente tinha o controle do mercado mundial, mas pôde impor seu domínio colonial sobre todas as regiões e populações do planeta, incorporando-as ao “sistema-mundo” que assim se constituía, e a seu padrão específico de poder. Para tais regiões e populações, isso implicou um processo de re-identificação histórica, pois da Europa foram-lhes atribuídas novas identidades geoculturais. Desse modo, depois da América e da Europa, foram estabelecidas África, Ásia e eventualmente Oceania. Na produção dessas novas identidades, a colonialidade do novo padrão de poder foi, sem dúvida, uma das mais ativas determinações. Mas as formas e o nível de desenvolvimento político e cultural, mais especificamente intelectual, em cada caso, desempenharam também um papel de primeiro plano. Sem esses fatores, a categoria Oriente não teria sido elaborada como a única com a dignidade suficiente para ser o Outro, ainda que por definição inferior, de Ocidente, sem que alguma equivalente fosse criada para índios ou negros9. Mas esta mesma omissão põe a nu que esses outros fatores atuaram também dentro do padrão racista de classificação social universal da população mundial.

    A incorporação de tão diversas e heterogêneas histórias culturais a um único mundo dominado pela Europa, significou para esse mundo uma configuração cultural, intelectual, em suma intersubjetiva, equivalente à articulação de todas as formas de controle do trabalho em torno do capital, para estabelecer o capitalismo mundial. Com efeito, todas as experiências, histórias, recursos e produtos culturais terminaram também articulados numa só ordem cultural global em torno da hegemonia européia ou ocidental. Em outras palavras, como parte do novo padrão de poder mundial, a Europa também concentrou sob sua hegemonia o controle de todas as formas de controle da subjetividade, da cultura, e em especial do conhecimento, da produção do conhecimento.

    No processo que levou a esse resultado, os colonizadores exerceram diversas operações que dão conta das condições que levaram à configuração de um novo universo de relações intersubjetivas de dominação entre a Europa e o europeu e as demais regiões e populações do mundo, às quais estavam sendo atribuídas, no mesmo processo, novas identidades geoculturais. Em primeiro lugar, expropriaram as populações colonizadas –entre seus descobrimentos culturais– aqueles que resultavam mais aptos para o desenvolvimento do capitalismo e em benefício do centro europeu. Em segundo lugar, reprimiram tanto como puderam, ou seja, em variáveis medidas de acordo com os casos, as formas de produção de conhecimento dos colonizados, seus padrões de produção de sentidos, seu universo simbólico, seus padrões de expressão e de objetivação da subjetividade. A repressão neste campo foi reconhecidamente mais violenta, profunda e duradoura entre os índios da América ibérica, a que condenaram a ser uma subcultura camponesa, iletrada, despojando-os de sua herança intelectual objetivada. Algo equivalente ocorreu na África. Sem dúvida muito menor foi a repressão no caso da Ásia, onde portanto uma parte importante da história e da herança intelectual, escrita, pôde ser preservada. E foi isso, precisamente, o que deu origem à categoria de Oriente. Em terceiro lugar, forçaram –também em medidas variáveis em cada caso– os colonizados a aprender parcialmente a cultura dos dominadores em tudo que fosse útil para a reprodução da dominação, seja no campo da atividade material, tecnológica, como da subjetiva, especialmente religiosa. É este o caso da religiosidade judaico-cristã. Todo esse acidentado processo implicou no longo prazo uma colonização das perspectivas cognitivas, dos modos de produzir ou outorgar sentido aos resultados da experiência material ou intersubjetiva, do imaginário, do universo de relações intersubjetivas do mundo; em suma, da cultura10.

    Enfim, o êxito da Europa Ocidental em transformar-se no centro do moderno sistema-mundo, segundo a apta formulação de Wallerstein, desenvolveu nos europeus um traço comum a todos os dominadores coloniais e imperiais da história, o etnocentrismo. Mas no caso europeu esse traço tinha um fundamento e uma justificação peculiar: a classificação racial da população do mundo depois da América. A associação entre ambos os fenômenos, o etnocentrismo colonial e a classificação racial universal, ajudam a explicar por que os europeus foram levados a sentir-se não só superiores a todos os demais povos do mundo, mas, além disso, naturalmente superiores. Essa instância histórica expressou-se numa operação mental de fundamental importância para todo o padrão de poder mundial, sobretudo com respeito às relações intersubjetivas que lhe são hegemônicas e em especial de sua perspectiva de conhecimento: os europeus geraram uma nova perspectiva temporal da história e re-situaram os povos colonizados, bem como a suas respectivas histórias e culturas, no passado de uma trajetória histórica cuja culminação era a Europa (Mignolo, 1995; Blaut, 1993; Lander, 1997). Porém, notavelmente, não numa mesma linha de continuidade com os europeus, mas em

    outra categoria naturalmente diferente. Os povos colonizados eram raças inferiores e –portanto– anteriores

    aos europeus.

    De acordo com essa perspectiva, a modernidade e a racionalidade foram imaginadas como experiências e produtos exclusivamente europeus. Desse ponto de vista, as relações intersubjetivas e culturais entre a Europa, ou, melhor dizendo, a Europa Ocidental, e o restante do mundo, foram codificadas num jogo inteiro de novas categorias: Oriente-Ocidente, primitivo-civilizado, mágico/mítico- científico, irracional-racional, tradicional-moderno. Em suma, Europa e não-Europa. Mesmo assim, a única categoria com a devida honra de ser reconhecida como o Outro da Europa ou “Ocidente”, foi “Oriente”. Não os “índios” da América, tampouco os “negros” da África. Estes eran simplesmente “primitivos”. Sob essa codificação das relações entre europeu/não-europeu, raça é, sem dúvida, a categoria básica 11. Essa perspectiva binária, dualista, de conhecimento, peculiar ao eurocentrismo, impôs-se como mundialmente hegemônica no mesmo fluxo da expansão do domínio colonial da Europa sobre o mundo. Não seria possível explicar de outro modo, satisfatoriamente em todo caso, a elaboração do eurocentrismo como perspectiva hegemônica de conhecimento, da versão eurocêntrica da modernidade e seus dois principais mitos fundacionais: um, a idéia-imagem da história da civilização humana como uma trajetória que parte de um estado de natureza e culmina na Europa. E dois, outorgar sentido às diferenças entre Europa e não- Europa como diferenças de natureza (racial) e não de história do poder. Ambos os mitos podem ser reconhecidos, inequivocamente, no fundamento do evolucionismo e do dualismo, dois dos elementos nucleares do eurocentrismo.


    A questão da modernidade

    Não me proponho aqui a entrar numa discussão detida da questão da modernidade e de sua versão eurocêntrica. Dediquei anteriormente outros estudos a esse tema e voltarei a ele depois. Em particular, não prolongarei este trabalho com uma discussão acerca do debate modernidade-pós-modernidade e sua vasta bibliografia. Mas é pertinente, para os fins deste trabalho, em especial da parte seguinte, insistir em algumas questões (Quijano, 1988b; 1992a; 1998a).

    O fato de que os europeus ocidentais imaginaram ser a culminação de uma trajetória civilizatória desde um estado de natureza, levou-os também a pensar-se como os modernos da humanidade e de sua história, isto é, como o novo e ao mesmo tempo o mais avançado da espécie. Mas já que ao mesmo tempo atribuíam ao restante da espécie o pertencimento a uma categoria, por natureza, inferior e por isso anterior, isto é, o passado no processo da espécie, os europeus imaginaram também serem não apenas os portadores exclusivos de tal modernidade, mas igualmente seus exclusivos criadores e protagonistas. O notável disso não é que os europeus se imaginaram e pensaram a si mesmos e ao restante da espécie desse modo –isso não é um privilégio dos europeus– mas o fato de que foram capazes de difundir e de estabelecer essa perspectiva histórica como hegemônica dentro do novo universo intersubjetivo do padrão mundial do poder.

    Desde logo, a resistência intelectual a essa perspectiva histórica não tardou em emergir. Na América Latina, desde fins do século XIX, mas se afirmou sobretudo durante o século XX e em especial depois da Segunda Guerra Mundial, vinculada com o debate sobre a questão do desenvolvimento-subdesenvolvimento. Como esse debate foi dominado durante um bom tempo pela denominada teoria da modernização12, em suas vertentes opostas, para sustentar que a modernização não implica necessariamente a ocidentalização das sociedades e das culturas não-européias, um dos argumentos mais usados foi o de que a modernidade é um fenômeno de todas as culturas, não apenas da européia ou ocidental.

    Se o conceito de modernidade refere-se única ou fundamentalmente às idéias de novidade, do avançado, do racional-científico, laico, secular, que são as idéias e experiências normalmente associadas a esse conceito, não cabe dúvida de que é necessário admitir que é um fenômeno possível em todas as culturas e em todas as épocas históricas. Com todas as suas respectivas particularidades e diferenças, todas as chamadas altas culturas (China, Índia, Egito, Grécia, Maia-Asteca, Tauantinsuio) anteriores ao atual sistema- mundo, mostram inequivocamente os sinais dessa modernidade, incluído o racional científico, a secularização do pensamento, etc. Na verdade, a estas alturas da pesquisa histórica seria quase ridículo atribuir às altas culturas não-européias uma mentalidade mítico-mágica como traço definidor, por exemplo, em oposição à racionalidade e à ciência como características da Europa, pois além dos possíveis ou melhor conjecturados conteúdos simbólicos, as cidades, os templos e palácios, as pirâmides, ou as cidades monumentais, seja Machu Pichu ou Boro Budur, as irrigações, as grandes vias de transporte, as tecnologias metalíferas, agropecuárias, as matemáticas, os calendários, a escritura, a filosofia, as histórias, as armas e

    as guerras, mostram o desenvolvimento científico e tecnológico em cada uma de tais altas culturas, desde muito antes da formação da Europa como nova id-entidade. O mais que realmente se pode dizer é que, no atual período, foi-se mais longe no desenvolvimento científico-tecnológico e se realizaram maiores descobrimentos e realizações, com o papel hegemônico da Europa e, em geral, do Ocidente.

    Os defensores da patente européia da modernidade costumam apelar para história cultural do antigo mundo heleno-românico e ao mundo do Mediterrâneo antes da América, para legitimar sua defesa da exclusividade dessa patente. O que é curioso desse argumento é que escamoteia, primeiro, o fato de que a parte realmente avançada desse mundo do Mediterrâneo, antes das América, área por área dessa modernidade, era islâmico-judaica. Segundo, que foi dentro desse mundo que se manteve a herança cultural greco-romana, as cidades, o comércio, a agricultura comercial, a mineração, os têxteis, a filosofia, a história, quando a futura Europa Ocidental estava dominada pelo feudalismo e seu obscurantismo cultural. Terceiro que, muito provavelmente, a mercantilização da força de trabalho, a relação capital-salário, emergiu, precisamente, nessa área e foi em seu desenvolvimento que se expandiu posteriormente em direção ao norte da futura Europa. Quarto, que somente a partir da derrota do Islão e do posterior deslocamento da hegemonia sobre o mercado mundial para o centro-norte da futura Europa, graças à América, começa também a deslocar-se ao centro da atividade cultural a essa nova região. Por isso, a nova perspectiva geográfica da história e da cultura, que ali é elaborada e que se impõe como mundialmente hegemônica, implica, obviamente, uma nova geografia do poder. A própria idéia de Ocidente-Oriente é tardia e parte da hegemonia britânica. Ou ainda é necessário recordar que o meridiano de Greenwich atravessa Londres e não Sevilha ou Veneza?13.

    Nesse sentido, a pretensão eurocêntrica de ser a exclusiva produtora e protagonista da modernidade, e de que toda modernização de populações não-européias é, portanto, uma europeização, é uma pretensão etnocentrista e além de tudo provinciana. Porém, por outro lado, se se admite que o conceito de modernidade se refere somente à racionalidade, à ciência, à tecnologia, etc., a questão que estaríamos colocando à experiência histórica não seria diferente da proposta pelo etnocentrismo europeu, o debate consistiria apenas na disputa pela originalidade e pela exclusividade da propriedade do fenômeno assim chamado modernidade, e, em conseqüência, movendo-se no mesmo terreno e com a mesma perspectiva do eurocentrismo.

    Há, contudo, um conjunto de elementos demonstráveis que apontam para um conceito de modernidade diferente, que dá conta de um processo histórico específico ao atual sistema-mundo. Nesse conceito não estão, obviamente, ausentes suas referencias e seus traços anteriores. Porém mais enquanto formam parte de um universo de relações sociais, materiais e intersubjetivas, cuja questão central é a libertação humana como interesse histórico da sociedade e também, em conseqüência, seu campo central de conflito. Nos limites deste trabalho, restringir-me-ei somente a adiantar, de modo breve e esquemático, algumas proposições14.

    Em primeiro lugar, o atual padrão de poder mundial é o primeiro efetivamente global da história conhecida. Em vários sentidos específicos. Um, é o primeiro em que cada um dos âmbitos da existência social estão articuladas todas as formas historicamente conhecidas de controle das relações sociais correspondentes, configurando em cada área um única estrutura com relações sistemáticas entre seus componentes e do mesmo modo em seu conjunto. Dois, é o primeiro em que cada uma dessas estruturas de cada âmbito de existência social, está sob a hegemonia de uma instituição produzida dentro do processo de formação e desenvolvimento deste mesmo padrão de poder. Assim, no controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos, está a empresa capitalista; no controle do sexo, de seus recursos e produtos, a família burguesa; no controle da autoridade, seus recursos e produtos, o Estado-nação; no controle da intersubjetividade, o eurocentrismo15. Três, cada uma dessas instituições existe em relações de interdependência com cada uma das outras. Por isso o padrão de poder está configurado como um sistema16. Quatro, finalmente, este padrão de poder mundial é o primeiro que cobre a totalidade da população do planeta.

    Nesse sentido específico, a humanidade atual em seu conjunto constitui o primeiro sistema-mundo global historicamente conhecido, não somente um mundo como o que talvez tenham sido o chinês, o hindu, o egípcio, o helênico-romano, o maia-asteca ou o tauantinsuiano. Nenhum desses possíveis mundos teve nada em comum exceto um dominador colonial/imperial e, apesar de que assim se propõe da visão colonial eurocêntrica, não se sabe se todos os povos incorporados a um daqueles mundos tiveram também em comum uma perspectiva básica a respeito das relações entre o humano e o restante do universo. Os dominadores coloniais de cada um desses mundos não tinham as condições, nem provavelmente o interesse, de homogeneizar as formas básicas de existência social de todas as populações de seus

    domínios. Por outro lado, o atual, o que começou a formar-se com a América, tem em comum três elementos centrais que afetam a vida cotidiana da totalidade da população mundial: a colonialidade do poder, o capitalismo e o eurocentrismo. Claro que este padrão de poder, nem nenhum outro, pode implicar que a heterogeneidade histórico-estrutural tenha sido erradicada dentro de seus domínios. O que sua globalidade implica é um piso básico de práticas sociais comuns para todo o mundo, e uma esfera intersubjetiva que existe e atua como esfera central de orientação valorativa do conjunto. Por isso as instituições hegemônicas de cada âmbito de existência social, são universais para a população do mundo como modelos intersubjetivos. Assim, o Estado-nação, a família burguesa, a empresa, a racionalidade eurocêntrica.

    Portanto, seja o que for a mentira contida no termo “modernidade”, hoje envolve o conjunto da população mundial e toda sua história dos últimos 500 anos, e todos os mundos ou ex-mundos articulados no padrão global de poder, e cada um de seus segmentos diferenciados ou diferenciáveis, pois se constituiu junto com, como parte da redefinição ou reconstituição histórica de cada um deles por sua incorporação ao novo e comum padrão de poder mundial. Portanto, também como articulação de muitas racionalidades. Em outras palavras, já que se trata de uma história nova e diferente, com experiências específicas, as questões que esta história permite e obriga a abrir não podem ser indagadas, muito menos contestadas, com o conceito eurocêntrico de modernidade. Pela mesma razão, dizer que é um fenômeno puramente europeu ou que ocorre em todas as culturas, teria hoje um impossível sentido. Trata-se de algo novo e diferente, específico deste padrão de poder mundial. Se há que preservar o nome, deve tratar-se, de qualquer modo, de outra modernidade.

    A questão central que nos interessa aqui é a seguinte: o que é o realmente novo com relação à modernidade? Não somente o que desenvolve e redefine experiências, tendências e processos de outros mundos, mas o que foi produzido na história própria do atual padrão de poder mundial?

    Dussel (1995) propôs a categoria de transmodernidade como alternativa para a pretensão eurocêntrica de que a Europa é a produtora original da modernidade. Segundo essa proposta, a constituição do ego individual diferenciado é a novidade que ocorre com a América e é a marca da modernidade, mas tem lugar não só na Europa mas em todo o mundo que se configura a partir da América. Dussel acerta no alvo ao refutar um dos mitos prediletos do eurocentrismo. Mas é controverso que o ego individual diferenciado seja um fenômeno exclusivamente pertencente ao período iniciado com a América.

    Há, claro, uma relação umbilical entre os processos históricos que se geram a partir da América e as mudanças da subjetividade ou, melhor dito, da intersubjetividade de todos os povos que se vão integrando no novo padrão de poder mundial. E essas transformações levam à constituição de uma nova subjetividade, não só individual, mas coletiva, de uma nova intersubjetividade. Esse é, portanto, um fenômeno novo que ingressa na história com a América e nesse sentido faz parte da modernidade. Mas quaisquer que fossem, essas mudanças não se constituem da subjetividade individual, nem coletiva, do mundo pré-existente, voltada para si mesma, ou, para repetir a velha imagem, essas mudanças não nascem como Minerva, da cabeça de Zeus, mas são a expressão subjetiva ou intersubjetiva do que os povos do mundo estão fazendo nesse momento.

    Dessa perspectiva, é necessário admitir que a América e suas conseqüências imediatas no mercado mundial e na formação de um novo padrão de poder mundial, são uma mudança histórica verdadeiramente enorme e que não afeta somente a Europa, mas o conjunto do mundo. Não se trata de mudanças dentro do mundo conhecido, que não alteram senão alguns de seus traços. Trata-se da mudança do mundo como tal. Este é, sem dúvida, o elemento básico da nova subjetividade: a percepção da mudança histórica. É esse elemento o que desencadeia o processo de constituição de uma nova perspectiva sobre o tempo e sobre a história. A percepção da mudança leva à idéia do futuro, já que é o único território do tempo no qual podem ocorrer as mudanças. O futuro é um território temporal aberto. O tempo pode ser novo, pois não é somente a extensão do passado. E, dessa maneira, a história pode ser percebida já não só como algo que ocorre, seja como algo natural ou produzido por decisões divinas ou misteriosas como o destino, mas como algo que pode ser produzido pela ação das pessoas, por seus cálculos, suas intenções, suas decisões, portanto como algo que pode ser projetado e, conseqüentemente, ter sentido (Quijano, 1988b).

    Com a América inicia-se, assim, todo um universo de novas relações materiais e intersubjetivas. É pertinente, por tudo isso, admitir que o conceito de modernidade não se refere somente ao que ocorre com a subjetividade, não obstante toda a tremenda importância desse processo, seja pela emergência do ego individual, ou de um novo universo de relações intersubjetivas entre os indivíduos e entre os povos integrados ou que se integram no novo sistema-mundo e seu específico padrão de poder mundial. O conceito de modernidade dá conta, do mesmo modo, das alterações na dimensão material das relações sociais. Quer

    dizer, as mudanças ocorrem em todos os âmbitos da existência social dos povos, e portanto de seus membros individuais, tanto na dimensão material como na dimensão subjetiva dessas relações. E como se trata de processos que se iniciam com a constituição da América, de um novo padrão de poder mundial e da integração dos povos de todo o mundo nesse processo, de todo um complexo sistema-mundo, é também imprescindível admitir que se trata de um período histórico inteiro. Em outras palavras, a partir da América um novo espaço/tempo se constitui, material e subjetivamente: essa é a mentira do conceito de modernidade.

    Não obstante, foi decisivo para o processo de modernidade que o centro hegemônico desse mundo estivesse localizado na zona centro-norte da Europa Ocidental. Isso ajuda a explicar por que o centro de elaboração intelectual desse processo se localizará também ali, e por que essa versão foi a que ganhou a hegemonia mundial. Ajuda igualmente a explicar por que a colonialidade do poder desempenhará um papel de primeira ordem nessa elaboração eurocêntrica da modernidade. Este último não é muito difícil de perceber se se leva em consideração o que já foi demonstrado antes, o modo como a colonialidade do poder está vinculada com a concentração na Europa do capital, dos assalariados, do mercado de capital, enfim, da sociedade e da cultura associadas a essas determinações. Nesse sentido, a modernidade foi também colonial desde seu ponto de partida. Mas ajuda também a entender por que foi na Europa muito mais direto e imediato o impacto do processo mundial de modernização.

    Com efeito, as novas práticas sociais implicadas no padrão de poder mundial, capitalista, a concentração do capital e dos assalariados, o novo mercado de capital, tudo isso associado à nova perspectiva sobre o tempo e sobre a história, à centralidade da questão da mudança histórica nessa perspectiva, como experiência e como idéia, requerem, necessariamente, a dessacralização das hierarquias e das autoridades, tanto na dimensão material das relações sociais como em sua intersubjetividade; a dessacralização, a mudança ou o desmantelamento das correspondentes estruturas e instituições. A individualização das pessoas só adquire seu sentido nesse contexto, a necessidade de um foro próprio para pensar, para duvidar, para decidir; a liberdade individual, em suma, contra as adscrições sociais fixadas e em conseqüência a necessidade de igualdade social entre os indivíduos.

    As determinações capitalistas, contudo, exigiam também, e no mesmo movimento histórico, que esses processos sociais, materiais e intersubjetivos, não tivessem lugar exceto dentro de relações sociais de exploração e de dominação. Conseqüentemente, como um campo de conflitos pela orientação, isto é, os fins, os meios e os limites desses processos. Para os controladores do poder, o controle do capital e do mercado eram e são os que decidem os fins, os meios e os limites do processo. O mercado é o mínimo, mas também o limite da possível igualdade social entre as pessoas. Para os explorados do capital e em geral para os dominados do padrão de poder, a modernidade gerou um horizonte de libertação das pessoas de toda relação, estrutura ou instituição vinculada com a dominação e a exploração, mas também as condições sociais para avançar em direção a esse horizonte. A modernidade é, assim, também uma questão de conflito de interesses sociais. Um deles é a contínua democratização da existência social das pessoas. Nesse sentido, todo conceito de modernidade é necessariamente ambíguo e contraditório (Quijano, 1998a; 2000a).

    É ali, precisamente, onde a história desses processos diferencia tão claramente a Europa Ocidental e o resto do mundo, no caso a América Latina. Na Europa Ocidental, a concentração da relação capital-salário é o eixo principal das tendências das relações de classificação social e da correspondente estrutura de poder. Isso subjaz aos enfrentamentos com a antiga ordem, com o Império, com o Papado, durante o período do chamado capital competitivo. Esses enfrentamentos permitem aos setores não dominantes do capital –bem como aos explorados– melhores condições de negociar seu lugar no poder e a venda de sua força de trabalho. Por outro lado, abre também condições para uma secularização especificamente burguesa da cultura e da subjetividade. O liberalismo é uma das claras expressões desse contexto material e subjetivo da sociedade na Europa Ocidental. Já no resto do mundo, na América Latina em particular, as formas mais estendidas de controle do trabalho são não-salariais, ainda que em benefício global do capital, o que implica que as relações de exploração e de dominação têm caráter colonial. A independência política, desde inícios do século XIX, está acompanhada na maioria dos novos países pelo estancamento e retrocesso do capital e fortalece o caráter colonial da dominação social e política sob Estados formalmente independentes. O eurocentramento do capitalismo colonial/moderno, foi nesse sentido decisivo para o destino diferente do processo da modernidade entre a Europa e o resto do mundo (Quijano, 1988b; 1994).

  2. Colonialidade do poder e eurocentrismo

    A elaboração intelectual do processo de modernidade produziu uma perspectiva de conhecimento e um modo de produzir conhecimento que demonstram o caráter do padrão mundial de poder: colonial/moderno, capitalista e eurocentrado. Essa perspectiva e modo concreto de produzir conhecimento se reconhecem como eurocentrismo17.

    Eurocentrismo é, aqui, o nome de uma perspectiva de conhecimento cuja elaboração sistemática começou na Europa Ocidental antes de mediados do século XVII, ainda que algumas de suas raízes são sem dúvida mais velhas, ou mesmo antigas, e que nos séculos seguintes se tornou mundialmente hegemônica percorrendo o mesmo fluxo do domínio da Europa burguesa. Sua constituição ocorreu associada à específica secularização burguesa do pensamento europeu e à experiência e às necessidades do padrão mundial de poder capitalista, colonial/moderno, eurocentrado, estabelecido a partir da América.

    Não se trata, em conseqüência, de uma categoria que implica toda a história cognoscitiva em toda a Europa, nem na Europa Ocidental em particular. Em outras palavras, não se refere a todos os modos de conhecer de todos os europeus e em todas as épocas, mas a uma específica racionalidade ou perspectiva de conhecimento que se torna mundialmente hegemônica colonizando e sobrepondo-se a todas as demais, prévias ou diferentes, e a seus respectivos saberes concretos, tanto na Europa como no resto do mundo. No âmbito deste trabalho, proponho-me a discutir algumas de suas questões mais diretamente vinculadas com a experiência histórica da América Latina, mas que, obviamente, não se referem somente a ela.


    Capital e capitalismo

    Antes que mais nada, a teoria de uma seqüência histórica unilinear e universalmente válida entre as formas conhecidas de trabalho e de controle do trabalho, que foram também conceitualizadas como relações ou modos de produção, especialmente entre capital e pré-capital, precisa ser, em todo caso com respeito à América, aberta de novo como questão maior do debate científico-social contemporâneo.

    Do ponto de vista eurocêntrico, reciprocidade, escravidão, servidão e produção mercantil independente são todas percebidas como uma seqüência histórica prévia à mercantilização da força de trabalho. São pré- capital. E são consideradas não só como diferentes mas como radicalmente incompatíveis com o capital. O fato é, contudo, que na América elas não emergiram numa seqüência histórica unilinear; nenhuma delas foi uma mera extensão de antigas formas pré-capitalistas, nem foram tampouco incompatíveis com o capital.

    Na América a escravidão foi deliberadamente estabelecida e organizada como mercadoria para produzir mercadorias para o mercado mundial e, desse modo, para servir aos propósitos e necessidades do capitalismo. Do mesmo modo, a servidão imposta aos índios, inclusive a redefinição das instituições da reciprocidade, para servir os mesmos fins, isto é, para produzir mercadorias para o mercado mundial. E enfim, a produção mercantil independente foi estabelecida e expandida para os mesmos propósitos.

    Isso significa que todas essas formas de trabalho e de controle do trabalho na América não só atuavam simultaneamente, mas foram articuladas em torno do eixo do capital e do mercado mundial. Conseqüentemente, foram parte de um novo padrão de organização e de controle do trabalho em todas as suas formas historicamente conhecidas, juntas e em torno do capital. Juntas configuraram um novo sistema: o capitalismo.

    O capital, como relação social baseada na mercantilização da força de trabalho, nasceu provavelmente em algum momento por volta dos séculos XI-XII, em algum lugar na região meridional das penínsulas ibérica e/ou itálica e conseqüentemente, e por conhecidas razões, no mundo islâmico. É pois bastante mais antigo que a América. Mas antes da emergência da América, não está em nenhum lugar estruturalmente articulado com todas as demais formas de organização e controle da força de trabalho e do trabalho, nem tampouco era ainda predominante em relação a nenhuma delas. Só com a América pôde o capital consolidar-se e obter predominância mundial, tornando-se precisamente o eixo em torno do qual todas as demais formas foram articuladas para os fins do mercado mundial. Somente desse modo o capital transformou-se no modo de produção dominante. Assim, o capital existiu muito tempo antes que a América. Contudo, o capitalismo como sistema de relações de produção, isto é, a heterogênea engrenagem de todas as formas de controle do trabalho e de seus produtos sob o domínio do capital, no que dali em diante consistiu a economia mundial e seu mercado, constituiu-se na história apenas com a emergência da América. A partir desse momento, o capital sempre existiu e continua existindo hoje em dia só como o eixo central do capitalismo, não de maneira separada, muito menos isolada. Nunca foi predominante de outro modo, em escala mundial e global, e com

    toda probabilidade não teria podido desenvolver-se de outro modo.


    Evolucionismo e dualismo

    Como no caso das relações entre capital e pré-capital, uma linha similar de idéias foi elaborada acerca das relações entre Europa e não-Europa. Como já foi apontado, o mito fundacional da versão eurocêntrica da modernidade é a idéia do estado de natureza como ponto de partida do curso civilizatório cuja culminação é a civilização européia ou ocidental. Desse mito se origina a especificamente eurocêntrica perspectiva evolucionista, de movimento e de mudança unilinear e unidirecional da história humana. Tal mito foi associado com a classificação racial da população do mundo. Essa associação produziu uma visão na qual se amalgamam, paradoxalmente, evolucionismo e dualismo. Essa visão só adquire sentido como expressão do exacerbado etnocentrismo da recém constituída Europa, por seu lugar central e dominante no capitalismo mundial colonial/moderno, da vigência nova das idéias mitificadas de humanidade e de progresso, inseparáveis produtos da Ilustração, e da vigência da idéia de raça como critério básico de classificação social universal da população do mundo.

    A história é, contudo, muito distinta. Por um lado, no momento em que os ibéricos conquistaram, nomearam e colonizaram a América (cuja região norte ou América do Norte, colonizarão os britânicos um século mais tarde), encontraram um grande número de diferentes povos, cada um com sua própria história, linguagem, descobrimentos e produtos culturais, memória e identidade. São conhecidos os nomes dos mais desenvolvidos e sofisticados deles: astecas, maias, chimus, aimarás, incas, chibchas, etc. Trezentos anos mais tarde todos eles reduziam-se a uma única identidade: índios. Esta nova identidade era racial, colonial e negativa. Assim também sucedeu com os povos trazidos forçadamente da futura África como escravos: achantes, iorubás, zulus, congos, bacongos, etc. No lapso de trezentos anos, todos eles não eram outra coisa além de negros.

    Esse resultado da história do poder colonial teve duas implicações decisivas. A primeira é óbvia: todos aqueles povos foram despojados de suas próprias e singulares identidades históricas. A segunda é, talvez, menos óbvia, mas não é menos decisiva: sua nova identidade racial, colonial e negativa, implicava o despojo de seu lugar na história da produção cultural da humanidade. Daí em diante não seriam nada mais que raças inferiores, capazes somente de produzir culturas inferiores. Implicava também sua relocalização no novo tempo histórico constituído com a América primeiro e com a Europa depois: desse momento em diante passaram a ser o passado. Em outras palavras, o padrão de poder baseado na colonialidade implicava também um padrão cognitivo, uma nova perspectiva de conhecimento dentro da qual o não-europeu era o passado e desse modo inferior, sempre primitivo.

    Por outro lado, a primeira identidade geocultural moderna e mundial foi a América. A Europa foi a segunda e foi constituída como conseqüência da América, não o inverso. A constituição da Europa como nova entidade/identidade histórica fez-se possível, em primeiro lugar, com o trabalho gratuito dos índios, negros e mestiços da América, com sua avançada tecnologia na mineração e na agricultura, e com seus respectivos produtos, o ouro, a prata, a batata, o tomate, o tabaco, etc., etc. (Viola e Margolis, 1991). Porque foi sobre essa base que se configurou uma região como sede do controle das rotas atlânticas, por sua vez convertidas, precisamente sobre essa mesma base, nas rotas decisivas do mercado mundial. Essa região não tardou em emergir como Europa. América e Europa produziram-se historicamente, assim, mutuamente, como as duas primeiras novas identidades geoculturais do mundo moderno.

    Contudo, os europeus persuadiram-se a si mesmos, desde meados do século XVII, mas sobretudo durante o século XVIII, não só de que de algum modo se tinham autoproduzido a si mesmos como civilização, à margem da história iniciada com a América, culminando uma linha independente que começava com a Grécia como única fonte original. Também concluíram que eram naturalmente (isto é, racialmente) superiores a todos os demais, já que tinham conquistado a todos e lhes tinham imposto seu domínio.

    O confronto entre a experiência histórica e a perspectiva eurocêntrica de conhecimento permite apontar alguns dos elementos mais importantes do eurocentrismo: a) uma articulação peculiar entre um dualismo (pré-capital-capital, não europeu-europeu, primitivo-civilizado, tradicional-moderno, etc.) e um evolucionismo linear, unidirecional, de algum estado de natureza à sociedade moderna européia; b) a naturalização das diferenças culturais entre grupos humanos por meio de sua codificação com a idéia de raça; e c) a distorcida relocalização temporal de todas essas diferenças, de modo que tudo aquilo que é não-europeu é percebido como passado. Todas estas operações intelectuais são claramente interdependentes. E não teriam podido ser cultivadas e desenvolvidas sem a colonialidade do poder.

    Homogeneidade/continuidade e heterogeneidade/descontinuidade

    Como é verificável agora, a perspectiva eurocêntrica de conhecimento, devido a sua crise radical, é hoje um campo pletórico de questões. Aqui é pertinente ainda deixar registradas duas delas. Primeiro, uma idéia da mudança histórica como um processo ou um momento no qual uma entidade ou unidade se transforma de maneira continua, homogênea e completa em outra coisa e abandona de maneira absoluta a cena histórica. Isto permite à outra entidade equivalente ocupar o lugar, e tudo isto continua numa cadeia seqüencial. De outro modo não teria sentido, nem lugar, a idéia da história como uma evolução unidirecional e unilinear. Segundo, dali se desprende que cada unidade diferenciada, por exemplo uma “economia/sociedade” ou um “modo de produção” no caso do controle do trabalho (capital ou escravidão) ou uma “raça/civilização” no caso de grupos humanos, é uma entidade/identidade homogênea. São, cada uma, estruturas de elementos homogêneos relacionados de maneira contínua e sistêmica (o que é distinto de sistemática).

    A experiência histórica demostra, contudo, que o capitalismo mundial está longe de ser uma totalidade homogênea e contínua. Ao contrário, como o demonstra a América, o padrão de poder mundial que se conhece como capitalismo é, fundamentalmente, uma estrutura de elementos heterogêneos, tanto em termos das formas de controle do trabalho-recursos-produtos (ou relações de produção) ou em termos dos povos e histórias articulados nele. Em conseqüência, tais elementos se relacionam entre si e com o conjunto de maneira também heterogênea e descontínua, ou mesmo conflitiva. E são eles mesmos, cada um deles, configurados da mesma maneira.

    Assim, cada uma dessas relações de produção é em si mesma uma estrutura heterogênea. Especialmente o capital, desde que todos os estágios e formas históricas de produção de valor e de apropriação de mais-valia (por exemplo, acumulação primitiva, mais-valia absoluta e relativa, extensiva ou intensiva, ou em outra nomenclatura, manufatura, capital competitivo, capital monopólico, capital transnacional ou global, ou pré-fordista, fordista, de mão de obra intensiva, de capital intensivo, de informação intensiva, etc., etc.) estão simultaneamente em atividade e trabalham juntos numa complexa rede de transferência de valor e de mais-valia. Isto é igualmente válido com relação às raças, já que tantos povos diversos e heterogêneos, com heterogêneas histórias e tendências históricas de movimento e de mudança foram reunidos sob uma única classificação racial, índio ou negro, por exemplo.

    Esta heterogeneidade não é simplesmente estrutural, baseada nas relações entre elementos das mesmas época e idade. Já que histórias diversas e heterogêneas deste tipo foram articuladas numa única estrutura de poder, é pertinente admitir o caráter histórico-estrutural dessa heterogeneidade. Conseqüentemente, o processo de mudança dessa totalidade capitalista não pode, de nenhum modo, ser uma transformação homogênea e contínua do sistema inteiro, nem tampouco de cada um de seus componentes maiores. Tampouco poderia essa totalidade desvanecer-se completa e homogeneamente da cena histórica e ser substituída por outra equivalente. A mudança histórica não pode ser unilinear, unidirecional, seqüencial ou total. O sistema, ou o padrão específico de articulação estrutural, poderia ser desmantelado. Mas mesmo assim cada um ou alguns de seus elementos pode e haverá de rearticular-se em algum outro padrão estrutural, como ocorreu, obviamente, com os componentes do padrão de poder pré-colonial, digamos, no Tauantinsuiu18.


    O novo dualismo

    Finalmente, pelo momento e para nossos propósitos aqui, é pertinente abrir a questão das relações entre o corpo e o não-corpo na perspectiva eurocêntrica, tanto por sua gravitação no modo eurocêntrico de produzir conhecimento, como devido a que em nossa experiência tem uma estreita relação com as de raça e de gênero.

    A idéia de diferenciação entre o “corpo” e o “não-corpo” na experiência humana é virtualmente universal à história da humanidade, comum a todas as “culturas” ou “civilizações” historicamente conhecidas. Mas é também comum a todas –até o aparecimento do eurocentrismo– a permanente co- presença dos dois elementos como duas dimensões não separáveis do ser humano, em qualquer aspecto, instância ou comportamento.

    O processo de separação destes elementos do ser humano é parte de uma longa história do mundo cristão sobre a base da idéia da primazia da “alma” sobre o “corpo”. Porém, esta história mostra também uma longa e não resolvida ambivalência da teologia cristã sobre este ponto em particular. Certamente, é

    a “alma” o objeto privilegiado de salvação. Mas no final das contas, é o “corpo” o ressuscitado, como culminação da salvação.

    Certamente, também, foi durante a cultura repressiva do cristianismo, como resultado dos conflitos com muçulmanos e judeus, sobretudo entre os séculos XV e XVI, em plena Inquisição, que a primazia da “alma” foi enfatizada, talvez exasperada. E porque o “corpo” foi o objeto básico da repressão, a “alma” pôde aparecer quase separada das relações intersubjetivas no interior do mundo cristão. Mas isto não foi teorizado, ou seja, não foi sistematicamente discutido e elaborado até Descartes, culminando no processo da secularização burguesa do pensamento cristão19.

    Com Descartes20 o que sucede é a mutação da antiga abordagem dualista sobre o “corpo” e o “não- corpo”. O que era uma co-presença permanente de ambos os elementos em cada etapa do ser humano, em Descartes se converte numa radical separação entre “razão/sujeito” e “corpo”. A razão não é somente uma secularização da idéia de “alma” no sentido teológico, mas uma mutação numa nova id-entidade, a “razão/sujeito”, a única entidade capaz de conhecimento “racional”, em relação à qual o “corpo” é e não pode ser outra coisa além de “objeto” de conhecimento. Desse ponto de vista o ser humano é, por excelência, um ser dotado de “razão”, e esse dom se concebe como localizado exclusivamente na alma. Assim o “corpo”, por definição incapaz de raciocinar, não tem nada a ver com a razão/sujeito. Produzida essa separação radical entre “razão/sujeito” e “corpo”, as relações entre ambos devem ser vistas unicamente como relações entre a razão/sujeito humana e o corpo/natureza humana, ou entre “espírito” e “natureza”. Deste modo, na racionalidade eurocêntrica o “corpo” foi fixado como “objeto” de conhecimento, fora do entorno do “sujeito/razão”.

    Sem essa “objetivização” do “corpo” como “natureza”, de sua expulsão do âmbito do “espírito”, dificilmente teria sido possível tentar a teorização “científica” do problema da raça, como foi o caso do Conde de Gobineau (1853-1857) durante o século XIX.. Dessa perspectiva eurocêntrica, certas raças são condenadas como “inferiores” por não serem sujeitos “racionais”. São objetos de estudo, “corpo” em conseqüência, mais próximos da “natureza”. Em certo sentido, isto os converte em domináveis e exploráveis. De acordo com o mito do estado de natureza e da cadeia do processo civilizatório que culmina na civilização européia, algumas raças –negros (ou africanos), índios, oliváceos, amarelos (ou asiáticos) e nessa seqüência– estão mais próximas da “natureza” que os brancos 21. Somente desta perspectiva peculiar foi possível que os povos não-europeus fossem considerados, virtualmente até a Segunda Guerra Mundial, antes de tudo como objeto de conhecimento e de dominação/exploração pelos europeus.

    Esse novo e radical dualismo não afetou somente as relações raciais de dominação, mas também a mais antiga, as relações sexuais de dominação. Daí em diante, o lugar das mulheres, muito em especial o das mulheres das raças inferiores, ficou estereotipado junto com o resto dos corpos, e quanto mais inferiores fossem suas raças, mais perto da natureza ou diretamente, como no caso das escravas negras, dentro da natureza. É provável, ainda que a questão fique por indagar, que a idéia de gênero se tenha elaborado depois do novo e radical dualismo como parte da perspectiva cognitiva eurocentrista.

    Durante o século XVIII, esse novo dualismo radical foi amalgamado com as idéias mitificadas de “progresso” e de um estado de natureza na trajetória humana, os mitos fundacionais da versão eurocentrista da modernidade. Isto deu vazão à peculiar perspectiva histórica dualista/evolucionista. Assim todos os não-europeus puderam ser considerados, de um lado, como pré-europeus e ao mesmo tempo dispostos em certa seqüência histórica e contínua do primitivo ao civilizado, do irracional ao racional, do tradicional ao moderno, do mágico-mítico ao científico. Em outras palavras, do não- europeu/pré-europeu a algo que com o tempo se europeizará ou “modernizará”.

    Sem considerar a experiência inteira do colonialismo e da colonialidade, essa marca intelectual seria dificilmente explicável, bem como a duradoura hegemonia mundial do eurocentrismo. Somente as necessidades do capital como tal, não esgotam, não poderiam esgotar, a explicação do caráter e da trajetória dessa perspectiva de conhecimento.


  3. Eurocentrismo e experiência histórica na América Latina

Aplicada de maneira específica à experiência histórica latino-americana, a perspectiva eurocêntrica de conhecimento opera como um espelho que distorce o que reflete. Quer dizer, a imagem que encontramos nesse espelho não é de todo quimérica, já que possuímos tantos e tão importantes traços históricos

europeus em tantos aspectos, materiais e intersubjetivos. Mas, ao mesmo tempo, somos tão profundamente distintos. Daí que quando olhamos nosso espelho eurocêntrico, a imagem que vemos seja necessariamente parcial e distorcida.

Aqui a tragédia é que todos fomos conduzidos, sabendo ou não, querendo ou não, a ver e aceitar aquela imagem como nossa e como pertencente unicamente a nós. Dessa maneira seguimos sendo o que não somos. E como resultado não podemos nunca identificar nossos verdadeiros problemas, muito menos resolvê-los, a não ser de uma maneira parcial e distorcida.


O eurocentrismo e a “questão nacional”: o Estado-nação

Um dos exemplos mais claros desta tragédia de equívocos na América Latina é a história da chamada questão nacional. Dito de outro modo, do problema do moderno Estado-nação na América Latina.

Nações e Estados são um velho fenômeno. Todavia, aquilo que chamamos de moderno Estado-nação é uma experiência muito específica. Trata-se de uma sociedade nacionalizada e por isso politicamente organizada como um Estado-nação. Implica as instituições modernas de cidadania e democracia política. Ou seja, implica uma certa democracia, dado que cada processo conhecido de nacionalização da sociedade nos tempos modernos ocorreu somente através de uma relativa (ou seja, dentro dos limites do capitalismo) mas importante e real democratização do controle do trabalho, dos recursos produtivos e do controle da geração e gestão das instituições políticas. Deste modo, a cidadania pode chegar a servir como igualdade legal, civil e política para pessoas socialmente desiguais (Quijano, 1998a).

Um Estado-nação é uma espécie de sociedade individualizada entre as demais. Por isso, entre seus membros pode ser sentida como identidade. Porém, toda sociedade é uma estrutura de poder. É o poder aquilo que articula formas de existência social dispersas e diversas numa totalidade única, uma sociedade. Toda estrutura de poder é sempre, parcial ou totalmente, a imposição de alguns, freqüentemente certo grupo, sobre os demais. Conseqüentemente, todo Estado-nação possível é uma estrutura de poder, do mesmo modo que é produto do poder. Em outros termos, do modo como foram configuradas as disputas pelo controle do trabalho, seus recursos e produtos; do sexo, seus recursos e produtos; da autoridade e de sua violência específica; da intersubjetividade e do conhecimento.

Não obstante, se um Estado-nação moderno pode expressar-se em seus membros como uma identidade, não é somente devido a que pode ser imaginado como uma comunidade22. Os membros precisam ter em comum algo real, não só imaginado, algo que compartilhar. E isso, em todos os reais Estados-nação modernos, é uma participação mais ou menos democrática na distribuição do controle do poder. Esta é a maneira específica de homogeneização das pessoas num Estado-nação moderno. Toda homogeneização da população de um Estado-nação moderno é desde logo parcial e temporal e consiste na comum participação democrática no controle da geração e da gestão das instituições de autoridade pública e de seus específicos mecanismos de violência. Isto é, exerce-se, no fundamental, em todo o âmbito da existência social vinculado ao Estado e que por isso se assume como o explicitamente político. Mas tal âmbito não poderia ser democrático, isto é, implicar cidadania como igualdade jurídica e civil de pessoas desigualmente situadas nas relações de poder, se as relações sociais em todos os outros âmbitos da existência social fossem radicalmente não democráticas ou antidemocráticas23.

Já que todo Estado-nação é uma estrutura de poder, isso implica que se trata de um poder que se configura nesse sentido. O processo começa sempre com um poder político central sobre um território e sua população, porque qualquer processo de nacionalização possível só pode ocorrer num espaço dado, ao longo de um prolongado período de tempo. Esse espaço precisa ser mais ou menos estável por um longo período. Conseqüentemente, precisa-se de um poder político estável e centralizado. Este espaço é, nesse sentido, necessariamente um espaço de dominação disputado e conquistado a outros rivais.

Na Europa o processo que levou à formação de estruturas de poder configuradas como Estado-nação, iniciou-se com a emergência de alguns poucos núcleos políticos que conquistaram seu espaço de dominação e se impuseram aos diversos e heterogêneos povos e identidades que o habitavam. Deste modo o Estado- nação iniciou-se como um processo de colonização de alguns povos sobre outros que, nesse sentido, eram povos estrangeiros. Em alguns casos particulares, como na Espanha que se constituía sobre a base da América e de seus enormes e gratuitos recursos, o processo incluiu a expulsão de alguns grupos, como os muçulmanos e judeus, considerados como estrangeiros indesejáveis. Esta foi a primeira experiência de limpeza étnica no período moderno, seguida pela imposição dessa peculiar instituição chamada “certificado

de limpeza de sangue”24.

Por outro lado, o processo de centralização estatal que antecedeu na Europa Ocidental a formação de Estados-nação, foi paralelo à imposição da dominação colonial que começou com a América. Quer dizer, simultaneamente com a formação dos impérios coloniais desses primeiros Estados centrais europeus. O processo tem, pois, um duplo movimento histórico. Começou como uma colonização interna de povos com identidades diferentes, mas que habitavam os mesmos territórios transformados em espaços de dominação interna, ou seja, nos próprios territórios dos futuros Estados-nação. E continuou paralelamente à colonização imperial ou externa de povos que não só tinham identidades diferentes das dos colonizadores, mas que habitavam territórios que não eram considerados como os espaços de dominação interna dos colonizadores, quer dizer, não eram os mesmos territórios dos futuros Estados-nação dos colonizadores.

Se indagamos a partir de nossa atual perspectiva histórica aquilo que sucedeu com os primeiros Estados centrais europeus, seus espaços de dominação (populações e territórios) e seus respectivos processos de nacionalização, observa-se que as diferenças são muito visíveis. A existência de um forte Estado central não é suficiente para produzir um processo de relativa homogeneização de uma população previamente diversa e heterogênea, para produzir assim uma identidade comum e uma forte e duradoura lealdade a tal identidade. Entre esses casos, a França é provavelmente a experiência mais bem-sucedida, bem como a Espanha é a menos bem-sucedida.

Por que a França sim e a Espanha não? A Espanha era em seus primórdios muito mais rica e poderosa que seus pares. Porém, após a expulsão dos muçulmanos e judeus deixou de ser produtiva e próspera para transformar-se em correia de transmissão dos recursos da América aos centros emergentes do capital financeiro mercantil. Ao mesmo tempo, após o violento e bem-sucedido ataque contra a autonomia das comunidades camponesas e das cidades e burgos, viu-se presa numa estrutura senhorial de poder e sob a autoridade de uma monarquia e de uma igreja repressivas e corruptas. A Monarquia da Espanha dedicou-se, ademais, a uma política bélica em busca da expansão de seu poder senhorial na Europa, em lugar de uma hegemonia sobre o mercado mundial e o capital comercial e financeiro como fizeram mais tarde a Inglaterra ou a França. Todas as lutas para forçar os controladores do poder a admitir ou negociar alguma democratização da sociedade e do Estado foram derrotadas, em especial a revolução liberal de 1810-12. Deste modo, o colonialismo interno e os padrões senhoriais de poder político e social, combinados, demonstraram ser fatais para a nacionalização da sociedade e do Estado espanhóis, na medida em que esse tipo de poder não só provou ser incapaz de sustentar qualquer vantagem proveniente desse rico e vasto colonialismo imperial ou externo: provou igualmente que constituía um muito poderosos obstáculo a todo processo democratizador das relações sociais e políticas e não só dentro do espaço próprio de dominação.

Pelo outro lado, na França, através da democratização radical das relações sociais e políticas com a Revolução Francesa, o prévio colonialismo interno evoluiu para uma “afrancesamento” efetivo, ainda que não total, dos povos que habitavam o território da França, originalmente tão diversos e histórico-estruturalmente heterogêneos como no espaço de dominação que se chamaria Espanha. Os bascos franceses, por exemplo, são, em primeiro lugar, franceses, como os occitanos ou os navarros. Não é o caso da Espanha.

Em cada um dos casos de nacionalização bem-sucedida de sociedades e Estados na Europa, a experiência é a mesma: um importante processo de democratização da sociedade é a condição básica para a nacionalização dessa sociedade e de sua organização política num Estado-nação moderno. Não há, na verdade, exceção conhecida a essa trajetória histórica do processo que conduz à formação do Estado-nação.


O Estado-nação na América: os Estados Unidos

Se examinarmos a experiência da América, seja em suas áreas hispânica ou britânica, podemos reconhecer diferenças e fatores básicos equivalentes. Na área britânico-americana, a ocupação do território foi desde o começo violenta. Mas antes da Independência, conhecida nos Estados Unidos como a Revolução Americana, o território ocupado era muito pequeno. Por isso os índios não foram habitantes do território ocupado, não estavam colonizados. Por isso, os diversos povos indígenas foram formalmente reconhecidos como nações e com eles se praticaram relações comerciais inter-nações, inclusive se formaram alianças militares nas guerras entre colonialistas ingleses e franceses, sobretudo. Os índios não eram parte da população incorporada ao espaço de dominação colonial britânico-americana. Por isso mesmo, quando se inicia a história do novo Estado-nação chamado Estados Unidos da América do Norte, os índios foram excluídos dessa nova sociedade. Foram considerados estrangeiros. Mas posteriormente suas terras foram conquistadas e eles quase exterminados. Só então os sobreviventes foram encerrados na sociedade

estadunidense como raça colonizada. No início, portanto, relações colonial/raciais existiram somente entre brancos e negros. Este último grupo era fundamental para a economia da sociedade colonial, como durante um primeiro longo momento para a economia da nova nação. Todavia, demograficamente os negros eram uma relativamente reduzida minoria, enquanto os brancos compunham a grande maioria.

Quando da fundação dos Estados Unidos como país independente, o processo de constituição do novo padrão de poder levou desde o começo à configuração de um Estado-nação. Em primeiro lugar, apesar da relação colonial de dominação entre brancos e negros e do extermínio colonialista da população índia, dada a condição avassaladoramente majoritária dos brancos, é inevitável admitir que esse novo Estado-nação era genuinamente representativo da maioria da população. Essa branquitude social da sociedade estadunidense foi inclusive aprofundada com a imigração de milhões de europeus durante o século XIX. Em segundo lugar, a conquista dos territórios indígenas resultou na abundância da oferta de um recurso básico de produção, a terra. Este pôde ser, por conseqüência, apropriado e distribuído de maneira não unicamente concentrada sob o controle de pouquíssimas pessoas, mas pelo contrário pôde ser, ao mesmo tempo, parcialmente concentrado em grandes latifúndios e também apropriado ou distribuído numa vasta proporção de média e pequenas propriedades. Equivalente, pois, a uma distribuição democrática de recursos. Isso fundou para os brancos uma participação notavelmente democrática no controle da geração e da gestão da autoridade pública. A colonialidade do novo padrão de poder não foi anulada, no entanto, já que negros e índios não podiam ter lugar, em absoluto, no controle dos recursos de produção, nem das instituições e mecanismos da autoridade pública.

Em meados do século XIX, Tocqueville (1835: cap. XVI e XVII) observou que nos Estados Unidos da América, gente de origens tão diversos cultural, étnica e mesmo nacionalmente, eram incorporados todos em algo parecido a uma máquina de re-identificação nacional; rapidamente se transformavam em cidadãos estadunidenses e adquiriam uma nova identidade nacional, preservando por algum tempo suas identidades originais. Tocqueville afirmou então que o mecanismo básico desse processo de nacionalização era a abertura da participação democrática na vida política para todos os recém-chegados. Todos eles eram atraídos a uma intensa participação política e com a liberdade de decisão de participar ou não. Mas viu também que dois grupos específicos não estavam autorizados a participar da vida política. Estes eram, evidentemente, negros e índios. Essa discriminação era, pois, o limite desse impressionante e massivo processo de formação do Estado-nação moderno na jovem república dos Estados Unidos da América. Tocqueville não deixou de advertir que a menos que essa discriminação social e política fosse eliminada, o processo de construção nacional se veria limitado. Um século mais tarde, outro europeu, Gunnar Myrdall (1944), observou essas mesmas limitações no processo nacional dos Estados Unidos. Viu também que devido ao fato de que os novos imigrantes eram não-brancos (provinham da América Latina e da Ásia, em sua maioria), as relações coloniais dos brancos com esses outros povos poderiam ser um sério risco para a reprodução dessa nação. Sem dúvida esses riscos vêm aumentando hoje em dia, na medida em que o velho mito do melting pot foi abandonado à força e o racismo tende a ser de novo agudo e violento.

Em suma, a colonialidade das relações de dominação/exploração/conflito entre brancos e não-brancos, não obstante sua intensa vigência, dada a condição vastamente majoritária dos primeiros não foi forte o suficiente para impedir a relativa, mas real e importante, democratização do controle de recursos de produção e do Estado, entre brancos, é verdade, mas com o vigor necessário para que pudesse ser reclamada mais tarde também pelos não-brancos. O poder pôde ser configurado na trajetória e na orientação de um Estado-nação. É a isso que se refere, sem dúvida, a idéia da Revolução Americana.


América Latina: Cone Sul e maioria branca

À primeira vista, a situação nos países do chamado Cone Sul da América Latina (Argentina, Chile e Uruguai) foi similar à ocorrida nos Estados Unidos. Os índios, em sua maioria, tampouco foram integrados à sociedade colonial, na medida em que eram povos de mais ou menos a mesma estrutura daqueles da América do Norte, sem disponibilidade para transformar-se em trabalhadores explorados, não condenáveis a trabalhar forçadamente e de maneira disciplinada para os colonos. Nesses três países, também a população negra foi uma minoria durante o período colonial, em comparação com outras regiões dominadas por espanhóis ou portugueses. E os dominantes dos novos países do Cone Sul consideraram, como no caso dos Estados Unidos, necessária a conquista do território que os índios povoavam e o extermínio destes como forma rápida de homogeneizar a população nacional e, desse modo, facilitar o processo de constituição de um Estado-nação moderno, à européia. Na Argentina e no Uruguai isso foi feito no século XIX. E no Chile durante as três primeiras décadas do século XX. Estes países atraíram também milhões de imigrantes

europeus, consolidando em aparência a branquitude das sociedades da Argentina, do Chile e do Uruguai. Em determinado sentido, isto também consolidou em aparência o processo de homogenização em tais países.

Um elemento crucial introduziu, contudo, uma diferença básica nesses países em comparação com o caso estadunidense, muito em especial na Argentina. Enquanto nos Estados Unidos a distribuição da terra produziu-se de uma maneira menos concentrada durante um importante período, na Argentina a apropriação da terra ocorreu de uma maneira completamente distinta. A extrema concentração da propriedade da terra, em particular das terras conquistadas aos índios, tornou impossível qualquer tipo de relações sociais democráticas entre os próprios brancos e em conseqüência de toda relação política democrática. Sobre essa base, em lugar de uma sociedade democrática, capaz de representar-se e organizar-se politicamente num Estado democrático, o que se constituiu foi uma sociedade e um Estado oligárquicos, só parcialmente desmantelados desde a Segunda Guerra Mundial. Sem dúvida, essas determinações se associaram ao fato de que a sociedade colonial nesse território, sobretudo na costa atlântica que se tornou hegemônica sobre o resto, foi pouco desenvolvida e por isso seu reconhecimento como sede de um Vice-reino foi tardio (segunda metade do século XVIII). Sua emergência como uma das áreas prósperas do mercado mundial foi rápida desde o último quarto do século XVIII, o que impulsionou no século seguinte uma massiva migração do sul, do centro e do leste da Europa. Mas essa vasta população migratória não encontrou uma sociedade com estrutura, história e identidade suficientemente densas e estáveis, para incorporar-se a ela e com ela identificar-se, como ocorreu no caso dos Estados Unidos e sem dúvida no Chile e no Uruguai. Em fins do século XIX a população de Buenos Aires compunha-se em mais de 80% por imigrantes de origem européia. Levou tempo, por isso provavelmente, para que se considerassem com identidade nacional e cultural próprias diferentes da européia, enquanto rejeitavam explicitamente a identidade associada à herança histórica latino-americana e, em particular, qualquer parentesco com a população indígena25.

A concentração da terra foi igualmente forte no Chile, e um pouco menor no Uruguai. De qualquer modo, diferentemente da Argentina, os imigrantes europeus encontraram nesses países uma sociedade, um Estado, uma identidade já suficientemente densos e constituídos, aos quais se incorporaram e com os quais se identificaram mais pronta e completamente que no outro caso. No caso do Chile, por outra lado, a expansão territorial às custas da Bolívia e do Peru permitia à burguesia chilena o controle de recursos cuja importância marcou desde então a história do país: salitre primeiro, e cobre pouco depois. Nas pampas salitreiras formou-se o primeiro grande contingente de assalariados operários da América Latina, desde mediados do século XIX, e mais tarde foi no cobre que se formou a coluna vertebral das organizações sociais e políticas dos operários chilenos da velha república. Os benefícios, distribuídos entre a burguesia britânica e a chilena, permitiram o impulso da agricultura comercial e da economia comercial urbana. Formaram-se novas camadas de assalariados urbanos e novas camadas médias relativamente amplas, junto com a modernização de uma parte importante da burguesia senhorial. Foram essas condições as que tornaram possível que os trabalhadores e as classes médias pudessem negociar com algum êxito, desde 1930-35, as condições da dominação/exploração/conflito. Isto é, da democracia nas condições do capitalismo. Desse modo, pôde ser estabelecido um poder configurado como Estado-nação de brancos, logicamente. Os índios, exígua minoria de sobreviventes habitando as terras mais pobres e inóspitas do país, foram excluídos desse Estado-nação. Até há pouco eram sociologicamente invisíveis. Agora não o são tanto, começam a mobilizar- se em defesa dessas mesmas terras que também arriscam perder face ao capital global.

O processo de homogenização dos membros da sociedade imaginada de uma perspectiva eurocêntrica como característica e condição dos Estados-nação modernos, foi levado a cabo nos países do Cone Sul latino-americano não por meio da descolonização das relações sociais e políticas entre os diversos componentes da população, mas pela eliminação massiva de alguns deles (índios, negros e mestiços). Ou seja, não por meio da democratização fundamental das relações sociais e políticas, mas pela exclusão de uma parte da população. Dadas essas condições originais, a democracia alcançada e o Estado-nação constituído não podiam ser afirmados e estáveis. A história política desses países, muito especialmente desde fins da década de 60 até o presente, não poderia ser explicada à margem dessas determinações26.


Maioria indígena, negra e mestiça: o impossível “moderno Estado-nação”

No restante dos países latino-americanos, essa trajetória eurocêntrica em direção ao Estado-nação se demonstrou até agora impossível de chegar a termo. Após a derrota de Tupac Amaru e do Haiti, só nos casos do México e da Bolívia chegou-se tão longe quanto possível no caminho da descolonização social, através de um processo revolucionário mais ou menos radical, durante o qual a descolonização do poder

pôde percorrer um trecho importante antes de ser contida e derrotada. Nesses países, ao começar a Independência, principalmente aqueles que foram demográfica e territorialmente extensos em princípios do século XIX, aproximadamente um pouco mais de 90% do total da população era de negros, índios e mestiços. Contudo, em todos estes países, durante o processo de organização dos novos Estados, a tais raças foi negada toda possível participação nas decisões sobre a organização social e política. A pequena minoria branca que assumiu o controle desses Estados viu-se inclusive com a vantagem de estar livre das restrições da legislação da Coroa Espanhola, que se dirigiam formalmente à proteção das raças colonizadas. A partir daí chegaram inclusive a impor novos tributos coloniais aos índios, sem prejuízo de manter a escravidão dos negros por muitas décadas. Claro que esta minoria dominante se encontrava agora livre para expandir sua propriedade da terra às custas dos territórios reservados aos índios pela regulamentação da Coroa Espanhola. No caso do Brasil, os negros não eram nada além de escravos e a maioria dos índios constituía-se de povos da Amazônia, sendo desta maneira estrangeiros para o novo Estado.

O Haiti foi um caso excepcional onde se produziu, no mesmo movimento histórico, uma revolução nacional, social e racial. Quer dizer, uma descolonização real e global do poder. Sua derrota produziu-se pelas repetidas intervenções militares por parte dos Estados Unidos. O outro processo nacional na América Latina, no Vice-reino do Peru, liderado por Tupac Amaru II em 1780, foi derrotado cedo. Desde então, em todas as demais colônias ibéricas os grupos dominantes tiveram êxito precisamente em evitar a descolonização da sociedade enquanto lutavam por Estados independentes.

Esses novos Estados não poderiam ser considerados de modo algum como nacionais, salvo que se admita que essa exígua minoria de colonizadores no controle fosse genuinamente representante do conjunto da população colonizada. As respectivas sociedades, baseadas na dominação colonial de índios, negros e mestiços, não poderiam tampouco ser consideradas nacionais, e muito menos democráticas. Isto coloca uma situação aparentemente paradoxal: Estados independentes e sociedades coloniais27. O paradoxo é somente parcial ou superficial, se observamos com mais cuidado os interesses sociais dos grupos dominantes daquelas sociedades coloniais e de seus Estados independentes.

Na sociedade colonial britânico-americana, já que os índios constituíam um povo estrangeiro, vivendo além dos confins da sociedade colonial, a servidão não esteve tão estendida como na sociedade colonial da América Ibérica. Os servos (indentured servants) trazidos da Grã-Bretanha não eram legalmente servos, e após a Independência não o foram por muito tempo. Os escravos negros foram de importância básica para a economia, mas demograficamente eram minoria. E desde o começo, depois da Independência, a produção foi feita em grande medida por trabalhadores assalariados e produtores independentes. No Chile, durante o período colonial, a servidão indígena foi restringida, já que os servos índios locais eram uma pequena minoria. E os escravos negros, apesar de serem mais importantes para a economia, eram também uma pequena minoria. Deste modo, essas raças não eram uma grande fonte de trabalho gratuito como no caso dos demais países ibéricos. Conseqüentemente, desde o início da Independência uma crescente proporção da produção local esteve baseada nos salários e no capital, e por essa razão o mercado interno foi vital para a burguesia pré-monopólica. Assim, para as classes dominantes de ambos os países –toutes distances gardées– o trabalho assalariado local, a produção e o mercado interno foram preservados e protegidos da concorrência externa como a única e a mais importante fonte de benefício capitalista. Mais ainda, o mercado interno teve que ser expandido e protegido. Nesse sentido, havia algumas áreas de interesses comuns entre os trabalhadores assalariados, os produtores independentes e a burguesia local. Isto, em conseqüência, com as limitações derivadas da exclusão de negros e mestiços, era um interesse nacional para a grande maioria da população do novo Estado-nação.


Estado independente e sociedade colonial: dependência histórico-estrutural

Por outro lado, nas outras sociedades ibero-americanas, a pequena minoria branca no controle dos Estados independentes e das sociedades coloniais não podia ter tido nem sentido nenhum interesse social comum com os índios, negros e mestiços. Ao contrário, seus interesses sociais eram explicitamente antagônicos com relação aos dos servos índios e os escravos negros, dado que seus privilégios compunham-se precisamente do domínio/exploração dessas gentes. De modo que não havia nenhum terreno de interesses comuns entre brancos e não brancos, e, conseqüentemente, nenhum interesse nacional comum a todos eles. Por isso, do ponto de vista dos dominadores, seus interesses sociais estiveram muito mais próximos dos interesses de seus pares europeus, e por isso estiveram sempre inclinados a seguir os interesses da burguesia européia. Eram, pois, dependentes.

Eram dependentes dessa maneira específica, não porque estivessem subordinados por um poder econômico ou político maior. De quem? Espanha ou Portugal eram então demasiadamente fracos, subdesenvolviam-se, não podiam exercer nenhum neocolonialismo como ingleses ou franceses em certos países da África depois da independência política desses países. Os Estados Unidos encontravam-se absorvidos na conquista das terras dos índios e no extermínio dessa população, iniciando sua expansão imperial sobre parte do Caribe, ainda sem capacidade de expandir seu domínio econômico ou político. A Inglaterra tentou ocupar Buenos Aires e foi derrotada.

Os senhores brancos latino-americanos, donos do poder político e de servos e de escravos, não tinham interesses comuns, e sim exatamente antagônicos aos desses trabalhadores, que eram a avassaladora maioria da população dos novos Estados. E enquanto na Europa e nos Estados Unidos a burguesia branca expandia a relação social chamada capital como eixo de articulação da economia e da sociedade, os senhores latino-americanos não podiam acumular seus muitos benefícios comerciais comprando força de trabalho assalariada, precisamente porque isso ia contra a reprodução de sua condição de senhores. E destinavam esses benefícios comerciais ao consumo ostentoso das mercadorias produzidas, sobretudo, na Europa.

A dependência dos capitalistas senhoriais desses países tinha como conseqüência uma fonte inescapável: a colonialidade de seu poder levava-os a perceber seus interesses sociais como iguais aos dos outros brancos dominantes, na Europa e nos Estados Unidos. Essa mesma colonialidade do poder impedia-os, no entanto, de desenvolver realmente seus interesses sociais na mesma direção que os de seus pares europeus, isto é, transformar capital comercial (benefício igualmente produzido na escravidão, na servidão, ou na reciprocidade) em capital industrial, já que isso implicava libertar índios servos e escravos negros e transformá-los em trabalhadores assalariados. Por óbvias razões, os dominadores coloniais dos novos Estados independentes, em especial na América do Sul depois da crise de fins do século XVIII, não podiam ser nada além de sócios menores da burguesia européia. Quando muito mais tarde foi necessário libertar os escravos, não foi para assalariá-los, mas para substituí-los por trabalhadores imigrantes de outros países, europeus e asiáticos. A eliminação da servidão dos índios é recente. Não havia nenhum interesse social comum, nenhum mercado próprio a defender, o que teria incluído o assalariado, já que nenhum mercado local era de interesse dos dominadores. Não havia, simplesmente, nenhum interesse nacional.

A dependência dos senhores capitalistas não provinha da subordinação nacional. Esta foi, pelo contrário, a conseqüência da comunidade de interesses raciais. Estamos lidando aqui com o conceito da dependência histórico-estrutural, que é muito diferente das propostas nacionalistas da dependência externa ou estrutural (Quijano, 1967). A subordinação veio mais adiante, precisamente devido à dependência e não o contrário: durante a crise econômica mundial dos anos 30, a burguesia com mais capital comercial da América Latina (Argentina, Brasil, México, Chile, Uruguai e até certo ponto a Colômbia) foi forçada a produzir localmente os bens que serviam para seu consumo ostentador e que antes tinham que importar. Este foi o início do peculiar caminho latino-americano de industrialização dependente: a substituição dos bens importados para o consumo ostentador dos senhores e dos pequenos grupos médios associados a eles, por produtos locais destinados a esse consumo. Para tal finalidade não era necessário reorganizar globalmente as economias locais, assalariar massivamente servos, nem produzir tecnologia própria. A industrialização através da substituição de importações é, na América Latina, um caso revelador das implicações da colonialidade do poder 28.

Neste sentido, o processo de independência dos Estados na América Latina sem a descolonização da sociedade não pôde ser, não foi, um processo em direção ao desenvolvimento dos Estados-nação modernos, mas uma rearticulação da colonialidade do poder sobre novas bases institucionais. Desde então, durante quase 200 anos, estivemos ocupados na tentativa de avançar no caminho da nacionalização de nossas sociedades e nossos Estados. Mas ainda em nenhum país latino-americano é possível encontrar uma sociedade plenamente nacionalizada nem tampouco um genuíno Estado-nação. A homogenização nacional da população, segundo o modelo eurocêntrico de nação, só teria podido ser alcançada através de um processo radical e global de democratização da sociedade e do Estado. Antes de mais nada, essa democratização teria implicado, e ainda deve implicar, o processo da descolonização das relações sociais, políticas e culturais entre as raças, ou mais propriamente entre grupos e elementos de existência social europeus e não europeus. Não obstante, a estrutura de poder foi e ainda segue estando organizada sobre e ao redor do eixo colonial. A construção da nação e sobretudo do Estado-nação foram conceitualizadas e trabalhadas contra a maioria da população, neste caso representada pelos índios, negros e mestiços. A colonialidade do poder ainda exerce seu domínio, na maior parte da América Latina, contra a democracia, a

cidadania, a nação e o Estado-nação moderno.

Atualmente podem-se distinguir quatro trajetórias históricas e linhas ideológicas acerca do problema do Estado-nação:

  1. Um limitado mas real processo de descolonização/democratização através de revoluções radicais como no México e na Bolívia, depois das derrotas do Haiti e de Tupac Amaru. No México, o processo de descolonização do poder começou a ver-se paulatinamente limitado desde os anos 60 até entrar finalmente num período de crise no final dos anos 70. Na Bolívia a revolução foi derrotada em 1965.

  2. Um limitado mas real processo de homogeneização colonial (racial), como no Cone Sul (Chile, Uruguai, Argentina), por meio de um genocídio massivo da população aborígene. Uma variante dessa linha é a Colômbia, onde a população original foi quase exterminada durante a colônia e substituída pelos negros.

  3. Uma sempre frustrada tentativa de homogeneização cultural através do genocídio cultural dos índios, negros e mestiços, como no México, Peru, Equador, Guatemala-América Central e Bolívia.

  4. A imposição de uma ideologia de “democracia racial” que mascara a verdadeira discriminação e a dominação colonial dos negros, como no Brasil, na Colômbia e na Venezuela. Dificilmente alguém pode reconhecer com seriedade uma verdadeira cidadania da população de origem africana nesses países, ainda que as tensões e conflitos raciais não sejam tão violentos e explícitos como na África do Sul ou no sul dos Estados Unidos.

O que estas comprovações indicam é que há, sem dúvida, um elemento que impede radicalmente o desenvolvimento e a culminação da nacionalização da sociedade e do Estado, na mesma medida em que impede sua democratização, já que não se encontra nenhum exemplo histórico de modernos Estado-nação que não sejam o resultado dessa democratização social e política. Qual é ou pode ser esse elemento?

No mundo europeu, e por isso na perspectiva eurocêntrica, a formação de Estados-nação foi teorizada, imaginada na verdade, como expressão da homogeneização da população em termos de experiências históricas comuns. E à primeira vista, os casos exitosos de nacionalização de sociedades e Estados na Europa parece dar razão a esse enfoque. O que encontramos na história conhecida é, desde logo, que essa homogeneização consiste na formação de um espaço comum de identidade e de sentido para a população de um espaço de dominação. E isso, em todos os casos, é o resultado da democratização da sociedade, que desse modo pode organizar-se e expressar-se num Estado democrático. A pergunta pertinente, a estas alturas do debate, é: por que isso foi possível na Europa Ocidental, e com as limitações conhecidas, em todo o mundo de identidade européia (Canadá, EUA, Austrália, Nova Zelândia, por exemplo)? Por que não foi possível, até hoje, senão de modo parcial e precário, na América Latina?

Para começar, teria sido possível na França, o caso clássico de Estado-nação moderno, essa democratização social e radical se o fator racial tivesse estado presente? É muito pouco provável. Hoje em dia é fácil observar na França o problema nacional e o debate produzido pela presença de população não- branca, originária das ex-colônias francesas. Obviamente não é um assunto de etnicidade nem de crenças religiosas. Novamente basta recordar que há um século o Caso Dreyfus demonstrou a capacidade de discriminação dos franceses, mas seu final também demonstrou que para muitos deles a identidade de origem não era requisito determinante para ser membro da nação francesa, desde que a cor fosse francesa. Os judeus franceses são hoje mais franceses que os filhos de africanos, árabes e latino- americanos nascidos na França. Isto para não mencionar o sucedido com os imigrantes russos e espanhóis cujos filhos, por terem nascido na França, são franceses.

Isto quer dizer que a colonialidade do poder baseada na imposição da idéia de raça como instrumento de dominação foi sempre um fator limitante destes processos de construção do Estado-nação baseados no modelo eurocêntrico, seja em menor medida como no caso estadunidense ou de modo decisivo como na América Latina. O grau atual de limitação depende, como foi demonstrado, da proporção das raças colonizadas dentro da população total e da densidade de suas instituições sociais e culturais.

Por tudo isso, a colonialidade do poder estabelecida sobre a idéia de raça deve ser admitida como um fator básico na questão nacional e do Estado-nação. O problema é, contudo, que na América Latina a perspectiva eurocêntrica foi adotada pelos grupos dominantes como própria e levou-os a impor o modelo europeu de formação do Estado-nação para estruturas de poder organizadas em torno de relações coloniais. Assim, ainda nos encontramos hoje num labirinto em que o Minotauro é sempre visível, mas sem nenhuma Ariadne para mostrar-nos a ansiada saída.

Eurocentrismo e revolução na América Latina

Outro caso claro desse trágico desencontro entre nossa experiência e nossa perspectiva de conhecimento é o debate e a prática de projetos revolucionários. No século XX a avassaladora maioria da esquerda latino- americana, adepta do Materialismo Histórico, manteve o debate basicamente em torno de dois tipos de revoluções: democrático-burguesa e socialista. Rivalizando com essa esquerda, o movimento denominado aprista –o APRA (Aliança Popular Revolucionária Anti-imperialista) no Peru, a AD (Ação Democrática na Venezuela), o MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário) na Bolívia, o MLN (Movimento de Libertação Nacional) na Costa Rica, o Movimento Revolucionário Autêntico e os Ortodoxos em Cuba entre os mais importantes– pela boca de seu maior teórico, o peruano Haya de la Torre, propôs originalmente, entre 1925- 1935, a chamada Revolução Anti-imperialista, como um processo de depuração do caráter capitalista da economia e da sociedade latino-americanas, sobre a base do controle nacional-estatal dos principais recursos de produção, como uma transição em direção a uma revolução socialista. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, esse projeto transitou definitivamente para uma espécie de social-liberalismo 29, e se vai esgotando desse modo.

De maneira breve e esquemática, mas não arbitrária, pode-se apresentar o debate latino-americano sobre a revolução democrático-burguesa como um projeto no qual a burguesia organiza a classe operária, os camponeses e outros grupos dominados para arrancar dos senhores feudais o controle do Estado e para reorganizar a sociedade e o Estado nos termos do capital e da burguesia. A suposição central desse projeto é que a sociedade na América Latina é fundamentalmente feudal, ou semifeudal na melhor das hipóteses, já que o capitalismo é ainda incipiente, marginal e subordinado. A revolução socialista, por sua vez, concebe-se como a erradicação da burguesia do controle do Estado pela classe operária, a classe trabalhadora por excelência, à frente de uma coalizão das classes exploradas e dominadas, para impor o controle estatal dos meios de produção, e construir a nova sociedade por meio do Estado. A tese dessa proposta é, obviamente, a de que a economia e portanto a sociedade e o Estado na América Latina são basicamente capitalistas. Em sua linguagem, isso implica que o capital como relação social de produção é dominante, e que conseqüentemente o burguês é também dominante na sociedade e no Estado. Admite que há resíduos feudais, e portanto tarefas democrático-burguesas no trajeto da revolução socialista.

De fato, o debate político do último meio século na América Latina tem estado ancorado na questão da pretensa feudalidade/semifeudalidade da economia, da sociedade e do Estado, ou se seriam capitalistas. A maioria da esquerda latino-americana, até há poucos anos, aderia à proposta democrático-burguesa, seguindo antes de tudo os alinhamentos centrais do socialismo real ou do campo socialista, seja com sede em Moscou ou em Pequim.

Para acreditar que na América Latina uma revolução democrático-burguesa baseada no modelo europeu é não só possível, mas necessária, primeiro é preciso admitir na América, e mais precisamente na América Latina: 1) a relação seqüencial entre feudalismo e capitalismo; 2) a existência histórica do feudalismo e conseqüentemente o conflito histórico antagônico entre a aristocracia feudal e a burguesia; e 3) uma burguesia interessada em levar a cabo semelhante empreendimento revolucionário. Sabemos que na China no início dos anos 30, Mao propôs a idéia da revolução democrática de novo tipo, porque a burguesia já não está interessada nessa sua missão histórica, e tampouco é capaz de levá-la a cabo. Neste caso, uma coalizão de classes exploradas/dominadas, sob a liderança da classe trabalhadora, deve substituir a burguesia e empreender a nova revolução democrática.

Na América, contudo, como em escala mundial desde 500 anos atrás, o capital existe apenas como o eixo dominante da articulação conjunta de todas as formas historicamente conhecidas de controle e exploração do trabalho, configurando assim um único padrão de poder, histórico-estruturalmente heterogêneo, com relações descontínuas e conflitivas entre seus componentes. Nenhuma seqüência evolucionista entre os modos de produção, nenhum feudalismo anterior, separado do capital e a ele antagônico, nenhum senhorio feudal no controle do Estado, ao qual uma burguesia sedenta de poder tivesse que desalojar por meios revolucionários. Se seqüência houvera, é sem dúvida surpreendente que o movimento seguidor do Materialismo Histórico não haja lutado por uma revolução anti-escravista, prévia à revolução antifeudal, prévia por sua à revolução anticapitalista. Porque na maior parte deste continente (EUA, todo o Caribe, incluindo Venezuela, Colômbia, o litoral do Equador e do Peru, Brasil), o escravismo foi mais generalizado e mais poderoso. Mas, é claro, a escravidão terminou antes do século XX. E foram os senhores feudais os que herdaram o poder. Não é verdade?

Uma revolução antifeudal, portanto democrático-burguesa, no sentido eurocêntrico sempre foi, portanto, uma impossibilidade histórica. As únicas revoluções democráticas realmente ocorridas na América (além da Revolução Americana) foram as do México e da Bolívia, como revoluções populares, nacionalistas-anti- imperialistas, anticoloniais, isto é, contra a colonialidade do poder, e anti-oligárquicas, isto é, contra o controle do Estado pela burguesia senhorial sob a proteção da burguesia imperial. Na maioria dos outros países, o processo foi um processo de depuração gradual e desigual do caráter social, capitalista, da sociedade e do Estado. Logo, o processo foi sempre muito lento, irregular e parcial.

Poderia ter sido de outra maneira? Toda democratização possível da sociedade na América Latina deve ocorrer na maioria destes países, ao mesmo tempo e no mesmo movimento histórico como uma descolonização e como uma redistribuição do poder. Em outras palavras, como uma redistribuição radical do poder. Isto se deve, primeiro, a que as “classes sociais”, na América Latina, têm “cor”, qualquer “cor” que se possa encontrar em qualquer país, em qualquer momento. Isso quer dizer, definitivamente, que a classificação das pessoas não se realiza somente num âmbito do poder, a economia, por exemplo, mas em todos e em cada um dos âmbitos. A dominação é o requisito da exploração, e a raça é o mais eficaz instrumento de dominação que, associado à exploração, serve como o classificador universal no atual padrão mundial de poder capitalista. Nos termos da questão nacional, só através desse processo de democratização da sociedade pode ser possível e finalmente exitosa a construção de um Estado-nação moderno, com todas as suas implicações, incluindo a cidadania e a representação política.

Quanto à miragem eurocêntrica acerca das revoluções “socialistas”, como controle do Estado e como estatização do controle do trabalho/recursos/produtos, da subjetividade/recursos/produtos, do sexo/recursos/produtos, essa perspectiva funda-se em duas suposições teóricas radicalmente falsas. Primeiro, a idéia de uma sociedade capitalista homogênea, no sentido de que só o capital como relação social existe e portanto a classe operária industrial assalariada é a parte majoritária da população. Mas já vimos que não foi assim nunca, nem na América Latina nem no restante do mundo, e que quase seguramente não ocorrerá assim nunca. Segundo, a idéia de que o socialismo consiste na estatização de todos e cada um dos âmbitos do poder e da existência social, começando com o controle do trabalho, porque do Estado se pode construir a nova sociedade. Essa suposição coloca toda a história, de novo, sobre sua cabeça. Inclusive nos toscos termos do Materialismo Histórico, faz de uma superestrutura, o Estado, a base da sociedade. E escamoteia o fato de uma total reconcentração do controle do poder, o que leva necessariamente ao total despotismo dos controladores, fazendo-a aparecer como se fosse uma socialização do poder, isto é, a redistribuição radical do controle do poder. Mas, precisamente, o socialismo não pode ser outra coisa que a trajetória de uma radical devolução do controle sobre o trabalho/recursos/produtos, sobre o sexo/recursos/produtos, sobre a autoridade/instituições/violência, e sobre a intersubjetividade/conhecimento/comunicação, à vida cotidiana das pessoas. Isso é o que proponho, desde 1972, como socialização do poder (Quijano, 1972; 1981).

Solitariamente, em 1928, José Carlos Mariátegui foi sem dúvida o primeiro a vislumbrar, não só na América Latina, que neste espaço/tempo as relações sociais de poder, qualquer que fosse seu caráter prévio, existiam e atuavam simultânea e articuladamente, numa única e conjunta estrutura de poder; que esta não podia ser uma unidade homogênea, com relações contínuas entre seus elementos, movendo-se na história contínua e sistemicamente. Portanto, que a idéia de uma revolução socialista tinha que ser, por necessidade histórica, dirigida contra o conjunto desse poder e que longe de consistir numa nova reconcentração burocrática do poder, só podia ter sentido como redistribuição entre as pessoas, em sua vida cotidiana, do controle sobre as condições de sua existência social 30. O debate não será retomado na América Latina senão a partir dos anos 60 do século há pouco terminado, e no resto do mundo a partir da derrota mundial do campo socialista.

Na realidade, cada categoria usada para caracterizar o processo político latino-americano tem sido sempre um modo parcial e distorcido de olhar esta realidade. Essa é uma conseqüência inevitável da perspectiva eurocêntrica, na qual um evolucionismo unilinear e unidirecional se amalgama contraditoriamente com a visão dualista da história; um dualismo novo e radical que separa a natureza da sociedade, o corpo da razão; que não sabe o que fazer com a questão da totalidade, negando-a simplesmente, como o velho empirismo ou o novo pós-modernismo, ou entendendo-a só de modo organicista ou sistêmico, convertendo-a assim numa perspectiva distorcedora, impossível de ser usada salvo para o erro.

Não é, pois, um acidente que tenhamos sido, por enquanto, derrotados em ambos os projetos revolucionários, na América e em todo o mundo. O que pudemos avançar e conquistar em termos de direitos políticos e civis, numa necessária redistribuição do poder, da qual a descolonização da sociedade é a pressuposição e ponto de partida, está agora sendo arrasado no processo de reconcentração do controle do

poder no capitalismo mundial e com a gestão dos mesmos responsáveis pela colonialidade do poder. Conseqüentemente, é tempo de aprendermos a nos libertar do espelho eurocêntrico onde nossa imagem é sempre, necessariamente, distorcida. É tempo, enfim, de deixar de ser o que não somos.


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Notas

* Centro de Investigaciones Sociales (CIES), Lima.

  1. Quero agradecer, principalmente, a Edgardo Lander e a Walter Mignolo, por sua ajuda na revisão deste artigo. E a um comentarista, cujo nome ignoro, por suas valiosas críticas a uma versão anterior. Desnecessário afirmar que eles não são responsáveis pelos erros e limitações do texto.

  2. Sobre o conceito de colonialidade do poder, ver Aníbal Quijano (1992a).

  3. Ver Quijano e Wallerstein (1992) e Quijano (1991). Sobre o conceito de espaço/tempo, ver Wallerstein (1997).

  4. Sobre esta questão e sobre os possíveis antecedentes da idéia de raça antes da América, remeto a Quijano (1992b).

  5. A invenção da categoria de cor –primeiro como a mais visível indicação de raça, mais tarde simplesmente como o equivalente dela–, tanto como a invenção da particular categoria de branco, exigem ainda uma pesquisa histórica mais exaustiva. Em todo caso, muito provavelmente foram invenções britânico-americanas, já que não há rastros dessas categorias nas crônicas e em outros documentos dos primeiros cem anos de colonialismo ibérico na América. Para o caso britânico-americano existe uma extensa

    bibliografia (Theodore W. Allen, 1994 e Mathew Frye Jacobson, 1998, entre os mais importantes). O problema é que esta ignora o sucedido na América Ibérica. Devido a isso, para esta região ainda carecemos de informação suficiente sobre este aspecto específico. Por isso esta segue sendo uma questão aberta. É muito interessante que apesar de que os que haveriam de ser europeus no futuro, conheciam os futuros africanos desde a época do império romano, inclusive os ibéricos, que eram mais ou menos familiares com eles muito antes da Conquista, nunca se pensou neles em termos raciais antes da aparição da América. De fato, raça é uma categoria aplicada pela primeira vez aos “índios”, não aos “negros”. Deste modo, raça apareceu muito antes que cor na história da classificação social da população mundial.

  6. A idéia de raça é, literalmente, uma invenção. Não tem nada a ver com a estrutura biológica da espécie humana. Quanto aos traços fenotípicos, estes se encontram obviamente no código genético dos indivíduos e grupos e nesse sentido específico são biológicos. Contudo, não têm nenhuma relação com nenhum dos subsistemas e processos biológicos do organismo humano, incluindo por certo aqueles implicados nos subsistemas neurológicos e mentais e suas funções. Ver Jonathan Mark (1994) e Aníbal Quijano (1999b).

  7. Fernando Coronil (1996) discutiu a construção da categoria Ocidente como parte da formação de um poder global.

  8. Isso foi o que, segundo um relato pessoal, encontrou Alfred Metraux, o conhecido antropólogo francês, em fins dos anos 50 no Sul do Peru, e o mesmo que também encontrei em 1963, em Cusco: um trabalhador braçal índio obrigado a viajar de sua aldeia, em La Convención, até a cidade, para cumprir seu turno de servir durante uma semana a seus patrões. Mas estes não lhe proporcionavam moradia, nem alimento, nem, desde logo, salário. Metraux propunha que essa situação estava mais próxima do colonato romano do século IV d.C. que do feudalismo europeu.

  9. Sobre o processo de produção de novas identidades histórico-geoculturais ver de Edmundo O’Gorman (1954), José Rabasa (1993), Enrique Dussel (1995), V. Y. Mudimbe (1988), Charles Tilly (1990), Edward Said (1979) e Fernando Coronil (1996).

  10. Acerca dessas questões, ver George W. Stocking Jr. (1968), Robert. C. Young (1995), Aníbal Quijano (1992a; 1992c; 1997) e Serge Gruzinski (1988).

  11. Acerca das categorias produzidas durante o domínio colonial europeu do mundo, existe um bom número de linhas de debate: “estudos da subalternidade”, “estudos pós-coloniais”, “estudos culturais”, “multiculturalismo”, entre os atuais. Também uma florescente bibliografia demasiado extensa para ser aqui citada e com nomes famosos entre eles, como Guha, Spivak, Said, Bhabha, Hall.

  12. Há uma vasta literatura em torno desse debate. Um sumário pode ser encontrado em meu texto “El fantasma del desarrollo en América Latina” (Quijano, 2000a).

  13. Sobre este tema ver as agudas observações de Robert C. Young (1995).

  14. Um debate mais detido em Quijano (2000b).

  15. Acerca das proposições teóricas desta concepção do poder, ver Quijano (1999a).

  16. No sentido de que as relações entre as partes e a totalidade não são arbitrárias e a última tem hegemonia sobre as partes na orientação do movimento do conjunto. Não no sentido sistêmico, quer dizer, em que as relações das partes entre si e com o conjunto são lógico-funcionais. Isto não ocorre senão nas máquinas e nos organismos. Nunca nas relações sociais.

  17. A literatura do debate sobre o eurocentrismo cresce rapidamente. Uma posição diferente da que orienta este artigo, ainda que dela aparentada, é a de Samir Amin (1989).

  18. Sobre a origem da categoria de heterogeneidade histórico-estrutural, ver meu “Notas sobre el concepto de marginalidad social, CEPAL”, incorporado depois ao volume Imperialismo y Marginalidad en América Latina (Quijano, 1977). Pode-se ver também Quijano (1988a).

  19. Sempre me perguntei pela origem de uma das mais caras propostas do Liberalismo: as idéias devem ser respeitadas. O corpo, por sua vez, pode ser torturado, triturado e morto. Nós os latino-americanos acostumamos citar com admiração a desafiante frase de um mártir das lutas anticoloniais, no próprio momento de ser degolado: “Bárbaros, as idéias não se degolam!”. Sugiro agora que sua origem deve ser buscada nesse novo dualismo cartesiano, que transformou o “corpo” em mera “natureza”.

  20. Ver Discours de la méthode, Méditations e Description du corps humain (Descartes, 1963-1967). Paul Bousquié (1994) acerta neste ponto: o cartesianismo é um novo dualismo radical.

  21. Acerca desses processos na subjetividade eurocentrada, revela muito que a única categoria alternativa ao Ocidente era, e ainda o é, o Oriente, enquanto que os negros (África) ou os índios (América antes dos Estados Unidos) não tinham a honra de ser o Outro da Europa ou Ocidente.

  22. Como sugere Benedict Anderson (1991). Uma discussão mais extensa sobre este ponto em Quijano (1998a).

  23. Uma discussão mais ampla sobre os limites e as condições da democracia numa estrutura de poder capitalista, em Quijano (1998a; 2000a).

  24. Provavelmente o antecedente mais próximo da idéia de raça produzida pelos castelhanos na América. Ver Quijano (1992b).

  25. Ainda nos anos 20 em pleno século XX, H. Murena, um membro importante da inteligência argentina, não hesitava em proclamar: “Somos europeus exilados nestas pampas selvagens”. Ver Eugenio Imaz (1964). E tão tardiamente como nos anos 60, nas lutas sociais, culturais e políticas da Argentina, “cabecita negra” era o mote pejorativo da discriminação especificamente racial.

  26. A homogeneização é um elemento básico da perspectiva eurocentrista da nacionalização. Se assim não fosse, não se poderia explicar, nem entender, os conflitos nacionais nos países europeus cada vez que se coloca o problema das diferenças étnico-raciais dentro da população. Não se poderia entender tampouco, de outro modo, a política eurocêntrica de povoamento favorecida pelos liberais do Cone Sul da América Latina, nem a origem e o sentido do assim chamado “problema indígena” em toda a América Latina. Se os fazendeiros peruanos do século XIX importaram chineses, foi precisamente porque a questão nacional não estava em jogo para eles, e sim o puro interesse social. Foi por essa perspectiva eurocentrista, fundada na colonialidade do poder, que a burguesia senhorial latino-americana tem sido inimiga da democratização social e política como condição de nacionalização da sociedade e do Estado.

  27. Nos anos 60 e 70 muitos cientistas sociais dentro e fora da América Latina, entre os quais me incluo, usamos o conceito de “colonialismo interno” para caracterizar a aparente relação paradoxal dos Estados independentes com relação a suas populações colonizadas. Na América Latina, Pablo González Casanova (1965) e Rodolfo Stavenhagen (1965) foram seguramente os mais importantes entre os que trataram de teorizar o problema de maneira sistemática. Agora sabemos que esses são problemas acerca da colonialidade que vão muito além da trama institucional do Estado-nação.

  28. Sobre estas questões adiantei algumas propostas de debate em Quijano (1993).

  29. A miopia eurocêntrica, não apenas de estudiosos da Europa ou dos Estados Unidos mas também dos da América Latina, difundiu e quase impôs universalmente o nome de populismo para esses movimentos e projetos que, contudo, têm pouco em comum com o movimento dos narodníkis russos do século XIX ou do populismo estadunidense posterior. Uma discussão destas questões em Quijano (1998b).

  30. Essa descoberta é, sem dúvida, o que outorga a Mariátegui seu maior valor e sua continuada vigência, derrotados os socialismos e seu materialismo histórico. Ver, sobretudo, a passagem final do primeiro de seus 7 Ensayos de Interpretación de la realidad peruana (1928b), numerosamente reimpresso; “Punto de Vista Antiimperialista” apresentado à Primeira Conferência Comunista Latino-americana, Buenos Aires (1929); e o célebre “Aniversario y balance”, editorial da revista Amauta (1928a).

V.22, nº 47, 2024 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799X


CAPITALISMO SELVAGEM E O MODO AUTOCRÁTICO DE DOMINAÇÃO BURGUESA EM FLORESTAN FERNANDES1


Matheus de Carvalho Barros2



Resumo

O objetivo deste artigo é apresentar os principais postulados teóricos do capítulo sete da obra A Revolução Burguesa no Brasil, publicada por Florestan Fernandes em 1975. Em primeiro lugar, iremos analisar as formulações do sociólogo sobre o modo autocrático de realização do capitalismo na periferia e a característica intrinsecamente reacionária das classes dominantes brasileiras. Em seguida, empreendemos uma breve reflexão de como os diagnósticos apontados por Florestan nos ajudam a compreender o recrudescimento do caráter autocrático da nossa formação social sob o Governo Bolsonaro.

Palavras-chaves: Florestan Fernandes; Capitalismo dependente; Autocracia Burguesa; Bolsonarismo


1 Artigo recebido em 22/01/2024. Aprovado em 30/01/2024. Publicado em 22/02/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.61530

2 Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ), Rio de Janeiro - Brasil.

E-mail: carvalho_barros@id.uff.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1827391223830793. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3895-3961.

EL CAPITALISMO SALVAJE Y EL MODO AUTOCRÁTICO DE DOMINACIÓN BURGUESA EN FLORESTAN FERNANDES


Resumen

El objetivo de este artículo es presentar los principales postulados teóricos del capítulo siete de la obra A Revolução Burguesa no Brasil, publicada por Florestan Fernandes en 1975. En primer lugar, analizaremos las formulaciones del sociólogo sobre la forma autocrática de realizar el capitalismo en la periferia y la característica intrínsecamente reaccionaria de las clases dominantes brasileñas. A continuación, emprenderemos una breve reflexión sobre cómo los diagnósticos destacados por Florestan nos ayudan a comprender el resurgimiento del carácter autocrático de nuestra formación social bajo el Gobierno de Bolsonaro.

Palabras clave: Florestan Fernandes; Capitalismo dependente; Autocracia Burguesa; Bolsonarismo


WILD CAPITALISM AND THE AUTOCRATIC MODEL OF BOURGEOIS DOMINATION IN FLORESTAN FERNANDES


Abstract

The objective of this article is to present the main theoretical postulates of chapter seven of the work A Revolução Burguesa no Brasil, published by Florestan Fernandes in 1975. Firstly, we will analyze the sociologist's formulations on the autocratic way of realizing capitalism in the periphery and the intrinsically reactionary characteristic of the Brazilian ruling classes. Next, we will undertake a brief reflection on how the diagnoses developed by Florestan help us understand the resurgence of the autocratic character of our social formation under the Bolsonaro Government.

Keywords: Florestan Fernandes; Dependent capitalism; bourgeois autocracy; Bolsonarism


A Revolução Burguesa no Brasil, de Florestan Fernandes



Analisando as particularidades da transformação capitalista na periferia, em 1975, Florestan Fernandes publica umas de suas obras mais importantes que, segundo Coutinho (2000), é o primeiro texto onde o marxismo é assumido

explicitamente como ponto de vista metodológico pelo sociólogo paulistano. Refiro-me aqui à Revolução Burguesa no Brasil.

O livro é composto de três partes distintas, escritas em momentos diferentes por Fernandes. As duas primeiras são fruto das notas de aula de um curso, de 1966, voltado para o estudo da formação e do desenvolvimento da sociedade brasileira. Essas notas permaneceram arquivadas por muitos anos, até que sua filha, Heloisa Fernandes, o incentivou a retomá-las (PORTELA JR, 2021).

Assim Heloisa Fernandes relembra o contexto do surgimento da obra:


[...] para A Revolução Burguesa no Brasil, Florestan escreveu uma Nota Explicativa agradecendo o estímulo dos professores Luiz Pereira e Fernando Henrique Cardoso e o “incentivo entusiástico de minha filha, a professora Heloísa Rodrigues Fernandes”. Pode ser esta uma boa ocasião para esclarecer o que se passou. Professora de Sociologia da USP, eu estava preparando a redação da minha dissertação de mestrado. Num domingo, conversando com meu pai, falei da minha dificuldade para encontrar uma perspectiva de análise sociologicamente relevante da sociedade brasileira a partir de onde poderia ganhar sentido a criação da antiga e já saudosa Força Pública do Estado de São Paulo. Meu pai respondeu como sempre fazia: “pois leia isto, aquilo e aquilo outro. Depois, se quiser, consulte meu arquivo. Dei um curso sobre a formação e desenvolvimento da sociedade brasileira, na graduação, em 1966. Leia as fichas do curso porque você pode encontrar algumas sugestões”. Evidentemente, comecei a leitura das fichas e fiquei encantada! Nunca tinha lido nada com igual estatuto sociológico sobre a sociedade brasileira. Entusiasmada, disse-lhe que aquele material não podia ficar mofando no arquivo, que ele precisava ser publicado. Podem acreditar, meu pai resistiu o que pôde, “que de modo nenhum, que era apenas material de aula, etc. e tal”. Insisti e persisti inúmeras e repetidas vezes com essa garra que, afinal, herdei do meu próprio pai até que consegui abrir brechas na sua férrea determinação. Lembro que, certo dia, parou de argumentar, olhou bem pra mim, com aqueles seus lindos olhos já brilhando na alegria antecipada do trabalho que teria pela frente, e disse algo mais ou menos assim: “Você acha mesmo? Tem certeza? Então, vou reler essas fichas...” E foi assim que um curso sobre a formação e desenvolvimento da sociedade brasileira começou a ser transformado, inicialmente, no A Revolução Burguesa em Processo, que é como eu o cito, ainda como texto datilografado, na minha dissertação de mestrado, publicada em 1974, para se tornar, finalmente, A Revolução Burguesa no Brasil o qual, publicado pela primeira vez em 1975, é constituído pela revisão das anotações das aulas, de 1966, e por uma longa Terceira Parte, Revolução Burguesa e Capitalismo Dependente, que Florestan escreveu especialmente para o livro, em 1973 (FERNANDES, 2000, s/p).

O retorno a esse material anos depois é significativo, pois, neste período, nosso autor passou por transformações profundas que já não o permitiam enxergar

o processo de revolução burguesa do mesmo modo no Brasil. Se em 1966 o “socialista militante” já estava presente, mas nem sempre transparecendo no “acadêmico”, em 1973, quando retoma a escrita, ele passa para o primeiro plano sem deixar de lado o sociólogo rigoroso capaz de produzir uma análise refinada da realidade brasileira (PORTELA JR, 2021).

Para José de Souza Martins (2006), o livro em formato de ensaio ganha sentido no ambiente intelectual do debate brasileiro sobre o tipo de sociedade capitalista que estava se desenvolvendo no Brasil. Desta forma, A Revolução Burguesa poderia ser vista como o último grande estudo do ciclo de reflexões históricas e sociológicas abrangentes sobre o destino histórico do Brasil.

Acreditamos ser possível afirmar que A Revolução Burguesa no Brasil equivale, em certo sentido, ao O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia (1899) de Lenin, um marco nos estudos sobre o desenvolvimento do capitalismo em sociedades diferentes da Europa Ocidental. A interpretação de Florestan sobre o processo da lenta e complicada revolução burguesa no Brasil tem como um dos seus aspectos mais positivos o distanciamento de um marxismo determinista e engessado. Em outras palavras, o marxismo de Florestan Fernandes se contrapôs a todo tipo de vulgarização da tradição oriunda de Marx que propõe uma concepção de história regida por etapas pré-determinadas, segundo um modelo abstrato de processo histórico. Modelo esse que corresponderia a um etapismo mecanicista e a uma visão antidialética da realidade.

Entretanto, no meado dos anos de 1960, ou seja, antes mesmo da publicação de A Revolução Burguesa, já era possível visualizar algumas alterações fundamentais na forma com que Florestan concebia o desenvolvimento sócio-histórico brasileiro. Uma dessas mudanças pode ser visualizada na maneira como Fernandes passa a relacionar os termos “sociedade de classes” e “subdesenvolvimento”, a partir da construção do conceito de “Capitalismo Dependente”.

Segundo Antônio Brasil Jr. (2013), ao passar a conceber uma conjunção crônica entre “sociedade de classes” e “subdesenvolvimento”, Florestan Fernandes realiza uma verdadeira guinada em sua análise sociológica em pelo menos três aspectos. O primeiro aspecto seria a necessidade de articular elementos “internos” e “externos” às sociedades, com ênfase nos dinamismos socioeconômicos. Essa articulação específica também levaria a uma imbricação entre elementos ditos

“arcaicos” com elementos “modernos”. Em um segundo plano estaria a requalificação da atuação limitada da burguesia brasileira diante das condições do “capitalismo dependente”. Por fim, estaria a caracterização da natureza autocrática da transformação capitalista engendrada pelas condições de dependência.

A despeito de já utilizar a noção de “dependência” em seus textos desde a década de 1950, ela só assume real importância na obra de Florestan a partir do artigo Sociedade de Classes e subdesenvolvimento, escrito no final de 1967. Chamando a atenção para a importância deste artigo, Felipe Demier (2008) destaca que Fernandes foi o intelectual acadêmico que inaugurou as pesquisas científicas referentes à realidade brasileira nitidamente estruturadas pela “lei do desenvolvimento desigual e combinado”. Para o historiador, Florestan teria sido o principal combatente do dogmatismo stalinista nas ciências sociais do país.

No ensaio de 1967 Fernandes afirma que:


A natureza e os ritmos da transformação capitalista sob as grandes corporações “multinacionais” criaram a realidade histórica de nossa época. Os países retardatários são comensais desprezíveis ou simples repasto para os demais. Não há como fazer coincidir os tempos da história: as estruturas sócio-econômicas, culturais e políticas dos países capitalistas hegemônicos absorvem estruturas dos países subcapitalistas, semicapitalistas ou de capitalismo dependente, submetendo-as a seus próprios ritmos e subordinando-as aos interesses que lhe são próprios (...) O capitalismo selvagem ( a forma assumida pelo capitalismo nos países dependentes) não reproduz o passado; e se nele há lugar para a “revolução burguesa”, esta se apresenta de outra forma e com outros objetivos fundamentais. Sem dúvida, o desenvolvimento capitalista pressupõe muitos mecanismos econômicos, sócio-culturais e políticos que se repetem. Mas eles se repetem em tais condições e sob tais fundamentos, que apontam para uma realidade econômica, sócio-cultural e política específica, típica de uma situação histórica e de uma condição inexorável de dependência tecnoeconômica (FERNANDES, 1968, p. 64-65).

A partir deste trecho, é possível observar como a noção de “desenvolvimento combinado” orientou a interpretação de Florestan Fernandes acerca da estrutura socioeconômica brasileira. Nessa perspectiva, o “arcaico” não aparece como resquício de outra temporalidade que entrava o desenvolvimento do capital. Pelo contrário, para o sociólogo paulistano, seria justamente a presença de elementos “anticapitalistas” e “semicapitalistas” que produziria funcionalidade ao capitalismo na periferia. Portanto, “o arcaico não seria antípoda do moderno, e sim seu complemento histórico e necessário” (DEMIER, 2008, p. 74).

Nesse contexto, doravante este ensaio (1967), há uma maior sistematização entre os elementos “internos” e “externos” nas análises de Florestan. Desta forma, passa a se impor uma necessidade de articular num mesmo andamento explicativo as condições locais e globais, com o objetivo de avaliar o peso dessa articulação para o dinamismo do sistema social.


O modo autocrático de transformação capitalista


Uma das contribuições mais significativas de Fernandes em sua obra é justamente concepção da “autocracia burguesa” como um modo específico de realização do capitalismo em um país dependente como o Brasil. Como nos apontam Botelho e Brasil Jr. (2020) no prefácio à nova edição do livro, Florestan desenvolve a ideia de “autocracia” para interpretar a persistência de um princípio ordenador intrinsecamente antidemocrático presente no Estado, na sociedade e no mercado, até mesmo em contextos de regimes formalmente democráticos. Pois, a relação entre autocracia e a democracia não é necessariamente de oposição, mas “sua sombra sempre presente em segundo plano, para emergir, com maior ou menor virulência, em situações de crise do poder burguês” (COHN apud FERNANDES, 2020, p. 11).

Florestan começa o sétimo capítulo de A revolução burguesa no Brasil ressaltando que a relação entre a modernização capitalista e dominação burguesa é altamente variável. Nesse sentido, o sociólogo paulistano está se contrapondo a uma visão eurocêntrica que supõe a existência de um único modelo básico de transformação capitalista. Fernandes (2020) argumenta que as maiorias das interpretações teóricas só aceitam como revolução burguesa as manifestações que se aproximavam dos “casos clássicos”, caracterizadas por uma associação entre desenvolvimento capitalista e conquistas democráticas. Entretanto, essas análises partiam de uma

posição unilateral, que perdia de vista o significado empírico, teórico e históricos dos “casos comuns”, nos quais a revolução burguesa aparece vinculada a alterações estruturais e dinâmicas condicionadas pela irradiação externa do capitalismo maduro, ou dos “casos atípicos”, nos quais a revolução burguesa apresenta um encadeamento bem diverso daquele que se pode inferir através do estudo de sua eclosão na Inglaterra, França e nos EUA (FERNANDES, 2020, p. 288).

Sendo assim, o objetivo central de Florestan no capítulo sete de sua obra é investigar, do ponto de vista teórico, a relação entre transformação capitalista e dominação burguesa nos países de economia dependente. Segundo Fernandes (2020), na periferia do capitalismo a revolução burguesa constitui uma realidade histórica peculiar. Aqui não há possibilidade da “repetição da história” ou do desencadeamento automático dos pré-requisitos do modelo democrático-burguês dos países hegemônicos. Muito pelo contrário. Para Florestan (2020), o que se visualiza na periferia é, na verdade, uma forte dissociação entre desenvolvimento capitalista e democracia; “ou, usando-se uma notação sociológica positiva: uma forte associação racional entre desenvolvimento capitalista e autocracia” (FERNANDES, 2020, p. 290).

Nesse contexto, Florestan Fernandes argumenta que a extração dual do mais-valor – de um lado pela burguesia nacional e de outro pelas burguesias estrangeiras – acaba provocando uma “hipertrofia” dos fatores políticos da dominação burguesa. A condição de dependência faz com que o capitalismo na periferia seja “selvagem e difícil, cuja viabilidade se decide, com frequência, por meios políticos e no terreno político” (FERNANDES, 2020, p. 291).

Fernandes está apontando para uma aparente contradição. A falta de autonomia da burguesia nacional em relação ao capital estrangeiro, não implica necessariamente em uma “fraqueza” dessa classe no plano interno. Ao contrário, Florestan (2020) argumenta que quanto mais se aprofunda o desenvolvimento capitalista, mais as nações hegemônicas precisam de “aliados sólidos” na periferia dependente. Ou seja, é necessário que as burguesias nacionais sejam fortes e capazes de saturar as funções repressivas da dominação burguesa, reprimindo brutalmente até as mais leves manifestações de insatisfação dos trabalhadores.

Florestan está chamando a atenção para a característica profundamente reacionária da dominação burguesa no Brasil e sua propensão “a salvar-se mediante a aceitação de formas abertas e sistemáticas de ditadura de classe” (FERNANDES, 2020, p. 292). Ou seja, na periferia do capitalismo todo ideal burguês de caráter emancipatório foi posto de lado. O que nos coloca diante do poder burguês mais extremo e brutal, onde o Estado é convertido em um “instrumento puro e simples de uma ditadura de classe preventiva” (FERNANDES, 2020, p. 294).

Na parte final de A Revolução Burguesa no Brasil o sociólogo paulistano aponta para as possibilidades que poderiam derivar de um “distensionamento” da contrarrevolução preventiva, argumentando que a autocracia burguesa poderia levar “a uma democracia restrita típica, que se poderia designar como uma democracia de cooptação” (FERNANDES, 2020, p. 351). Esse processo de cooptação tem por finalidade estender as fronteiras da consciência burguesa para dentro das classes subalternas, apresentando os interesses das classes dominantes como se fossem interesses universais (PEREZ, 2019). Pois, como nos aponta Florestan, o sentido profundamente reacionário presente no clímax de crise do poder burguês que deu sentido ao golpe de 1964, já não se ajustava tanto naquele momento à racionalidade da transformação capitalista, “acelerada a partir de fora e de dentro pela iniciativa privada e pela intervenção estatal” (FERNANDES, 2020, p. 354).

Contudo, mesmo que fosse possível observar um “distensionamento” do regime ditatorial no meado dos anos 1970, as classes dominantes não poderiam abrir mão


das próprias vantagens e privilégios; dos controles de que dispõem sobre si mesmas, como e enquanto classes; e dos controles de que dispõem sobre as classes operárias, as massas populares e as bases nacionais das estruturas de poder. As vantagens e privilégios estão na raiz de tudo, pois se as classes burguesas realmente “abrissem” a ordem econômica, social e política, perderiam, de uma vez, qualquer possibilidade de manter o capitalismo e preservar a íntima associação existente entre dominação burguesa e monopolização do poder estatal pelos estratos hegemônicos da burguesia (FERNANDES, 2020, p. 356).


Portanto, para Florestan (2020), a democracia de cooptação possui pouca eficiência e pouca flexibilidade em nações capitalistas de extrema concentração de riqueza e de poder. Segundo Davi Perez (2019), esse diagnóstico de Florestan nos traz importantes aportes para analisar o que foi a transição que colocou fim à ditadura aberta de classes. O que está em jogo para o sociólogo paulistano é que a problemática da hegemonia burguesa – no momento em que ele escreve a última parte do seu ensaio – era posta em um novo contexto histórico, “sob a impetuosa necessidade de criar vínculos orgânicos que deverão entrelaçar os mecanismos da democracia de cooptação com a organização e o funcionamento do Estado autocrático” (FERNANDES, 2020, p. 355).

Sendo assim, esse processo não leva à democracia burguesa, mas à consolidação da própria autocracia. Para Florestan não se trata de abrir caminho para uma autêntica experiência democrática. O que as classes dominantes pretendem é


criar condições normais para o funcionamento e o crescimento pacíficos da ordem social competitiva, que se achava estabelecida antes de 1964 e foi convulsionada em seus fundamentos ideais, e revitalizada, em seus fundamentos econômicos, sociais e políticos, pelo desenvolvimento econômico acelerado e pela contrarrevolução preventiva (FERNANDES, 2020, p. 356).


Autocracia burguesa e bolsonarismo: a atualidade de Florestan Fernandes


Acreditamos que o Golpe de 2016 confirma o diagnóstico de Florestan Fernandes sobre a pouca flexibilidade da democracia de cooptação e a manutenção de um domínio autocrático no Estado pela burguesia brasileira. “Trata-se de mais uma demonstração do poder e da atuação extra institucional das classes dominantes brasileiras” (PEREZ, 2019, p. 20). Na conjuntura de crise, a burguesia pró-imperialista depõe governos que, embora já tenham servido aos interesses do grande capital, já não servem mais ou se tornaram obstáculos em alguma medida.

Neste contexto, a extrema-direita veio à “luz do dia”. O resultado deste processo acabou por desembocar na eleição de Jair Bolsonaro em 2018. A radicalização da polarização política, que vinha desde a eleição anterior de 2014, se aprofundou e engoliu a direita tradicional que conspirou e participou ativamente do golpe, abrindo espaço para a extrema-direita reacionária, mobilizadas por discursos misóginos, racistas, elitistas, e com claras inspirações fascistas.

Segundo David Maciel (2020), no cenário de instauração do Governo Bolsonaro, vigorou no Brasil o que poderíamos chamar de “democracia restrita”, substituta da “democracia de cooptação” oriunda da transição pós-ditadura e legitimada pela constituição de 1988. O cientista político aponta que, no sincretismo que conformou a autocracia burguesa neste período, o que restou do regime democrático representativo foi restringido gradativamente pelo avanço dos elementos autoritários e fascistas no interior da autocracia burguesa.

O recrudescimento da autocracia burguesa sob o governo Bolsonaro pode ser observado não apenas nos discursos do presidente, mas essencialmente na sua

própria forma de governar. A militarização do governo, por exemplo, representou uma das faces dessa radicalização. Segundo Mattos (2020), nenhum governo desde a ditadura empresarial-militar teve tantos militares em cargos de primeiro, segundo e terceiro escalão quanto o de Bolsonaro. O professor da UFF cita um levantamento realizado em março de 2019, mostrando que além do presidente e do vice, oito ministros eram egressos das forças armadas e que 130 cargos nos três primeiros escalões do governo federal eram ocupados por militares.3 Segundo os dados do próprio Ministério da Defesa, em agosto do mesmo ano era possível contabilizar um total de 1.271 militares da ativa cedidos ao Executivo federal, representando um aumento de 13% em relação ao governo anterior.4

Além da composição militar do governo, podemos apontar também o frequente recurso aos decretos presenciais com objetivo de rever leis aprovadas pelo próprio Congresso. Um dos exemplos dessa prática foram as inúmeras tentativas de ampliar a posse e o porte de armas de fogo, contrariando alguns dispositivos legais como o Estatuto do desarmamento (MATTOS, 2020).

Outro claro elemento que demonstra a tendência ao aprofundamento da “via autocrática”, foram as frequentes demissões de ministros e assessores, quase sempre com a chancela dos militares. Com a demissão do ministro da Educação Milton Ribeiro no dia 28 de março de 2022, o governo Bolsonaro acumulou quase trinta trocas de ministros desde 2019.

Existe uma clara coerência entre a ideologia neofascista que orienta Bolsonaro e as políticas autocráticas implementadas pelo seu governo5. Dentre elas podemos citar:

Apoio a ditaduras, ataque ao Estado de Direito; defesa da tortura e de torturadores; ataque a Instituições cientifica (IBGE, INPE, CNPq); violência armada contra indígenas e movimentos sociais; defesa e estímulo ao desmatamento da Amazônia; ataque à cultura (ANCINE) e estrangulamento financeiro das Universidades Públicas (FILGUEIRAS; DRUCK, 2019).


3 Adriana Ferraz (e outros), “Mapa dos militares: onde estão os representantes das forças armadas no governo Bolsonaro”. Estadão, 2 mar, 2019, disponível em: https://www.estadao.com.br/infograficos/politica,mapa-dos-militares-onde-estao-os-representantes-da s-forcas-armadas-no-governo-bolsonaro,975096

4Gabriel Shinohara, “Número de militares da ativa no governo federal cresce 13% com Bolsonaro”, O Globo, 5 ago. 2019, disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/numero-de-militares-da-ativa-no-governo-federal-cresce-13-com-bols onaro-23854701

5 Para uma análise mais sistemática da relação entre Bolsonarismo e a ideologia fascista ver: BARROS, Matheus C. Neofascismo e neoliberalismo: o fenômeno Bolsonaro. Revista Ensaios, v.17,

p. 136-158, 2020; MELO, Demian. O bolsonarismo como fascismo do século XXI. In: REBUÁ, E.; COSTA, R.; GOMES, R.; CHABALGOITY, D. (Org.). (Neo)fascismo e educação: reflexões críticas sobre o avanço conservador no Brasil. 1ed.Rio de Janeiro: Mórula, 2020, v. 1, p. 12-46.

É neste cenário político e institucional que o governo Bolsonaro alimentou uma perspectiva ainda mais autocrática, aprofundando a escalada autoritária visualizada após o golpe de 2016. Segundo David Maciel (2020), o conjunto de medidas do ex-capitão do exército visou anular o espaço político dos trabalhadores, criminalizando os movimentos sociais e suas lutas, enfraquecendo o movimento sindical e atacando os partidos de esquerda.

Em suma, restringe o poder de pressão, a capacidade de influenciar políticas públicas e de acessar o Estado por parte do mundo do trabalho, ao mesmo tempo em que fortalece e amplia as instâncias que fazem interlocução com o capital. Está é uma perspectiva apoiada por todas as forças que compõem ou apoiam o governo, o que significa limitar ainda mais a democracia restrita vigente desde 2016 em favor dos elementos autoritários e fascistas da autocracia burguesa (MACIEL, 2020, p. 4).

Ainda sobre a relação entre teoria e prática, ou entre ideologia e ação, se pegarmos o exemplo da violência policial, será possível argumentar que o primeiro ano do governo Bolsonaro “demonstrou como os discursos do bolsonarismo refletem-se em práticas concretas” (MATTOS, 2020, p. 225). A cidade do Rio de Janeiro, reduto eleitoral de origem do ex-presidente, atingiu a assombrosa marca de 1.810 pessoas – cinco por dia - mortas por ação das forças policiais em 2019. Segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP), esse número representa um aumento de 18% em relação ao ano anterior, e o maior número registrado desde 1998.6

No dia 06 de março de 2021, uma operação da Polícia Civil na favela do Jacarezinho – zona norte do Rio de Janeiro – resultou em uma chacina com 28 mortos. Um ano após a operação mais letal da história da cidade, dez das treze investigações do Ministério Público foram arquivadas e apenas uma segue em andamento.7

No dia 24 de maio de 2022, uma operação conjunta entre Polícia Federal Rodoviária e o Batalhão de Operações Especiais (Bope) realizou mais uma chacina


6 “Rio registra recorde de mortes pela polícia em 2019”, Estado de Minas, 22 jan. 2020, disponível em:https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2020/01/22/interna_internacional,1116213/rio-regi stra-recorde-de-mortes-pela-policia-em-2019.shtml

7 “Jacarezinho: 1 ano após mortes, 10 de 13 investigações do MP foram arquivadas”. G1, 5 maio 2022, disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/05/05/jacarezinho-1-ano-apos-28-mortes-10-de-13-i nvestigacoes-do-mp-foram-arquivadas.ghtml

no Rio de Janeiro, desta vez na favela da Vila Cruzeiro – zona norte da cidade – deixando 25 pessoas mortas. Um dia depois (25 de maio), em Sergipe, Genivaldo de Jesus Santos, de 38 anos, foi morto dentro do porta-malas de um carro da Polícia Rodoviária Federal. Um laudo do Instituto Médico Legal confirmou que a morte de Genivaldo, um homem negro com transtornos psiquiátricos, morreu de asfixia mecânica e insuficiência respiratória aguda8. Uma cena bárbara na qual é impossível não fazer uma analogia às práticas de execução nazista.

Em entrevista ao portal “Yahoo Notícias”, Michel Gherman, coordenador do Núcleo interdisciplinar de estudos judaicos da UFRJ, afirma que há uma relação indireta entre o Governo de Jair Bolsonaro com a violência policial ocorrida em Sergipe. Segundo o pesquisador,

Não foi Bolsonaro que decidiu colocar Genivaldo na câmara de Gás, mas é um erro acreditar que Hitler estava envolvido em todas as decisões do holocausto. Em algum sentido, tal qual os comandantes de Hitler, alguns policiais querem ser mais bolsonaristas que Bolsonaro. Não é que Bolsonaro está envolvido diretamente, mas ele está produzindo uma cultura brutal, que leva a uma câmara de gás em meio a uma grande cidade brasileira (GHERMAN apud Yahoo Notícias, 2022).

Mas não é apenas na violência institucional que podemos enxergar os efeitos práticos dos discursos neofascistas. O bolsonarismo enquanto ideologia é intrinsecamente misógino. Os dados sobre violência contra as mulheres indicam que, ao contrário de outros crimes violentos, os feminicídios cresceram em 2019. Um levantamento do G1 – com base nos dados oficiais dos 26 estados e do distrito federal – aponta para um aumento de 7,3% em 2019 em comparação com 2018. Ao todo foram 1.314 mulheres mortas pelo simples fato de serem mulheres, indicando a média de uma morte a cada sete horas.9

Por fim, como bem denota Marcelo Badaró (2020), a combinação da ideologia neofascista com as políticas autocráticas de ataques a direitos e instituições democráticas se articulou com a política ultraneoliberal comanda pelo ministro Paulo Guedes. Apesar da retórica nacionalista de Bolsonaro, é preciso estar atento às

8 “Não parece com nazismo, é nazismo, diz professor sobre “câmara de gás” da PRF”. Yahoo! Notícias, 26 de maio de 2022, disponível em: https://br.noticias.yahoo.com/nao-parece-com-nazismo-e-nazismo-diz-professor-sobre-camara-de-gas

-da-prf-200131919.html

9 Clara Velasco, Gabriela Caesar e Thiago Reis, “Mesmo com queda recorde de mortes de mulheres, Brasil tem alta no número de feminicídios em 2019”, G1, 5 mar. 2020, disponível em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2020/03/05/mesmo-com-queda-recorde-de-mortes-d e-mulheres-brasil-tem-alta-no-numero-de-feminicidios-em-2019.ghtml

suas especificidades, que se explicam pela própria posição subalterna que o Brasil ocupa no sistema capitalista. Segundo Michael Löwy (2019), enquanto boa parte da extrema direita mundial denuncia a globalização neoliberal, em nome de um protecionismo do nacionalismo econômico, Bolsonaro propõe um programa econômico ultraliberal, com mais globalização e privatizações. Nesse sentido, Löwy (2020) destaca que o neofascismo de Bolsonaro é totalmente identificado com o neoliberalismo.

Em síntese, o Governo Bolsonaro foi um modo de conjunção - especificamente brasileiro - do neoliberalismo com o neofascismo. As políticas neoliberais iniciadas com Michael Temer e aprofundadas com Jair Bolsonaro trazem os traços marcantes dos interesses da burguesia associada ao capital internacional. Em uma perspectiva de longo prazo, do ponto de vista estrutural, as aplicações dessas políticas se manifestarão no aprofundamento da dependência, no aumento da desindustrialização, na redução do mercado interno, e no consequente aumento da desigualdade social e da pobreza (FILGUEIRAS; DRUCK, 2019).

Na esteira desses argumentos, Costa e Mendes (2021) salientam que a conjuntura de aumento da pobreza, do desemprego e do contingente da classe trabalhadora empurrada ao mercado informal sem o colchão protetivo dos direitos trabalhistas, configura também uma forma de controle e coerção das classes subalternas, aprofundando, consequentemente, o caráter autocrático da nossa formação social.

Em suma, a precarização da vida pela defensiva do capital no presente estágio neoliberal, como violência per se, econômica e extraeconômica; um autoritarismo que submete ainda mais a vida ao lucro; a continuidade e acentuação da ditadura do grande capital (ANTUNES DA COSTA; MENDES, 2021, p. 87).

Portanto, o programa neoliberal é fundamentalmente autocrático e sua aplicação implica necessariamente no fortalecimento dos elementos autoritários e fascistas da institucionalidade política em detrimento dos elementos democráticos.


Considerações finais


No cenário de corrosão da nossa débil democracia e o aumento da violência e das desigualdades sociais observadas nos últimos anos, as lições teóricas e políticas legadas por Florestan Fernandes persistem como ferramentas

fundamentais para a compreensão e o enfrentamento dos dilemas contemporâneos. Em toda a sua “obra madura” Florestan chama atenção para o fato de que, na periferia do capitalismo, a democracia nunca foi o “modo ideal” do Estado burguês (MATTOS, 2020). Aqui nos “tristes trópicos” nos coube uma forma brutal e autocrática de dominação burguesa.

Nesse sentido, após está breve análise, argumentamos que, seguindo as orientações do sociólogo paulistano, o governo Bolsonaro representa um momento em que a autocracia burguesa - em meio a uma crise hegemonia - recorreu a um movimento neofascista para garantir a contrarrevolução preventiva, representando desta forma, o recrudescimento do caráter autocrático da nossa formação social.


Referências


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CAPÍTULO 7


Ü MODELO AUTOCRÁTICO-BURGUÊS DE TRANSFORMAÇÃO CAPITALISTA


A RELAÇÃO ENTRE A DOMINAÇÃO BURGUESA e a transformação capita­ lista é altamente variável. Não existe, como se supunha a partir de uma concepção europeucêntrica (além do mais, válida apenas para os "casos clássicos de Revolução Burguesa"), um único modelo básico democrático-burguês de transformação capitalista. Atualmente, os cientistas sociais já sabem, comprovadamente, que a transformação capitalista não se determina, de maneira exclusiva, em função dos requisitos intrínsecos do desenvolvimento capitalista. Ao contrário, esses requisitos (sejam os econômicos, sejam os socioculturais e os políticos) entram em interação com os vários elementos econômicos (naturalmente extra ou pré-capitalistas) e extra-econômicos da situa­ ção histórico-social, característicos dos casos concretos que se consi­

derem, e sofrem, assim, bloqueios, seleções e adaptações que delimi­ tam: 12) como se concretizará, histórico-socialmente, a transformação capitalista; 22) o padrão concreto de dominação burguesa (inclusive,

como ela poderá compor os interesses de classe extraburgueses e bur­ gueses ou, também, os interesses de classe internos e externos, se for o caso - e como ela se impregnará de elementos econômicos, socio­

culturais e políticos extrínsecos à transformação capitalista); 32) quais

são as probabilidades que tem a dominação burguesa de absorver os


A REVOLUÇÃO BURGUESA NO BRASIL 337

requisitos centrais da transformação capitalista (tanto os econômicos quanto os socioculturais e os políticos) e, vice-versa, quais são as pro­ babilidades que tem a transformação capitalista de acompanhar, estrutural, funcional e historicamente, as polarizações da dominação burguesa, que possuam um caráter histórico construtivo e criador.

Até recentemente, só se aceitavam interpretativamente como Revolução Burguesa manifestações que se aproximassem tipicamente dos "casos clássicos", nas quais houvesse o máximo de fluidez e de liquidez nas relações recíprocas da transformação capitalista com a dominação burguesa. Tratava-se, quando menos, de uma posição inter­ pretativa unilateral, que perdia de vista o significado empírico, teórico e histórico dos "casos comuns", nos quais a Revolução Burguesa apa­ rece vinculada a alterações estruturais e dinâmicas condicionadas pela irradiação externa do capitalismo maduro, ou dos "casos atípicos", nos quais a Revolução Burguesa apresenta um encadeamento bem diver­ so daquele que se pode inferir através do estudo de sua eclosão na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos (como o demonstram as investigações feitas sobre a Alemanha e o Japão).

Mais importante para este capítulo, do ponto de vista teórico, é a relação entre transformação capitalista e dominação burguesa nos paí­ ses periféricos de economia capitalista dependente e subdesenvolvida. Duas presunções errôneas persistiram, durante muito tempo, limitan­ do a penetração e o teor explicativo das descrições e interpretações sociológicas. '

Uma presunção, muito generalizada, refere-se ao "esquema" da Revolução Burguesa. Ele seria idêntico ao que se aplica às sociedades capitalistas centrais e hegemônicas. Ao que parece, prevaleceu a idéia de que a dependência e o subdesenvolvimento seriam estádios passa­ geiros, destinados a desaparecer graças ao caráter fatal da autonomiza­ ção progressiva do desenvolvimento capitalista. Nesse sentido, seria legítimo admitir que a periferia dependente e subdesenvolvida tende ria a repetir - desde que se desse a revolução anticolonial e fosse superado o estado inicial de transição neocolonial - a história das nações centrais. Ignorou-se que a expansão capitalista da parte depern,

dente da periferia estava fadada a ser permanentemente remodelada por dinamismos das economias capitalistas centrais e do mercado capi­ talista mundial, algo que Rosa Luxemburgo deixara bem esclarecido em sua teoria geral da acumulação capitalista.1 E, em segundo lugar, deixou-se de considerar que a autonomização do desenvolvimento capitalista exige, como um pré-requisito, a ruptura da dominação exter­ na (colonial, neocolonial ou imperialista).2 Desde que esta se mante­ nha, o que tem lugar é um desenvolvimento capitalista dependente e, qualquer que seja o padrão para o qual ele tenda, incapaz de saturar todas as funções econômicas, socioculturais e políticas que ele deveria preencher no estádio correspondente do capitalismo. É claro que o crescimento capitalista se dá acelerando a acumulação de capital ou a modernização institucional, mas mantendo, sempre, a expropriação capitalista externa e o subdesenvolvimento relativo, como condições e efeitos inelutáveis. Além disso, mesmo que ocorresse uma autonomiza­ ção "automática" do desenvolvimento capitalista, ela não asseguraria, por si mesma, uma via uniforme de evolução do capitalismo e de con­ solidação da dominação burguesa (como se pode inferir, aliás, do con­ fronto, já bem conhecido, dos Estados Unidos com o Japão).

Portanto, o quadro geral é muito mais complexo do que as presun­ ções iniciais deixavam supor. E, o que tem importância teórica especí­ fica para esta discussão, o que era essencial foi negligenciado. Perdeu-se de vista algo que nunca se deveria esquecer. O que a parte dependen­ te da periferia "absorve" e, portanto, "repete" com referência aos "casos clássicos" são traços estruturais e dinâmicos essenciais, que caracteri­ zam a existência do que Marx designava como uma economia mercan­ til, a mais-valia relativa etc. e a emergência de uma economia compe­ titiva diferenciada ou de uma economia monopolista articulada etc. Isso garante uniformidades fundamentais, sem as quais a parte depen­ dente da periferia não seria capitalista e não poderia participar de dina­ mismos de crescimento ou de desenvolvimento das economias capita­ listas centrais. No entanto, a essas uniformidades - que não explicam a expropriação capitalista inerente à dominação imperialista e, portan­ to, a dependência e o subdesenvolvimento - se superpõem diferenças

fundamentais, que emanam do processo pelo qual o desenvolvimento capitalista da periferia se torna dependente, subdesenvolvido e impe­ rializado, articulando no mesmo padrão as economias capitalistas cen­ trais e as economias capitalistas periféricas. Em um sistema de nota­ ção marxista, é a estas diferenças (e não àquelas uniformidades) que cabe recorrer para explicar a variação essencial e diferencial, isto é, o que é típico da transformação capitalista e da dominação burguesa sob o capitalismo dependente. Só assim se pode colocar em evidência como e por que a Revolução Burguesa constitui uma realidade históri­ ca peculiar nas nações capitalistas dependentes e subdesenvolvidas, sem recorrer-se à substancialização e à mistificação da história. Aí, a Revolução Burguesa combina - nem poderia--deixar de fazê-lo - transformação capitalista e dominação burguesa. Todavia, essa combi­ nação se processa em condições econômicas e histórico-sociais espe­ cíficas, que excluem qualquer probabilidade de "repetição da história" ou ·de "desencadeamento automático" dos pré-requisitos do referido modelo democrático-burguês. Ao revés, o que se concretiza, embora com intensidade variável, é uma forte dissociação pragmática entre desenvolvimento capitalista e democracia; ou, usando-se uma notaçãó sociológica positiva: uma forte associação racional entre desenvolvi­ mento capitalista e autocracia. Assim, o que "é bom" para intensificar ou acelerar o desenvolvimento capitalista entra em conflito, nas orien­ tações de valor menos que nos comportamentos concretos das classes possuidoras e burguesas, com qualquer evolução democrática da ordem social. A noção de "democracia burguesa" sofre uma redefini ção, que é dissimulada no plano dos mores, mas se impõe como uma . realidade prática inexorável, pela qual ela se restringe aos membros• das classes possuidoras que se qualifiquem, econômica, social e poli- •. ticamente, para o exercício da dominação burguesa. '.

A outra presunção errônea diz respeito à própria essência da ·,

dominação burguesa nas economias capitalistas dependentes e subde' senvolvidas. Associaram-se ao imperialismo efeitos de inibição dos elementos políticos do capitalismo dependente (ou, alternativamente, de diferenciação regressiva do poder burguês) que não são compatí

veis com qualquer forma de dominação burguesa e, muito menos, com o tipo de dominação burguesa requerido, especificamente, pelas nações capitalistas dependentes e subdesenvolvidas. Ignorou-se que a apropriação dual do excedente econômico - a partir de dentro, pela burguesia nacional; e, a partir de fora, pelas burguesias das nações capitalistas hegemônicas e por sua superpotência - exerce tremenda pressão sobre o padrão imperializado (dependente e subdesenvolvido) de desenvolvimento capitalista, provocando uma hipertrofia acentua­ da dos fatores sociais e políticos da dominação burguesa. A extrema concentração social da riqueza, a drenagem para fora de grande parte do excedente econômico nacional, a conseqüente persistência de for­ mas pré ou subcapitalistas de trabalho e a depressão medular do valor do trabalho assalariado, em contraste com altos níveis de aspiração ou com pressões compensadoras à democratização da participação eco­ nômica, sociocultural e política produzem, isoladamente e em conjun­ to, conseqüências que sobrecarregam e ingurgitam as funções especi­ ficamente políticas da dominação burguesa (quer em sentido autodefensivo, quer numa direção puramente repressiva). Criaram-se e criam-se, desse modo, requisitos sociais e políticos da transformação capitalista e da dominação burguesa que não encontram contraparti­ da no desenvolvimento capitalista das nações centrais e hegemônicas (mesmo onde a associação de fascismo com expansão do capitalismo evoca o mesmo modelo geral autocrático-burguês). Sob esse aspecto, o capitalismo dependente e subdesenvolvido é um capitalismo selva­ gem e difícil, cuja viabilidade se decide, com freqüência, por meios políticos e no terreno político. E, ao contrário do que se supôs e ainda se supõe em muitos círculos intelectuais, é falso que as burguesias e os governos das nações capitalistas hegemônicas tenham qualquer interesse em inibir ou perturbar tal fluxo do elemento político, pelo enfraquecimento provocado das burguesias dependentes ou por outros meios. Se fizessem isso, estariam fomentando a formação de burguesias de espírito nacionalista revolucionário (dentro do capitalis­ mo privado) ou incentivando transições para o capitalismo de Estado e para o socialismo. Estariam, portanto, trabalhando contra os seus

interesses mais diretos, que consistem na continuidade do desenvol­ vimento capitalista dependente e subdesenvolvido.

É essencial salientar esse fato, pois ele facilita a compreensão do que aconteceu e do que está acontecendo no Brasil e em outros paí­ ses em situação análoga na América Latina. O que podia suceder (e por vezes sucedeu) na fase de transição neocolonial não iria repe­ tir-se depois, em particular à medida que a consolidação do mercado interno comportava a transição para formas mais complexas de desen­ volvimento capitalista (sob o capitalismo competitivo; e, de modo ainda mais acentuado mais tarde, sob o capitalismo monopolista). A própria superação da situação neocolonial já indica, por si mesma, alterações que refletem a emergência de uma burguesia articulada socialmente em bases nacionais; as outras duas transições subseqüen­ tes atestam, por sua vez, que a transformação capitalista e a domina­ ção burguesa sofrem as gravitações que podem atingir sob o capita­ lismo dependente, tornando as evoluções possíveis do poder burguês uma realidade histórica. Portanto, a "fraqueza" das burguesias subme­ tidas e identificadas com a dominação imperialista é meramente rela­ tiva. Quanto mais se aprofunda a transformação capitalista, mais as nações capitalistas centrais e hegemônicas necessitam de "parceiros sólidos" na periferia dependente e subdesenvolvida - não só de uma burguesia articulada internamente em bases nacionais, mas de uma burguesia bastante forte para saturar todas as funções políticas auto­ defensivas e repressivas da dominação burguesa. Essa necessidade torna-se ainda mais aguda sob o imperialismo total, inerente ao capi­ talismo monopolista, já que, depois da Segunda Guerra Mundial, ao entrar numa era de luta pela sobrevivência contra os regimes socialis­ tas, tais nações passaram a depender das burguesias nacionais das nações capitalistas dependentes e subdesenvolvidas para preservar ou consolidar o capitalismo na periferia. As burguesias nacionais dessas nações converteram-se, em conseqüência, em autênticas "fronteiras internas" e em verdadeiras "vanguardas políticas" do mundo capitalis · ta (ou seja, da dominação imperialista sob o capitalismo monopolista). Pensar que isso acarreta uma depressão dos requisitos políticos do

capitalismo dependente é uma ilusão. Semelhante situação exacerba, ainda mais, a importância do elemento político para o desenvolvimen­ to capitalista dependente e subdesenvolvido. Já não só a possibilidade mas também a persistência da transformação capitalista e da domina­ ção burguesa vão passar por um eixo especificamente político. Se as burguesias nacionais da periferia falharem nessa missão política, não haverá nem capitalismo, nem regime de classes, nem hegemonia bur­ guesa sobre o Estado. O que sugere que a Revolução Burguesa na periferia é, por excelência, um fenômeno essencialmente político, de criação, consolidação e preservação de estruturas de poder predomi­ nantemente políticas, submetidas ao controle da burguesia ou por ela controláveis em quaisquer circunstâncias. É por essa razão que, se se considerar a Revolução Burguesa na periferia como uma "revolução frustrada", como fazem muitos autores (provavelmente seguindo implicações da interpretação de Gramsci sobre a Revolução Burguesa na Itália), é preciso proceder com muito cuidado (pelo menos, com a objetividade e a circunspeção gramscianas). Não estamos na era das "burguesias conquistadoras". Tanto as burguesias nacionais da perife­ ria quanto as burguesias das nações capitalistas centrais e hegemôni­ cas possuem interesses e orientações que vão noutra direção. Elas querem: manter a ordem, salvar e fortalecer o capitalismo, impedir que

a dominação burguesa e o controle burguês sobre o Estado nacional se deteriorem. Semelhante reciprocidade de interesses e de orientações faz com que o caráter político do capitalismo dependente tenha duas faces, na verdade interdependentes. E, ainda, com que a Revolução Burguesa "atrasada", da periferia, seja fortalecida por dinamismos especiais do capitalismo mundial e leve, de modo quase sistemático e universal, a ações políticas de classe profundamente reacionárias, pelas quais se revela a essência autocrática da dominação burguesa e sua propensão a salvar-se mediante a aceitação de formas abertas e sistemáticas de ditadura de classe.

Chegamos aqui a um ponto geral de enorme importância teórica. As Revoluções Burguesas "retardatárias" da parte dependente e sub­ desenvolvida da periferia não foram só afetadas pelas alterações havi-

das na estrutura do mundo capitalista avançado. É certo que as trans­ formações ocorridas nas economias capitalistas centrais e hegemôni­ cas esvaziaram historicamente, de modo direto ou indireto, os papéis econômicos, sociais e políticos das burguesias periféricas. Estas fica­ ram sem base material para concretizar tais papéis, graças aos efeitos convergentes e multiplicativos da drenagem do excedente econômi­ co nacional, da incorporação ao espaço econômico, cultural e políti­ co das nações capitalistas hegemônicas e da dominação imperialista. Aí está o busílis da questão, desse ângulo: o porquê do caráter retara datário das Revoluções Burguesas na periferia dependente e subde­ senvolvida do mundo capitalista. Mas há a outra face da medalha. A esse atraso da Revolução Burguesa corresponde um "avanço da his­ tória". As burguesias que só agora chegaram ao vértice de suas possi­ bilidades - e em condições tão difíceis - viram-se patrocinando uma transformação da ordem que perdeu todo o seu significado revo­ lucionário. Ela é parte da "Revolução Burguesa" porque se integra a um processo que se prolonga no tempo e se reflete nas contradições das classes que se enfrentam, historicamente, com objetivos antagô­ nicos. No fundo tais burguesias pretendem concluir uma revolução que, para outras classes, encarna atualmente a própria contra-revolu ção. A maioria já não é cega, mesmo quando compartilha as "opções burguesas", ou se volta abertamente contra elas, identificando-se com as esperanças criadas pelo socialismo, revolucionário ou reformista.

Nessas condições, uma coexistência de revoluções antagônicas.

Uma, que vem do passado e chega a termo sem maiores perspectivas. Outra, que lança raízes diretamente sobre "a construção do futuro no presente". Não se deve ignorar - nem descritiva nem interpretativa• mente - as implicações de tal fato e as repercussões que um enca deamento dessa natureza desata na esfera concreta das relações de classes. Ao contrário do chavão corrente, as burguesias não são, sob o capitalismo dependente e subdesenvolvido, meras "burguesias com· pradoras" (típicas de situações coloniais e neocoloniais, em sentido' específico). Elas detêm um forte poder econômico social e político,, de base e de alcance nacionais; possuem o controle da maquinaria do

Estado nacional; e contam com suporte externo para modernizar as formas de socialização, de cooptação, de opressão ou de repressão ine­ rentes à dominação burguesa. Torna-se, assim, muito difícil deslocá­ las politicamente através de pressões e conflitos mantidos "dentro da ordem"; e é quase impraticável usar o espaço político, assegurado pela ordem legal, para fazer explodir as contradições de classe, agrava­ das sob as referidas circunstâncias. O "retardamento" da Revolução Burguesa, na parte dependente e subdesenvolvida da periferia, adqui­ re assim uma conotação política especial. A burguesia não está só lutando, aí, para consolidar vantagens de classe relativas ou para man­ ter privilégios de classe. Ela luta, simultaneamente, por sua sobrevi­ vência e pela sobrevivência do capitalismo. Isso introduz um elemen­ to político em seus comportamentos de classe que não é típico do capitalismo especialmente nas fases de maturação econômica, socio­ cultural e política da dominação burguesa na Europa e nos Estados Unidos. Essa variação, puramente histórica, é no entanto central para que se entenda o crescente divórcio que se dá entre a ideologia e a utopia burguesas e a realidade criada pela dominação burguesa. Entre a ruína final e o enrijecimento, essas burguesias não têm muita esco­ lha propriamente política (isto é, "racional", "inteligente" e "delibera­ da"). O idealismo burguês precisa ser posto de lado, com seus compro­ missos mais ou menos fortes com qualquer reformismo autêntico, com qualquer liberalismo radical, com qualquer nacionalismo demo­ crático-burguês mais ou menos congruente. A dominação burguesa revela-se à história, então, sob seus traços irredutíveis e essenciais, que explicam as "virtudes" e os "defeitos" e as "realizações históricas" da burguesia. A sua inflexibilidade e a sua decisão para empregar a vio­ lência institucionalizada na defesa de interesses materiais privados, de fins políticos particularistas; e sua coragem de identificar-se com for­ mas autocráticas de autodefesa e de autoprivilegiamento. O "naciona­ lismo burguês" enceta assim um último giro, fundindo a república par­ lamentar com o fascismo.

Isso nos coloca, certamente, diante do poder burguês em sua manifestação histórica mais extrema, brutal e reveladora, a qual se

tornou possível e necessária graças ao seu estado de paroxismo polí­ tico. Um poder que se impõe sem rebuços de cima para baixo, recorrendo a quaisquer meios para prevalecer, erigindo-se a si mesmo em fonte de sua própria legitimidade e convertendo, por fim, o Estado nacional e democrático em instrumento puro e sim­ ples de uma ditadura de classe preventiva. Gostemos ou não, essa é a realidade que nos cabe observar, e diante dela não nos é lícito ter qualquer ilusão. O máximo que se poderia dizer é que a demo­ cracia e as identificações nacionalistas passariam por esse poder burguês se a transformação capitalista e a dominação burguesa tivessem assumido (ou pudessem assumir), a um tempo, outras for­ mas e ritmos históricos diferentes.


As conexões da dominação burguesa com a transformação capitalista se alteram de maneira mais ou menos rápida, na medida em que se consolida, se diferencia e se irradia o capitalismo competitivo no Brasil e, em especial, em que se aprofunda e se acelera a transição para o capitalismo monopolista. O elemento central da alteração foi; naturalmente, a emergência da industrialização como um processo econômico, social e cultural básico, que modifica a organização, os dinamismos e a posição da economia urbana dentro do sistema eco• nômico brasileiro. A hegemonia urbana e metropolitana aparece; desse ângulo, como um subproduto da hegemonia do complexo indus­ trial-financeiro. Esse processo não modifica, apenas, os dinamismos econômicos, socioculturais e políticos das grandes cidades com fun­ ções metropolitanas. Ele acarreta e, em seguida, intensifica a concen­ tração de recursos materiais, humanos e técnicos em tais cidades, dando origem a fenômenos típicos de metropolização e de satelitiza-. ção sob o capitalismo dependente. Tais fenômenos atestam, principal­ mente, que mudam por completo as relações das cidades com a eco­ nomia agrária e com o respectivo complexo urbano-comercial sen1 promover a desagregação propriamente dita do caráter duplamente articulado da economia capitalista dependente.

A alteração das conexões entre dominação burguesa e transfor­ mação capitalista, que podem ser vistas e descritas tanto estrutural quanto dinamicamente, obedeceu, no caso brasileiro, a ritmos histó­ ricos que são característicos das economias nacionais dependentes e subdesenvolvidas: as mudanças espraiam-se por um longo período de tempo, determinando um padrão de industrialização que sofre osci­ lações conjunturais, intermitências estruturais e inconsistências ins­ titucionais, ou seja, com fraco impulso intrínseco de diferenciação, aceleração constante e universalização do crescimento industrial. Em conseqüência, seu impacto histórico torna-se mais evidente pela su­ perfície, em termos morfológicos, graças à concentração de massas humanas, de riquezas e de tecnologias modernas em um número redu­ zido de metrópoles-chave. De fato, somente São Paulo capitalizou as transformações essenciais, de longa duração; e a mudança fundamen­ tal do cenário reflete-se, de modo geral, mais no tope do sistema de classes, pois só os grupos com posições estratégicas (centrais ou media­ doras e intermediárias) no ciclo econômico da industrializ.ação intensi­ va tiveram um aumento real (na verdade desproporcional) do poder socioeconômico e político.

Esse quadro sugere que seria legítimo retomar a técnica analítica e expositiva explorada na primeira parte deste ensaio, encarando-se os últimos três quartos de século como uma unidade inclusiva, para efei­ tos de descrição sociológica. Tal orientação teria a seu favor o fato de facilitar o confronto direto da presente "época da industrialização" com a pretérita "época da emancipação nacional". O resultado teórico do confronto é óbvio. Ele revelaria que sob a situação de dependência

- tanto sob a dominação neocolonial quanto sob a dominação impe­ rialista - os estratos sociais dominantes e suas elites não possuem autqnomia para conduzir e completar a revolução nacional, gravitando historicamente, portanto, de um beco sem saída para outro. No entan­ to, semelhante conclusão não representa um dado teórico novo nem um resultado a que só se possa chegar pela via expositiva indicada. Por isso demos preferência a uma técnica analítica e expositiva menos ele­ gante, que faz perder, aparentemente, o sentido da unidade histórica.

Mas ela permite focalizar melhor as múltiplas facetas das várias ca­ deias de fatores e efeitos histórico-sociais especificamente vinculados à imbricação pluridimensional e em constante mutação da dominação burguesa com a transformação capitalista. Para que a exposição não levasse a uma descrição sociológica fragmentária, que pulverizasse fatos e processos sociais considerados analiticamente como totalida­ des interdependentes, servimo-nos de quatro temas estratégicos para apresentar, sumariamente, as conclusões a que chegamos. Julgamos que, assim, deparamos com o melhor recurso expositivo para situar a natureza e as conseqüências dos dilemas políticos com que se defrontam as classes burguesas e o poder burguês na era mesma do "milagre econômico".3


DOMINAÇÃO BURGUESA E TRANSFORMAÇÃO CAPITALISTA


O principal tema é, naturalmente, de cunho teórico. Ele diz respeito à conexão geral da dominação burguesa com a transformação capita• lista, sob o capitalismo dependente e subdesenvolvido na fase mais adiantada da eclosão industrial. Ele impõe, pois, a discussão da forma, da natureza e das funções da dominação burguesa nas condições em• que se dá, concretamente, a transição do capitalismo competitivo para o capitalismo monopolista, sem a desagregação do caráter dupla• mente articulado da economia brasileira e com a intensificação da dominação imperialista externa. Nesta etapa da discussão, não adian· ta levar em conta alternativas utópicas da burguesia, alimentadas ideologicamente a partir de dentro e de fora (como, por exemplo: que a ampliação e a aceleração do desenvolvimento industrial promove· riam a destruição do "atraso econômico", eliminando, por si mesmas1 a dependência e o subdesenvolvimento; isto é, suprimindo o caráter duplamente articulado da economia brasileira e removendo, portan• to, por neutralizações de origem econômica, tecnológica e/ou políti· ca, as formas pré ou subcapitalistas de relações econômicas e a domi

nação imperialista). Na verdade, um maior controle do "atraso econô­ mico" não implica, por si mesmo, supressão da dependência e do subdesenvolvimento. Ele só modifica as condições em que ambos se manifestam, em termos estruturais relativos, o que faz com que a dominação burguesa tenha de ajustar-se, em sua forma, estruturas e dinamismos, a um tipo de transformação capitalista em que a dupla articulação constitui a regra (ou seja, no qual o desenvolvimento desi­ gual interno e a dominação imperialista externa constituem requisi­ tos da acumulação capitalista e de sua intensificação). Esses pontos já foram devidamente analisados no capítulo precedente, dentro do ponto de vista sociológico perfilhado pelo autor. O que nos cabe, agora, é tirar deles as devidas conclusões, quanto à caracterização teórica da dominação burguesa e de suas influências sociodinâmicas sobre a transformação capitalista implicada.

A dupla articulação não cria, apenas, o seu modelo de transfor­ mação capitalista. Ela também engendra uma forma típica de domi­ nação burguesa, adaptada estrutural, funcional e historicamente, a um tempo, tanto às condições e aos efeitos do desenvolvimento desi­ gual interno quanto às condições e aos efeitos da dominação imperia­ lista externa. É preciso partir dessa constatação fundamental, se se quiser entender, sociologicamente, as aspirações socioeconômicas e as identificações políticas das classes que compõem a burguesia no Brasil - e, em particular, o modo pelo qual essas classes aplicaram, concretamente, suas fórmulas de revolução nacional. É claro que nada impedia - a não ser a polarização conservadora da consciência bur­ guesa, exclusivistamente isolada dentro de seus interesses de classe e de dominação de classe - que a revolução nacional fosse encaminha­ da de outra maneira, mesmo dentro do capitalismo. Não é difícil, até, conceber uma alternativa "possível", pela qual a opção burguesa pas­ saria por uma vertente radical, culminando na destruição simultânea do desenvolvimento desigual interno e da dominação imperialista externa. Contudo, isso não ocorreu (a não ser esporadicamente, como manifestações extremistas da "vontade revolucionária" de certas fac­ ções das classes burguesas). Quando a crise de transição atingiu o

ap1ce, aquelas classes definiram não só sua lealdade, mas também suas tarefas políticas e sua missão histórica na direção de um "desen­ volvimento acelerado" e de uma "revolução institucional" que implica­ vam a mesma saída: a revolução nacional continuaria a ser dimensio­ nada pela infausta conjugação orgânica de desenvolvimento desigual interno e dominação imperialista externa.

Portanto, as classes burguesas procuraram compatibilizar revolu­ ção nacional com capitalismo dependente e subdesenvolvimento rela­ tivo, tomando diante da dupla articulação uma atitude política "realis­ ta" e "pragmática", o que é, em suma, uma demonstração de sua racionalidade burguesa. Isso significa, como querem alguns, que não há, propriamente, nenhuma revolução nacional ou, então, que aquelas classes pura e simplesmente "traíram" a revolução nacional? Podem­ se sustentar tais avaliações, desde que se estabeleçam certos requisi­ tos ideais da transformação capitalista, que não ocorrem nem podem ocorrer na periferia. É claro que a dupla articulação não impede a' revolução nacional; ao contrário, sob o capitalismo dependente a revo­ lução nacional é igualmente necessária, pois ela constitui o verdadei­ ro eixo político da dominação burguesa e do controle do Estado pela burguesia. A questão é que não se deve perder de vista de que revolu­ ção nacional se está falando. Desde que se proponham o "desenvolvi­ mento" e a "revolução dentro da ordem" que são compatíveis com o capitalismo dependente, as classes burguesas buscam a única revolu­ ção nacional por que podem lutar em tais condições, a qual consiste em consolidar o poder burguês através do fortalecimento das estrutu ras e funções nacionais de sua dominação de classe. O que entra em jogo, portanto, não são as compulsões igualitárias (por mais formais e abstratas que sejam) de uma comunidade política nacional, mais ou. menos complexa e heterogênea. Mas o alcance dentro do qual certos interesses especificamente de classe podem ser universalizados, impostos por mediação do Estado a toda a comunidade nacional e tra• tados como se fossem "os interesses da nação como um todo", Literalmente, pois, revolução nacional significa, em semelhante conr texto histórico-social e político: 1) integração horizontal, em sentido e

em escala nacionais, dos interesses das classes burguesas; 2) probabi­ lidade de impor tais interesses a toda a comunidade nacional de modo coercitivo e "legítimo". Essa é a base política da continuidade da trans­ formação capitalista, e dela podem resultar, indiretamente e a largo prazo, conseqüências mais ou menos úteis para as demais classes e universais quanto aos dinamismos da comunidade nacional. Não obs­ tante, as classes burguesas não formalizam suas tarefas concretas a partir de semelhantes conexões indiretas. Desprovidas de qualquer romantismo político, "revolucionário" ou "conservador", afirmam-se imediatamente em termos das conexões diretas, identificando a revo­ lução nacional com seus alvos particularistas. Não são só a Primeira República e a "revolução institucional", de 1964, que fornecem evi­ dências empíricas a essa interpretação. Bem avaliadas as coisas, a "revolução liberal", de 1930, o Estado Novo e os governos "nacionalis­ tas-desenvolvimentistas" de Getúlio Vargas e de Juscelino Kubitschek palmilharam a mesma rota, embora suas aberturas políticas para baixo os apresentem sob um manto mais propício, como se fossem exceções que confirmam a regra.

O fato de a revolução nacional estabelecer-se segundo semelhan­ te circuito fechado não invalida nem limita o significado estrutural, funcional e histórico que ela deveria ter e tem para as classes burgue­ sas. O problema crucial, para estas, é a integração nacional de uma economia capitalista em diferenciação e em crescimento, sob as con­ dições e os efeitos inerentes à dupla articulação (isto é, ao desenvolvi­ mento desigual interno e à dominação imperialista externa). Uma comparação que se mantivesse alerta às diferenças essenciais especí­ ficas descobriria que, para elas, a revolução nacional possui a mesma importância econômica, social e política que outras revoluções análo­ gas tiveram (ou têm) para as classes burguesas nas nações capitalistas hegemônicas. Ela visa a assegurar a consolidação da dominação bur­ guesa no nível político, de modo a criar a base política necessária à continuidade da transformação capitalista, o que nunca constitui um processo simples (por causa dos conflitos faccionais, no bloco bur­ guês; e da pressão de baixo para cima, visível ou não, das classes ope-

rárias e destituídas). Doutro lado, graças às suas conexões estruturais e dinâmicas com a dupla articulação, a revolução nacional sob o capi­ talismo dependente engendra uma variedade especial de dominação burguesa: a que resiste organizada e institucionalmente às pressões igualitárias das estruturas nacionais da ordem estabelecida, sobrepon do-se e mesmo negando as impulsões integrativas delas decorrentes. Configura-se, assim, um despotismo burguês e uma clara separação entre sociedade civil e nação. Daí resulta, por sua vez, que as classes burguesas tendem a identificar a dominação burguesa com um direito natural "revolucionário" de mando absoluto, que deve beneficiar a parte "ativa" e "esclarecida" da sociedade civil (todos os que se classifi­ cam em e participam da ordem social competitiva); e, simetricamentej que elas tendem a reduzir a nação a um ente abstrato (ou a uma ficção legal útil), ao qual só atribuem realidade em situações nas quais ela encarne a vontade política da referida minoria "ativa" e "esclarecida". 1 Nesse contexto histórico-social, a dominação burguesa não é

uma força socioeconômica espontânea e uma força política regulativai Ela polariza politicamente toda a rede de ação autodefensiva e repres• siva, percorrida pelas instituições ligadas ao poder burguês, da empre• sa ao Estado, dando origem a uma formidável superestrutura de opres• são e de bloqueio, a qual converte, reativamente, a própria dominaçãd burguesa na única fonte de "poder político legítimo". Mero reflexo das. relações materiais de produção, ela se insere, como estrutura de domi,. nação, no âmago mesmo dessas relações, inibindo, suprimindo ou reo rientando, espontânea e institucionalmente, os processos econômi cos, sociais e políticos por meio dos quais as demais classes ou quase-classes se defrontam com a dominação burguesa. Isso explica; sociologicamente, como e por que a dominação burguesa se erige no alfa e no ômega não só da continuidade do modelo imperante de transformação capitalista como, ainda, da preservação ou da alteração da ordem social correspondente. Ela se impõe como o ponto de parti• da e de chegada de qualquer mudança social relevante; e se ergue como uma barreira diante da qual se destroçam (pelo menos por enquanto) todas as tentativas de oposição às concepções burguesas

vigentes do que deve ser a "ordem legal" de uma sociedade competiti­ va, a "segurança nacional", a "democracia", a "educação democrática", o "salário mínimo", as "relações de classes", a "liberdade sindical", o "desenvolvimento econômico", a "civilização" etc. Desse ângulo, dela provém a opção interna das classes burguesas por um tipo de capita­ lismo que imola a sociedade brasileira às iniqüidades do desenvolvi­ mento desigual interno e da dominação imperialista externa.

Em suas investigações, o sociólogo não pode deixar de vacilar diante dos resultados de suas observações e de suas interpretações! Parece incrível que semelhante tipo de opressão sistemática possa exis­ tir nos dias atuais; e, mais ainda, que ela e os terríveis mecanismos de repressão a que precisa recorrer possam ser conciliados com os ideais igualitários, de respeito à pessoa humana, aos direitos fundamentais do homem e ao estilo democrático de vida. No entanto, ela aí está - e não apenas na sociedade brasileira. Variantes da mesma forma de dominação burguesa surgiram, se mantêm e se aperfeiçoam em outras nações da América Latina, da Ásia, da África e da Europa. Deixando de lado reflexões que colidiriam com o espírito objetivo da explicação sociológica e da linguagem científica, cabe-nos, pois, somente situar as funções desse rebento tardio da "expansão da civilização ocidental" e dessa frutificação da "modernidade burguesa" nos trópicos.

A que necessidades econômicas, sociais e políticas responde essa máquina de opressão de classe institucionalizada? As conexões diretas e indiretas, mencionadas acima, indicam claramente que essa forma de dominação burguesa constitui a verdadeira chave para explicar a existência e o aperfeiçoamento da versão que nos coube do capitalis­ mo, o capitalismo selvagem. O "capitalismo possível" na periferia, na era da partilha do mundo entre as nações capitalistas hegemônicas, as "empresas multinacionais" e as burguesias das "nações em desenvol­ vimento" - um capitalismo cuja realidade permanente vem a ser a conjugação do desenvolvimento capitalista com a vida suntuosa de ricas e poderosas minorias burguesas e com o florescimento econômi­ co de algumas nações imperialistas também ricas e poderosas. Um capitalismo que associa luxo, poder e riqueza, de um lado, à extrema

miséria, opróbrio e opressão, do outro. Enfim, um capitalismo em que as relações de classe retornam ao passado remoto, como se os mundos das classes socialmente antagônicas fossem os mundos de "nações" distintas, reciprocamente fechados e hostis, numa implacável guerra civil latente.

Ao particularizar essa função global, descobrimos três funções derivadas centrais para essa forma de dominação burguesa. Primeiro, ela visa, acima de tudo, preservar e fortalecer as condições econômi­ cas, socioculturais e políticas através das quais ela pode manter-se, renovar-se e revigorar-se, de maneira a imprimir ao poder burguês, que ela contém, continuidade histórica e o máximo de eficácia. Se gundo, ela visa ampliar e aprofundar a incorporação estrutural e dinâ• mica da economia brasileira no mercado, no sistema de produção e no sistema de financiamento das nações capitalistas hegemônicas e da "comunidade internacional de negócios", com o objetivo de ga• rantir o máximo de continuidade e de intensidade aos processos de modernização tecnológica, de acumulação capitalista e de desenvolvi• mento econômico, e de assegurar ao poder burguês meios externos acessíveis de suporte, de renovação e de fortalecimento. Terceiro, ela visa preservar, alargar e unificar os controles diretos e indiretos da máquina do Estado pelas classes burguesas, de maneira a elevar ao máximo a fluidez entre o poder político estatal e a própria dominação burguesa, bem como a infundir ao poder burguês a máxima eficácia política, dando-lhe uma base institucional de auto-afirmação, de auto. defesa e de auto-irradiação de natureza coativa e de alcance nacional.

As duas primeiras funções derivadas pressupõem, na cena brasi• leira, a defesa consciente, ativa e organizada (quando necessário), pelas classes burguesas, de uma forma especial de solidariedade de classe, que articula mecanicamente, no mesmo padrão de dominação econômica, social, cultural e política, interesses capitalistas "nacio nais" e "estrangeiros", convergentes e divergentes, mais ou menos con· servadores e mais ou menos liberais, variavelmente compartilhados pela "grande", "média" e "pequena" burguesias e pela enorme massa de pessoal estrangeiro das filiais das corporações e outras empresas

estrangeiras. Essa modalidade de aglutinação mecânica da solidarie­ dade de classe burguesa acarreta vários efeitos inibidores, tanto no que se refere ao desenvolvimento capitalista quanto no que diz respei­ to às irradiações da dominação burguesa nos níveis econômico, socio­ cultural e político.

De um lado, só é essencial, para ela, a defesa e a promoção de interesses comuns da burguesia nacional e internacional (relativos à intocabilidade da propriedade privada, da iniciativa privada e do con­ trole burguês do poder político estatal); e a filtragem de interesses divergentes se faz na base de concessões mútuas e de ajustamentos recíprocos, que anulam ou reduzem drasticamente o impacto revolu­ cionário dos deslocamentos de interesses burgueses dominantes. Com isso, a própria dominação burguesa interpõe-se entre os antago­ nismos de classe intrinsecamente burgueses e sua fermentação nas esferas econômica, sociocultural e política. A unidade no bloco de classe adquire um teor altamente conservador, que se pode polarizar, facilmente, em torno de orientações de valor e de comportamento rea­ cionários ou, até, profundamente reacionários. Ela impõe, especial­ mente em matérias nas quais o poder burguês assume conotações políticas, a adesão de todo o bloco ao que se poderia descrever como principia media dos interesses e valores burgueses nacionais e estran­ geiros. Em conseqüência, tanto o reformismo burguês (sirvam de ilus­ tração os dilemas decorrentes da reforma agrária e da expansão do mercado interno) quanto o movimento democrático-burguês (sirva de ilustração o amortecimento da radicalização das classes médias) são sufocados a partir de compulsões que emanam da própria dominação burguesa e da forma de solidariedade de classe em que ela repousa. E a burguesia nacional converte-se, estruturalmente, numa burguesia pró-imperialista, incapaz de passar de mecanismos autoprotetivos indi­ retos ou passivos para ações frontalmente antiimperialistas, quer no plano dos negócios, quer no plano propriamente político e diplomático. De o tro lado, essa modalidade de aglutinação mecânica da soli­ dariedade de classe burguesa atua como uma fonte de inibições quan­ to às possibilidades de diferenciação, intensificação e autonomização

progressiva do desenvolvimento capitalista interno. Por paradoxal que pareça, certos imperativos universais desse padrão de dominação bur­ guesa compelem as classes burguesas a se omitirem ou, mesmo, a se anularem diante de certas tarefas práticas especificamente burguesas, as quais alargariam a amplitude da revolução nacional em processo e o sentido da própria transformação capitalista. Essa omissão e neutra­ lização das potencialidades criadoras intrínsecas das classes burguesas provocam conseqüências extremamente nocivas. A dupla articulação faz com que vários focos de desenvolvimento econômico pré ou sub­ capitalistas mantenham, indefinidamente, estruturas socioeconômi­ cas e políticas arcaicas ou semi-arcaicas operando como impedimen° to à. reforma agrária, à valorização do trabalho, à proletarização de trabalhador, à expansão do mercado interno etc. Ela também faz com que a especulação se desenrole num contexto que é antes quase colo nial que puramente capitalista, em todas as esferas da vida econômi­ ca (embora com predomínio do setor industrial e financeiro; e do capi• talismo urbano-industrial sobre o capitalismo agrário). Ela impedé também que as estruturas econômicas efetivamente modernas ou modernizadas fiquem expostas a controle societário eficiente, permif tindo que a eclosão industrial continue largamente submetida velho modelo dos ciclos econômicos, tão destrutivo para o desenvolviJ mento orgânico de uma economia capitalista integrada em escala' nacional. A ausência desse controle societário eficiente confere ainruf uma liberdade quase total à "grande empresa", nacional ou estrangei•: ra, em todos os ramos de negócios, e à devastadora penetração impe•' rialista em todos os meandros da vida econômica brasileira. Portanto; a própria forma de dominação burguesa responde pela alienação das classes burguesas pela anulação de tarefas econômicas, socioculturais e políticas que cabem à burguesia, enquanto o desenvolvimento capí;' talista representar a fonte de dinamização da revolução nacional: O pior é que isso ocorre em detrimento de processos que não se cons• tituirão espontaneamente na situação histórico-social brasileira.' A dupla articulação faz com que, naturalmente, o desenvolvimentd' desigual interno e a dominação imperialista externa criem e reforcent

pontos de estrangulamento estruturais no seio mesmo da transforma­ ção capitalista. Para libertar-se do capitalismo dependente e subde­ senvolvido a burguesia brasileira precisaria livrar-se, com a maior urgência, do atual padrão de dominação burguesa e de solidariedade de classe. Ele nem sequer é uma relíquia histórica e, como tal, digno de ser arquivado. Ele tem de ser posto no lixo, pois é antes uma arma­ dilha, que tira mais do que dá às classes burguesas. Se estas não forem capazes de fazer isso, esse padrão de dominação de classe e de solida­ riedade de classe erigir-se-á, fatalmente, em sua tumba.

A terceira função derivada inclui duas conexões mais ou menos conhecidas. Uma, que se relaciona com necessidades políticas de auto­ afirmação, autodefesa e auto-irradiação dos vários estratos da burgue­ sia brasileira. Não é fácil conduzir o barco, quando o desenvolvimen­ to capitalista não guia a revolução nacional com uma bússola firme e os extremos do espectro burguês se encontram em formas subcapita­ listas ou pré-capitalistas de produção agrária, na "empresa multinacio­ nal" estrangeira e na "grande empresa estatal". A convergência de inte­ resses pode ser obtida e até imposta, mas em dano dos papéis burgueses negligenciados historicamente e quase sempre apenas durante certos lapsos de tempo. Pode-se ignorar a história interna, sob certas condições de sufocação dos interesses e dos conflitos de clas­ ses. Mas os ritmos históricos externos do capitalismo são inexoráveis. Daí resulta um tipo especial de impotência burguesa, que faz conver­ gir para o Estado nacional o núcleo do poder de decisão e de atuação da burguesia. O que esta não pode fazer na esfera privada tenta con­ seguir utilizando, como sua base de ação estratégica, a maquinaria, os recursos e o poder do Estado. Essa impotência - e não, em si mesma, a fraqueza isolada do setor civil das classes burguesas - colocou o Estado no centro da evolução recente do capitalismo no Brasil e expli­ ca a constante atração daquele setor pela associação com os militares e, por fim, pela militarização do Estado e das estruturas político-admi­ nistrativas, uma constante das nossas "crises" desde a Proclamação da República. O padrão de dominação de classe e de solidariedade de classe descrito facilitava semelhante composição, pela qual as classes

burguesas aliavam-se entre si, em um plano mais alto, convertendo e mencionada impotência em seu reverso, em uma força relativamente incontrolável (pelas demais classes e pelas pressões imperialistas externas). Portanto, o Estado nacional não é uma peça contingente ou secundária desse padrão de dominação burguesa. Ele está no cerne do; sua existência e só ele, de fato, pode abrir às classes burguesas o áspe-,: ro caminho de uma revolução nacional, tolhida e prolongada pela,; contradições do capitalismo dependente e do subdesenvolvimento. ,'

A outra conexão diz respeito às probabilidades de preservar ordem burguesa existente. Isto é, de impedir que as divergências seio das classes burguesas (variadas e profundas a ponto de exigir um mecanismo de unidade de classe e de solidariedade de classe como Ili apontado acima) e, especialmente, que as pressões de baixo para cima (tão fortes, apesar da aparente "apatia" do proletariado, das classes traf balhadoras rurais e das classes destituídas, que exigiram a sufocaç dos meios de auto-afirmação dessas classes) destruam as precária$Í bases do equilíbrio econômico, social e político dessa ordem. Ain aqui o poder estatal surge como a estrutura principal e o verdadeirci dínamo do poder burguês. Sem a incorporação a si mesma daqueldj poder e o congestionamento que isso provocou nas funções do Esta<W a dominação burguesa teria desaparecido como a brisa. Pois ela n pode, sob o capitalismo dependente e subdesenvolvido, sustentar-s impor-se coativamente e suplantar os conflitos de classes apoiando-sii: exclusivamente nos meios privados de dominação de classe e nas fu ções convencionais do Estado democrático-burguês. Por isso, em sua: evolução recente, o Estado nacional brasileiro foi plasmado pelafi

necessidades e interesses das classes burguesas e, em particular, pelo1

peculiar enredamento do padrão de dominação dessas classes com

controle de uma economia capitalista e de uma sociedade de classd; dependentes e subdesenvolvidas. Na medida em que puderam tolher'. e unificar suas próprias reivindicações, congregando-se em torno dei interesses capitalistas internos e externos comuns ou articuláveis, elas' puderam silenciar e excluir as outras classes da luta pelo poder esta": tal, conseguindo condições ideais para amolgar o Estado a seus pró ,

::

prios fins coletivos particularistas. Além das demais condições favorá­ veis a esse objetivo, que serão ventiladas adiante, a natureza autoritá­ ria do presidencialismo e a forte lealdade dos militares à dominação burguesa, com sua profunda e obstinada identificação com os alvos que ela perseguia, facilitaram sobremaneira o processo implícito de domesticação particularista do Estado. É claro, de outro lado, que a militarização das estruturas e das funções do Estado nacional simpli­ ficou e fortaleceu todo o processo, conferindo, finalmente, à vincula­ ção da dominação burguesa com uma ditadura de classe explícita e institucionalizada uma eficácia que ela jamais alcançaria sob o Estado democrático-burguês convencional. Todavia, essa evolução não supri­ me a vulnerabilidade da ordem burguesa, tão ampliada sob o capita­ lismo dependente e subdesenvolvido. Ela apenas aumenta, nas condi­ ções históricas em que se tornou possível, a eficácia da dominação burguesa. Na verdade, as próprias classes burguesas possuem uma percepção social nítida do significado dos arranjos descritos. Eles são instrumentais, adaptando o poder burguês às condições estáveis e ins­ táveis de uma revolução nacional constantemente abalada e enfraque­ cida pelos efeitos implacáveis do desenvolvimento desigual interno e da dominação imperialista externa. A largo prazo, a alternativa é óbvia. Ou a dominação burguesa se refunde, ajustando-se às pressões de baixo para cima e ao "diálogo entre as classes", ou ela se condena a desaparecer ainda mais depressa.

Essa descrição da natureza, da forma e das funções da domina­ ção burguesa na sociedade brasileira, embora sumária, põe-nos dian­ te do que é essencial. Ela retrata uma evolução que é particular, pois focaliza as classes burguesas, a dominação burguesa e o poder burguês em determinada sociedade. Não obstante, essa evolução é típica: ela evidencia como se dá a interação recíproca entre dominação burgue­ sa e transformação capitalista na periferia. Como, enfim, o capitalis­ mo dependente e subdesenvolvido constitui uma criação de burgue­ sias que não podem fazer outra coisa além de usar os imensos recursos materiais, institucionais e humanos com que contam e a própria civi­ lização posta à sua disposição pelo capitalismo para manter a revolu-

ção nacional nos estreitos limites de seus interesses e valores de elas; se. Elas contêm, ou sufocam, por essa razão, as impulsões societárias tão conhecidas ao igualitarismo, ao reformismo e ao nacionalismo exaltado de tipo burguês, expurgando-as, por meios pacíficos ou vio lentos, da ordem social competitiva. Ao mesmo tempo, fomentam e exaltam outras impulsões societárias de tipo burguês, igualmente bem conhecidas, ao racionalismo acumulador e expropriativo, ao egoísmo1

ao exclusivismo e ao despotismo de classe, conferindo-lhes, por meios

pacíficos ou violentos, predominância na elaboração histórica da' ordem social competitiva. Elas se tomam, em suma, os agentes humaf nos que constroem, perpetuam e transformam o capitalismo dependen" te e subdesenvolvido, levando a modernização para a periferia e adapt. tando a dominação burguesa às funções que ela deve preencher pará, que a transformação capitalista não só possa reproduzir-se em condi:­

ções muito especiais, mas, ainda, tenha potencialidades estruturais e,

dinâmicas para absorver e acompanhar os ritmos históricos das econot mias capitalistas centrais e hegemônicas.


CONTRA-REVOLUÇÃO PROLONGADA E "ACELERAÇÃO DA HISTÓRIA"


Feita toda essa discussão, cabe uma pergunta (com a qual passamas ao segundo tema da presente discussão): o que explica, sociologica­ mente, o êxito relativo da burguesia brasileira nesse movimento que a, levou, finalmente, a descobrir e a cumprir as tarefas e os papéis que lhe cabiam no contexto histórico global? As respostas a essa pergunta sublinham, com freqüência, quatro fatores. As características demo,, gráficas, econômicas e sociais da sociedade brasileira, que tomavam. viável e fácil uma nova eclosão do industrialismo e a aceleração do crescimento econômico com colaboração externa; a assistência técni­ ca, econômica e política intensiva das nações capitalistas hegemôni--. case da "comunidade internacional de negócios"; a forte identificação das Forças Armadas com os móveis econômicos, sociais e políticos das

classes burguesas e sua contribuição prática decisiva na rearticulação do padrão compósito de dominação burguesa; a ambigüidade dos movimentos reformistas e nacionalistas de cunho democrático-bur­ guês e a fraqueza do movimento socialista revolucionário, com forte penetração pequeno-burguesa e baixa participação popular ou operá­ ria. Esses fatores são, de fato, suficientes para "explicar o que houve", mas eles fixam as respostas no plano morfológico das relações e con­ flitos de classe. É possível ir um pouco mais longe indagando-se por que, afinal de contas, em determinado momento a burguesia brasilei­ ra realizou o seu movimento histórico de uma forma que é especifica­ mente contra-revolucionária (em termos do padrão democrático-bur­ guês "clássico" de revolução nacional) e envolve uma ruptura com todo o arsenal ideológico e utópico inerente às "tradições republica­ nas" da mesma burguesia. Aqui entramos na área dos fenômenos de consciência de classe e de comportamentos coletivos de classe, que infelizmente têm sido mal e pouco investigados. Se ficarmos nos limi­ tes de certas constatações gerais, porém, podemos responder àquela pergunta no nível explicativo mais importante.

As quatro décadas que se sucederam ao fim da Primeira Grande Guerra constituem o período nuclear de maturação histórica da bur­ guesia brasileira. Esse período não representa, como muitos acredi­ tam, a "época de formação" dessa burguesia (muito anterior, como vimos); nem, como sustentam outros, ele corresponde à "época de crise da oligarquia" (pois essa crise se desenrolou, no Brasil, como uma recomposição das estruturas econômicas, sociais e políticas her­ dadas do passado, pela qual os estratos sociais de -origem oligárquica, antiga ou recente, foram reabsorvidos pela organização da sociedade de classes em constituição e expansão). Não ocorreu, portanto, um verdadeiro deslocamento da "velha classe" ou das "velhas classes" dominantes, por "novas classes" dominantes, de formação hodierna. Mas um fenômeno muito mais amplo e (embora não pareça) mais dra­ mático: a coalescência estrutural dos vários estratos sociais e das várias categorias econômicas que formavam as "classes possuidoras", crescentemente identificadas com uma concepção burguesa do

mundo e com um estilo burguês de vida, graças à rápida e contínua aceleração da revolução urbano-comercial e, em seguida, à industria• lização. Os estamentos dominantes do "antigo regime" imergem e desaparecem, assim, nas estruturas da ordem social competitiva e da sociedade de classes em constituição ou em expansão (conforme ;:i região ou a localidade do país que se considere). Contudo, as oligar quias, "tradicionais" ou "modernas", sofrem muito pouco com isso, e a

crise de reabsorção pela qual elas passam não possui o mesmo signi'­ ficado histórico que o aparecimento da burguesia como uma catego,­ ria histórico-social e uma comunidade política.

Este é o fato histórico principal nesse período. Desencadeia-se um amplo e profundo processo de socialização do poder econômicQ, social e político, pelo qual as classes sociais burguesas se unificam, a partir de sua situação material de interesses, de seu estilo de vida e de sua concepção do mundo. O predomínio dos interesses agrária>­ comerciais, de início, pôs certos obstáculos a esse processo. Ne entanto, a Revolução de 1930 indica que ele já se havia aprofundado e difundido seriamente, muito antes que os interesses industriaisf financeiros lograssem a predominância relativa que iriam alcançar com o Estado Novo e, especialmente, durante e após a Segunc:lâ Guerra Mundial. A burguesia, que fora um resíduo social e, mai$ tarde, um estrato pulverizado e disperso na sociedade brasileira, que se perdia nos estamentos intermediários e imitava servilmente a aris• tocracia, ganha sua fisionomia típica e se impõe como um corpo social organizado, que constitui a cúpula da sociedade de classes e sua gran· de força socioeconômica, cultural e política. Mas uma coisa é ver esse processo como algo transcorrido, a partir de hoje. Outra é focalizá-lo em cada um dos momentos que marcam as etapas percorridas pela aglutinação econômica, sociocultural e política das várias classes e dos vários estratos de classe burgueses, em sua integração horizontal numa escala nacional. Para que essas classes e estratos de classe

pudessem alcançar uma verdadeira forma burguesa de solidariedade de classe, de modo a integrar horizontalmente e em escala nacional seus interesses materiais e seus comportamentos coletivos, congregando-se

em uma comunidade política unificada, era necessano que elas sofressem uma complexa e difícil transfiguração. Era preciso, notada­ mente, que elas se despojassem da "segunda natureza humana" que o escravismo incutira nas "classes possuidoras"; que fizessem um amplo esforço de revisão e de redefinição de ideologias e utopias, assimiladas da experiência democrático-burguesa européia e norte-americana, da época de emancipação nacional em diante; e que conseguissem com­ preender qual é a própria realidade, em termos dos papéis e das tare­ fas históricas que poderiam desempenhar, como e enquanto burgue­ sia de uma sociedade de classes subdesenvolvida e dependente na era do capitalismo monopolista e do imperialismo total.

Aí estava uma revolução demasiado complicada e difícil, não por causa do elemento oligárquico, em si mesmo, mas porque era preciso extrair o ethos burguês do cosmos patrimonialista em que ele fora inserido, graças a quase quatro séculos de tradição escravista e de um tosco capitalismo comercial. Doutro lado, a fragmentação das classes e dos estratos de classe bú""rgueses favorecia muito mais o seu isolamento local ou regional e a sua pulverização que a unificação horizontal, em escala nacional, de interesses e de valores percebidos confusamente e de maneira predominantemente provinciana ou paroquialista. A rusticidade da maioria das cidades, a fraca penetra­ ção urbana no campo e o baixo índice de universalidade dos proces­ sos de secularização da cultura e de racionalização do modo de com­ preender o mundo agravaram esse fenômeno, prolongando o estado de quase-classe e de semiclasse dos estratos burgueses, privados dos principais fatores externos de difusão e conformação da mentalidade burguesa (ou, como seria melhor dizer: do horizonte cultural burguês). A isso se deve acrescentar a fraqueza numérica, econômica e polí­ tica dos setores médios, com sua forte impregnação tradicionalista e uma contraditória ambivalência de atitudes, nascida de ressenti­ mentos psicossociais (e não de impulsões societárias de natureza reformista ou revolucionária propriamente ditas); e o aparecimento tardio e ao mesmo tempo muito lento, em massa, do típico "empre­ sário moderno", no alto comércio, na indústria e nas finanças. Em

suma, vários elementos concorriam, convergentemente, para incen­ tivar as classes burguesas a uma falsa consciência burguesa, man­ tendo entre essas classes e no resto da sociedade ilusões que violen• tavam ainda mais as ideologias e as utopias burguesas importadas da Europa e dos Estados Unidos. Essas ilusões sempre foram entreti­ das e difundidas por uma vasta gama de propagadores (como, por exemplo: os propagandistas republicanos; os modernistas; os tenen­ tes; os constitucionalistas; os nacionalistas etc.). Pode-se dizer que os "notáveis" da burguesia faziam delas a sua crença política, impoll'r do-as como uma espécie de mores da civilização brasileira. Por sua vez, as massas populares e os jovens sentiam-se atraídos por essas mesmas ilusões, que abriam falsas perspectivas reformistas e demo­ cráticas à revolução nacional. Contudo, o desenvolvimento interno do capitalismo não conduzia a sociedade burguesa em tal direção1

Ele não comportava uma burguesia "heróica" e "conquistadora"; e

tampouco podia alimentar qualquer espécie de igualitarismo, de reformismo ou de nacionalismo exaltado de tipo burguês. PanJ "governar seu mundo", as classes burguesas deviam começar par. conhecê-lo melhor e por introduzir a racionalidade burguesa na comi preensão de seus papéis históricos sob o capitalismo dependente. · ,: Essa aprendizagem realizou-se por etapas e por três vias diversas,: todas frustradoras. Primeiro, através da descoberta de que não iríam()f; "repetir a história". A grande esperança republicana, de que se faria a'. revolução industrial de modo autônomo e segundo o modelo dei! desenvolvimento econômico inerente ao capitalismo competitiVOi esboroa-se por completo no limiar mesmo da industrialização intensit; va. Quando isso ficou patente, também se evidenciou que a concreti1

zação de uma democracia burguesa plena não era uma "questão '. tempo" nem de "gradualismo político". Os cálculos infundados e a$·;

expectativas erradas tinham de ser revistos. Assim, a burguesia brasHl leira aprendeu, de um golpe, que a história não é autogerminadora; fil;

que ela não corrige os erros dos homens, nasçam eles de ambiçooi,1 exageradas ou de fantasias medíocres. Segundo, através de entrechai:I ques alimentados por antagonismos intraclasses, ou seja, por intere$1l

ses e aspirações divergentes de classes ou estratos de classe burgue­ ses. Ignorando os limites de seus papéis históricos, em diferentes momentos, setores civis ou militares e civis-militares, da alta e da média burguesia, lançaram-se a aventuras tidas como "nacionalistas", "democráticas" e "revolucionárias" - e de fato elas sofriam essa ela­ boração intencional; e seriam isso mesmo, se fosse possível transfor­ mar, primeiro, as bases dependentes das relações de produção e de mercado. Todavia, as classes burguesas que lutavam por causas tão amplas não tinham coragem de romper com a dominação imperialista e com os liames que as prendiam às várias formas de subdesenvolvi­ mento interno. Em conseqüência, patronizavam uma variedade espe­ cial de "populismo", a demagogia populista, agravando os conflitos de classe sem aumentar, com isso, o espaço político democrático, refor­ mista e nacionalista da ordem burguesa existente. Essas foram, no entanto, as experiências que acordaram a burguesa brasileira para a sua verdadeira condição, ensinando-a a não procurar vantagens relati­ vas para estratos burgueses isolados, à custa de sua própria segurança coletiva e da estabilidade da dominação burguesa. Terceiro, através da exposição de elites das classes burguesas a influências socializadoras externas e de manipulações diretas de problemas internos por meio de controles desencadeados e/ou orientados a partir de fora. O âmbito da dominação imperialista aprofunda-se e alarga-se com a passagem do capitalismo competitivo para o capitalismo monopolista. Não existem neste último fronteiras ao controle societário externo, o que permite falar em um imperialismo total. As experiências, nessa esfera, são bem conhecidas. Há os grupos, extraídos de várias categorias profissionais, civis e militares, que foram deslocados para o exterior e sofreram com­ pleta reciclagem (ideológica e utópica), graças a programas especiais de "treinamento", de "preparação técnica especializada" ou de doutri­ nação. Há os programas de comunicação em massa, através do rádio, televisão, imprensa e mesmo da educação escolarizada, e os progra­ mas de assistência técnica (saúde, cooperação militar, defesa e segu­ rança pública, cooperação econômica, cooperação educacional etc.), que criam redes articuladas de "modernização dirigida". Há, por fim,

programas de instituições mundiais e de governo a governo que reco­ brem essas e outras áreas, todos difundindo uma filosofia desenvolvi• mentista própria. Por aqui, os estratos burgueses aprenderam a mudar a qualidade de suas percepções e explicações do mundo, procurandó ajustar-se a "avaliações pragmáticas", que representam o subdesenvol vimento como um "fato natural" autocorrigível e estabelecem como ideal básico o princípio, irradiado a partir dos Estados Unidos, do "desenvolvimento com segurança". Dava-se, assim, o último salto na limpeza do sótão. A burguesia brasileira encontrava novos elos de "modernização", descartando-se de suas quinquilharias histórica1 libertárias, de origem européia, substituídas por convicções bem mais prosaicas, mas que ajustavam seus papéis à "unidade do hemisfério'', à "interdependência das nações democráticas" e à "defesa da civiliza-' ção ocidental". Para se ter uma imagem concreta de como essas três vias de aprendizagem mudaram a percepção da realidade e as orientações dtf valor da burguesia brasileira é suficiente acompanhar a carreira política: ou administrativa recente de alguns próceres civis e militares "rebeldes','· das décadas de 1920, de 1930 ou de 1940. O curioso, em todo o pro,., cesso, são as identificações, que acabaram prevalecendo, ao longo e ao cabo da depuração do idealismo burguês, entre a "mentalidade oligár• quica" e o "racionalismo pragmático" a que chegaram muitos repre• sentantes das correntes burguesas "nacionalistas", "democráticas" e, "revolucionárias".

É evidente que as nações hegemônicas exportam suas ideologias e utopias. Nesse sentido as ideologias e as utopias das nações hege• mônicas são também as ideologias e as utopias das classes dominan­ tes das nações dependentes. Contudo, é preciso levar-se em conta que isso ocorre dentro de uma linha que responde a novas condições econômicas, histórico-sociais e políticas. As nações capitalistas dependentes não possuem as mesmas potencialidades que as nações capitalistas hegemônicas. Mas as ideologias e utopias das classes dominantes deixam de sofrer controle societário eficiente, pois, com freqüência, as demais classes não possuem "condições de barganha" e de autodefesa "dentro da ordem". De outro lado, as ideologias e uto-

pias perdem, muito comumente, suas conseqüências úteis, conver­ tendo-se, na maioria das vezes, numa fonte de racionalização e de legi­ timação das vantagens que as classes dominantes extraem rotineira­ mente de sua submissão aos interesses e manipulações externos. Portanto, o que aconteceu com o liberalismo iria suceder, em condi­ ções tão diversas, com o desenvolvimentismo e com a doutrina catas­ trófica da "democracia forte". A renovação de idéias, valores e orienta­ ções de comportamento das várias classes e estratos de classe burgueses aumentou a percepção e a consciência crítica, em sentido "realista" e "pragmático", da situação global e de como ela se encadea­ va com os interesses de classe burgueses, ameaçados ou não. Mas não concorreu, de qualquer modo definido, para melhorar ou ampliar a qualidade da identificação dessas classes e desses estratos de classe com os dilemas sociais enfrentados pelas populações pobres ou mise­ ráveis e com o que se poderia descrever, eufemisticamente, como "interesses gerais da nação como um todo". Ao contrário, o novo tipo de "modernização dirigida" tendia a deslocar a lealdade à nação e às polarizações ideológicas ou utópicas da revolução nacional em favor da lealdade a certas causas muito abstratas e supranacionais, como a "solidariedade hemisférica", "a solidariedade às nações democráticas" ou a "defesa da civilização cristã e ocidental". Portanto, é visível que a internacionalização das estruturas materiais das relações de mercado e de produção também se estende às superestruturas das relações do poder burguês. As burguesias da periferia sofrem, desse modo, uma oscilação ideológica e utópica, condicionada e orientada a partir de fora. De classes patronizadoras da revolução democrático-burguesa nacional passam a conceber-se como pilares da ordem mundial do capitalismo, da "democracia" e da "civilização cristã". Essa reviravolta ideológica e utópica, quanto às suas repercussões no plano interno, não só aumenta o grau de alienação filosófica, histórica e política da burguesia perante os problemas nacionais e sua solução. Ela fortalece a insensibilidade diante deles, na medida em que não perturbem o desenvolvimento capitalista interno nem o "equilíbrio do sistema capi­ talista mundial", ou, ainda, na medida em que sejam úteis para a

intensificação da acumulação capitalista. E suscita enorme indulgên,.. eia para com atitudes e comportamentos que se chocam, precisamen,., te, com os mores da democracia e da civilização cristã, o que significa que, indiretamente, ela amplifica o espaço psicológico, cultural e polí­ tico para o florescimento de um padrão de liberdade de classe que é extremamente egoístico e irresponsável. No fundo, a referida revira.. volta confere novos fundamentos psicológicos, morais e políticos af): enrijecimento da dominação burguesa e à sua transfiguração num* força social especificamente autoritária e totalitária.

É aqui, e não numa suposta deterioração do liberalismo ne . numa presumível exacerbação do mandonismo tradicionalista, que se devem procurar as raízes psicossociais e históricas da mudança d horizonte cultural das classes e dos estratos de classe burgueses. Essa: mudança levou, gradualmente, nas últimas quatro décadas, a uma nova filosofia política e a ações de classes que puseram em prime

plano o privilegiamento da situação de interesses da burguesia com4)

.;.

um todo. Ela serviu, pois, de fundamento para uma solidariedade déj

classes que deixou de ser "democrática" ou, mesmo, "autoritária", paqâj tomar-se abertamente "totalitária" e contra-revolucionária, em sum o fe ento de uma ditadura de classe preventiva. \il E inegável que foi graças a tal mudança que as classes e os es

1

tos de classe burgueses deram um verdadeiro salto histórico, realiz do sua integração horizontal, em escala nacional, diretamente plano de dominação de classe (e antes mesmo que se completasses processo de diferenciação vertical). De outro lado, também foi gra a tal mudança que essas mesmas classes e estratos de classe conse\4; guiram extrair vantagens estratégicas seja dos conflitos que minav Í intestinamente a solidariedade burguesa, seja dos conflitos com classes operárias e destituídas. O primeiro ponto explica por que Ih foi possível abandonar, com tanta rapidez e facilidade, a antiga filosoi:. fia de "dar tempo ao tempo", do "gradualismo burguês subdesenvol ] do". Integrando-se horizontalmente, pelo menos no plano de domin ção de classe, podiam impor às demais classes e à nação como mil; todo seus próprios interesses de classe. Quaisquer que fossem as des-1,,

vantagens da aglutinação através dos interesses comuns (ou, inversa­ mente, da acomodação de interesses díspares e heterogêneos), ela não comportava riscos políticos. Em suma, o padrão decorrente de hege­ monia burguesa agregada e compósita constituía um mal menor que a "derrocada da nação" (isto é, a desagregação da ordem burguesa e o colapso do poder burguês). O segundo ponto explica como as classes e os estratos de classe burgueses exploraram em proveito próprio tanto os conflitos sociais intestinos quanto os conflitos com o proletariado, as classes trabalhadoras em geral e as classes marginalizadas ou excluí­ das. Os conflitos faccionais foram capitalizados exclusivamente pela própria burguesia, em vez de servir de base para a dinamização das propaladas "reformas de estrutura", a aceleração e o aprofundamento da revolução nacional ou de possíveis "aberturas" à democratização da riqueza e do poder. Os conflitos com as classes antagônicas, ao serem estigmatizados, postos "fora da ordem" e sufocados por meios repres­ sivos e violentos, perderam sua conexão com a revolução nacional democrático-burguesa, sendo capitalizados, também por sua vez, pela própria burguesia. Ao "defender a estabilidade da ordem", portanto, as classes e os estratos de classe burgueses aproveitaram aqueles confli­ tos para legitimar a transformação da dominação burguesa em uma ditadura de classe preventiva e para privilegiar o seu poder real, nasci­ do dessa mesma dominação de classe, como se ele fosse uma encar­ nação da ordem "legitimamente estabelecida". É claro que a nação burguesa era, assim, sobreposta e passava a imperar sobre a nação legal. Mas a burguesia estava preparada para aceitar esse deslocamento da ordem (na verdade, uma contra-revolução que envolvia, inclusive, o recurso à guerra civil) como algo necessário, que se fazia para salva­ guardar "a legalidade", "a ordem democrática e os interesses do povo". A interpretação que apresentamos procura fugir a certas distor­

ções analíticas que o radicalismo burguês, o socialismo reformista e mesmo um socialismo revolucionário mecanicista introduziram na compreensão da Revolução Burguesa nas nações capitalistas da peri­ feria. Não tentamos descrever as relações da dominação burguesa

com a transformação capitalista em função de supostos "determinan­ tes universais". Evitamos também o falso problema correlativo - "por que a história não se repetiu?". Diante dessas duas orientações inter­ pretativas, opusemos a busca das conexões específicas da dominação burguesa com a transformação capitalista onde o desenvolvimento desigual interno e a dominação imperialista externa constituem reali­ dades intrínsecas permanentes, apesar de todas as mudanças quanti­ tativas e qualitativas do capitalismo.

Como seus cientistas sociais e seus adversários socialistas ou comunistas, a burguesia brasileira ignorou o que se poderia chamar de "dura realidade" de sua condição durante muito tempo - pelo menos., enquanto não teve de se defrontar com os problemas suscitados pela industrialização intensiva, mantidos o subdesenvolvimento interno e a dominação imperialista externa. A partir do momento em que começa a se defrontar com tais problemas e, em particular, a partir do momen­ to subseqüente, em que se viu diretamente ameaçada em sua existê™ eia e em sua capacidade de sobrevivência a esses mesmos problemas, a burguesia brasileira teve de realizar uma revolução copernicana, tanto em seu horizonte cultural quanto em seu circuito político. Foi isso qu tentamos sumariar, dentro do ponto de vista adotado, situando como ela toma consciência e tenta desfazer-se, na esfera da ação econômica,• social e política, das ilusões utópicas referentes à democracia burgue sa e ao nacionalismo burguês. As transformações externas dos ritmos e estruturas do capitalismo mundial e do imperialismo agravaram ainda. mais as dificuldades inexoráveis dessa burguesia, forçando-a a enten'­ der que ela não podia preservar a transformação capitalista rompendo com a dupla articulação, mas fazendo exatamente o inverso, entrela­ çando ainda com mais vigor os momentos internos da acumulação, capitalista com o desenvolvimento desigual da economia brasileira e com os avassaladores dinamismos das "empresas multinacionais", das' nações capitalistas hegemônicas e do capitalismo mundial.

As rupturas que deviam e precisavam ser feitas eram, não obstante; tão terríveis como a amputação de um braço ou de uma perna. A qUS" se condena uma burguesia que destrói a imagem ideológica e utópic•!

de que ela gosta e da qual tem necessidade compensatória de incul­ car-se historicamente? O drama é, a um tempo, psicológico, moral e político. Se começa como um dilema histórico, termina como um tre­ mendo desafio político. Para romper o nó górdio, era preciso despojar a dominação burguesa de qualquer conexão real, que fosse substanti­

vamente e operativamente democrático-burguesa e nacionalista-bur­ guesa: 12) neutralizando as pressões especificamente democráticas e

nacionalistas dos setores burgueses mais ou menos radicais; 22) repri­ mindo as pressões de igualdade econômica, social e política ou de

integração nacional e de mobilização de classe das massas populares. Dado o salto nessa direção, o êxito obtido é que iria determinar até onde essa burguesia poderia chegar em suas novas adaptações históri­ cas ao capitalismo dependente, agora na era do capitalismo monopo­ lista e do imperialismo total. Portanto, no fundo da crise do poder bur­ guês estava a necessidade histórico-social de adaptação da burguesia brasileira ao industrialismo intensivo não sob uma evolução que ace­ lerasse e aprofundasse a revolução nacional, como ocorria sob o capi­ talismo competitivo. Porém, ao contrário, sob uma evolução que agra­ vava o desenvolvimento desigual interno e intensificava a dominação imperialista externa, pois ambos teriam de ser, irremediavelmente, os ossos, a carne e os nervos do industrialismo intensivo. Ao superar essa crise, a burguesia brasileira torna-se uma "burguesia madura", apta a enfrentar e a conduzir a industrialização intensiva, como etapa mais complexa e mais alta da transformação capitalista, e a completar o ciclo da Revolução Burguesa, mas sob e dentro do capitalismo depen­ dente. É que a crise não visava (nem podia visar, em termos da situa­ ção de interesses de classe da burguesia brasileira) a autonomia do desenvolvimento capitalista nacional ou da revolução nacional. Ela visava a autonomia das classes e dos estratos de classe burgueses den­ tro da sociedade de classes brasileira e a possibilidade que eles teriam de chegar ao fim e ao fundo da transformação capitalista, sem remo­ ver a situação de dependência e os efeitos que ela desencadeia sobre o subdesenvolvimento relativo do país.

É evidente que o êxito histórico relativo, alcançado pela burgue­ sia brasileira, embora possua uma base estrutural (a integração hori­ zontal do poder de classe burguês e seus reflexos sobre a consciência burguesa, a solidariedade de classe burguesa e a dominação burgue­ sa), só alcança eficácia prática a curto prazo. Ele não engendrou, nem podia engendrar - pois se trata de um processo no nível histórico - qualquer espécie de "estabilização definitiva" da ordem burguesa. No entanto, ele deu e continuará a dar, por algum tempo, condições para que as classes e os estratos de classe burgueses possam formular e aplicar uma política global, que produzirá efeitos estruturais e dinâmi­ cos de médio e largo prazos. O poder burguês está alcançando e con" tinuará a alcançar, assim, os objetivos imediatos que provocaram a su crise e exigiram uma reordenação da ordem burguesa em direções autocráticas, autoritárias e totalitárias.

Não obstante, mesmo nas condições brasileiras, é quase certo que as transformações produzidas pelo enrijecimento da dominação burguesa e a imposição de uma ditadura de classe burguesa preventii va não cabem na categoria do que "vem para ficar". Nada "vem par ficar" na história, e muito menos na história de um regime tão instá. vel como o regime de classes. A burguesia brasileira conta, tão-somen,

te, com uma "paz armada", que durará enquanto o atual padrão com!: pósito e articulado de dominação burguesa puder fazer face às contrapressões do radicalismo burguês, das massas populares e do, proletariado, as quais tenderão a reconstituir-se, a crescer e a se fortà; lecer, graças às novas condições histórico-sociais, geradas pela indusi

trialização intensiva e pelo capitalismo monopolista. Parecia, no clÚ

1

max do processo de "contra-Revolução Burguesa", que esse padrão <li:!;

dominação de classe não resistiria por mais de uma ou duas décad ': (embora ele tenha durado quase meio século em nações como Portu4! gal e Espanha). Supunha-se, então, que o radicalismo burguês retc#\ maria, com facilidade, o seu curso, em condições econômicas, sociail1; e políticas ainda mais propícias ao recrudescimento do nacionalismtf revolucionário e de suas repercussões positivas sobre a democraci ;: burguesa. De outro lado, também se supunha que as massas popul j

res e o proletariado iriam superar, com certa rapidez, a supressão de seu espaço político, impedindo a estigmatização de seus movimentos sociais ou políticos e removendo a "compressão política" às suas pres­ sões igualitárias. Todavia, evoluções similares, ocorridas em outros países (dentro e fora da América Latina), deixaram patente que o movimento autocrático-burguês constitui uma alternativa que conta com reforço externo bastante forte e estável. À luz desse fato, a dura­ ção das ditaduras burguesas preventivas é condicionada por dinamis­ mos que alcançam muito maior eficiência e continuidade do que as burguesias nativas da periferia poderiam imprimir ao processo, se esti­ vessem confinadas às suas próprias forças. Apesar disso, convém ter presente que a própria sociedade de classes segrega, de modo ininter­ rupto, tensões e conflitos variavelmente pró-burgueses e antiburgue­ ses, ou seja, que ela está sujeita a fenômenos constantes de autodesa­ gregação. Essa tendência reaparece na periferia e nela acaba atingindo maiores proporções, em virtude do desenvolvimento desigual interno e dos seus efeitos sociopáticos diretos ou indiretos. Os recursos de opressão e de repressão de que dispõe a dominação burguesa no Brasil, mesmo nas condições especialíssimas seguidas ao seu enrijecimento político e à militarização do Estado, não são suficientes para "eterni­ zar" algo que é, por sua essência (e em termos da estratégia da própria burguesia nacional e internacional), intrinsecamente transitório. Dessa perspectiva, malgrado sua considerável magnitude, o êxito his­ tórico da burguesia circunscreve-se à superação das perturbações ime­ diatas da crise do poder burguês, o que faz com que ele seja, sob todos os aspectos, uma autêntica faca de dois gumes.


ESTRUTURA POLÍTICA DA AUTOCRACIA BURGUESA


O terceiro tema da presente discussão refere-se à estrutura política íntima do modelo autocrático-burguês de transformação capitalista. É claro que essa estrutura não reflete, sociologicamente, apenas as

condições econômicas, socioculturais e políticas do atual estado da sociedade de classes brasileira, sob um capitalismo dependente e sub­ desenvolvido de grande vitalidade. Ela também revela, por igual e simultaneamente: l2) os objetivos e desígnios políticos, mais ou menos deliberados, que animaram a atuação prática das classes e dos estratos de classe burgueses na crise descrita do poder burguês no

Brasil; 22) as potencialidades de absorção efetiva desses objetivos e

desígnios pelos processos de estabilidade e mudança da ordem social, inerente à referida sociedade de classes, e o grau de racionalidade

demonstrado pelas classes e pelos estratos de classe burgueses no

aproveitamento do espaço político daí resultante; 32) O modo pelo qual interesses indireta e especificamente políticos externos, transmi• tidos através dos dinamismos das nações capitalistas hegemônicas, das "empresas multinacionais" e da "comunidade internacional de

negócios", se encadearam seja com aqueles desígnios e objetivos, seja com suas "possibilidades históricas", reforçando-os e, portanto, aumentando sua viabilidade a curto, médio e largo prazos. Aqui não poderemos tratar de todos os aspectos de um tema tão vasto e com.. plexo, em si mesmo digno de uma investigação especial e de um livrrn Vamos cuidar, somente, dos requisitos e das implicações políticos mínimos, que localizam e explicam sociologicamente, segundo enten• demos, a maneira pela qual o modelo autocrático-burguês de transfor­ mação capitalista se concretizou historicamente, alterando por com• pleto, pelo menos por enquanto, o significado e as conseqüências das relações e conflitos de classes.

A adaptação da dominação burguesa às condições históricas emergentes, impostas pela industrialização intensiva, pela metropoli­ zação dos grandes centros humanos e pela eclosão do capitalismo monopolista, processou-se mediante a multiplicação e a exacerbação de conflitos e de antagonismos sociais, que desgastavam, enfraque­ ciam cronicamente ou punham em risco o poder burguês. Nunca che­ gou a existir uma situação pré-revolucionária tipicamente fundada na rebelião antiburguesa das classes assalariadas e destituídas. No entan• to, a situação existente era potencialmente pré-revolucionária, devido

ao grau de desagregação, de desarticulação e de desorientação da pró­ pria dominação burguesa, exposta ininterruptamente, da segunda década do século à "revolução institucional" de 1964, a um constante processo de erosão intestina. As linhas de clivagem se estabeleciam dentro e fora da burguesia. As classes e os estratos de classe burgue­ ses divergiam e se digladiavam entre si por causa de vários interesses em conflito, que poderiam ser facilmente conciliados se o grau de uni­ ficação e de centralização do poder burguês tivesse caminhado com maior velocidade (especialmente no nível institucional; e, em parti­ cular, na atuação das associações patronais, dos partidos políticos e do Estado). Os conflitos em tela não abriam nenhum risco à sobrevivên­ cia da dominação burguesa e do poder burguês. Todavia, como eles não encontravam solução rápida e superação definitiva, inibiam ou paralisavam as potencialidades sociodinâmicas da dominação burgue­ sa e restringiam substancialmente a eficácia política do poder bur­ guês, cronicamente pulverizado e oscilante. Ambos se mantinham e cresciam pelo efeito estático da expansão da economia capitalista e do regime de classes (incluindo-se, naquele efeito, o baixo teor de con­ testação política antiburguesa das massas assalariadas urbanas e rurais). A articulação política ativa, espontânea e deliberada mal atin­ gia as forças burguesas e pró-burguesas diretamente investidas do poder político estatal ou empenhadas em canalizar a sua aplicação. De outro lado, os conflitos tolerados e contidos "dentro da ordem" se agra­ vavam continuamente, em grande parte como conseqüência dessa ini­ bição e paralisação da dominação burguesa e do poder burguês. Não só certos estratos da alta burguesia se lançavam uns contra os outros, defendendo políticas econômicas ou privilégios exclusivos. Os setores médios convertiam suas frustrações e suas aspirações em fatores que dissociavam o radicalismo burguês da ordem burguesa existente e pos­ sível. Por conseguinte, eram as classes e os estratos de classe burgue­ ses que rasgavam as fendas pelas quais a instabilidade política se ins­ taurava no âmago dos conflitos de classes, no intento freqüente de dinamizar em proveito próprio o radicalismo pró-burguês ou antibur­ guês das massas populares, em geral, ou do proletariado urbano e dos

trabalhadores rurais, em particular. Embora em nenhum momento essa "pressão dentro da ordem" chegasse a transcender os interesses e os projetos burgueses, ela dividia e fragmentava a burguesia, ao mesmo tempo em que solapava e impedia a aceleração dos processos de unificação e centralização do poder burguês, diretamente ou mediante a unificação e a centralização do poder político do Estado nacional. Definiam-se, assim, várias órbitas, em permanente atrito, em tomo das quais gravitavam os projetos de revolução nacional, o que fazia com que as classes e os estratos de classe burgueses não conseguissem chegar a uma conciliação fundamental, em tomo de alvos e de interesses comuns a toda a burguesia. Em tão largo perío­ do, essas classes e estratos de classe mais aprenderam "o que não deviam fazer", para não se prejudicarem de modo irremediável, do que "o que deveriam fazer", para articular seus interesses de classe numa comunidade política.

Foi a própria expansão interna da economia capitalista e do regi• me de classes que suscitou pressões políticas suficientemente fortes para despertar e fomentar a solidariedade de classes burguesas. Primeiro, as "pressões dentro da ordem", através das quais classes ou estratos de classe burgueses tentavam se autoproteger ou se autopri­ vilegiar, exorbitaram os limites burgueses e as identificações pró-burr­ guesas. As impulsões democráticas e nacionalistas, inerentes ao radi­ calismo burguês, em geral, e às manifestações da "demagogia populista", em particular, dirigidas e tuteladas por setores burgueses mais ou menos "esclarecidos" e mais ou menos "rebeldes", transcen• deram ao reformismo e ao nacionalismo democrático-burguês, com-. patíveis com o débil ponto de equilíbrio de uma sociedade de classes•. dependente e subdesenvolvida. A extrema concentração social da riqueza e do poder não conferia à burguesia nativa espaço político• dentro do qual pudesse movimentar-se e articular-se com os interes•.• ses sociais mais ou menos divergentes. Ela só podia, mesmo, mostrar·

se "democrática", "reformista" e "nacionalista" desde que as "pressões, dentro da ordem" fossem meros símbolos de identificação moral ·e.

política, esvaziando-se de efetividade prática no vir-a-ser histórico. En,.

suma, as classes e os estratos de classe burgueses não tinham como servir-se do radicalismo burguês para captar a simpatia e o apoio das massas populares sem ao mesmo tempo aprofundar seus conflitos entre si e, o que era mais importante, sem arriscar os fundamentos materiais e políticos da ordem social competitiva sob o capitalismo dependente e subdesenvolvido. A esse fato acrescentaram-se a emer­ gência e a difusão de movimentos de massa antiburgueses, nas cida­ des e até em algumas áreas do campo. Tais movimentos estavam longe de representar um "perigo imediato", pelo menos em si e por si mes­ mos. Todavia, eles encontravam uma ressonância intimidadora e con­ tinham uma força de irradiação inesperada. Por isso, acabaram reper­ cutindo e fermentando, de modo quase incontrolável, no próprio radicalismo burguês: "contaminaram" estudantes, intelectuais, sacer­ dotes, militares, vários setores da pequena-burguesia etc. Além disso, infiltraram influências especificamente antiburguesas e revolucioná­ rias nas massas populares, despertadas mas refreadas pela "demagogia populista", o que estabelecia um perigoso elo entre miséria e pobreza, "pressão dentro da ordem" e convulsão social.

Segundo o Estado nacional, irrefreavelmente intervencionista, por efeito da extrema diferenciação e do crescimento congestionado de suas funções econômicas diretas e de suas múltiplas funções cul­ turais, converteu-se numa formidável ordem administrativa (por causa de seu corpo de funcionários e de técnicos) e numa considerável força socioeconômica (por causa da massa das empresas estatais e das inú­ meras áreas em que incidiam, coativamente, os "programas especiais do governo"). A burguesia sempre solapara esse processo. Contudo, ela dependia dele e tinha de admiti-lo e estimulá-lo, procurando, não obstante, manter o Estado e suas forças econômicas, culturais e polí­ ticas como uma esfera controlada e segura do poder burguês (no que era ajudada pelos efeitos políticos diretos e indiretos do desenvolvi­ mento desigual interno; e pela estrutura do presidencialismo em um país no qual o Legislativo e o Judiciário estão condenados à predomi­ nância de interesses burgueses ou pró-burgueses conservadores). Ovo­ lume alcançado pelo Estado brasileiro, como associação administrati-

va e organização política, e o transbordamento do radicalismo burguês na direção do poder estatal - mediante a atuação política de certos governos de "base populista"; e graças às identificações nacionalistas que começaram a grassar entre "altos funcionários" e no pessoal téc­ nico de "alto gabarito" - despertaram, em pouco tempo, um temor novo. O Estado surgia como uma espécie de fantasma, não em si e por si mesmo (pois os "governos populistas" e a "alta burocracia naciona­ lista" não se atreveram a ir demasiado longe), mas por causa do que esse deslocamento parecia representar, como perda do "controle bur­ guês" sobre o Estado e em termos de suas aparentes conseqüências negativas para a "iniciativa privada" e a liberdade burguesa. As recens tes origens patrimonialistas da burguesia brasileira, com seu agressivo particularismo e seu arrogante mandonismo conservador, impediam uma compreensão mais ampla ou flexível do problema (como, por exceção, a que havia sido defendida, na decolagem desse processo, por Roberto Simonsen e alguns expoentes do "industrialismo"). A sim• ples autonomização institucional das funções básicas do Estado e ij mera ameaça de que isso iria acarretar uma verdadeira nacionalização de suas estruturas administrativas ou políticas e servir de fundamento a um processo de centralização independente do poder apareciam como uma clara e temível "revolução dentro da ordem" antiburguesai De fato, se ocorresse semelhante transformação política, a burguesia perderia o controle do Estado. Vários processos políticos de "pressão dentro da ordem" se alterariam gradualmente, no seu inverso, conver tendo-se em fatores de "revolução dentro da ordem", contra os quais as classes e os estratos de classe burgueses pouco ou nada poderiam;' sem o ponto de apoio institucional repressivo e opressivo que semp · encontraram no Estado. O poder burguês se esvaziaria se perdesse o monopólio do poder estatal, e a prefiguração dessa ameaça calou fundo mesmo em grupos burgueses que gravitaram pelas searas do radicalismo burguês e da "demagogia populista".

Terceiro, a industrialização intensiva e a eclosão do capitalismq monopolista alargaram e aprofundaram, de maneira explosiva, d influências externas sobre o desenvolvimento capitalista interno, exi+:

gindo das classes e dos estratos de classe burgueses novos esquemas de ajustamento e de controle daquelas influências. Era impossível deter semelhante processo, nascido da própria estrutura mundial do capitalismo e incentivado pelo caráter dependente da economia capi­ talista brasileira. As classes e os estratos de classe burgueses tinham de enfrentar, no entanto, seus efeitos políticos. Pois se a irradiação do capitalismo competitivo, de fora para dentro, não atingia diretamente as estruturas de poder político da sociedade brasileira, o mesmo não sucedia com a irradiação do capitalismo monopolista. Aquelas classes e estratos de classe viam-se, de repente, na posição de antagonista do aliado principal. O desafio externo também se erguia, portanto, como um espantalho. Se, como parte da autodefesa e da auto-afirmação da "iniciativa privada" em geral, se impunha defender e aumentar a asso­ ciação com os "capitais externos", fomentando os ritmos das "inver­ sões estrangeiras" e, com elas, os da modernização controlada de fora, a autoproteção de classe da burguesia brasileira estabelecia um limite à "interdependência". Acima do afluxo de capitais, de tecnologias e de empresas e, mesmo, acima da aceleração do desenvolvimento capita­ lista estava, para ela, seu status, em parte mediador e em parte livre de "burguesia nacional". O fulcro do poder real interno da burguesia, no que diz respeito ao capitalismo dependente e subdesenvolvido e às conexões de economias nacionais capitalistas da periferia com as na­ ções capitalistas hegemônicas e com o sistema capitalista mundial, passa por esse status. As classes e os estratos de classe burgueses viam-se na contingência de resguardar esse status, embora a quatro mãos estivessem empenhados numa cruzada pró-imperialista. Se ele fosse afetado, não haveria base material para qualquer processo de autodefesa e de auto-afirmação da burguesia nativa como parte de um sistema nacional de poder. Ela deixaria, automaticamente, de ser uma "burguesia nacional" - embora dependente e da periferia do mundo capitalista - e reverteria à condição de burguesia-tampão, típica de economias coloniais e neocoloniais, em transição para o capitalismo e para a emancipação nacional (da qual a melhor ilustração é a "burgue­ sia compradora" chinesa). Desse ângulo, percebe-se claramente o

quanto o referido status é importante para uma burguesia dependen­ te. Ele constitui a base material de autoproteção, autodefesa e auto­ afirmação dessa burguesia, no plano das relações internacionais do sis­ tema capitalista mundial. Privadas desse status, as burguesias nativas da periferia não contariam com suporte e funções políticas, que e monopólio do poder estatal lhes confere, para existir e sobrevivei como comunidade econômica. Daí a perturbadora evolução política do desafio externo, para uma burguesia tão empenhada em atingü o ápice da transformação capitalista através da "colaboração externa" e da "associação com os capitais estrangeiros".

Esses três focos de pressões diretas e indiretas atuaram conver­ gentemente, imprimindo à crise do poder burguês uma significaçãc política catastrófica e compelindo as classes e os estratos de classe burgueses a buscar, nos interesses materiais e políticos comuns, uma unidade de classe, por precária que fosse. A questão já não era "ganhar tempo" e transferir reiteradamente para o futuro o enfrentamento com a realidade. Mas usar a dominação de classe e o poder de classe da burguesia como elementos ativos de sua autodefesa e autoprivilegia­ mento políticos: tratava-se, e_m suma, de conjurar os fantasmas, reais ou imaginários, que povoavam os sonhos dourados das classes e dos estratos de classe burgueses, ou seja, de travar uma verdadeira bata· lha pelo "mundo burguês", aparentemente ameaçado.

Alguns dos pontos focalizados nesta sumaríssima concatenação precisam ser retidos com cuidado, pois são típicos da organização e do funcionamento da sociedade de classes sob o capitalismo dependente e subdesenvolvido (e não se manifestam da mesma forma onde a Revo­ lução Burguesa segue seu curso "clássico" ou liberal-democrático). Refe­ rimo-nos à reação societária (naturalmente calibrada pelos interesses e valores das classes burguesas dominantes), às "pressões dentro da ordem" e às pressões contra a ordem; e à manipulação das duas espé­ cies de pressões pelas classes e pelos estratos de classe burgueses.

Sem nenhuma "idealização sociológica", é evidente que nesta última situação (portanto, onde o modelo democrático-burguês de transformação capitalista encontrou efetiva vigência histórica) preva•

leceu uma ampla correlação entre radicalismo burguês, reformismo e "pressões dentro da ordem" de origem extraburguesa (procedentes do proletariado urbano e rural ou das "massas populares"). A situação de classe da burguesia como um todo comportava essa correlação, pois ela repousava em uma base material de poder de classe suficien­ temente "integrada", "estável" e "segura" para permitir (e, mesmo, para exigir) a livre manifestação de dinamismos econômicos, sociais e polí­ ticos que só poderiam ser desencadeados pelas classes assalariadas. Em conseqüência, o radicalismo burguês acabou refletindo, no nível estrutural-funcional tanto quanto no nível ideológico, pressões que tinham uma origem operária, proletária ou sindical, as quais, com fre­ qüência, transcendiam e colidiam com os interesses de classe especi­ ficamente burgueses. Isso tornou, muitas vezes, ambíguas as relações do radicalismo burguês com o socíalísmo reformista (e chegou a fomentar, mesmo, o que Lênin caracterizou como uma "infecção bur­ guesa" do marxismo). Doutro lado, as "pressões contra a ordem" encontravam tolerância no plano ideológico e mesmo na esfera práti­ ca, objetivando-se socialmente através do movimento sindical, dos partidos operários etc. As relações dessas pressões com o radicalismo burguês também eram, sem dúvida, fortemente ambíguas e comple­ xas. O radicalismo burguês podia avançar o suficiente para absorver, entre tais pressões, pelo menos aquelas que fossem compatíveis com os tipos de "revolução dentro da ordem" que poderia advogar, o que lhe dava certa elasticidade para adaptar a ordem social competitiva a certos interesses revolucionários da classe operária e, até, dos setores destituídos. Não obstante, se tal coisa não sucedesse, nem por isso o conflito de valores e de interesses engendrava, em si e por si mesmo, a confusão entre as duas espécies de pressões de modo que as "pres­ sões dentro da ordem" das classes baixas ou de estratos burgueses ultra-radicais fossem estigmatizadas e banidas por meios repressivos, com fundamento na mera existência e propagação das "pressões con­ tra a ordem". Por fim, embora seja uma regra o aproveitamento das tensões e conflitos de classes pelos diversos estratos burgueses domi­ nantes, raramente as classes burguesas se viram na contingência de

ter de empregar as "pressões dentro da ordem" e as "pressões contra a ordem" da classe operária (ou das massas destituídas) como um expe­ diente normal de autoprivilegiamento em face de outros setores bur­ gueses ou como técnica sistemática na obtenção de vantagens esporá­ dicas. Um comportamento de classe tão elementar e tosco podia ser necessário em momentos de crise do regime de classes, de alteração do padrão de hegemonia burguesa, na competição política associada aos processos eleitorais, em "frentes comuns" por ou contra certas políticas governamentais etc. Todavia, o grau de diferenciação vertical e de integração horizontal das várias classes burguesas punha a domi nação burguesa e o poder burguês em bases materiais e políticas mai!! firmes, elásticas e estáveis. Como conseqüência geral, o padrão de reação societária às "pressões de baixo para cima", a favor ou contra a ordem existente, podia ser, normalmente, mais tolerante, flexível democrático. Certos valores da democracia burguesa se incorporam1 pois, aos requisitos materiais, legais e políticos da própria existência, continuidade e fortalecimento da dominação burguesa e do poder bur­ guês. O consenso burguês podia, por conseguinte, "abrir" a ordem exis, tente àquelas pressões, como parte de uma rotina que conferia à cidar dania, às franquias políticas ligadas à ordem legal, à participaçãQ política das massas etc. o caráter de algo essencial para a estabilid.adf e a normalidade de uma sociedade nacional. _1

A sociedade de classes dependente e subdesenvolvida reflet

uma dinâmica e uma história bem diversas. Como se pode exemplifi+, car com o Brasil, no decorrer desta última metade de século, as clasJ· ses e os estratos de classe burgueses se viram compelidos a enfrent pressões favoráveis e contrárias à ordem social estabelecida: algumas, nascidas dentro dos setores burgueses ou, pelo menos, manipulada ­ por eles; outras, de origem especificamente operária ou de cunh() "popular". O quadro com que deparamos constitui o reflexo invertido do que acabamos de descrever. As "pressões de dentro da ordem", com freqüência incentivadas ou radicalizadas pelos setores intermediário e até pela alta burguesia urbana, eclodiram em um clima histórico negativo. O grau de diferenciação vertical e de integração horizontal

das classes e dos estratos de classe burgueses não era suficientemen­ te alto e complexo para engendrar qualquer modalidade de consenso burguês médio de tipo democrático. Na verdade, o radicalismo bur­ guês, que assim se exteriorizava, exprimia mais uma impaciência his­ tórica do que um processo estrutural de radicalização de setores insa­ tisfeitos e rebeldes da burguesia. Em termos da composição da burguesia e de sua relação com a organização da sociedade nacional não existia uma tendência consistente e socialmente necessária de radicalismo burguês conseqüente e militante. À luz dessa relação, a burguesia não tinha como articular e absorver interesses antagônicos ou semidivergentes das demais classes, apesar de eles decorrerem de e serem impostos pela própria estrutura e pelos dinamismos da ordem social existente. O radicalismo burguês não podia crescer por aí, ali­ mentando, ao mesmo tempo, uma maior dinamização da dominação burguesa e do poder burguês. As "pressões dentro da ordem", fomen­ tadas pelas classes operárias ou pelas massas populares, com ou sem o apadrinhamento de setores burgueses extremistas, pipocavam aqui e ali, ameaçando transformar-se numa torrente histórica. Contudo, o consenso burguês mostrou-se invariavelmente tímido e hostil a tais pressões, as quais ele devia temer, dada a distribuição da riqueza e do poder numa sociedade de classes dependente e subdesenvolvida. A massa dos que se classificam dentro da ordem é pequena demais para fazer da condição burguesa um elemento de estabilidade econô­ mica, social e política, enquanto o volume dos que não se classificam ou só se classificam marginal e parcialmente é muito grande. Isso acir­ ra o temor de classe e torna a inquietação social algo temível. Por con­ seguinte, a reação societária às pressões dentro da ordem obedeceu à natureza de uma mentalidade política burguesa especial, inflexível e intolerante mesmo às manifestações simbólicas e compensatórias do radicalismo burguês, e disposta a impedir ou bloquear o seu avanço, em particular, o impacto que elas poderiam ter sobre a aceleração da revolução nacional.

Esse tipo de reação societária fundava-se, diretamente, em uma

forma ultravulnerável de temor de classe. Ele não era um produto de

obscurantismo intelectual ou político. Pois nunca se ignorou o que as pressões dentro da ordem representariam, quer idealmente (para a existência de um regime democrático), quer concretamente (para reti­ rar a "revolução brasileira" do seu ponto morto). Não obstante, aque­ le padrão de reação societária levou a inflexibilidade e a intolerância muito longe, como se fosse sistematicamente obscurantista e imobi­ lista. As "pressões dentro da ordem" foram assimiladas às "pressões contra a ordem" como um expediente prático para facilitar a estigma­ tização das primeiras e aumentar, em bloco, a eficácia do sistema de opressão e de repressão que conferia, desse modo, aos setores conser• vadores da burguesia o monopólio de selecionar e de introduzir as ino­ vações historicamente necessárias. Dentro de semelhante contexto; o próprio radicalismo burguês "esclarecido" podia confundir-se com a "subversão'' e o "comunismo''; e as "pressões contra a ordem'' perdiant; em geral, qualquer "legitimidade" moral, legal ou política. Não se tra• tava, porém, de um imobilismo histórico ou de uma defesa obstinada do estancamento. Ao contrário, os vários estratos da burguesia se abriam tanto para as alterações da ordem, a partir de dentro, quanto para a "modernização dirigida de fora", desde que as condições e os efei.. ws de tais processos estivessem sob controle conservador. O que impomf é que as classes e os estratos de classe burgueses, portanto, não são s4• incapazes de sair da própria pele. A maneira pela qual funciona e cres•i ce a versão brasileira da sociedade de classes impede: l2) que eles pos+ sam estabelecer (mantidas as condições atuais) qualquer articulação:

flexível com as pressões dentro da ordem das classes operárias e das!

classes destituídas; 22) que eles possam absorver (mantidas as condi• ções atuais) as pressões contra a ordem dessas mesmas classes. A do­

minação burguesa e o poder burguês ficam, em conseqüência, estrei•: tamente confinados aos interesses e aos meios de ação das classes, burguesas. E o consenso burguês não pode alargar-se em função suporte direto ou indireto das demais classes, que não são articuladas à burguesia, quer mediante impulsões igualitárias de integração nado• nal, quer através dos dinamismos materiais de participação econômi• ca ou dos dinamismos sociais de participação cultural e política. Ao se

fecharem sobre si mesmas, as classes e os estratos de classe burgue­ ses comprimem seu campo de atuação histórica e o seu espaço políti­ co criador, propriamente reformista ou revolucionário.

Temos, aí, não a ordem social competitiva "ideal", mas a que se toma possível em uma sociedade de classes dependente e subdesen­ volvida. Ela se ajusta como uma luva ao capitalismo dependente e às seqüelas do desenvolvimento desigual interno ou da dominação impe­ rialista externa. Contudo, ela não lembra, nem de longe, a flexibilida­ de dessa mesma ordem nas condições de um desenvolvimento capita­ lista autônomo ou hegemônico; e tampouco pode preencher suas "funções normais" quanto à dinamização do regime de classes. Porque ela é uma ordem social competitiva que só se abre para os que se clas­ sificam positivamente em relação a ela; e que só é competitiva entre os que se classificam positivamente, para as classes possuidoras, ou seja, para os ricos e poderosos. O que é pior, no plano histórico essa ordem social e competitiva só se preserva e se altera graças ao enlace da dominação e do poder das classes possuidoras com a neutralização ou a exclusão das demais classes, que ou só se classificam negativamen­ te em relação a ela (e permanecem inertes), ou se classificam positi­ vamente, mas não podem competir livremente dentro dela (e perma­ necem tuteladas). Não obstante, esse encadeamento liga entre si o senhor e o escravo, fazendo com que o destino daquele se realize atra­ vés deste. Mesmo para ganhar maior liberdade histórica ou maior espaço político, como e enquanto burguesia, as classes e os estratos de classe burgueses têm de procurar fora de suas fronteiras pontos de apoio materiais e políticos, que transferem para as classes operárias e excluídas, em última instância, os dinamismos mais profundos da ordem social competitiva. Esse não é, apenas, o fundamento da "demagogia populista". Nele se acham a essência do regime republi­ cano, com seu presidencialismo autoritário, e o fulcro do "equilíbrio da ordem" durante toda a evolução da sociedade de classes. As conhe­ cidas idéias de Nabuco a respeito do "mandato abolicionista" aplicam­ se de modo perfeito ao circuito de uma cidadania que se afirma para alguns, com base na negação do grande número: o cidadão válido é

um "advogado ex officio" do povo, que trai o seu mandato, porém, e o volta para o exclusivo benefício próprio. Por essa via, as contradições intrínsecas da sociedade de classes sobem à esfera da vida burguesa, condensando-se dentro dela, penetrando-a a fundo e envenenando as relações das classes burguesas entre si. Malgrado toda a sua riqueza, toda a sua segurança e toda a sua estabilidade, o centro de equilíbrio do mundo burguês desloca-se para o núcleo infernal de uma socieda­ de de classes extremamente injusta e desumana cujo despertar surge como a derrocada final. Essa situação histórico-social, psicológica e política empobrece e limita o consenso burguês, que se fecha sobre si mesmo, quando posto em confronto com desafios históricos concretos. Ele só conta com e só confia nas "pressões de cima para baixo", que possam ser mobilizadas através da dominação burguesa ou impostas pelo poder burguês; e, nos casos de tensão extrema, só acredita, de fato, nas "pressões de cima para baixo" submetidas ao controle insti-; tucional da dominação e do poder burgueses, isto é, que se incorpo rem e sejam garantidos pelos meios de opressão e de repressão, nor, mais ou extraordinários, do Estado nacional.

Esta breve digressão sociológica aponta para algo que é crucial: •· crise do poder burguês não coincidia com qualquer movimento fun;

,

<lamentai das classes e dos estratos de classe burgueses em direção1

"consolidação" (ou, como querem outros, que levam a sério a crise ·•. Primeira República, de "restauração") da democracia burguesa nq' Brasil. Ao contrário, ela colocou essas classes e esses estratos de elas)\ se diante dos três focos de pressões diretas e indiretas, mencionad°'1 acima, sem que existisse, em seu seio, disposições coletivas realmenr te consistentes no sentido da democratização das relações de classesf A própria estrutura e as tendências de diferenciação a curto prazo ·• ordem social competitiva existente não comportavam tais disposições,? que irrompiam como uma ameaça à necessidade urgente de confe à dominação e ao poder burgueses um padrão definido de hegemonia: de classe. Desse ângulo, aquelas pressões punham as classes e Of: estratos de classe burgueses não diante do problema da democraci4:, (mesmo entendida como uma "democracia burguesa"); mas, isto sim.:

diante do problema da ordem (entenda-se: de uma "ordem burguesa", que "devia ser salva", posta em bases estáveis e "consolidada").

Se se quiser traduzir tais conceitos em termos claros, o enfrenta­ mento da burguesia brasileira com sua realidade estrutural e histórica impulsionou-a a colocar-se o dilema de como instaurar, abertamente, uma oligarquia coletiva das classes possuidoras. O que entrava em questão era portanto o problema da autocracia (embora dissimulado sob a aparência ambígua da "democracia forte"). Só assim ela podia deter os processos incipientes ou adiantados de "desagregação da ordem", passando de uma ordem burguesa "frouxa" para uma ordem burguesa "firme". Aí, o elemento político desenhava-se como fundamento do econômico e do social, pois a solução do dilema implicava, inevitavel­ mente, transformações políticas que transcendiam (e se opunham) aos padrões estabelecidos institucionalmente de organização da economia da sociedade e do Estado. As "aparências da ordem" teriam de ruir, para que se iniciasse outro processo, pelo qual a domina,ção burguesa e o poder burgues assumiriam sua verdadeira identidade, consagrando-se em nome do controle absoluto das relações de produção, das superes­ truturas correspondentes e do aparato ideológico.

Contudo, uma burguesia econômica, social e politicamente impo­ tente para enfrentar e resolver dentro da ordem pressões e tensões do tipo indicado possui, naturalmente, limitadas saídas históricas. Se sua base de poder real fosse de fato sólida e flexível, ela poderia se arris­ car a tirar proveito do radicalismo burguês e, mesmo, das "pressões contra a ordem", superando as contradições tão elementares com que se defrontava e ampliando, ao mesmo tempo, a articulação das classes operárias e das classes destituídas com os interesses burgueses. Isso não seria impossível dentro do intenso (embora falso) clima de nacio­ nalismo reformista, suscitado pelo radicalismo burguês e pela "dema­ gogia populista". No entanto, as contradições enfrentadas pelas clas­ ses burguesas eram "estruturais" no sentido de fazerem parte de uma constelação de mudanças essenciais à existência e ao funcionamento de uma sociedade de classes e da ordem social competitiva correspon­ dente. Para absorvê-las, aquelas classes teriam de transcender à situa-

ção de interesses modelada pela dependência e pelo desenvolvimento desigual interno. Esse era o salto que, na realidade, tanto os estratos altos quanto os estratos médios da burguesia temiam dar. A prova con­ creta demonstrou isso com clareza. Postas contra a parede, nos momentos críticos de decisão coletiva, as classes burguesas finalmen­ te repeliram toda "conciliação entre classes", porque qualquer acomo­ dação imporia uma ruptura aberta com esses dois pólos do padrão imperante de relação capitalista e de acumulação capitalista; e, feita a escolha, ela se tornaria irreversível, acelerando, com ou sem "consen­ timento burguês" ulterior, sucessivas transformações profundas da eco­ nomia, da sociedade e do Estado, do tipo "revolução dentro da ordem". Só restavam o enrijecimento e o uso organizado da violência de clas­ se, "enquanto fosse tempo". Nesse jogo é que a classe tinha de sobre­ por-se à nação; e de prevalecer sobre ela.

Tal saída era, não obstante, mais difícil que arriscada. Os obstáculos estavam na própria capacidade de ação coletiva das classes e dos estratos de classe burgueses. De um lado, o grau de diferenciação ver­ tical e de integração horizontal dessas classes estava aquém das "exi­ gências históricas". Ele não comportava, por si mesmo, uma forma de solidariedade de classe suficientemente balanceada para congregar as classes e os estratos de classe burgueses na defesa coletiva de suas diferenças e da dinamização ou aprofundamento dessas diferenças. Em termos estruturais, um "movimento unificador da burguesia" só poderia repousar naquilo que eles possuíam em comum, ou seja, o seu status como e enquanto classes possuidoras (pois os elementos diferen­ ciais lançavam as classes e os estratos de classe burgueses uns contra os outros, tanto no plano mais geral dos "projetos de participação" na ordem social competitiva existente, quanto na esfera específica da luta pelo controle societário do poder de classe e do Estado). De outro lado, o padrão de articulação das classes e dos estratos de classe bur­ gueses, que resultava dos dinamismos econômicos, sociais e políticos da ordem competitiva existente, agravava ainda mais tais contradições intrínsecas da burguesia. Os surtos industriais e de crescimento eco­ nômico rápido expunham essas classes e esses estratos de classe,

arcaicos ou modernos, a uma intensa e incontrolável avidez por "opor­ tunidades" e "vantagens estratégicas" novas. Em situações dessa natu­ reza, as instituições que organizam e regulam o comportamento e a mentalidade da burguesia (via empresa, associações patronais, parti­ dos políticos, Estado etc.) não desenvolvem (nem poderiam fazê-lo) controles coercitivos de tipo expurgador. Prevalece a "regra de ouro" de que aquilo·que é bom para o agente individual também é bom para a burguesia como um todo, com o seu corolário prático: é melhor arcar com os efeitos negativos das tendências centrífugas, que assim se for­ talecem, que lutar contra elas e submetê-las a controle deliberado, mas de implicações limitativas. Os dois elementos, em conjunto, erguiam uma barreira considerável a qualquer transformação política necessária, imobilizando a capacidade de ação coletiva da burguesia nos dois níveis concomitantes, o de classe e o nacional.

Isso não é novo e a burguesia brasileira não é nem a primeira nem a última que tem de enfrentar esse "dilema de juventude". Todavia, as classes e os estratos de classe burgueses se viram diante do dilema, no Brasil, em uma época de crise estrutural e histórica do poder burguês. Não tinham tempo para esperar que os processos naturais de diferen­ ciação vertical, de integração horizontal e de articulação das classes burguesas promovessem, em um quarto de século (o que seria mais provável, dados os ritmos lentos, imperantes a partir de dentro), a maturação da ordem social competitiva e produzissem, assim, um padrão mais complexo e plástico de solidariedade de classe. As cir­ cunstâncias fizeram com que os interesses de classe comuns traba­ lhassem psicológica e politicamente as frustrações e a agressividade inerentes a um impasse dessa magnitude, expondo o temor de classe burguês a uma rápida elaboração explosiva. Desencadeiam-se, direta­ mente no seio das classes burguesas (e tanto na alta quanto na média burguesias) ou nas instituições que organizam e aplicam o poder bur­ guês, vários movimentos convergentes, voltados para a criação de uma evolução artificial, deliberada, que traduzisse a vontade burgue­ sa. O objetivo clarificou-se com certa rapidez, pois as melhores descri­ ções mostram que essa transformação, incipiente e incerta sob o

Estado Novo, já alcançara o seu pico dentro das forças conservadoras que galvanizaram a candidatura Quadros à Presidência da República e põe em primeiro plano a manipulação política daquilo que se pode­ ria chamar, à falta de uma expressão melhor, de "unidade tática" das classes e dos estratos de classe burgueses. Impotentes para compor e; superar suas divergências, eles deslocam o foco da unidade de ação,;

transferindo-o das grandes opções históricas para o da autodefesa coleti) va dos interesses materiais comuns, que compartilhavam como e;

enquanto classes possuidoras. Por isso, pode-se qualificar o padrão de) hegemonia burguesa resultante como sendo o de uma hegemonuí! agregada, de simples aglutinação mecânica dos interesses de class Essa qualificação não é derrisória, porém; ao contrário, nenhum sociÓl!l logo pode ignorar o que tal transformação teria de implicar, seja estru l

turalmente, seja politicamente. Ela constituía, literalmente, uma "acei1 leração burguesa da história". Sem modificar substancialmente a siJ próprios, à nação e ao seu relacionamento material com as <lema

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classes, as classes e os estratos de classe burgueses descobriram u

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equivalente das condições estruturais e dinâmicas de dominação <<<<

classe, que não estavam a seu alcance. Antes mesmo de concluir t

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o complexo processo de sua diferenciação vertical, de sua integraçã horizontal e de sua articulação, logram estabelecer, por via políticaI! uma unificação que permitiria atingir os mesmos fins, pelo meno

durante o período de desgaste imprevisível e de risco supostamente

41,

mortal do poder burguês. Por elementar e tosca que seja, essa fo l

de hegemonia burguesa transferiu para as mãos da burguesia o con,.:"j

marcante do sistema brasileiro de classes sociais. Ao se tomar realida­ de e ao conduzir, em seguida, a uma súbita alteração do alcance da dominação burguesa e da eficácia do poder burguês, ele patenteou qual é sua exata significação sociológica. Ele indica uma alteração qualitativa fundamental das potencialidades sociodinâmicas e políti­ cas da dominação e do poder de classes da burguesia. Mesmo que a transformação decorrente fosse insuficiente para modificar as estrutu­ ras e os dinamismos de todo o sistema de classes, ela permitia à bur­ guesia remediar e contornar os obstáculos econômicos, socioculturais e políticos com que se defrontava, superando, assim, pelo menos tran­ sitoriamente, sua impotência histórica. É esse, segundo pensamos, o aspecto que se deve reter e colocar em primeiro plano na análise sociológica. A mudança qualitativa das forças econômicas, sociocultu­ rais e políticas, concentradas nas mãos das classes e dos estratos de classe burgueses, conferiu-lhes uma nova oportunidade histórica, como se as alterações estruturais prévias do "meio social interno" se tivessem dado (e em favor da burguesia) e se o poder burguês não sofresse deficiências intrínsecas tão fortes. A unificação dos interesses de classes e da solidariedade de classes, com fundamento nos elemen­ tos da situação material compartilhados universalmente (embora com intensidade desigual) por todos os setores da burguesia, como classes possuidoras, preenchia a função assinalada, de concentrar e de cen­ tralizar socialmente as forças econômicas, socioculturais e políticas de que dispunham. Dessa forma, as classes e os setores de classe burgue­

ses podiam aproveitar, estrutural e dinamicamente, as vantagens de

trole do tempo, do espaço e da sociedade, fixando os ritmos

l

internos;:

sua condição de minoria, ou seja, dos "pequenos números", utilizando

do impacto da industrialização intensiva e da eclosão do capitalismo'j monopolista sobre a ordem social competitiva existente.

Como não refletia mudanças estruturais prévias do "meio social:'. interno", a consolidação do padrão agregado ou articulado de hegemo-: nia burguesa pode parecer, a uma análise sociológica convencional•; um fenômeno sem importância (de superfície e secundário). Não obs tante, sua simples possibilidade (o fato de as classes burguesas tenta·•< rem concretizá-lo historicamente) já constituiria uma transformação 1

tais vantagens de modo consciente, deliberado e organizado. Essa concentração e essa centralização do poder real processavam-se, simultaneamente, em dois níveis: o das relações diretas de classes; e o de dominação de classe mediada pelo Estado nacional. Compensa­ vam-se, portanto, as duas deficiências congênitas, que inibiam e sola­ pavam o poder burguês, tomando-o incapaz de suplantar as tendên­ cias centrífugas que o desagregavam e o anulavam politicamente. Como o que prevalecia, nesses processos, eram os interesses materiais

comuns, inerentes à condição de classe possuidora de todos os seto­ res da burguesia, e o deslocamento do poder real se dera, por conse­ guinte, na direção do núcleo estático da ordem social competitiva exis• tente, a unificação e a centralização do poder burguês ganharam densidade para resistir aos efeitos reativos imediatos, fatalmente desa• gregadores, de sua conversão em "fatores históricos". A burguesia como um todo conseguia, pelo menos, de uma a duas décadas ou a um quarto de século, período de tempo dentro do qual suas tendên•· cias mais conservadoras poderiam dirigir, na cena histórica, a transbor.· dante modernização provocada pela industrialização intensiva e pela· eclosão do capitalismo monopolista. Em suma, ela ficava livre para imprimir à auto-afirmação burguesa o caráter de uma contra-revolu­ ção, que devia associar a explosão modernizadora com a regeneração dos costumes e da estabilidade da ordem.

Essa evolução dependia, porém, de algo mais que a simples alte-. ração súbita da "vontade burguesa" e da organização do comportamen• to coletivo dos estratos dominantes das classes burguesas. Como já· apontamos acima, a transformação em questão respondia, globalmen• te, às pressões do radicalismo burguês, da oposição operária e da insa•• tisfação popular. A unificação e a centralização do poder real das clast: ses e dos estratos de classe burgueses - nos níveis das relações , diretas das classes e da mediação do Estado nacional -, para sere111: politicamente "úteis" e "eficientes", tinham de transcender aos limites estritos dos interesses de classe burgueses, indo além das fronteiras· físicas da dominação burguesa. Isto é, os estratos dominantes das clas­ ses burguesas careciam de um excedente de poder, através do qual pudessem: 111) desbaratar as pressões inconformistas pró-burguesas e

as pressões antiburguesas; 22) garantir-se um máximo de autonomia

histórica no controle de classe das sucessivas transformações subse•· qüentes da ordem. Por aí se vê, inconfundivelmente, que a autodefe­ sa da burguesia organizava-se e armava-se como um movimento histó· rico de auto-afirmação e de autoprivilegiamento dos interesses de classe burgueses. Não era, pois, uma autodefesa passiva, mas o seu oposto: uma autodefesa ativa, militante e agressiva, que assumia, nos

limites históricos do capitalismo dependente, uma dimensão histórica "conquistadora". Isso define a natureza dos dois processos, de unifica­ ção e de centralização do poder real de classe, que entravam em jogo. No nível das relações diretas de classes e no nível da intermediação do Estado nacional, as classes e os estratos de classe burgueses defen­ diam o monopólio da cidadania válida, com os dividendos políticos resultantes: ou seja, o controle burguês da sociedade civil e do próprio Estado nacional. Mesmo antes de se tornar conspirativo e de explodir como uma contra-revolução em defesa da modernização dependente e da regeneração dos costumes e da ordem, os dois processos aponta­ vam nessa direção. Daí a extensa e intensa mobilização de classe de todos os recursos materiais, ideológicos, políticos e armados ao seu alcance, que caracterizou o cerne do movimento centralmente de autodefesa coletiva da burguesia brasileira, depois de 1945.

Desse ponto de vista, as minorias burguesas contavam com uma ampla base estrutural para estabelecer e explorar politicamente o refe­ rido consenso autodefensivo. As classes e os estratos de classe burgue­ ses irradiavam-se por todos os níveis de organização da sociedade civil e do Estado nacional. Deles poderiam depender tanto a normalida­ de e a continuidade quanto a crise e o colapso de uma e de outro. Em um plano, podiam entorpecer ou neutralizar todas as funções mais ou menos fundamentais para a sobrevivência da ordem social competiti­ va existente. Em outro plano, podiam empolgar "o controle da situa­ ção", imprimindo a essas funções as distorções e as deformações que se tornassem recomendáveis ou necessárias. Os setores radicais da pequena, da média e da alta burguesias juntamente com os setores mobilizados das classes operárias e das classes destituídas pouco ou nada podiam fazer para obstar essa realidade. A "paralisação" e a "sabotagem" burguesas da ordem significavam, literalmente, uma "paralisação" e uma "sabotagem" da ordem existente como tal. Isso surgiu à superfície à medida que os efeitos paralisadores e sabotado­ res das iniciativas burguesas se desdobraram e convergiram para o solapamento do precário regime representativo; e ficou nítido depois da transição contra-revolucionária propriamente dita, com a instaura-

ção de controles autocrático-burgueses de depuração e tutelagem desse regime. Somando-se as evidências esclarecedoras essenciais, parece claro que os processos de unificação e de centralização do poder burguês descansavam sobre uma base estrutural bastante. ampla; que essa base foi mobilizada em extensão e em profundidade; e que esses são os elementos centrais que explicam a súbita emergên­ cia e o êxito, ao mesmo tempo, do processo contra-revolucionário pro.:; priamente dito. Este não estava contido naqueles dois processos como; "a galinha no ovo". No entanto, eles forjaram a transformação que tor•.i nava a contra-revolução o seu coroamento lógico, quer estabelecendo· o nexo entre a explosão modernizadora e a regeneração dos costumes., e da ordem, quer imprimindo à autodefesa de classe da burguesia O' caráter de uma auto-afirmação e de um autoprivilegiamento de classe: por meios insólitos. . .:

É discutível se o referido nexo poderia ou não ser evitado pelas] forças históricas em conflito e, com maior razão, se a reação de auto-1 defesa da burguesia deveria assumir uma impregnação militar e tec-;

nocrática tão profunda e tão persistente. Ambos os pontos possuem,'

quando muito, uma significação acadêmica. Os fatos se encarregaram1 de demonstrar, concretamente, o que havia de inexorável nas evolu-'i ções descritas. Ainda assim, é importante considerar esses dois pon-/

tos, porque eles ajudam a desvendar os elementos centrais da reação] autocrático-burguesa conservadora.

Quanto ao primeiro ponto, o chamado "colapso do populismo" ' constitui, em sua essência, um colapso do radicalismo burguês e da i ordem pseudamente democrático-burguesa que o engendrara. A ausên­ cia de articulação política sólida, ao mesmo tempo flexível e firme, • entre as classes possuidoras e as classes despossuídas (classes operá­ rias e destituídas) tirara da ordem social competitiva existente qualquer potenciação democrática efetiva e irreversível. A "demagogia populista" não procedia de qualquer pluralismo real: ela era uma aberta manipu­ lação consentida das massas populares. O povo não possuía nem man­ datários responsáveis nem campeões leais no "campo burguês"; e quan­ do o jogo democrático se tomou demasiado arriscado, os verdadeiros

atores continuaram o baile sem máscaras. Em suma, não existia uma democracia burguesa fraca, mas uma autocracia burguesa dissimulada. Este pode parecer um retrato muito duro. Porém, qual é o retrato que se pode fazer, depois de tudo que ocorreu ou está ocorrendo? Nem mesmo a "massa popular" chegou a se omitir, porque não houve "um momento de omissão histórica da massa popular". O que houve, e os analistas do "populismo" deixam bem claro, foi "um momento de ten­ tativa de afirmação da massa" (ou de convencionamento tácito de "um novo pacto social", como querem alguns autores), suprimido de modo insólito pela reação autodefensiva da burguesia. Portanto, o nexo pode­ ria ter sido eliminado, se a história também tivesse sido diferente. Como a história não foi diferente, ele define - e muito bem - o que as classes e os estratos de classe burgueses procuravam, ao liquidar as aparências "democrático-burguesas" da ordem.

Quanto ao segundo ponto, é óbvio que a impregnação militar e tecnocrática é uma resultante, embora seja uma resultante de caráter primordial e essencial. As classes e os estratos de classe burgueses só poderiam prescindir dessa impregnação se contassem com amplo apoio estrutural "vindo de baixo", isto é, das classes operárias e das clas­ ses destituídas. Mas, se tivessem semelhante apoio, seria um contra­ senso que empreendessem uma contra-revolução modernizadora e regeneradora. A própria estigmatização do radicalismo burguês não teria razão de ser, pois a ordem social competitiva se abriria a todas as pressões, conformistas ou inconformistas, que caem na órbita do "plu­ ralismo democrático". Os "fatos duros" revelam, porém, o contrário, que a reação autodefensiva da burguesia só podia atingir seu ponto de maturação e de eclosão sob forte e persistente impregnação militar e tecnocrática. Era da própria essência do padrão agregado ou articulado de hegemonia burguesa que se transferissem para certos setores bur­ gueses, civis e principalmente militares, as tarefas centrais do movi­ mento histórico autodefensivo e contra-revolucionário da burguesia. Pode-se afirmar com segurança que, se a burguesia brasileira não pos­ suísse estratos médios e altos fortemente instalados, em massa, "den­ tro do Estado" (os quais constituíam uma autêntica burguesia burocrá-

tica, dotada de poder estatal e de ampla liberdade para usar este poder), os processos de unificação e de centralização do poder burguês eclodiriam no vazio histórico. Em vez de serem coroados por uma con• tra-revolução e pela restauração da ordem burguesa, eles esbarrariam no agravamento dos conflitos com o "inimigo principal" e, talvez, se esboroariam de maneira melancólica. Dessa perspectiva, a militariza­ ção e a tecnocratização tanto do movimento contra-revolucionário da burguesia (em suas diversas fases: conspirativa, de assalto e consolidas ção do poder etc.) quanto do Estado nacional "regenerado", autocráti co-burguês, são intrínsecas à reação autodefensiva da burguesia e ins-, trumentais para os fins históricos imanentes, de auto-afirmação e autoprivilegiamento das classes burguesas. Se ambas não ocorressem e, ainda mais, se não atingissem níveis altos e persistentes, a crise do poder burguês provavelmente culminaria em uma "revolução contra a ordem". Mesmo que se iniciasse sob o impulso e se mantivesse duran­ te certo tempo sob o controle do radicalismo burguês, é improvável que tal revolução pudesse ser contida nesse limite, estabilizando-se através, de uma ordem democrático-burguesa suficientemente forte para absorver as "pressões antiburguesas" das classes operárias, das classes destituídas e do movimento socialista revolucionário.

A questão que restaria diz respeito à duração e à intensidade da militarização e da tecnocratização das estruturas e das funções do Estado nacional. Há quem pense que um poder externo à burguesia ou o próprio consenso burguês se voltariam (ou se voltarão) contra tais processos. Trata-se de uma questão que transcende à presente discus­ são. Ainda assim, nada impede que ela seja ventilada. O poder externo à burguesia não se evidenciou, como alternativa histórica; e quando ele se configurar como tal, terá de partir do Estado nacional existente, para organizar-se como "classe dominante" e concluir sua própria revolução. Para ele, portanto, a relação com as forças de militarização e de tecno­ cratização do Estado dependerá de situações concretas, que não podem ser previstas. O que importa, agora, é a alternativa que se concretizou e que se está convertendo em história: o consenso burguês. A seu res­ peito, só se podem fazer constatações melancólicas. O consenso bur-

guês, no caso, aparece como um consenso duplamente vinculado com as impulsões autocráticas da burguesia brasileira: por causa da estrutu­ ra da sociedade de classes; e por causa do caráter contra-revolucioná­ rio assumido pela reação autodefensiva das classes e dos estratos de classe burgueses. Ele não só acolhe como endossa a militarização e a tecnocratização como processos de preservação e de consolidação da ordem. Como só teria a perder se fizesse o contrário. O próprio con­ senso burguês reflete essa polarização, ao se converter na única fonte de legitimação dos dois processos e de suas conseqüências. São os "cidadãos válidos" da sociedade civil que os aprovam e que defendem com ardor tanto a sua "necessidade" quanto a sua "legitimidade". Ainda aqui as coisas não poderiam caminhar de outra maneira. Essa legitima­ ção não exprime senão o lado "abstrato" e "ideal" daquilo que o consen­ so burguês quer no "plano prático". Sem a militarização e a tecnocrati­ zação intensivas e persistentes, seria impossível colocar o Estado

nacional no centro das transformações históricas em curso e, portanto, seria também impossível: P·) manter o nexo entre a explosão moderni­

zadora e a regeneração dos costumes e da ordem; 22) converter a rea­

ção autodefensiva de uma "burguesia ameaçada" numa fonte de auto­ afirmação e de autoprivilegiamento das classes burguesas como um todo. O consenso burguês traduz, nessa matéria, a essência pragmáti­ ca e realista de sua racionalidade.

Os três processos mencionados dão conta das grandes transfor­ mações históricas sofridas pela organização do poder burguês e da sociedade de classes na última metade do século. A unificação e a centralização do poder de classe da burguesia explicam como se alte­ ra a solidariedade das classes e dos estratos de classe burgueses; e como emerge, se irradia e se consolida um novo padrão compósito de hegemonia dessas classes e estratos de classe. A contra-revolução bur­ guesa, por sua vez, explica como se passa do econômico e do social para o político: como as classes e os estratos de classe burgueses impuseram às demais classes sua própria transformação econômica, social e política, a qual acarretava profundas alterações nos padrões institucionais de relações de classes, de organização do Estado nacio-

nal e de vinculação dos interesses de classe burgueses com os ritmos econômicos, sociais e políticos de integração da nação como um todo. No plano histórico, passava-se, pura e simplesmente, de uma ditadu­ ra de classe burguesa dissimulada e paternalista para uma ditadura de classe burguesa aberta e rígida. Trata-se de uma passagem aparente­ mente irrelevante, especialmente para os observadores externos, acos­ tumados à idéia de que "eles se entendem", ou de que "certos países só podem ser governados assim". Todavia, uma realidade inalteravel­ mente terrível e chocante pode sofrer gradações para melhor e para pior. Os que têm de arcar com os custos econômicos, sociais e políti­ cos da passagem podem ver-se em um estado de privação relativa e de opressão sistemática ainda mais agudo, o que revela se a oscilação se deu em benefício de uns e contra outros. Como a economia, a socie­ dade e o Estado se encontraram envolvidos por igual em tal passagem, não houve área ou esfera em que as conseqüências negativas, passa­ geiras ou persistentes, deixassem de se refletir: depressão de salários e da segurança no emprego, e compressão do direito de greve e de pro­ testo operário; depressão dos níveis de aspiração educacional das "classes baixas", e compressão das "oportunidades de educação demo­ crática"; depressão dos direitos civis e dos direitos políticos, e com­ pressão política e policial-militar etc.

As palavras "deprimir" e "comprimir" exprimem, muito bem, a substância das relações da nova sociedade civil, constituída pelos cidadãos válidos, em sua quase totalidade burgueses, com o Estado nacional e com a nação. Pois a ditadura de classe aberta e rígida exige, para o seu "equilíbrio ideal" estático e dinâmico, um esvaziamento dos controles reativos e do poder relativo de autodefesa ou de retaliação seja das classes dominadas, em geral, seja dos setores dissidentes das classes dominantes. Se, por sua própria natureza, os três processos aprofundavam o entrosamento do poder burguês com o Estado nacio­ nal, a instauração e a continuidade de uma ditadura de classe aberta e rígida convertiam o Estado nacional no núcleo do poder burguês e na viga mestra da rotação histórica, que se operou quando a burguesia evoluiu da autodefesa para a auto-afirmação e o autoprivilegiamento.

Para o bem e para o mal, é através do Estado nacional, portanto, que essa ditadura de classe iria mostrar quais são os parâmetros políticos do modelo autocrático-burguês de transformação capitalista.

Se as demais condições são mantidas ou se elas se alteram muito pouco, a "aceleração da Revolução Burguesa" (que é o efeito históri­ co da industrialização intensiva e da eclosão do capitalismo monopo­ lista) só pode levar ao incremento e à agravação das desigualdades econômicas, sociais e políticas preexistentes. É fácil observar como isso se concretizou (assunto de que já tratamos no capítulo anterior). Todavia, é mais difícil tirar de tais observações as conclusões políti­ cas pertinentes.

Em primeiro lugar, essa relação entre a aceleração da Revolução Burguesa e a distribuição da riqueza, do prestígio social e do poder numa sociedade de classes pressupõe que a distância econômica, sociocµltural e política entre a sociedade civil e a nação não diminui, mas aumenta de forma desordenada e em todas as direções, no decur­ so do processo. O enrijecimento da ordem constitui um processo auto­ mático e prévio, em semelhante situação: o Estado nacional precisa assumir novas funções, diferenciar as antigas ou cumpri-las com maior rigor, o que implica intensificar a opressão indireta e a repres­ são direta, inerentes à "manutenção da ordem". No contexto em que as coisas se deram, como fruto de um movimento burguês contra­ revolucionário, a autodefesa da burguesia associou-se ao recurso à guerra civil, que não se concretizou por falta de resposta e, ainda, por­ que o golpe de Estado revelou-se uma técnica suficiente de transição política. O enrijecimento da ordem evoluiu naturalmente, assim, para uma excessiva e desnecessária "demonstração de força" preventiva. O que vinculou a militarização de funções repressivas do Estado e a preservação da segurança nacional com a criação de um novo status quo, necessário à instauração e à persistência da ditadura de classes aberta e rígida. A curto prazo, cabia ao Estado nacional "deprimir e comprimir" o espaço político e jurídico de todas as classes ou estratos de classe (mesmo burgueses e pró-burgueses) que se erguessem os­ tensivamente contra a transição, opondo-se a ela por meios violentos.

A médio e a largo prazos, cabia-lhes uma tarefa mais complexa: criar o arcabouço legal de uma ordem social competitiva que deve possuir reguladores especiais contra a "guerra revolucionária", a "agitação política" e a "manipulação subversiva do descontentamento". O ele­ mento saliente, nesta diferenciação, não é a institucionalização da violência (o mesmo tipo de violência e sua institucionalização estavam presentes na armadura anterior do arsenal opressivo e repressivo do Estado nacional). Mas a amplitude e a qualidade das funções e sub­ funções que ligam o Estado nacional e a militarização de muitos de seus serviços e estruturas a uma concepção de segurança fundada na idéia de guerra permanente de umas classes contra as outras. Ao con­ trário do que podia ocorrer sob uma ditadura de classe dissimulada e paternalista, a nova forma de ditadura de classe não admite ambigüi­ dades. Embora a dissimulação continue a jogar o seu papel, pois não se podem designar claramente as coisas nem pintar a realidade como ela se apresenta, é impossível evitar a cara definição dos inimigos de classe e das situações reais ou potenciais de conflito de classe, sem comprometer seriamente a própria eficácia dos "órgãos de segurança do Estado". Doutro lado, uma filosofia militante e agressiva de defesa da ordem impõe correlações mais ou menos rígidas entre "crime, punição" e "formas de punir". É nesse plano, que muitos consideram policial-militar, mas que é jurídico e político também, que a autocra­ cia burguesa coloca seu ideal de Estado em conexão histórica com o fascismo e o nazismo. O Estado não tem por função essencial prote­ ger a articulação política de classes desiguais. A sua função principal consiste em suprimir qualquer necessidade de articulação política espontânea nas relações entre as classes, tornando-a desnecessária, já que ele próprio prescreve, sem apelação, a ordem interna que deve prevalecer e tem de ser respeitada.

Em segundo lugar, a relação apontada, pelo mesmo motivo (ver p. 401), requer que a sociedade civil possa retirar da nação e transfe­ rir para si própria, por meios visíveis e invisíveis, os controles políticos essenciais sobre a vida econômica. A questão não se liga, como mui­ tos pensam, somente a medidas simples e diretas de autoproteção das

classes burguesas contra as reações das classes operárias e destituídas contra o incremento das desigualdades econômicas, ou, de um modo mais geral, contra o aumento brutal de seu "fardo econômico". Além e acima disso, coloca-se a necessidade de revolucionar as técnicas de acumulação de capital, imposta pela industrialização intensiva e pela eclosão do capitalismo monopolista. No conjunto, pois, as exigências econômicas da situação vão no sentido de converter o consenso bur­ guês, que se estabelece e se define a partir da sociedade civil, no equi­ valente e no substituto do consenso nacional. Essas exigências, entre outras coisas, impõem a continuidade da contra-revolução e, através dela, o congestionamento econômico da ordem. Já consideramos, ante­ riormente, o significado econômico do deslocamento político envolvi­ do. Agora só nos resta apontar como ele se concretizou e o que ele representa em si mesmo, para a articulação política da ordem social competitiva em tensão contra-revolucionária.

Dois artifícios possibilitaram transpor o consenso burguês do plano da sociedade civil para o da nação como um todo. Primeiro, a impregnação militar e tecnocrática dos serviços, estruturas e funções do Estado. Essa impregnação não só elevou o volume da burguesia burocrática como ampliou sua participação direta na condução dos "negócios do Estado". Além disso, ela também redundou em controles mais específicos, flexíveis e eficientes do funcionamento e da trans­ formação do Estado por parte dos estratos dominantes das classes burguesas. Segundo, a modernização e a racionalização dos processos de articulação política dos estratos dominantes das classes burguesas entre si e com o Estado. Os interesses burgueses superaram, assim, sua debilidade congênita na esfera política. Deixaram de "ter de pres­ sionar" o Estado por vias indiretas e precárias (através do Parlamento, dos meios de comunicação de massa, da manipulação de greves e de agitações populares etc.), conduzindo os ajustamentos necessários a formas de exteriorização menos visíveis, mas que se adaptam melhor a requisitos técnicos e políticos de rapidez, sigilo, eficácia, segurança,

economia etc. Quanto ao que representa o deslocamento político em questão, é óbvio que ele contém uma dupla evolução: 12) dentro dos

tempos da Revolução Burguesa, a revolução econômica foi dissociada da revolução nacional, sendo esta relegada a segundo plano; 22) o Estado capitalista dependente, ao modernizar-se, converteu-se em elo

do tempo econômico da Revolução Burguesa, sendo levado a negli­ genciar e a omitir, sistematicamente, suas funções econômicas direta­ mente vinculadas à revolução nacional ou à sua aceleração. As classes e os estratos de classe burgueses patrocinaram e estão patrocinando,· portanto, um intervencionismo estatal sui generis. Controlado, e11( última instância, pela iniciativa privada, ele se abre, em um pólo, na'.! direção de um capitalismo dirigido pelo Estado, e, em outro, na direção

de um Estado autoritário. Ambas as noções são ambíguas. Contudo,: elas traduzem uma realidade concreta. O Estado adquire estruturas e;

funções capitalistas, avançando, através delas, pelo terreno do despo-; tismo político, não para servir aos interesses "gerais" ou "reais" da; nação, decorrentes da intensificação da revolução nacional. Porém,) para satisfazer o consenso burguês, do qual se tornou instrumental, e:! para dar viabilidade histórica ao desenvolvimentismo extremista, a ver))

<ladeira moléstia infantil do capitalismo monopolista na periferia. • ';

Em terceiro lugar, a relação apontada, pelo mesmo motivo (ver;j p. 441), requer que a sociedade civil possa assumir o controle da vida política da nação. Aqui não se definiu uma impulsão coletiva no sen J tido de deslocar o consenso nacional pelo consenso burguês. Isso seria( irrealizável, na medida em que a concentração do poder legal e políti.;j co não se materializava do mesmo modo que a concentração do poder( econômico e da riqueza. Aliás, a ordem legal e política de uma socie-i dade de classes, para ter validade e para possuir alguma utilidade ins•:

trumental (mesmo que para as classes burguesas ou somente para as classes burguesas dominantes), precisa ser universal. Por isso, era impossível, na esfera do jurídico e do político, sobrepor o consenso: burguês ao consenso nacional e impor aquele sobre este, sem os ris­ cos de um desdobramento regressivo da própria ordem legal e políti­ ca. Para prevalecer, mesmo através de um movimento legal e política• mente contra-revolucionário, a sociedade civil tinha que se amparar./ no grau de sua monopolização social do poder legal e político e, ao

mesmo tempo, impor-se à nação a partir de dentro da ordem legal e política, como se ela objetivasse esta ordem, aparecendo como a sua encarnação ideal e corpórea. Esse processo desenrolou-se em várias etapas, que não podem ser seguidas na presente discussão. Cumpre­ nos assinalar, apenas, que ele estabelecia exigências especiais, con­ forme se tratasse da autoproteção das classes burguesas "antes" ou "depois" da instauração de uma ditadura de classe aberta e rígida; e que os requisitos estruturais e dinâmicos da dominação burguesa mudaram de caráter com esse "depois". Os que pensam em motivos como a repressão das greves operárias ou estudantis e do protesto popular, a destruição das bases dos movimentos nacionalistas-refor­ mistas e socialistas ou a debelação da "guerra revolucionária" vêem uma fase do processo e uma parte do quadro social. Há um "outro lado", que se atualiza gradualmente, através das peripécias e dos vários momentos sucessivos, percorridos pela auto-afirmação e pelo autopri­ vilegiamento das classes burguesas nas fases "seguras" e "construtivas" da contra-revolução. Nessas fases, ao lado dos controles inibitórios e destrutivos que persistem, aparece um esforço mais profundo e amplo, que busca a eficácia da contra-revolução, a estabilidade da dominação burguesa e o engrandecimento do poder burguês. A esse esforço se prendem a criação e a aplicação de novas estruturas jurídi­ cas e políticas, a modernização de estruturas jurídicas e políticas pree­ xistentes, a renovação e a racionalização da maquinaria de opressão e de repressão do Estado e a adaptação de todo o aparato ideológico e utópico da burguesia a uma situação contra-revolucionária que pre­ tende "vir para ficar".

Aqui, pois, é evidente que o consenso burguês concilia a "tradi­ ção brasileira", de democracia restrita- a democracia entre iguais, isto é, entre os poderosos, que dominam e representam a sociedade civil

- com a "orientação modernizadora", de governo forte. A ordem legal e política se mantém "aberta", "democrática" e "universal", preservan­ do os valores que consagram o Estado de direito; e este Estado se con­ cretiza, historicamente, por sua vez, na medida em que tudo isso é ne­ cessário à monopolização do poder real, da autoridade e do controle

das fontes de legitimidade pelas classes burguesas e suas elites. No entanto, a validade formal ou positiva e a fruição ou participação da ordem legal e política são coisas distintas: a eficácia dos direitos civis e das garantias políticas se regula, na prática, através de critérios extra­ judiciários e extrapolíticos. A contra-revolução não criou essa situação histórica, que ela herdou da República Velha e do Império. Mas ela se caracteriza por sua defesa intransigente do status quo herdado e por sua concepção autocrática de "equilíbrio da ordem". Este não é visto em termos de uma confluência das duas determinações em questão. Porém, à luz de um paralelismo ideal, que estipula que "cada coisa deve ficar em seu lugar". Em suma, a democracia, como prática huma na de toda uma nação, só se realizaria no infinito, se as duas paralelas chegassem a se encontrar... A democracia não só é dissociada da auto­ afirmação burguesa, como ela seria um tremendo obstáculo ao tipo de autoprivilegiamento que as classes burguesas se reservaram, para poderem enfrentar a industrialização intensiva e a transição para o capitalismo monopolista.

O importante a salientar, no caso, é que a ordem legal e política não sofre, apenas, um deslocamento na direção do autoprivilegiamen"' to das classes burguesas, que fornecem os cidadãos válidos da socie­ dade civil. Ela sofre, simultaneamente, um estrangulamento simétri­ co (embora não-proporcional e invariável), no sentido da negação parcial dos dissidentes e das outras classes (com a redução ou elimi­ nação de seu espaço político), incorporados ou não na sociedade civil. As inovações, a modernização e a racionalização, introduzidas pela contra-revolução na esfera das relações jurídicas e políticas, visavam a adaptar a ordem às injunções da simultaneidade e interdependência' dos dois processos. Portanto, a ditadura de classe aberta e rígida pro­ cura dar perenidade ao solapamento da ordem, ao mesmo tempo que o coloca em um contexto de compressão política sistemática e perma­ nente. Ela não repele as práticas formais da "democracia burguesa, as quais se vincula, reiteradamente, através de uma utópica volta à nor­ malidade". Mas requer, objetiva e idealmente, um Estado de emergên­ cia neo-absolutista, de espírito aristocrático ou elitista e de essência

oligárquica, que possa unir a "vontade revolucionária autolegitimadora" da burguesia com um legalismo republicano pragmático e um despotis­ mo de classe de cunho militar e tecnocrático. Esse é o preço da pseu­ do-"conciliação". Para superar a contradição intrínseca à dualidade da ordem (o solapamento engendra, na verdade, duas ordens superpos­ tas, uma legal e "ideal", outra real e "possível"), o Estado nacional com­ pleta, pois, sua evolução no sentido de converter-se em uma superen­ tidade política. Ele se tornou, de um lado, a fonte de uma autoridade sagrada e indiscutível e, de outro, o centro de um poder absoluto e total. Só assim, porém, tal Estado conseguiu transcender sua debilida­ de congênita, estabelecendo, através ou acima dos dois momentos simultâneos mas exclusivos de afirmação da sociedade civil e de nega­ ção da comunidade nacional, as bases de sua própria unidade política e de integração política da nação.

Essa discussão põe em relevo aonde levam os três processos (a unificação e a centralização do poder de classe da burguesia; e a contra-revolução burguesa): o modelo típico de Estado capitalista moderno na forma em que pode surgir na periferia, quando o capita­ lismo dependente e a sociedade de classes correspondente atingem a fase de industrialização intensiva e de transição para o capitalismo monopolista. Nessa forma, ele aparece como um Estado nacional complexo e heterogêneo, que contém várias camadas históricas, como se refletisse os pontos extremos, de partida e de chegada, das transfor­ mações por que passou, originariamente, o Estado capitalista nas sociedades hegemônicas e centrais. Ele combina estruturas e dina­ mismos (funcionais e históricos) extremamente contraditórios, aliás de acordo com a própria situação histórica das burguesias dependen­ tes e com a organização da sociedade de classes sob o capitalismo dependente, também extremamente contraditórias. O fundamento dessa complicação e dessa complexidade especiais é conhecido e já foi apontado; as classes burguesas têm de afirmar-se, autoproteger-se e privilegiar-se através de duas séries de antagonismos distintos: os que se voltam contra as classes operárias e as classes destituídas (que se poderiam considerar como o "inimigo principal"); e os que atingem

as burguesias e os focos de poder das sociedades capitalistas hegemô­ nicas e do sistema capitalista mundial (que se poderia entender como o "aliado principal"). As contradições são intrínsecas às estruturas e aos dinamismos da sociedade de classes sob o capitalismo dependen­ te; e minam a partir de dentro e a partir de fora o padrão de domina­ ção burguesa, o poder real da burguesia, os padrões de solidariedade de classes e de hegemonia de classe da burguesia, e o Estado capita­ lista periférico e dependente.4

De acordo com a descrição apresel)tada, a versão final dessa forma de Estado, a que se está constituindo e consolidando com a irradiação do capitalismo monopolista pelas áreas da periferia do mundo capitalista que comportam semelhante desenvolvimento, é a de um Estado nacional sincrético. Sob certos aspectos, ele lembra o modelo ideal nuclear, como se fosse um Estado representativo, demo­ crático e pluralista; sob outros aspectos, ele constitui a expressão aca­ bada de uma oligarquia perfeita, que se objetiva tanto em termos paternalistas-tradicionais quanto em termos autoritários e modernos; por fim, vários aspectos traem a existência de formas de coação, de re­ pressão e de opressão. Ou de institucionalização da violência e do ter· ror, que são indisfarçavelmente fascistas. Quando se fala em conexão com "ditadura de classe aberta e rígida" em relação a esse tipo de Estado, não se pode ter em mente, portanto, nada que lembre as cha­ madas "ditaduras políticas tradicionais" ou, pura e simplesmente, os modelos mais elementares de ditadura política, que se realizam mediante o "controle absoluto dos meios tradicionais de coação". O Estado se diferencia e, ao mesmo tempo, satura sua estrutura cons­ titucional e funcional de uma maneira tal que fica patente ou que se pratica, rotineiramente, uma democracia restrita, ou que se nega a democracia. Ele é, literalmente, um Estado autocrático e oligárquico. Preserva estruturas e funções democráticas, mas para os que monopo­ lizam simultaneamente o poder econômico, o poder social e o poder político, e usam o Estado exatamente para criar e manter uma duali­ dade intrínseca da ordem legal e política, graças à qual o que é oligar­ quia e opressão para a maioria submetida, é automaticamente demo-

cracia e liberdade para a minoria dominante. Doutro lado, não se pode dizer que tal ditadura de classe seja transitória e que culmine num sis­ tema político destinado a esvair-se, paralelamente à eliminação dos riscos ou ameaças que "perturbem a ordem estabelecida". Na verda­ de, o que entra em jogo é um processo de reorganização das estrutu­ ras e funções do Estado nacional, nas condições historicamente dadas de relações de classe. Estado e ordem legal e política transformam-se concomitantemente, adaptando-se cada um, de per si e reciproca­ mente, a condições externas e internas dotadas de certa continuidade. Por fim, seria inútil "depurar" analiticamente esse Estado. Não existe uma linha pura e única de compreensão e descrição do Estado capi­ talista dependente e periférico. Produto da situação mais contraditó­ ria e anárquica que qualquer burguesia poderia viver, ele é uma com­ posição sincrética e deve ser retido como tal. Precisa-se, no mínimo, recorrer à Antropologia, para se entender cabalmente esse Estado nacional. De outra maneira, é impossível descobrir-se como uma ins­ tituição pode ordenar-se e ser operativa, apesar de tantos elementos e influências em choque, que se atritam, se negam e se destroem uns aos outros, embora se objetivem com certa unidade, compatível com seu uso social pelo homem. Ele é Leviathan no verso, e Behemouth no reverso, mas só existe e possui algum valor porque as duas faces estão fundidas uma à outra, como a cara e a coroa de uma moeda.5

Esse Estado nacional não poderia nem deveria surgir na crista da Revolução Burguesa. No entanto, nas condições do desenvolvimento capitalista dependente, ele constitui uma exigência mesma dos ritmos históricos, sociais e políticos que essa revolução assume na periferia (dentro da Europa e fora dela). A industrialização que se atrasa, inde­ finidamente, no tempo, que se descola do desenvolvimento do merca­ do interno, da revolução agrária e da revolução urbana, ou que se dá sem que tais prcocessos adquiram certa velocidade e intensidade, e que se compensa e avança graças ao intervencionismo estatal e ao empuxo externo dos dinamismos do capitalismo mundial, fragmenta a Revolução Burguesa. O que possuía enorme sincronia, pelo menos com referência a certos países da Europa e, em grande parte, aos

Estados Unidos, na periferia tende a suceder de modo pulverizado e por etapas mais ou menos distantes umas das outras. E as transições, à medida que o capitalismo amadurece e se moderniza, ficam crescen­ temente mais difíceis, perigosas ou, até, cataclísmicas. Em conse­ qüência, o Estado nacional acaba prevalecendo como um fator de compensação, de fato o único que pode ser mobilizado pelas burgue­ sias da periferia e empregado compactamente na solução de tais dile­ mas e na superação da debilidade orgânica que os origina. Não é sem razão, pois, que ele tenha as duas faces mencionadas antes e que, no extremo do processo, mescle tão monstruosamente ardil, força bruta e racionalidade.

Em última instância, é nesse modelo autocrático de Estado capi­ talista que acaba residindo a "liberdade" e a "capacidade de ação racio­ nal" da burguesia dependente. Ele confere às classes e aos estratos de classe burgueses não só os fundamentos da existência e da persistên­ cia da dominação e do poder burgueses, depois de atingido um ponto crítico à sobrevivência da sociedade de classes. Mas, ainda, o que é mais importante: ele lhes dá o espaço político de que elas carecem para poder intervir, deliberada e organizadamente, em função de suas potencialidades relativas, no curso histórico da Revolução Burguesa,

atrasando ou adiantando certos ritmos, bem como cindindo ou sepa­ rando, entre si, seus tempos diferenciados (econômico, social e políti­ co). Sem o controle absoluto do poder, que as classes burguesas podem tirar da constituição desse Estado, seria inconcebível pensar­ se como elas conseguem apropriar-se, com tamanha segurança, da enorme parte que lhes cabe no excedente econômico nacional; ou, ainda, como elas logram dissociar, quase a seu bel-prazer, democracia, desenvolvimento capitalista e revolução nacional.

É natural que os aspectos perturbadores desse Estado capitalista alcancem sua plenitude na era de confronto mundial entre o capita­ lismo e o socialismo. Tal confronto toma a periferia um vasto campo de batalha e o Estado capitalista dependente nele aparece em sua conexão mais ampla e profunda, ou seja, como elemento decisivo dos combates. As burguesias nacionais dependentes, para se defenderem,

continuarem a existir e crescerem, não têm outra alternativa (dentro da polarização em que ficam, de submissão ao imperialismo), além da que acabamos de descrever. Ela projeta o Estado nacional e democrá­ tico burguês em um contexto de violência organizada e institucionali­ zada em escala internacional, que o dilacera de alto a baixo, tomando­

º uma entidade política irreconhecível, mas eficaz. Assim, se as linhas

de sua modernização seguem e obedecem as transformações que resultaram da evolução do Estado capitalista nas nações hegemônicas e centrais, ele não traça após si qualquer epopéia, como uma fonte de realização do homem ou da liberdade na história. Fronteiras dessa natureza lhes são extrínsecas e proibidas (pelo menos enquanto elas não se coloquem em termos da revolução contra a ordem, atualmen­ te de origem e orientação socialistas). E se chegam a se equacionar, por equívoco, como sucede às vezes com o radicalismo burguês, logo se dissipam as confusões... Eis uma verdade dura de admitir pelos que pensam a ordem a partir unicamente do foco estreito e exclusivo do sistema que se dá, de fato, como realidade, como se as alternativas fos­ sem, sempre, determinadas pelo pensamento e pelo comportamento conservadores. Contudo, se isso não fosse verdade, como entender o afinco com que as classes burguesas se devotaram (e estão se devotan­ do), no Brasil, à aceleração do tempo econômico de sua revolução, entregando-se por completo à neurose do desenvolvimentismo extre­ mista enquanto atrofiam ou extinguem, com as próprias mãos, qual­ quer possibilidade de convivência democrática entre as classes e de uma efetiva comunidade política nacional?


PERSISTÊNCIA OU COLAPSO DA AUTOCRACIA BURGUESA?


O quarto tema que selecionamos para debater neste capítulo diz res­ peito às perspectivas políticas desse modelo autocrático-burguês de transformação capitalista. A discussão precedente deve ter deixado claro que o padrão ·compósito e articulado de hegemonia burguesa

possui uma precária base de sustentação estrutural e histórica. Ele engendrou, sem dúvida, o "excedente de poder" que conferiu às clas­ ses burguesas e às suas elites a possibilidade: 12) de desencadearem

as formas abertas de luta de classes, que se impunham em conse­ qüência da passagem do capitalismo competitivo para o capitalismo

monopolista e da transição inerente para a industrialização intensiva;

22) de criar o Estado capitalista autocrático-burguês, que cortava as amarras com o passado e estabelecia, por fim, como um novo ponto de partida histórico, uma base estrutural e dinâmica para converter a

unidade exterior das classes burguesas num elemento de socialização política comum, em escala nacional. Todavia, a própria natureza desse Estado autocrático-burguês e a necessidade de manter, através dele, a continuidade do processo contra-revolucionário que o tornou possível indicam o tipo de circularidade histórica com que se defrontam as classes burguesas. Para vencerem essa circularidade histórica, elas careciam de um excedente de poder bem diverso, que não lhes desse, apenas, "autonomia de classe para dentro", mas também "autonomia de classe para fora", que servisse de substrato para uma ruptura com o imperialismo e uma conseqüente inversão autonomizadora do desen­ volvimento capitalista.

Se isso fosse possível, as classes burguesas e suas elites poderiam fazer uma típica "revolução dentro da ordem", orientada contra a dominação imperialista externa, o capitalismo dependente e o desen­ volvimento desigual interno. Elas sairiam de tal processo, se tivessem êxito, trazendo nas mãos um Estado democrático e a bandeira de um nacionalismo revolucionário. O fato de se verem condenadas à contra­ revolução permanente conta, por si mesmo, outra história - e toda a história, que se desenrolou ou está se desenrolando. A unificação e a centralização do poder real das classes burguesas não atingiram níveis suficientemente altos e profundos - mesmo com o auxílio, ulterior, do seu Estado autocrático e do que ele representa, como fator de reforço e de estabilidade da ordem - a ponto de mudarem o sig­ nificado dos interesses especificamente burgueses em termos das outras classes, da nação como um todo e dos centros de dominação

imperialista externa. Por conseguinte, as classes burguesas continuam tão presas dentro de seus casulos, isoladas da realidade política de uma sociedade de classes e submetidas a partir de fora, como estavam há vinte ou há quarenta anos. Depois de tudo e apesar de tudo, elas se alienam das demais classes, da nação e da "revolução brasileira" pelo mesmo particularismo de classe cego, o qual as leva a perceber as classes operárias e as classes destituídas em função de uma alter­ nativa estreita: ou meros tutelados; ou inimigos irreconciliáveis. De outro lado, elas não contam com uma base material de poder para se auto-afirmarem e se autoprivilegiarem, de modo pleno, a não ser para dentro, pois seu famoso "Estado autoritário" (eufemismo que circula, reveladoramente, no exterior) não produz os mesmos efeitos para fora, especialmente diante das exigências impreteríveis das multinacionais, das nações capitalistas hegemônicas ou de sua superpotêncía e da comunidade internacional de negócios. Aí, até as funções autoproteti­ vas do Estado autocrático-burguês são antes passivas (ou muito pouco ativas), pois ele carece de um suporte interno mais amplo, que trans­ cenda ao particularismo de classe burguês e introduza na barganha, mediada ou garantida por via estatal, o peso de um countervailing pawer efetivamente nacional. Se não é um simples biombo, ele só constrange e modifica as disposições do "aliado principal" em matérias nas quais este consente em sofrer ou "negociar" inibições impostas.

Ao que parece, o calcanhar-de-aquiles do poder burguês reside,

paradoxalmente, no fator que explica a própria possibilidade da fulmi­ nante reação burguesa a uma situação de aparente ou real "ameaça histórica". O padrão compósito e articulado de solidariedade das clas­ ses burguesas e de hegemonia burguesa, ao mesmo tempo que possi­ bilitou uma certa unificação e uma certa centralização com funda­ mento em interesses de classe comuns, restringiu o alcance dos alvos coletivos e limitou ao econômico as impulsões "revolucionárias" das classes burguesas. No caso, ocorreram duas limitações centrais con­ comitantes. Meios e fins intrinsecamente díspares, que só perdem velocidade e eficácia quando são fundidos, foram mesclados e conver­ tidos, artificialmente (isto é, por meio de conciliações sucessivas, que

avançaram mais em função do "risco potencial" que da vontade deli­ berada prévia de cortar caminho aos fatos irreparáveis), em unidades coletivas de ação política de classe. Por isso, se há um elemento saliente que convém a todos, há paralelamente a ausência (ou a pre­ sença moderada) do elemento que cada estrato de classe privilegiaria (basta considerar-se, no arrolamento, o que poriam em primeiro plano: os investidores estrangeiros, os grandes banqueiros ou comerciantes ou industriais, brasileiros, o grande empresário rural capitalista, seto­ res "tradicionais" ou "modernos" da classe média, e por aí adiante). O elemento comum podia ser eficaz quanto à preservação do status quo e como garantia futura de que, em seguida, o curso de evolução da ordem obedeceria aos interesses e aos valores da burguesia, nacio­ nal e estrangeira. Mas ele não se impunha como o elemento de "maior dinamismo", o que quer dizer que, quanto à aceleração da Revolução Burguesa, justamente os elementos variáveis poderiam ser os mais importantes e decisivos. Além disso, é preciso considerar-se o enqua­ dramento nacional dos interesses burgueses comuns, que foram privi­ legiados e postos em primeiro plano. A partir do momento em que o dilema político burguês passou a ser, crucialmente, a segurança e a "salvação da ordem", o enquadramento nacional dos interesses das classes burguesas perdeu sua significação histórica específica, natu­ ralmente muito variável de classe para classe ou de estrato de classe para estrato de classe. O Relatório Rockefeller sugere que o impacto modernizador dos interesses externos pode assumir uma significação reformista comparável à de outras impulsões puramente internas e centradas nacionalmente do radicalismo burguês e pequeno-burguês, de inspiração conservadora (como sucedia com as medidas de mudan­ ça desejadas pelos industrialistas) ou demagógica (como sucedia com as pressões ao consumismo e ao incremento da participação popular, que vinham de políticos profissionais). Quando toda essa diversidade de interesses e de valores foi aplastada pelo medo de classe, a reação comum deslocou a fronteira histórica para um centro ultraconserva­ dor de acomodação, que deixava de refletir a relação das classes domi­ nantes com a transformação da sociedade nacional e passava a uma

relação nova que era uma pura expressão do que todas as classes em conjunto esperavam, como e enquanto classes possuidoras, da preser­ vação do status quo. O influxo fermentativo e construtivo do cruza­ mento de estruturas nacionais de poder desapareceu e ficou, em seu lugar, um símile empobrecido, que identificava a "defesa da ordem" com uma operação egoística de rescaldo.

Esses dois ângulos revelam, portanto, como a contra-revolução

precipitou, primeiro, e tolheu, em seguida, em um mesmo movimen­ to histórico muito rápido, os efeitos mais dinâmicos, a largo prazo, dos processos de unificação e de concentração dos interesses e do poder das classes burguesas. Aonde nos conduziriam aqueles processos se eles continuassem a operar livremente, nunca se poderá saber. O que se sabe, concretamente, é que eles foram interrompidos numa fase incipiente (apesar de sua duração abranger quase meio século); e cul­ minaram em processos de auto-afirmação e de autoprivilegiamento das classes e dos estratos de classe burgueses que em nada contribuí­ ram, positivamente, para a diferenciação e a reintegração da ordem social competitiva vigente. Ao contrário, eles fortaleceram processos que sociólogos como Max Weber considerariam negativos para a con­ solidação e o ulterior desenvolvimento dessa ordem; ou que sociólo­ gos positivistas, como Durkheim e os especialistas em Sociologia aplicada norte-americanos qualificariam de "patológicos" ou de "socio­ páticos". Pois, na verdade, nenhum sociólogo pode ignorar, qualquer que seja sua orientação na Sociologia, que a contra-revolução deslo­ cou o centro de gravitação política das classes burguesas e de suas eli­ tes, transferindo-o do eixo de relação das classes dominantes, com a integração e o equilíbrio da sociedade nacional, para o eixo do equilí­ brio das classes burguesas em si mesmas e do seu controle sobre a sociedade nacional. Já discutimos acima, à luz das alterações recentes da sociedade de classes, por que isso se tornou historicamente "possí­ vel" ou "necessário". Agora cumpre-nos ressaltar o que tal evolução acarretava, pelo menos conjunturalmente e a curto prazo, espaço de tempo dentro do qual as articulações de poder das classes burguesas dominantes alcançaram sua maior eficácia política, graças à existência

do Estado autocrático-burguês e ao seu caráter instrumental para a regeneração dos costumes e da ordem.

Levando-se a análise um pouco mais a fundo, descobre-se que o consenso burguês, firmado nas bases indicadas e segundo o movimen­ to descrito, logo que se erigiu na base política das "tomadas de decisão de um regime", mudou de significado político. A sociedade civil cobrou, por fim, o seu preço pela "estabilização da ordem" e se impôs como o verdadeiro - e sob certos aspectos, o único - eixo político válido da nação. No entanto, ela não operava, somente, como a "fonte de legitimidade da ordem"; ela era, simultaneamente, o seu "núcleo revolucionário", o ponto de partida e de chegada de todos os processos políticos que traduzissem, na prática, a "vontade revolucionária" da classes burguesas dominantes, de suas elites e dos güllernos institucio­ nais que as representavam. Aparentemente, estamos diante de uma transformação sutil, uma espécie de simples alteração da semântica política. Na realidade, esse passo era central não só como efeito estáti­ co dos dinamismos políticos do poder burguês, porém como encarna­ ção substantiva do sentido coletivo da regeneração burguesa da própria ordem social competitiva preexistente. Na verdade, a contra-revoluçãQ política, ao interromper os dinamismos políticos do poder burguês a largo prazo, substituiu-os por outros, que deveriam crescer e funcionar no contexto político imediato, criado pela instauração de uma ordem social competitiva "regenerada" e submetida aos controles "revolucio• nários" e "institucionais", operantes nessa nova ordem. Foi graças a esse corte e ao salto súbito que ele possibilitou que o consenso burguês adquiriu o seu próprio espaço político "revolucionário", no qual ele pas­ sou a encarnar a "vontade revolucionária" e, por conseguinte, a se idenr tificar com a ordem legal e política da nação como um todo e, por extensão, a incorporar a vontade política soberana desta última, inves­ tida no Estado autocrático-burguês. O empobrecimento dos dinamis­ mos do regime de classes, que advinha da interrupção prematura dos dois processos concomitantes de unificação e de centralização dos in­ teresses e do poder das classes e estratos de classe burgueses, encon­ trava, assim, uma compensação política imprevista e decisiva.

O que importa ressaltar é que essas classes e esses estratos de classe "conquistavam" uma unidade, que não passava nem pelas de­ mais classes nem pelas estruturas políticas extraburguesas da nação, mas que lhes conferia, não obstante, o controle concreto da ordem legal e política, bem como a possibilidade histórica de sobreporem a sociedade civil à nação. Tal alteração, que se precipita com incrível rapidez, modifica por completo o significado da hegemonia burguesa e, principalmente, suas funções políticas, neutralizando suas raízes artificiais e compensando seu precário fundamento sociopolítico. As classes e estratos de classe burgueses saíam, por esse meio, do imo­ bilismo político relativo, a que se viam condenados por seu padrão de solidariedade de classe e de hegemonia de classe, pois ao sobreporem a sociedade civil à nação equipararam, de fato, sua própria democra­ cia restrita a uma oligarquia das classes burguesas dominantes. Interesses e valores variáveis e em conflito voltaram a circular e a se articularem entre si ou uns contra os outros. Contudo, agora, o seu eixo de gravitação era "fechado" e confinava-se às fronteiras da socie­ dade civil, onde se localizava e se constituía o consenso burguês, como força social e política. Como outros Estados capitalistas, demo­ cráticos ou não, o Estado autocrático-burguês teria de conter e de articular entre si todas as tensões e contradições que são inerentes à estratificação de uma sociedade de classes, mesmo quando a mino­ ria burguesa dominante se fecha sobre si mesma. Apenas, por causa dessa situação, ele só iria receber e absorver essas tensões e contra­ dições através do consenso burguês, que passaria a exprimir: l 2) dire­ tamente, o seu "inferno interior"; 22) indiretamente, o que vai pelas outras classes e pela nação como um todo.

O que quer dizer que as classes e os estratos de classe burgueses saíram do imobilismo político relativo, a que se viam expostos, para realizar algo que se poderia chamar de uma estrita "política de classe" e nos limites em que tal política poderia expandir-se, no seio de uma ordem legal e política "aberta", mas solapada pela sobreposição da sociedade civil à nação (ou da democracia restrita à oligarquia de clas­ se). A articulação política entre os mais iguais se degrada, assim, auto-

maticamente, porque o que reflete a legitimidade do consenso bur­ guês se impõe, pela mediação de um Estado autocrático, como a legi­ timidade que deveria resultar do consentimento das outras classes e do consenso nacional. E aqui está o busílis da questão. Essa articula­ ção política entre os mais iguais, democrático-oligárquica em sua essência e em suas aplicações, assume, de imediato e irremediavel­ mente, a forma de uma cooptação sistemática e generalizada. A coop, tação se dá entre grupos e facções de grupos, entre estratos e facções de estratos, entre classes e facções de classes, sempre implicando a mesma coisa: a corrupção intrínseca e inevitável do sistema do poder resultante. Além disso, a cooptação se converte no veículo pelo qual a variedade de interesses e de valores em conflito volta à cena política, nela se instala e ganha suporte ou rejeição. Desse ângulo, a autocra­ cia burguesa leva a uma democracia restrita típica, que se poderia designar como uma democracia de cooptação. Nesse desfecho, as van­ tagens alcançadas pela unificação e pela centralização dos interesses e do poder burgueses se consolidam, mas são orientadas numa dire­ ção que antes não se fazia visível (embora talvez estivesse latente no substrato plutocrático da consciência burguesa). Com todas as suas limitações e inconsistências, o padrão compósito e articulado da hege­ monia burguesa pode demonstrar, então, toda a sua utilidade como uma "ponte" entre classes e estratos de classe burgueses nacionais estrangeiros, um elo flexível, que facilita a distribuição de todos no espaço político "revolucionário" e a fruição desigual do poder ou de suas vantagens entre os mais iguais. Graças a ele, os estratos médios ganham no rateio e se privilegiam muito acima do seu próprio prestí­ gio social, movendo as alavancas do aparato estatal que estão nas mãos da burguesia burocrática, tecnocrática e militar. Ao mesmo tempo, também graças a ele, os "interesses verdadeiramente fortes" e os "inte­ resses predominantes" deparam, enfim, com o seu meio político ideal, podendo impor-se à vontade, "de cima para baixo", e florescer sem res­ trições. Se já houve, alguma vez, um "paraíso burguês", este existe no Brasil, pelo menos depois de 1968.

Uma avaliação sociológica crítica do modelo autocrátíco-burguês de transformação capitalista tem de levar em conta esses aspectos e deles partir. Eles nos põem diante da problemática da ditadura de classes total e absoluta, quando ela é controlada pela burguesia e com vistas, exclusivamente, à continuidade do capitalismo e do Estado capitalista. Mas, com algo específico. Trata-se do capitalismo depen­ dente na era do imperialismo total, num momento de crise mundial da periferia do sistema capitalista e como parte de uma luta de vida e morte pela sobrevivência da dominação burguesa. Outras burguesias, mesmo as que cabem por inteiro no "modelo clássico" de Revolução Burguesa, poderiam ser estigmatizadas, em função de seu individua­ lismo egoístico, de seu particularismo agressivo ou de sua violência "racional". Com tudo isso, porém, tais burguesias não se achavam des­ focadas, a um tempo, da dinâmica do regime de classes e da sociali­ zação política requerida pelo enquadramento nacional das relações de classes. Ambas as realidades se tomavam presentes nos interesses de classe, na consciência de classe, na solidariedade de classe e nos padrões de dominação de classes das referidas burguesias, revelando­ se através de impulsões igualitárias, democráticas e nacionalistas, que punham tanto o radicalismo quanto o consenso burgueses em intera­ ção constante com os interesses ou valores de outras classes e com as necessidades fundamentais da nação como um todo. Aqui estamos em face de uma burguesia dependente, que luta por sua sobrevivência e pela sobrevivência do capitalismo dependente, confundindo as duas coisas com a sobrevivência da "civilização ocidental cristã". Em suas mãos, o individualismo egoístico, o particularismo agressivo e a violên­ cia "racional" só se voltam para um fim: a continuidade do tempo eco­ nômico da Revolução Burguesa, ou seja, em outras palavras, a inten­ sificação da exploração capitalista e da opressão de classe, sem a qual ela é impossível. Esse, aliás, é o único ponto para o qual convergem os mais díspares e contrastantes interesses e valores burgueses, consti­ tuindo-se, por isso, no pólo histórico onde se unem todas as "forças vivas", nacionais e estrangeiras, da Revolução Burguesa sob o capita­ lismo dependente. Ou "aceleração do desenvolvimento econômico",

ou "fim do mundo", o que não deixa de ser uma verdade histórica, pois a aceleração do desenvolvimento econômico e a sua impossibilidade são os limites que separam a existência do capitalismo dependente de. sua destruição final.

Todavia, em um país com as características geográficas, demográ1, ficas, econômicas, sociais, culturais e políticas que o Brasil possui., não é possível estabelecer-se "para sempre" semelhante correlaçã() estática entre aceleração do desenvolvimento econômico e salvação dq; status quo. Tal possibilidade poderia ser estabelecida (e mantida inde; finidamente), se as classes burguesas pudessem acelerar, livremente1,.

o desenvolvimento econômico e conseguissem, ao mesmo tempo1

manter acesa a contra-revolução preventiva.6 Ao que parece, porém( o Brasil não se apresenta como um campo propício para uma solu ção desse tipo, que requer uma "associação estática" entre os dois processos.

É visível que na situação brasileira existe uma forte reação con,

traditória entre os dois mencionados processos. A aceleração do desenvolvimento econômico - ainda mais na forma e com a inten•• sidade requeridas pela industrialização intensiva e pela súbita transi-' ção para o capitalismo monopolista - tende a convulsionar, a médio e largo prazos, todo o sistema de classes sociais. As alterações brus1 cas, que se delineiam, afetam tanto as condições de diferenciação e de reintegração das classes (e, note-se, de todas as classes) quanto as suas relações de acomodação, competição e conflito entre si. Poder­ se-ia supor que o desenvolvimento desigual interno funcionaria como um obstáculo a esse fenômeno ou, pelo menos, à velocidade que ele está adquirindo depois de 1967. No entanto, ainda que à custa do congestionamento anárquico e do inchamento das cidades, ou de . outros efeitos sociopáticos paralelos, a aceleração do desenvolvimen­ to econômico tornou as realidades do regime de classes muito mais virulentas e irreversíveis do que elas eram antes. Em contraposição, a contra-revolução preventiva não é um processo estrutural e dotado de potencialidades sociodinâmicas comparáveis. Não só é um proces­ so histórico localizado que já entrou em fase de esvaziamento, como

colide, frontalmente, com as novas relações das classes e dos estra­ tos de classe burgueses com a nova ordem social competitiva emer­ gente, revitalizada pela industrialização intensiva e pela eclosão do capitalismo monopolista. A cada dia que passa, ela tende a unir cada vez menos todas as classes burguesas entre si; e a separar cada vez mais os interesses burgueses, em particular os que se organizam e crescem a partir dessa nova ordem social competitiva. Se o seu sentido pro­ fundamente reacionário era compatível com o temor de classe, que prevaleceu no clímax da crise do poder burguês e no período mais agudo da "regeneração revolucionária", hoje ele não se ajusta mais à racionalidade da transformação capitalista, acelerada a partir de fora e de dentro pela iniciativa privada e pela intervenção estatal. Por con­ seguinte, os processos de diferenciação e de concentração dos inte­ resses e do poder das classes burguesas retomam o seu circuito. E isso ocorre sob um tempo muito mais veloz, possibilitado pela mesma aceleração do desenvolvimento econômico. A contra-revolução não só se dilui: ela perde sua base material nas relações de classes bur­ guesas, voltando a ser uma expressão da força econômica, social e política dos estratos burgueses ultraconservadores, mais ou menos deslocados pela própria alteração do "mundo burguês" e da socieda­ de de classes inclusiva.

Não obstante essa contradição não produz os efeitos de "disten­

são política" ou de "normalização da ordem", que seriam de esperar em outro contexto histórico. De um lado, porque certos fatores de enrijecimento da ordem não são puramente internos. Eles se impõem de fora para dentro, como parte do confronto mundial entre os siste­ mas capitalista e socialista (realidade que ainda não se alterou, apesar das tendências incipientes à "coexistência pacífica"). De outro lado, por causa da coetaneidade das duas revoluções antagônicas, mencio­ nada no início deste capítulo, que expõe a Revolução Burguesa e as forças que a alimentam a partir de dentro a um atrito permanente com o socialismo e as forças que o configuram como uma realidade histó­ rica emergente. Na verdade, as forças de desagregação do capitalismo são intrínsecas à estrutura e à organização da sociedade de classes, e

quando esta se expande, aquelas tendem a crescer. Sob esse aspecto, a aceleração do desenvolvimento capitalista fez o que a burguesia mais receava. Ela concorreu para expandir bruscamente a sociedade de classes e, assim, para aumentar o volume e a potencialidade daquelas forças, reprimidas e represadas, mas visíveis e temidas. Entre esses dois condicionamentos persistentes, agravados pelos efeitos reflexos da crise do capitalismo dependente na periferia, tinha de impor-se a necessidade de armar essa sociedade de classes com recursos de auto-. defesa policial-militar e política que possam preencher, dentro d{li ordem (e, portanto, de sua "normalidade" e "legitimidade"), as funções de um equivalente da contra-revolução preventiva (a frio ou a quente). Essa evolução ainda não se completou no Brasil. Contudo, ela situa claramente o significado político do modelo autocrático-burguês

de transformação capitalista e deixa patente qual é o tipo de hegemo- • nia burguesa que ele requer "normalmente", isto é, como realidade histórica permanente. A ditadura de classe não se contrai nem se dilui, acompanhando as alterações do desenvolvimento do sistema de produção capitalista e da sociedade de classes correspondente. Com•

a "situação sob controle", a defesa a quente da ordem pode ser feita sem

que "os organismos de segurança" necessitem do suporte tático de um clima de guerra civil, embora este se mantenha, através da repressão policial-militar e da "compressão política". Em conseqüência, a con tra-revolução preventiva, que se dissipa no nível histórico das formas diretas de luta de classes, reaparece de maneira concentrada e insti­ tucionalizada, como um processo social e político especializado, incor­ porado ao aparato estatal. É aí que cabem, segundo julgamos, os esfor­ ços de "distensão política" que têm sido fomentados, reiteradamente, pelas classes burguesas depois de 1969, dentro dos marcos da "defe­ sa da Revolução". Para conseguir esse objetivo, as classes burguesas precisariam ter um controle estático e dinâmico da ordem bastante sólido para poderem enfrentar e neutralizar as forças antiburguesas

existentes dentro de seus muros ou nas outras classes. E precisariam possuir, ainda, um "excedente de poder" bastante estável e forte: 12) para permitir a localização do enrijecimento da ordem em certas funções

ditatoriais permanentes do "Estado constitucional"; 22) e, dada essa condição, para possibilitar a continuidade indefinida do solapamento da ordem (que não pode ser atenuado ou interrompido sob o capitalismo dependente e subdesenvolvido). No conjunto, o "avanço democrático" de tais esforços de distensão política apenas repõe o problema político da hegemonia burguesa, agora em termos de um novo contexto históri­ co e sob a impetuosa necessidade de criar os vínculos orgânicos que deverão entrelaçar os mecanismos da democracia de cooptação com a organização e o funcionamento do Estado autocrático.

Pode-se concluir, pois, que está em curso uma dupla "abertura".

Ela não leva à democracia burguesa, mas à consolidação da autocra­

cia burguesa: 12) por pretender ampliar e consolidar a democracia de cooptação, abrindo-a "para baixo" e para a dissidência esterilizada ou

esterilizável; 22) por querer definir o alcance do poder legítimo exce­

dente, que deve ser conferido constitucional e legalmente ao Estado autocrático. Não se trata de um "retorno à democracia", que nunca existiu, nem de uma tentativa de abrir o caminho para uma "experiên­ cia democrática" autêntica. O que as classes burguesas procuram é algo muito diverso. Elas pretendem criar condições normais para o fun­ cionamento e o crescimento pacíficos da ordem social competitiva, que se achava estabelecida antes de 1964 e foi convulsionada em seus fundamentos ideais, e revitalizada, em seus fundamentos econômicos, sociais e políticos, pelo desenvolvimento econômico acelerado e pela contra-revolução preventiva. Nem elas podem ou poderiam ir mais longe. Para fazê-lo, teriam de abrir mão de muitas coisas, que são, afi­ nal de contas, essenciais para a sua sobrevivência como burguesia de uma sociedade de classes dependente e subdesenvolvida duramente afetada por duas crises simultâneas - a que decorre do abalo do capi­ talismo e a que resulta da eclosão do socialismo na periferia.

As classes burguesas não querem (e não podem, sem destruir-se) abrir mão: das próprias vantagens e privilégios; dos controles de que dispõem sobre si mesmas, como e enquanto classes; e dos controles de que dispõem sobre as classes operárias, as massas populares e as bases nacionais das estruturas de poder. As vantagens e privilégios

estão na raiz de tudo, pois se as classes burguesas realmente "abris­ sem" a ordem econômica, social e política, perderiam, de uma vez, qualquer possibilidade de manter o capitalismo e preservar a íntima associação existente entre dominação burguesa e monopolização do poder estatal pelos estratos hegemônicos da burguesia. Os controles que se voltam para "dentro do mundo burguês" tornam-se, agora, muito mais decisivos do que foram no passado recente. Na medida em que a contra-revolução preventiva vai murchando e, quiçá, desapare; cendo, a hegemonia burguesa terá de se articular de modo bem diver.. so. Impõe-se à burguesia, com premência crescente, suplementar o$ mecanismos rotineiros de dominação de classe direta ou mediada, pqr novos controles de classe formais e, especialmente, por controles coercitivos de caráter estatal. Além disso, o radicalismo burguês aca­ bará reaparecendo, só que revelando, de maneira mais intensa, a outra face de radicalismo de classes burguesas especificamente "con a ordem". A principal característica da recente evolução da ordem social competitiva foi a rápida diferenciação e o enorme crescimento das classes médias, em escala nacional. Não tivemos um "despertar d massas", mas um "despertar das classes médias". O grave dilema, que essa alteração coloca politicamente, é que a sociedade brasileira não dispõe de recursos nem de potencialidades socioeconômicas p atender à "revolução de expectativas" que se deu e que se está alas--; trando na órbita dos "privilegiados de segunda grandeza". A democra.-, eia de cooptação, por último, ao se abrir "para baixo" e para certas, modalidades de dissidência ou de contestação, também suscita pro­ blemas especiais de controle da ordem. Os mecanismos de mobilida-. de social vertical e de corrupção permitem estender as fronteiras da "consciência burguesa" e da condição burguesa dentro das classes ope rárias e das classes destituídas. Contudo, numa sociedade de classes em convulsão é impossível impedir que as migrações humanas, o desenraizamento social e cultural, a miséria e a desorganização social etc. operem, simetricamente, como focos de inquietação e de frustra ção sociais em larga escala. Por isso estamos prestes a conhecer tanto. o movimento de protesto dentro da ordem "corrompido pelo sistema"

quanto o protesto contra a ordem "verdadeiramente revolucionário", ambos típicos de uma sociedade de classes moderna. As classes burgue­ sas tentam, portanto, acompanhar esse giro histórico, preparando-se a si próprias e ao Estado autocrático para um futuro prenhe de dificul­ dades e no qual terão de enfrentar, pela primeira vez, as "manifesta­ ções contra a ordem" sob a forma específica de violência antiburgue­ sa organizada.

Até onde pudemos chegar, por via analítica e interpretativa, não padece dúvida de que as contradições entre a aceleração do desenvol­ vimento econômico e a contra-revolução preventiva só podem ser resolvidas, "dentro da ordem", não pela atenuação mas pelo recrudes­ cimento do despotismo burguês. Parece fora de dúvida que as classes burguesas mais conservadoras e reacionárias considerarão exagerado o preço que terão de pagar à sobrevivência do capitalismo dependente, através da democracia da cooptação. Mas esse é o único caminho compatível com o tipo de "abertura democrática" que se pretende pôr em prática. Doutro lado, apesar das semelhanças óbvias, seria dogmá­ tico afirmar que o Estado autocrático burguês constituirá, pura e sim­ plesmente, uma variante subdesenvolvida e modernizada do fascismo. Ao que parece, mesmo a transição para o fascismo será contida pelo temor de classe, que impediu, até agora, qualquer forma de mobiliza­ ção ideológica e política das massas populares no âmbito da contra­ revolução preventiva. A fascistização incidiu diretamente sobre o Estado, e, neste, concentrou-se em algumas de suas estruturas e fun­ ções, assumindo, por isso, o caráter de um processo localizado e ins­ titucionalizado (e, sintomaticamente, dissimulado e posto acima de qualquer comunicação ou articulação das elites com a massa). Nada indica que a "normalização do Estado autocrático" seguirá outro curso. Por fim, é impossível que as classes burguesas venham a contar com as condições para enfrentar, de ponta a ponta, o processo de longa duração, que deveria resultar do casamento de uma democracia de cooptação tão precária, em vista de sua base socioeconômica, com um Estado autocrático tão complexo, seja em suas estruturas, seja em suas funções. É possível que esse casamento aumentará, juntamente

com certas tendências de "estabilidade da ordem", as fricções das classes burguesas entre si e o radicalismo antiburguês virulento e ultra-esquerdista, que só pode fermentar, nas sociedades modernas, dentro dessas classes. Acresce que a democracia de cooptação possui pouca eficácia e pouca "flexibilidade" em nações capitalistas pobres onde a extrema concentração da riqueza e do poder deixa um escas, so excedente para dividir na compra de alianças ou de lealdades. Por isso, ela concorre para exacerbar as contradições intrínsecas ao regi­ me de classes, levando-as a pontos explosivos de efervescência, que mais debilitam que fortalecem o Estado autocrático, compelido

funcionar sob extrema tensão permanente e autodestrutiva, de insu­ perável paz armada.

Dentro da lógica dessas constatações, cabe perfeitamente admi• tir que as classes burguesas, apesar de tudo, levaram água de mais moinho e que acabarão submergindo no processo político que desen cadearam, ao associar a aceleração do desenvolvimento capitalisQJ; com a autocratização da ordem social competitiva. No contexto histÓ7, rico de relações e conflitos de classes que está emergindo, tanto o Estado autocrático poderá servir de pião para o advento de um autênr tico capitalismo de Estado, stricto sensu, quanto o represamento siste'ê mático das pressões e das tensões antiburguesas poderá precipitar desagregação revolucionária da ordem e a eclosão do socialismo. Em um caso, como no outro, o modelo autocrático-burguês de transforma­ ção capitalista estará condenado a uma duração relativamente curta. Sintoma e efeito de uma crise muito mais ampla e profunda, ele não poderá sobrepor-se a ela e sobreviver à sua solução.


BIBLIOGRAFIA SELECIONADA*


NÃO É FÁCIL COMPOR a bibliografia de um livro como este, que reflete os conheci­ mentos acumulados ao longo de toda uma carreira e reflexões cujo início podemos datar, com precisão, no primeiro semestre de 1941! Como fazer justiça às várias influências, mais ou menos marcantes, e às diversas fontes de informação, de dados e de análises? As investigações ou cursos, que culminaram em livros ou ensaios publicados, revelam pelo menos o essencial quanto aos livros e às obras de que nos valemos, seja empiricamente, seja teoricamente. Contudo, algumas inves­ tigações não chegaram a ser concluídas,1 cursos sobre o Brasi12 ou a América Latina3 não deram origem a livros ou ensaios. A bibliografia compulsada ficou per­ dida na memória e em gavetas do fichário. Agora, seria impossível reproduzi-la aqui, no seu todo. Especialmente as fontes primárias, os romances, contos ou pe­ quenas novelas e uma vasta coleção de "contribuições menores" - que só são "menores" em um sentido relativo: com referência aos processos gerais de forma­ ção e evolução da sociedade de classes no Brasil - precisam ser omitidos.

Na presente seleção, demos preferência a dois tipos de autor ou de obras: l") que podem ter alguma relação direta ou indireta com pontos de vista e com idéias que perfilhamos; 2") que podem ser muito úteis à crítica desses pontos de vista e des­ sas idéias. Deixamos de lado a construção de uma bibliografia exaustiva e reveladora por motivos óbvios. Mas, se deixamos de arrolar todas as fontes de nossa inspiração e de traçar, assim, os caminhos de nosso itinerário intelectual, achamos que, como ponto de partida, esta bibliografia constitui um excelente instrumento de trabalho.4


* Para a presente edição, buscou-se atualizar a bibliografia, segundo o critério da disponibi­ lidade atual das obras mencionadas pelo autor. Assim, sempre que se constatou a disponi­ bilidade de edição brasileira de obra citada pelo autor em língua estrangeira, ou de nova edi­ ção de obra em língua portuguesa, essas informações foram acrescentadas, entre colchetes, ao final da referência original. (N. E.)


424 Florestan Fernandes


A REVOLUÇÃO BURGUESA NO BRASIL 425

V.22, nº 47, 2024 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799X


A ESCOLA LATINO-AMERICANA DE AGROECOLOGIA (ELAA) E A QUESTÃO CIENTÍFICO-TÉCNICA NAS RELAÇÕES DE DEPENDÊNCIA1

Willian Lepinski2 Iuri Michelan Barcat3 Mário Lopes Amorim4


Resumo

O presente artigo discute a formação da Escola Latino-Americana de Agroecologia (ELAA), originária dos movimentos dos trabalhadores no campo, em uma perspectiva macrossocial. Argumentamos que a dinâmica pedagógica-laboral da ELAA ilustra tanto os avanços quanto os atuais limites das concepções científico-técnicas na expansão internacional do capitalismo. Assim, abordamos a temática a partir da teoria marxista da dependência, destacando o conflito entre a matriz primário-exportadora do empresariado e os projetos autônomos da classe trabalhadora no continente.

Palavra-chave: Escola Latino-Americana de Agroecologia; Teoria Marxista da Dependência; Ciência, Tecnologia & Sociedade.

LA ESCUELA LATINOAMERICANA DE AGROECOLOGÍA (ELAA) Y LA CUESTIÓN CIENTÍFICO-TÉCNICA EN LAS RELACIONES DE DEPENDENCIA

Resumen

Este artículo aborda la formación de la Escuela Latinoamericana de Agroecología (ELAA), a partir de dos movimientos de trabajadores del campo, desde una perspectiva macrosocial. Argumentamos que las dinámicas pedagógico-laborales de la ELAA ilustran tanto los avances como los límites actuales de las concepciones científico-técnicas en la expansión internacional del capitalismo. Asimismo, abordamos lo tema basado en la teoría marxista de la dependencia, destacando el conflicto entre una matriz primario-exportadora de las empresas capitalistas y los proyectos autónomos de la clase trabajadora en el continente.

Palabra clave: Escuela Latinoamericana de Agroecología; teoría marxista de la dependencia; Ciencia Tecnología y Sociedad.

THE LATIN AMERICAN SCHOOL OF AGROECOLOGY (ELAA) AND THE SCIENTIFIC-TECHNICAL ISSUE IN DEPENDENCE RELATIONSHIPS

Abstract

In this article we discuss the formation of the Latin American School of Agroecology (ELAA), originating from rural workers' movements, within a macrosocial perspective. We argue that the ELAA's pedagogical-labor dynamics illustrates both advances and current limits of the scientific-technical concepts in the international expansion of capitalism. Thus, we approach the theme by the Marxist theory of dependency, highlighting the conflict between the primary-export matrix of the business class faced with the autonomous projects of the working class on the continent.

Keyword: Latin American School of Agroecology; Marxist Dependency Theory; Science, Technology & Society.


1 Artigo recebido em 11/07/2023. Primeira Avaliação em 23/10/2023. Segunda Avaliação em 18/10/2023. Aprovado em 17/01/2024. Publicado em 22/02/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.59165

2 Doutorando no Programa de Pós-graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Paraná - Brasil. Email: wlepinski@gmail.com.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/2906085362552229. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3354-8772.

3 Doutorando no Programa de Pós-graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Paraná - Brasil. Email: barcat@alunos.utfpr.edu.br.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/1949433849368661. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7282-0804.

4 Professor do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Paraná - Brasil. Email: marioamorim@utfpr.edu.br.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/5344824750599654. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6610-7909.

Introdução


Situada no Assentamento do Contestado no município da Lapa (Paraná), a Escola Latino-Americana de Agroecologia (ELAA) tem se destacado não somente pela sua atuação na educação profissional e superior de trabalhadores rurais – em especial, as filhas e filhos de camponeses na região – como também pela sua complexa história que se entrelaça com a situação social da classe trabalhadora brasileira e latina. Apesar de ter sido criada recentemente, em 2005, a repercussão da ELAA é significativa e, inclusive, chega a suscitar bastante interesse na comunidade científica, a qual lhe vem tomando como objeto de investigação para diversos temas pertinentes. Dentre estes, podemos mencionar as pesquisas sobre: os projetos internacionais de integração latino-americana pela educação (BERNADELLI, 2021); a introdução das práticas agroecológicas no Brasil (VALADÃO, 2012; SANTOS, 2014;); a trajetória da mobilização popular da Via Campesina e do Movimento dos trabalhadores rurais Sem Terra (MST) para a conquista da reforma agrária (LIMA et al, 2015; TEIXEIRA, 2019) e, até estudos de história oral sobre as populações tradicionais (PEREIRA, 2019), que também revelam suas ligações com comunidades quilombolas remanescentes na localidade (PRIORI, et al, 2012).

Tal como os outros trabalhos mencionados, o presente artigo visa abordar a ELAA como um caso empírico para refletir um tema fundamental na literatura científica que ainda é relativamente pouco debatido pelos pesquisadores do continente (quando considerada a sua devida importância). Pretendemos discutir, a partir deste caso particular, a condição da classe trabalhadora no tocante à questão científico-técnica na América Latina, particularmente considerando as relações centro-periferia na complexificação da divisão social do trabalho que se sucede com a expansão histórica do capitalismo. O nosso argumento é que os processos educativos da ELAA, em sua dinâmica pedagógica-laboral, refletem tanto os avanços possíveis quanto os limites impostos às concepções sociotécnicas que emergem do interior deste modo de produção, destacando a conflitiva posição entre a dependente matriz primário-exportadora do empresariado no continente em detrimento aos projetos autônomos da classe trabalhadora. O método adotado está nos marcos do materialismo histórico, consistindo na contextualização social da

formação e trajetória institucional-pedagógica da ELAA, bem como uma recuperação bibliográfica da temática científico-técnica a partir da Teoria Marxista da Dependência (MARINI, 1979; 2008; 2013; 2017; DOS SANTOS; 1983;1987; 1994;

2000; OSÓRIO, 2012; 2022 ).

Dessa maneira, notamos que a ELAA – como outras alternativas pioneiras em educação campesina – transforma a vida de inúmeras famílias trabalhadoras pela formação das suas primeiras gerações com diplomas de ensino superior; além da capacitação para o trabalho nas cooperativas dos assentamentos e; o uso alternativo de Tecnologias Sociais no manejo científico e sustentável dos solos (seja pelo cultivo de orgânicos, sementes crioulas e até agroflorestas). Contudo, as suas limitações endógenas de escala de seus modelos resultam das condições exógenas em que se encontram, isto é, remarcam o embate com as estruturas fundiárias e produtivas da região. Essas, historicamente, referem-se aos processos decisórios do empresariado quanto à especialização técnica primário-exportadora, o que é sucedido pelos interesses privados vinculados à especulação financeira no plano do comércio internacional e estão fundados nessa direção devido à necessidade perene de incessante acumulação de capital.

Aparte dessa presente introdução em que esboçamos as linhas gerais de como conduziremos a análise, este trabalho divide-se em outras três seções: [1] Organização pedagógica e a história institucional da ELAA; [2] As relações centro-periferia na América Latina; e, [3] A classe trabalhadora e a questão científico-técnica; No primeiro item são apresentados alguns dados históricos sobre a atuação educativa da ELAA, demonstrando como a sua trajetória institucional ocorre em amplo contexto social, em que o protagonismo político dos trabalhadores em movimentos organizados constituem a força motriz para a sua realização científico-técnica da agroecologia, o que reflete o nosso interesse para a discussão temática. Posteriormente, será introduzido em dois momentos distintos as categorias para a análise naquilo se convencionou a denominar de Teoria Marxista da Dependência (TMD), visto que partiremos das relações centro-periferia no ambiente latino-americano até a problemática científico-técnica para a questão das classes no capitalismo (MARINI, 1979; 2008; 2013; 2017; DOS SANTOS; 1983; 1987; 1994;

2000; OSÓRIO, 2012; 2022). Por final, realizaremos pequenos apontamentos do percurso e da perspectiva futura da ELAA em seu nível macrossocial, com a

discussão sobre a questão científico-técnica nos termos do materialismo histórico e da TMD, anteriormente tratados. Esperamos que o presente artigo possa contribuir fornecendo um substrato teórico para a formulação (ou para o aprofundamento da compreensão) do significado social das iniciativas coletivas de formação científico-técnica da classe trabalhadora e, em especial, chamando a atenção de como a emancipação política dela constituí um elemento sine qua non para o próprio desenvolvimento nos países latino-americanos.


Organização pedagógica e história institucional da ELAA


Contemporaneamente, a oferta pedagógica da ELAA consiste em dois cursos superiores para a população rural e campesina, sendo estes respectivamente um de Tecnologia em Agroecologia e o outro de Licenciatura em Educação do Campo, Ciências da Natureza e Agroecologia. O curso de Tecnologia começou junto à fundação da ELAA em 2005, enquanto o de Licenciatura se iniciou posteriormente em 2015. A atual creditação e reconhecimentos dos cursos se dá em cooperação com outras instituições de ensino público superior na região. A Universidade Federal do Paraná (UFPR) do setor litoral lhe auxilia no professorado e também documentalmente, com a licenciatura, ao passo que o Instituto Federal do Paraná (IFPR) de Campo Largo é a parceira na creditação do ensino dos tecnólogos. Contudo, ambos os cursos do ELAA contam com a mesma orientação pedagógica de serem voltados para a realidade camponesa e de agricultura familiar. Os cursos ocorrem em um sistema de alternância, no qual os estudantes compartilham um período na comunidade (o que mantém os vínculos laborais e familiares) e outro na própria Escola – incorporando os princípios do PRONERA (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária).

A criação formal da ELAA ocorreu em janeiro de 2005 durante o V Fórum Social Mundial, realizado no município de Tapes no Rio Grande do Sul. Na ocasião, o movimento social da Via Campesina e o MST conseguiram efetivar um protocolo de intenções junto ao então governador do estado do Paraná, Roberto Requião, além de representantes da UFPR, assim como autoridades do Governo da República Bolivariana da Venezuela (VIA CAMPESINA, 2005). Concomitantemente ao ELAA também foi inaugurado o Instituto Universitário Latino-Americano de

Agroecologia Paulo Freire (IALA Paulo Freire), localizado na província de Barinas na Venezuela (CEAGRO, 2009). Ressalva-se que a formalização das instituições não é apenas uma benfeitoria de dirigentes, mas o próprio produto da mobilização autogestionada dos trabalhadores no campo, visto que a pressão que exerceram por meio da Via Campesina e do MST confluiria para que as diferentes autoridades se comprometessem com arranjos políticos para a sua incipiente institucionalidade. A criação de uma nova escola agroecológica latino-americana no Paraguai em 2008 – o IALA Guarani – corrobora para o mesmo entendimento. O instituto partilha do sucesso pregresso da Via Campesina com o ELAA (BERNADELLI, 2021). A título de exemplo, somente de 2006 até 2013, a ELAA já tinha graduado 120 alunos nas suas três turmas, e seu corpo estudantil exibia um perfil de ingressantes majoritariamente jovens e oriundos de famílias campesinas no território brasileiro e, que também agregava discentes latino-americanos advindos dos mais variados países como: Bolívia, Chile, Argentina, República Dominicana entre outros (SANTOS, 2015; LIMA et al, 2015).

A mobilização pela educação popular e de qualidade no campo acompanha a luta dos trabalhadores rurais sem-terra pela consolidação da reforma agrária no Brasil. No censo PNERA – pesquisa mais recente a época do ELAA – o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) constatou que, dentre os 1,6 milhões de assentados, observam-se os respectivos índices educacionais: aproximadamente 20,4% não era alfabetizada; 38,4% frequentaram apenas as séries iniciais do ensino fundamental; 14,1% terminaram as séries finais e; menos de 6% alcançaram o ensino médio ou superior (SAMPAIO & MOLINA, 2005). Consequentemente, a questão da formação científico-técnica se exprimia em uma necessidade compreendida por líderes dos movimentos organizados desses trabalhadores, João Pedro Stédile historiciza o início de tal preocupação no III Congresso Nacional do MST:

Existe a compreensão de que o MST deve lutar contra três cercas: a do latifúndio, a do capital e a da ignorância. Esta última não no sentido apenas de alfabetizar pessoas, o que é simples, mas no sentido de democratizar o conhecimento para um número maior de pessoas. O desenvolvimento depende disso. Uma quarta fonte que impulsionou essa preocupação foi a própria evolução do programa agrário, na medida em que no período de 1993 a 1995 fizemos todo um debate ideológico, que resultou num programa agrário, aprovado no III Congresso Nacional. O programa deu o salto qualitativo de

imaginar o futuro com uma forma superior de organização da produção: nem manter o molde camponês nem aderir ao mercado capitalista. (STÉDILE; FERNANDES, 1999, p. 75).

No final da década de 1990, as comunidades que o MST provisionou assentar pela sua ocupação organizada – acelerando as concessões do INCRA – não estavam alheias ao fenômeno social do êxodo rural. Essas refletiam a inconciliação e o inevitável conflito de interesses entre o mercado capitalista e a vida camponesa. A concentração fundiária que remetia à produção automatizada em larga escala do agronegócio globalizado, especializado na produção de commodities voltadas às exportações (tal como a soja), também retirava a dinâmica econômica local interiorana, expelindo as populações do campo às periferias das grandes cidades. Em termos quantitativos, se as recentes taxas de migrações campo-cidade na década de 2000-2010 são relativamente altas com os seus 17,6%, o êxodo rural era ainda mais preocupante durante a década de 1990, atingindo os patamares de 25,1% (IBGE, 2010). Nesse sentido, os campesinos assentados concebiam a necessidade de conceder novas oportunidades aos filhos, sobretudo pela formação superior – o que os manteria perto da atividade familiar de produção e na comunidade, porém exercendo outras funções (e.g., agrônomos, advogados, professores, contadores e etc.). Foi com esse intuito que as experiências esporádicas do MST com as universidades no ensino alternado foram popularmente almejadas e, então, institucionalizadas na forma do PRONERA, no mesmo período; isso estabeleceu as bases jurídicas para a formação contínua dos campesinos em organizações como o ELAA.

Todavia, a agroecologia ainda estava sob gestação nas concepções políticas dos movimentos da classe trabalhadora rural latino-americana. No Brasil, o MST já possui quatro décadas de existência, o que implica em diferenças nas estratégias de mobilização para a reforma agrária e a melhoria das condições de seu trabalho ao longo do tempo (ALIAGA & MARANHO, 2021; STÉDILE; FERNANDES, 1999). Nos

primeiros anos de formação na década de 1980 – em decorrência da conjuntura adversa que a ditadura militar representava, dado o consentimento da violência no campo – o MST buscava a negociação governamental apoiada na Comissão Pastoral da Terra (CPT) e nos padres católicos das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Só na segunda metade dessa década, as ações diretas (e.g., greves de fome, ocupações de terras e edifícios do Estado) substituem as negociações

mediadas pela CPT, refletindo uma crescente autonomia dos trabalhadores sem-terra frente às organizações religiosas (ibidem). Já o salto qualitativo mencionado por Stédile na década de 1990, refere-se às Grandes Jornadas que aumentaram o escopo institucional e de mobilização do MST, congregando uma direção clara em seus quadros quanto à relevância da formação educacional em seus novos arranjos produtivos. Isso posteriormente vai culminar no reposicionamento social dos assentamentos quanto à sua maneira de estruturação econômica, assim que no tocante ao MST é possível dizer que: “a agroecologia como orientação política foi adotada no IV Congresso Nacional em fevereiro de 2000” (ALIAGA & MARANHO, 2021, p.577).

Segundo a coordenadora pedagógica da ELAA, Simone Rezende, a escolha de sua localidade se deu por uma conjuntura de fatores como: a experiência pregressa de práticas agroecológicas na comunidade assentada, a presença de dadas autoridades estatais no V Fórum Social Mundial e, sobretudo, a proximidade da região com os professores nas instituições parceiras, já que até então – apesar de contarem com a tradição de expoentes pensadoras na área científica tal como Ana Primavesi – os saberes agroecológicos ainda eram incipientes no país (BERNADELLI, 2021). De tal modo, foi designado como campus o Assentamento do Contestado no Paraná, localizado cerca de 20 km da sede municipal da Lapa e, a 70 km da capital do Estado, Curitiba.

Em um levantamento realizado em 2015 constatava-se nesse assentamento que havia 108 unidades de produção agrícola familiar, onde: “Atualmente 80 famílias participam, em maior ou menor grau, dos processos de produção agroecológica e, que se organizam em oito grupos de agroecologia” (SANTOS, 2015, p. 31). Essas famílias possuem certificação para suas hortas orgânicas e também tecnicamente exercem suas atividades em cooperativas de pequenas indústrias que associam outros agricultores da região. Este é o caso da Cooperativa Terra Livre, por exemplo, que iniciou as suas atividades neste assentamento em 2010 e, ampliou a sua atuação com a designação políticas federal em projetos como o Programa Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), garantindo demandas contínuas à agricultura familiar de pequena escala dos produtores em toda porção nacional.

A área assentada do Contestado refere-se a uma propriedade de aproximadamente 3100 hectares, algo em torno de 1,5% da extensão territorial do município da Lapa, onde 1240 hectares desses são áreas destinadas à proteção ambiental em reserva legal e preservação permanente (ibidem). Já o histórico das terras assentadas é um complexo emaranhado de eventos que envolve diferentes atores sociais. A ocupação do território se deu em 7 de fevereiro de 1999, por 52 famílias organizadas no MST, que agilizaram a concessão das terras pelo INCRA, onde foi desapropriado o lote de uma empresa com capital multinacional que mantinha diversas dívidas por impostos não pagos à União e ao Estado do Paraná (VALADÃO, 2012). A empresa mencionada era a INCEPA Brasil, um empreendimento na indústria de revestimento em porcelanato que foi estabelecida em 1952 na cidade de Campo Largo como subsidiária transnacional de outra empresa, a suíça Laufen. No caso, a matriz, especializada no ramo das cerâmicas, Laufen, foi fundada em 1892 na cidade suíça homônima. A empresa se expandiu globalmente construindo filiais nos mais diversos países até recentemente ser comprada pela concorrente espanhola Roca, que opera desde 1917 e lhe incorporou em 1999.

Neste lote da Lapa que havia sido adquirida pela transnacional em 1985, a INCEPA: “utilizou a área para o reflorestamento com espécies exóticas (pinus e eucalipto) para produção de combustível (carvão) para sua fábrica, situado no município de Campo Largo a cerca de 30 km do local” (VALADÃO, 2012, p.126). Sendo assim, ainda é possível encontrar no Assentamento do Contestado os fornos de combustão destinados ao fornecimento energético da produção industrial na região metropolitana, além de outros escombros históricos na propriedade que foram reformados pelos campesinos. Dentre esses, o mais impressionante é a estrutura do atual Centro Cultural Casarão, anfiteatro que foi feito pela reforma do MST e da ELAA em 2018, com a ex-residência de David dos Santos Pacheco, o antigo proprietário das terras, que oficialmente era denominado como o Barão dos Campos Gerais (1810-1893).

Antes dos herdeiros venderem os hectares à indústria transnacional que seria desapropriada, a propriedade era um latifúndio que levava o nome de Fazenda Santa Amélia (BERNADELLI, 2021). No caso, a atividade econômica desse lote do Barão era a produção pecuária e, também, o entreposto logístico para os tropeiros

levarem os muários, equinos e bovinos das estâncias gaúchas aos centros produtivos cafeeiros e mineradores em São Paulo (e.g., Soracaba) e Minas Gerais (e.g., Ouro Preto), ainda no século XIX (ibidem). Ao lado dessa comercialização de insumos pelas tropas dentro do ciclo de exportação agromineiro, no que concerne a realização do trabalho, a situação dessa propriedade era tipicamente compreendida pela escravização, pois: “o escravo era mão-de-obra fundamental nas fazendas, e os grandes proprietários dos Campos Gerais eram geralmente senhores de escravarias maiores dos que os das terras curitibanas” (MACHADO, 2008, p.30). No quesito, além da casa do barão, encontram-se três comunidades quilombolas na região da Lapa que foram reconhecidas pela Fundação Palmares: Feixo, Reestiga e Vila Esperança (PRIORI, et al, 2012). Nos ditos quilombos foi registrado, na data de 2012, aproximadamente 116 famílias com o total de 470 habitantes (ibidem). A preservação dessa memória ocorre em cursos ofertados pela ELAA no Centro Cultural Casarão que, também realiza outras atividades como apresentações e oficinas.

Levando em consideração os traços materiais que denotam o longo percurso histórico para o desenvolvimento pedagógico da ELAA – e, sua ligação umbilical aos trabalhadores do campo – não é de se surpreender o repentino interesse científico sobre a sua atuação educativa. Nesse pequeno panorama indicamos sumariamente uma multitude de eventos e processos que refletem diferentes ações das classes sociais perseguindo conflitivamente seus interesses. Isso é: perpassa desde a alfabetização de campesinos em sua luta a direitos básicos; às suas estratégias de organização no MST durante quatro décadas de existência; além das modificações nas políticas governamentais do Estado-capitalista brasileiro; chegando até a longínqua gestão da propriedade privada da terra que, ora foi administrada por empresas transnacionais na indústria e, ora por barões do regime escravista na região. A aparência caótica da experiência empírica apenas revela a necessidade da formulação teórica para compreender seus meandros e abrangência. Quais fios de continuidade, que conectam essa experiência histórica à história do Brasil e do desenvolvimento capitalista em escala mundial, encontram-se encobertos pelo emaranhado complexo de experiências que se observa à primeira vista? A partir do exercício de abstração, torna-se possível generalizar uma concepção teórica que procure a essência dos fenômenos relatados e que, de alguma forma, possa

simplificar o seu entendimento em uma explicação científica e coesa. Por mais que a reflexão teórica represente sempre uma simplificação, ela é indispensável para uma alteração consciente da realidade supracitada, pois alguns aspectos dessa realidade só são apreensíveis por meio da sua elaboração conceitual. É com esse intuito que pretendemos prosseguir, neste artigo, tratando, agora, desse caso latino-americano como mais um epifenômeno dos problemas científico-técnicos que vem sendo discutidos no continente há mais de meio século.


As relações centro-periferia na América Latina


Trataremos das relações centro-periferia da América Latina a partir, principalmente, sob os marcos da corrente teórica conhecida por Teoria Marxista da Dependência (TMD). Essa corrente de pensamento se constitui, principalmente a partir da década de 60 do século XX, a partir de uma interpretação marxista do desenvolvimento capitalista especificamente latino-americano, e tem sua principal formalização teórica no texto Dialética da Dependência, de 1973, do brasileiro Ruy Mauro Marini. Reduzida ao seu postulado essencial, pode-se dizer que o que determina fundamentalmente a situação de dependência, segundo essa corrente teórica, é a inserção particular de uma economia nacional na divisão sócio-técnica internacional do trabalho, determinada pelo desenvolvimento capitalista e sua expansão em escala mundial. Assim, Marini (2017, p. 327) determinava a dependência como uma “relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência”.

A TMD traz consigo o termo marxista por que apreende a dependência como um fenômeno concreto e necessário do desenvolvimento capitalista em escala mundial, desenvolvimento este cujas formas gerais de movimento foram analisadas por Marx (2013, 2015, 2017) nos três volumes de O Capital. Por um lado, o modo de produção capitalista impulsiona, necessariamente, o desenvolvimento das forças produtivas, como resultado necessário da dinâmica da acumulação de capital e da concorrência entre os capitais. Pelo outro lado, o desenvolvimento das forças produtivas, ao mesmo tempo em que impulsiona o desenvolvimento das relações

capitalistas de produção, também entra em contradição com elas, o que se expressa no descenso tendencial da taxa de lucro (MARX, 2013; 2017).

Nesse sentido, ao que se refere especificamente à dinâmica concorrencial, é importante ressaltar que ela possui dois aspectos contraditórios, mas interligados. Ainda no livro I de O Capital, Marx (2013) mostra como o desenvolvimento tecnológico – dentre outras razões, como o controle do capital sobre o trabalho, que resulta na sua subsunção real em relação ao capital – é essencialmente alimentado pela busca, por parte do capital particular, do mais-valor extraordinário, de um lucro extra que emerge do fato de que o valor individual da mercadoria produzida sob condições de maior produtividade é menor do que o valor social pelo qual tal mercadoria é vendida, determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para a sua produção. Contudo, no livro III, Marx (2017, p. 227) mostra que a generalização da produção capitalista e da concorrência capitalista que se forma entre os distintos ramos da produção dá origem à taxa média de lucro e, respectivamente, aos preços de produção, de tal maneira que a base sobre a qual os capitais concorrem pela apropriação de uma fração maior do lucro – respectivamente, do mais-valor total socialmente produzido – é constituída pela formação do lucro médio. A concorrência, portanto, enquanto fenômeno concreto, não apenas é responsável pelas diferentes taxas de lucro que vigem entre os diferentes capitais particulares, em especial dentro de cada ramo da produção, mas também por fazer com que as taxas média de lucro em cada ramo da produção se aproximem de uma taxa média geral. Isso significa que o lucro auferido por um capital particular não é de modo algum determinado, unicamente, pelo mais-valor por ele mesmo produzido por meio da exploração da força de trabalho por ele empregada, mas pelo mais-valor total socialmente produzido. Isso coloca a questão da lucratividade de qualquer capital particular nos marcos da totalidade do modo de produção capitalista e de seu desenvolvimento histórico.

A dinâmica da concorrência produzida não se reduz, contudo, aos limites de cada Estado Nacional. Ao contrário, é específico da produção capitalista a produção de um mercado mundial e, de fato, de uma totalidade econômica tal qual um sistema-mundo5. Esse processo tem como marco peculiar a conquista da América


5 A terminologia pertence a Imannuel Wallerstein (1974), não obstante, relevando outras categorias distintas essa concepção não diverge analiticamente dos preceitos da TMD como registrado pelo economista Theotônio dos Santos (1994; 2000).

Latina e a expansão colonial do período que corresponde à época do capitalismo comercial (DOS SANTOS 1994). É precisamente essa inserção específica das economias latino-americanas na economia-mundo fundada pelo desenvolvimento global capitalista, uma vez que se tenham dado os processos de independência política dessas nações, que determina a sua situação de dependência. É assim que, em Dialética da Dependência, Ruy Mauro Marini diz:

Desenvolvendo sua economia mercantil, em função do mercado mundial, a América Latina é levada a reproduzir em seu seio as relações de produção que se encontravam na origem da formação desse mercado, e determinavam seu caráter e sua expansão. Mas esse processo estava marcado por uma profunda contradição: chamada para contribuir com a acumulação de capital com base na capacidade produtiva do trabalho, nos países centrais, a América Latina teve de fazê-lo mediante uma acumulação baseada na superexploração do trabalhador. E nessa contradição que se radica a essência da dependência latino-americana (MARINI, 2017, p. 337).


Como mostra o autor brasileiro, passado o período do capitalismo comercial e realizados os processos de independência formal dos países latino-americanos, a dinâmica concorrencial que se forma com a integração dessas economias à expansão capitalista mundial – agora definitivamente alimentada pelo desenvolvimento produtivo, técnico e industrial do século XIX, em especial o da Inglaterra – se exprime, inicialmente, principalmente no fenômeno da troca desigual. Este primeiro estágio de desenvolvimento capitalista mundial corresponde ao padrão de reprodução do capital denominado por Jaime Osório (2012, p. 44) como “padrão agromineiro exportador (até a segunda década do século XX)”. Aqui, apresenta-se a situação mais simples da relação entre centro e periferia na economia mundo capitalista, em que algumas economias nacionais figuram como centros de desenvolvimento industrial (as economias imperialistas, que se defrontam pelo domínio do mercado mundial, das colônias e do desenvolvimento tecnológico), enquanto a maior parte do mundo se encontra na função de alimentar o desenvolvimento capitalista das economias imperialistas pela exportação de produtos primários e com baixa complexidade. Essa é precisamente a função da América Latina neste momento, e é por isso que à produção do mais-valor extraordinário nas economias centrais – vinculado ao desenvolvimento tecnológico – corresponde a superexploração da força de trabalho nas antigas colônias latino-americanas.

Podemos observar, portanto, de que modo essas determinações gerais aparecem na história da ELAA e, reciprocamente, de que forma da história da ELAA constitui como um fenômeno particular que compõe a realidade concreta da sua região implicada pelo desenvolvimento capitalista. No caso, a sua localização se dá na antiga Fazenda Santa Amélia, que como propriedade do Barão dos Campos Gerais fornecia suprimentos vitais às atividades agromineiras de exportação no país. Porém, esse vínculo interno entre o passado da localidade em que o ELAA se encontra com a história das relações centro-periferia, tendo em vista a América Latina e, principalmente, o Brasil, não para por aqui. A venda dessas terras do entreposto logístico tropeiro no século XIX para a indústria transnacional de cerâmicas na década de 1980 representa um desenvolvimento que envolve a passagem do padrão de reprodução do capital agromineiro exportador para o padrão industrial de reprodução do capital na América Latina – subdividido em uma industrialismo pela “etapa internalizada e autônoma” (até os anos 1940) e “etapa de integração ao capital estrangeiro” a partir dos anos 50 (OSÓRIO, 2012, p. 44).

No que concerne este período, o que devemos mencionar é que algumas economias latino-americanas, como o Brasil, a Argentina e o México – ainda que cada qual com a sua história específica, pense-se no impacto que a Revolução Mexicana teve sobre a sua trajetória, em oposição ao domínio oligárquico jamais rompido em terras brasileiras –, desenvolveram, a partir, principalmente dos anos 30, uma indústria interna e pretensões de um desenvolvimento capitalista autônomo. Politicamente, e no caso do Brasil, é a chegada ao poder de Getúlio Vargas que demarca esse salto qualitativo no desenvolvimento capitalista nacional. Do ponto de vista internacional, deve-se fazer referência à desorganização provocada pela Primeira Guerra Mundial e, posteriormente, à catastrófica crise capitalista precipitada em 1929, como os condicionamentos principais dessa transformação. Como mostra Marini (2017), em Subdesenvolvimento e revolução (livro de 1967), esse cenário mundial tem repercussões graves sobre a economia baseada no domínio das oligarquias cafeeiras e na sua hegemonia política. As bases de sustentação do período conhecido como República do Café com Leite colapsam e se instaura um novo período de desenvolvimento capitalista no Brasil, que se estende até meados de 1950. O desenvolvimento de uma indústria nacional, fomentada internamente, dá origem às ideologias do desenvolvimentismo, ou seja, a idealização abstrata e

disparatada da realidade em que seria possível gerir um suposto capitalismo brasileiro autônomo. Porém, nota-se que as condições objetivas em que ocorre esse desenvolvimento industrial são completamente distintas daquelas em que se deu o processo de industrialização das economias imperialistas.

Marini (2017), em Dialética da Dependência, mostra como o desenvolvimento do capitalismo industrial na América Latina e no Brasil não pode ser compreendido a partir de analogias com o desenvolvimento das economias imperialistas, tampouco derivado a partir apenas das leis gerais de movimento do capital. Assim, tendo por base as necessidades de consumo das classes abastadas, o processo de substituição de importações posto em movimento como estratégia de desenvolvimento industrial teve por base, em um primeiro momento, a produção de mercadorias de consumo suntuário e de bens não-duráveis. O processo se orienta, posteriormente, à produção de bens de consumo duráveis e à constituição de uma base de indústria pesada para sustentá-lo e apenas na década de 60 há um impulso para substituição também de maquinário (DOS SANTOS, 2000). Essa cronologia é inversa àquela que se observa no desenvolvimento das economias imperialistas.

Não apenas a cronologia é inversa, mas os determinantes da economia-política também são qualitativamente distintos. Em primeiro lugar, no que se refere à situação interna do Brasil e ao primeiro período da industrialização (que vai até 1950), o desenvolvimento industrial não se opôs ao latifúndio (como, na Europa, o capital industrial se opôs às estruturas feudais), mas, criou-se uma aliança (tensa) entre capital industrial e latifúndio (valeria comentar que não era incomum que um latifundiário se tornasse, com seu capital acumulado, também capitalista industrial, comercial, banqueiro etc.). O capital industrial na periferia se desenvolve desde o início sob a dependência da importação de mercadorias estrangeiras, de tal modo que as divisas geradas pela agroexportação não poderiam deixar de ser essenciais a este processo, principalmente na forma pela qual ele se deu, representada pelo processo de substituição de importações acima narrado. Pelo outro lado, especialmente após o término da Segunda Guerra Mundial, as economias imperialistas possuem capital liberado (tanto monetário quanto na forma de capital fixo – máquinas, equipamentos etc.), o que portanto lhes permite buscar locais de aplicação e valorização além de suas fronteiras nacionais. É nesse movimento, por exemplo, que a partir de 1950 o processo de desenvolvimento

capitalista no Brasil orientado pela indústria recebe, em doses crescentes, o capital estrangeiro6, que é aplicado nos setores mais dinâmicos da produção. Os setores então chamados de tradicionais da indústria permanecem em larga medida sob propriedade de capital nacional, porém experienciam um desenvolvimento tecnológico muito mais reduzido.

Assim, em uma análise mais pormenorizada realizada por Marini em Plusvalia extraordinaria y acumulación de capital (1979), o autor mostra como a essência da dependência se reproduz, agora, neste segundo padrão de reprodução do capital, de forma qualitativamente distinta. É o setor industrial e interno o principal centro de acumulação de capital, não mais o setor agroexportador orientado pelo mercado externo (que se mantém relevante, como vimos). Porém, por um lado, sua constituição interna específica se dá de tal modo que o mercado consumidor dos setores mais dinâmicos é formado não pela massa da população trabalhadora, mas por aqueles que vivem da apropriação de parte do mais-valor. Pelo outro lado, ele se dá de tal forma que esses setores mais dinâmicos são também aqueles com maior desenvolvimento tecnológico (logrado a partir do investimento do capital estrangeiro e da importação da tecnologia estrangeira), com maior grau de oligopolização e maiores vantagens concorrenciais. Desse modo, reproduz-se, agora internamente, as relações de troca desigual, de forma que os setores chamados tradicionais da economia industrial experienciam uma perda de mais-valor análoga àquela observada no fenômeno da deterioração dos termos de troca das mercadorias primárias no mercado mundial na passagem do século XIX para o século XX. Com efeito, relacionando esse tópico com crítica da economia-política de Marx, devemos observar que a queda tendencial da taxa de lucro (resultado ela mesma do desenvolvimento industrial), não se realiza de maneira homogênea e equânime entre os setores da produção. Precisamente a dinâmica da concorrência distribui essas perdas desigualmente.

Nesse contexto, situa-se tanto o desenvolvimento quanto o descenso da indústria transnacional que se instalou no local onde hoje se encontra a ELAA e, seria desapropriada por dívidas não pagas ao Estado-capitalista brasileiro, entre


6 A INCEPA Brasil, no caso se estabelece em Campo Largo em 1952 como filial da transnacional suíça Laufen. Isto é, perfaz o tradicional ciclo industrial mencionado, antes de ter comprado o lote na Lapa em 1983 e ser posteriormente desapropriada para as famílias que formaram o Assentamento do Contestado, onde está situado a ELAA.

outros fatores7. Os desenvolvimentos tecnológicos, principalmente nas áreas das tecnologias de informação e comunicação, viabilizam o início de uma reestruturação qualitativa da produção capitalista no mundo, que dará origem ao período que comumente se denominou de globalização nos 1990, ou, nos termos de Osório (2012), à mundialização do capital. Essa crise capitalista mundial, contudo, já havia sido precipitada com essas tecnologias nos anos 70, onde as formas de automação e administração computadorizada possibilitam uma gestão de outsourcing, deslocalizando a indústria do centro para as regiões periféricas, pois estes buscavam extrair os seus lucros pela diferença regional dos salários que eram forçosamente menores (já que muitas vezes a prática sindical era proibida ou inócua diante das ditaduras militares que as repreendiam e se espalhavam continentalmente junto a essas indústrias transnacionais estrangeiras, o que contrastava com a situação dos trabalhadores no centro); soa, assim, novamente o sinal de mais uma grande reorganização da economia mundial.

O que desse contexto aqui nos interessa principalmente é a posição da América Latina na divisão internacional do trabalho, determinada pelo desenvolvimento capitalista em escala mundial, que é novamente transformada. Isso originará a um novo padrão de reprodução do capital na região denominado por Osório como “padrão exportador de especialização produtiva” e, que para o autor consolidaria-se efetivamente em meados dos anos 1980 seguindo vigente até os dias hoje (OSÓRIO, 2012, p. 44). Essa especialização produtiva, por sua vez, diz respeito a um retorno à centralidade do capital exportador fundado na produção especializada de mercadorias primárias. É patente que, desde a década de 80, a participação da indústria de transformação no produto nacional é, via de regra, decrescente8. Assim similarmente, Marini (2008 [1997], p. 260, tradução nossa), em seu último texto, no qual analisa o processo da globalização, já colocava:


Dessa maneira a economia globalizada, que estamos vendo emergir nesse final de século e que corresponde a uma nova fase do desenvolvimento do capitalismo mundial, põe sobre a mesa o tema de uma nova divisão internacional do trabalho que, mutatis mutandis, tende a reestabelecer, em um plano superior, formas de dependência que pensávamos desaparecidas com o século XIX.


7 Aqui também foi vital a ocupação das 52 famílias de trabalhadores do campo, como a ação coordenadora do MST que ajudou na identificação dessas dívidas quanto na sua aceleração do processo burocrático ao INCRA.

8 Ver ILAESE (2019, p. 64-65).

É decisivo, contudo, observar que dizer que há um restabelecimento de “formas de dependência que pensávamos desaparecidas com o século XIX” – a saber, a regressão produtiva representada pela nova ênfase na exportação de produtos primários – é, na verdade, fazer uma analogia. A especialização produtiva que corresponde ao padrão atual de reprodução do capital no Brasil e na América Latina não é, de modo algum, resultado de um desenvolvimento capitalista apenas incipiente na região, mas a forma atual do máximo desenvolvimento capitalista até aqui atingido, que, historicamente, reservou à região um papel coadjuvante – ainda que extremamente importante – e, portanto, relembra a posição precária daquele do final do século XIX e início do XX no continente.

Mais uma vez, observamos no processo histórico de constituição do Assentamento do Contestado – agora no que diz respeito ao seu surgimento efetivo – as repercussões desse processo mais geral acima narrado. A indústria então instalada, em lugar do latifúndio de um Barão, vê-se – como tantas outras – endividadas ou em processos de falência que remetem a reestruturação patrimonial pela apropriação ou venda condicionada. Todavia, essas transformações econômicas vinculadas à esfera das inovações tecnológicas no plano da concorrência internacional não estão dissociadas das relações conflitivas no mundo laboral dos trabalhadores. Neste ponto, cabe observar o processo que se instala sob a ótica da classe trabalhadora, em seu defrontamento com as contradições suscitadas pelo capitalismo contemporâneo.


A classe trabalhadora e a questão científico-técnica


Paradoxalmente, em termos científico-técnicos, o que é chamado de desenvolvimento no capitalismo é completamente antagônico ao interesses sociais daqueles que executam o trabalho neste modo de produção. O desenvolvimento capitalista é marcado pela contradição específica entre suas relações de produção e as forças produtivas que engendra para si, como vimos anteriormente. Tal contradição se exprime, em última instância, no descenso tendencial da taxa de lucro. A queda da taxa de lucro é correspondente à formação de uma economia cada vez mais socializada, o que se exprime, aqui, no processo de mundialização do capital e, no rompimento relativo das barreiras impostas pela temporalidade e pela

espacialidade; aspectos cruciais para a constituição concreta de seu funcionamento enquanto um sistema-mundo e, que marca a sua inerente desigualdade em todos os aspectos da vida social. A queda da taxa de lucro é correspondente, portanto, ao desenvolvimento – nas suas mais variadas formas, como as ainda atuais Cadeias Globais de Valor – da grande indústria e da grande produção. Com efeito, no livro III d’O Capital, lê-se:

Os limites nos quais unicamente se podem mover a conservação e a valorização do valor de capital, as quais se baseiam na expropriação e no empobrecimento da grande massa dos produtores, entram assim constantemente em contradição com os métodos de produção que o capital tem de empregar para seu objetivo e que apontam para um aumento ilimitado da produção, para a produção como fim em si mesmo, para um desenvolvimento incondicional das forças produtivas sociais do trabalho9. O meio – o desenvolvimento incondicional das forças produtivas sociais – entra em conflito constante com o objetivo limitado, que é a valorização do capital existente. Assim, se o modo de produção capitalista é um meio histórico para desenvolver a força produtiva material e criar o mercado mundial que lhe corresponde, ele é, ao mesmo tempo, a constante contradição entre essa sua missão histórica e as relações sociais de produção correspondentes a tal modo de produção (MARX, 2017, p. 348).


O desenvolvimento da produção cada vez mais socializada e mundializada, bem como o desenvolvimento das forças produtivas que correspondem a esse estágio da produção social da existência, é a “missão histórica” do modo de produção capitalista, na medida em que dessa forma ele cria as condições objetivas que tornam necessária a sua superação histórica, a saber, torna objetivamente necessária uma revolução social orientada pela transformação qualitativa das relações sociais de produção. Por outro lado, é claro que as necessidades capitalistas que dão forma à tecnologia contemporânea são qualitativamente distintas daquelas que emergiriam com o advento de uma transição para outro modo de produção, como o socialista, por exemplo (especialmente pensando-a enquanto tal, isto é, em termos internacionais). Resta, aqui, portanto, uma primeira contradição na relação entre classe trabalhadora e desenvolvimento científico-técnico, uma vez que este está inteiramente orientado à reprodução das necessidades do capital,


9 “O verdadeiro obstáculo à produção capitalista é o próprio capital, isto é, o fato de que o capital e sua autovalorização aparecem como ponto de partida e ponto de chegada, como mola propulsora e escopo da produção” (MARX, 2017, p. 348).

levando em consideração sua estratificação internacional. É nesse sentido que o economista brasileiro, Theotônio dos Santos, diria que:


Consequentemente, as novas práticas científicas e tecnológicas passam por uma reforma do capitalismo contemporâneo que possibilite a emergência de uma estrutura mais concentrada, centralizada, monopolista, com maior participação estatal e com um nível superior de internacionalização do capital e do sistema produtivo. Dessa estrutura emergirá então uma nova divisão internacional do trabalho, concentrando os setores mais avançados da revolução científico-técnica nos países dominantes e deslocando para as zonas periféricas e dependentes as fases intermediárias das forças produtivas no capitalismo contemporâneo (DOS SANTOS, 1983, p.159).

Em suas obras sobre a revolução científico-técnica (DOS SANTOS, 1983; 1987), Theotônio denota a expansão da utilização da ciência vinculada à técnica como precondição, não somente para o desenvolvimento das forças produtivas no pós-guerra, mas também a obtenção do lucro em todas as expertises e áreas de especialidade. Isto é, culminaria marcadamente na criação da robótica, automação computadorizada, mas também agregaria a biogenética, a química para produção de novos fertilizantes e outros equipamentos (particularmente aqueles que compreendem a assim chamada revolução verde). Assim, por exemplo, a grande produção agroexportadora atual não é de modo algum, como fora antes, no século XIX, um ramo da produção pouco desenvolvido, de baixa composição orgânica do capital e pouco produtivo. Ao contrário, é atravessado por tecnologias de todos os tipos, desde seu maquinário até os químicos na fertilização e nos agrotóxicos, constituindo tecnologias que, via de regra10, são monopolizadas pelas economias imperialistas e importadas pelo capital exportador fincado em terras nacionais. Cria-se, então, uma circunstância em que se pode observar como a forma atual de produção massiva dos produtos primários – predatória em todos os sentidos – é, ao mesmo tempo, condição necessária para uma possível transformação qualitativa das relações de produção, mas também está em contradição direta com as necessidades da própria classe trabalhadora.

É por esse fator que vemos fenômenos como o êxodo rural ou as altas taxas de analfabetismo e baixa escolaridade nas terras agrárias, porque a automatização


10 Obviamente há exceções nessa produção científico-técnica, como o surgimento da EMBRAPA no Brasil, contudo a monopolização das empresas transnacionais no território latino-americano confirmam a regra (e.g., Monsanto, Bayer, Syngenta, Dow Chemical, Cargill e etc.).

e essas outras formas técnicas de produção dispensam os trabalhadores do campo sem lidar com as consequências sociais, tal como o desemprego massivo ou a especialização em monoculturas de exportação. Decorre daqui uma segunda contradição entre a classe trabalhadora e o desenvolvimento científico-técnico, a saber: a classe trabalhadora é expelida de suas funções produtivas pelo processo de desenvolvimento capitalista e tem de viver em seus interstícios, lutando pela construção de seus modos de vida e de sobrevivência.

É neste contexto que se inserem as novas lutas no campo pelo direito à terra. Esses movimentos são o que marcam o surgimento dos IALAS (Institutos Latino Americanos de Agroecologia), nas quais também se coloca a ELAA com a sua ilustrativa história. Vemos assim que na sua primeira experiência com o Assentamento do Contestado, criam-se novas relações sociais de produção (SANTOS, 2015) – porém, baseadas em técnicas produtivas de menor escala, que correspondem às circunstâncias objetivas no qual se encontram a fração rural da classe trabalhadora precarizada latino-americana. Tanto na memória quanto palavras da coordenadora pedagógica do ELAA, Simone Rezende afirma pelo MST que:

(…) a principal diferença, é que no espaço da ELAA os tensionamentos se acirram porque há um espaço coletivo pra voltar e aprofundar essas questões [em referência ao Assentamento do Contestado]. Por isso que a gente imagina que técnico na agroecologia tem que vir junto com o processo de formação das comunidades camponesas, por isso que fala: técnico militante pedagogo educador em agroecologia. Esse termo tão grande. Ele é grande porque é afirmar com esses sujeitos que não dá nesse contexto pra ele se colocar pra ser uma coisa, não cabe, na proposta de mundo de transformação que os movimentos têm. Não cabe na nossa realidade, eu só fazer assistência técnica. É impossível eu olhar e fazer uma assistência técnica assim – independente que eu seja um ótimo especialista em agroecologia. Mas se eu fizer uma assistência sem olhar pras outras dimensões da vida e organização da comunidade, de como se situa… da história, do que a gente projeta... É a gente fazer uma assistência técnica falseada de agroecologia! É por isso que essas escolas, os IALAS surgem. Essa é a síntese do porquê que os IALAS surgem… Porque esse não é só um problema do Brasil. É um problema de como a prestação da assistência técnica foi colocada na América Latina e, que o Paulo Freire trabalha muito bem na Extensão e Comunicação. (BERNADELLI, 2021, p. 79-80).

Vista sob esse prisma, a experiência da Escola Latino-Americana de Agroecologia e, a história que esta perfaz, abarca alguns dos desafios mais importantes de nosso tempo. Assim, se a produção dos saberes agroecológicos pela ELAA oferece muito mais que apenas técnicas na produção de alimentos orgânicos, pois garante meio materiais para novos modos de existência nessa porção trabalhadora – ao mesmo passo, ela esboça o drama social entre a artificial separação da classe trabalhadora com os meios de produção em larga escala. Assim as iniciativas de combate a essa lógica, tal qual a pedagogia agroecológica-militante da ELAA e dos IALA’s se exprimem em novos modos de vida, novas relações sociais e novas técnicas de produção (por parte dessa fração da classe trabalhadora); contudo, elas também se encontram restritas a uma escala reduzida quando colocados em comparação à questão da revolução social.

Isto porque, mesmo em outras experiências como os IALA’s, ela ainda corresponde a uma forma microssocial de combater efeitos de problemas macrossociais na América Latina, tal como: a reprimarização econômica avinda das relações comerciais entre centro-periferia; sua repercussão na precarização laboral e, no êxodo rural – fenômenos que se originam da aplicação internacional de uma matriz científico-técnica no capitalismo que é amplamente hostil aos interesses da classe trabalhadora. É claro que os desafios que aqui se colocam, principalmente quando se observa a questão não apenas a partir de apenas um caso específico, mas na articulação total entre todos os ramos da produção, são imensos. Porém, parece-nos que se tomarmos este exemplo, em sua particularidade, como representação de um problema geral que se refere à relação entre classe trabalhadora e desenvolvimento científico-técnico, poderíamos formular este problema em duas dimensões: 1) a dimensão clássica da questão da propriedade dos meios de produção, porém, vista aqui sob a ótica da grande produção tal como estabelecida pelo capitalismo contemporâneo. Como vemos, a ELAA representa um caso em que uma fração da classe trabalhadora toma, pela luta e à força, meios de produção para si, porém apenas em uma escala reduzida; 2) a dimensão da transformação das formas tecnológicas atuais, de modo a alterá-las qualitativamente e dar a elas um conteúdo sócio-histórico distinto. Assim, por exemplo, a grande produção agrária atual, na forma em que se encontra, de modo nenhum está pronta para servir a um processo de transformação social almejável e, ao mesmo tempo,

não obstante, é uma base objetiva fundamental de tal processo. A solução, aqui, talvez se possa procurar no encontro entre os modos de vida qualitativamente novos que a classe trabalhadora produz para si nas mais variadas situações e, a partir de suas próprias necessidades – como no caso da ELAA –, uma transformação da produção em larga escala, o que exige uma modificação em sua orientação política.

Na nossa perspectiva, o que este caso indica e revela é que se trata de unir a grande produção a necessidades qualitativamente distintas que, entretanto, talvez não emerjam, imediatamente, de um grandioso processo totalizante, mas do interior das vidas e das lutas desses sujeitos da classe trabalhadora que produzem novas condições de existência. É da concretude dessas necessidades, e dos conhecimentos que aí são produzidos – tal como a agroecologia – em conexão com a grande produção, de fato movendo a transformação qualitativa das forças produtivas que a sustentam, que talvez se encontre uma das chaves de compreensão dos processos radicais de transformação que estejam por vir no século presente, por mais que, atualmente, não apareçam à primeira vista. Exemplos como a ELAA, entretanto, além de revelar contradições imanentes ao desenvolvimento capitalista em geral, talvez também revelem que tais processos radicais de transformação não são inexistentes, mas estão apenas em uma forma subterrânea, embrionária e, ainda, desarticulada. O trabalho de pesquisa científica, nesse sentido, pode contribuir para a tomada de consciência a este respeito, de tal modo que as possibilidades que se apresentam à nossa frente possam ser reveladas e, quiçá, atualizadas.


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V.22, no 47, 2024 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799X


PERSPECTIVAS TEÓRICAS DEL PROCESO DE FORMACIÓN AMBIENTAL DE LOS DIRECTIVOS DEL PODER POPULAR EN CUBA1

Luis Humberto Márquez Delgado2 Dora Lilia Márquez Delgado3 Niurka Castillo Rocubert4

Resumen

El objetivo es socializar las perspectivas teóricas que sustentan el proceso de formación ambiental de directivos gubernamentales del Poder Popular en Cuba. Se emplearon métodos teóricos y empíricos a partir del método dialéctico-materialista. Se determinaron referentes y bases teóricas desde las Ciencias de la Educación que permiten concebir el proceso estudiado con un carácter sistémico, integral, participativo y contextualizado a los fines de contribuir a la solución de los problemas ambientales locales.

Palabras clave: Medio ambiente; Formación ambiental; Directivos Gubernamentales del Poder Popular; Localidad.

PERSPECTIVAS TEÓRICAS DO PROCESSO DE FORMAÇÃO AMBIENTAL DOS DIRIGENTES DO PODER POPULAR EM CUBA

Resumo

O objetivo é socializar as perspectivas teóricas que sustentam o processo de formação ambiental de governantes do Poder Popular em Cuba. Foram utilizados métodos teóricos e empíricos baseados no método dialético-materialista. Foram determinadas referências e bases teóricas a partir das Ciências da Educação que permitem conceber o processo estudado com caráter sistêmico, abrangente, participativo e contextualizado de forma a contribuir para a solução dos problemas ambientais locais.

Palavras chaves: Meio Ambiente; formação ambiental; Dirigentes do Governo – Poder Popular; Localização.

THEORETICAL PERSPECTIVES OF THE PROCESS OF ENVIRONMENTAL FORMATION OF THE RIGHTS OF POPULAR POWER IN CUBA

Abstract

The objective of this work was to socialize the theoretical perspectives that support the environmental training process of government officials of the People's Power in Cuba. Theoretical and empirical methods were used based on the dialectical-materialist method. References and theoretical bases were determined from the Educational Sciences that allow conceiving the studied process with a systemic, comprehensive, participatory and contextualized character in order to contribute to the solution of local environmental problems.

Keywords: Environment; environmental training; Government Officials - Popular Power; Location.


1 Artigo recebido em 12/07/2023. Primeira Avaliação em 01/09/2023. Segunda Avaliação em 11/08/2023. Aprovado em 28/09/2023. Publicado em 22/02/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.59194

2 Master en Desarrollo Social por la Universidad de Pinar del Río (UPR), Cuba. Profesor Asistente del Centro de Estudios de Medio Ambiente y Recursos Naturales (CEMARNA) de la UPR. E-mail: humberto@upr.edu.cu. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2390-768X.

3 Doctora en Ciencias Pedagógicas por la Universidad de Pinar del Río (UPR), Cuba. Profesora Titular del Centro de Estudios de Medio Ambiente y Recursos Naturales (CEMARNA) de la UPR. E-mail: doraly@upr.edu.cu.

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0060-0455.

4 Doctora en Ciencias Pedagógicas por el Instituto Central de Ciencias Pedagógicas, La Habana, Cuba. Profesora Titular del Centro de Estudios de Medio Ambiente y Recursos Naturales (CEMARNA) de la UPR. E-mail: niurka.castillo@upr.edu.cu. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5935-5568.

Introducción


La protección del medio ambiente constituye en Cuba una prioridad gubernamental, lo que se expresa desde la Constitución de la República. Al respecto, en la Nueva Constitución aprobada en el año 2019, en el Artículo 75, se reconoce la función del Estado en la protección del medio ambiente y los recursos naturales del país en estrecho vínculo con la economía y la sociedad, a fin de lograr el bienestar y seguridad de las actuales y futuras generaciones. Es a partir de esta función estatal y a través de los órganos de gobierno, que el Estado proyecta la política y la gestión ambiental.

En la actualidad, las directrices de la política ambiental cubana están contenidas en la Constitución de la República de Cuba (2019), los Lineamientos de la Política Económica y Social del Partido y la Revolución para el período 2021-2026, el Plan Nacional de Desarrollo Económico y Social hasta el 2030 (PNDES 2030), la Nueva Ley del Sistema de los Recursos Naturales y el Medio Ambiente (2022), la Estrategia Ambiental Nacional (EAN) 2021-2025, el Plan de Estado para el Enfrentamiento al Cambio Climático conocido con el nombre de Tarea Vida, el Programa Nacional de Educación Ambiental para el Desarrollo Sostenible (PNEADS) 2021-2030. Todo ello en integración con los Objetivos de Desarrollo Sostenible (ODS) en el marco de la Agenda 2030, constituyen prioridades en el trabajo de los Funcionarios Gubernamentales (FG) del Poder Popular y fundamentan la necesidad de contribuir a la formación ambiental de estos directivos.

La política y la gestión ambiental en Cuba se desarrolla sobre la base de los principales problemas ambientales y se materializa esencialmente en los territorios. En tal sentido, corresponde a los Órganos Locales del Poder Popular su aplicación, así como el establecimiento de las adecuaciones y prioridades en interrelación con las comunidades y en coordinación con las delegaciones territoriales del Ministerio de Ciencia, Tecnología y Medio Ambiente (CITMA) y demás organismos de la dirección estatal a ese nivel.

El Poder Popular en Cuba conforma las estructuras de gobierno, en expresión de democracia participativa total. Se organiza por la Asamblea Nacional: órgano supremo del poder del Estado; Asambleas Provinciales y Municipales: órganos

superiores locales del poder del Estado en las instancias provincial y municipal; los Consejos Populares, representan a la población de la demarcación donde actúan y a la vez a la Asamblea Municipal del Poder Popular, estando constituidos por circunscripciones; y las circunscripciones: célula básica de la estructura del Poder Popular.

Esta estructura de gobierno constituye una potencialidad en la atención a los problemas ambientales de las comunidades, a la vez que se convierte en una fortaleza para dar salidas prácticas y medibles a la formación de los Funcionarios Gubernamentales del Poder Popular en vínculo con los actores sociales de las comunidades. De esta manera, en la misma medida que se favorece la formación ambiental de los funcionarios, se contribuye a la formación de la comunidad.

Desde el punto de vista de la gestión del poder popular en Cuba, se reconoce a la comunidad como “[...] principal escenario que se tiene para el trabajo…” (DÍAZ-CANEL, 2016, p.1), pudiendo existir en un Consejo Popular diversas comunidades. La comunidad constituye el espacio geográfico donde se desarrollan los procesos políticos, económicos y sociales que más directamente se relacionan con la población, es el principal escenario donde convergen motivaciones, aspiraciones y la cultura de sus pobladores para contribuir en el desarrollo económico y social del país (ASAMBLEA NACIONAL DEL PODER POPULAR, 2017).

La presente investigación se ubica en el contexto de la Asamblea Municipal atendiendo a que el municipio es considerado “[...] la unidad política-administrativa primaria y fundamental de la organización nacional;” (ASAMBLEA NACIONAL DEL PODER POPULAR, 2020, p. 60) “[...] espacio del gobierno de proximidad donde transcurre de manera más directa el vínculo entre éste y la población,” (GUZÓN, 2020, p. 9). En este sentido se reconoce la necesidad de fortalecer las capacidades en esta instancia como eslabón básico dentro del sistema del Poder Popular y de la sociedad local en general. (GUZÓN, 2020).

De manera singular en el Proyecto de Estrategia Ambiental de la provincia de Pinar del Río para el período 2021-2025, se identifican problemas ambientales que demandan de un papel preponderante de los Órganos Locales del Poder Popular en función de contribuir en su solución. Estos problemas ambientales se resumen en:

degradación de los suelos, contaminación del aire, agua y suelo, dificultades con el uso, el manejo y la calidad del recurso agua, afectaciones a la diversidad biológica y deterioro de los bienes y servicios ecosistémicos, deterioro de las condiciones higiénico-sanitarias en los asentamientos humanos y efectos negativos del cambio climático.

Atendiendo a los planteamientos hasta aquí expresados, se parte de considerar que cada problemática ambiental que se genera en los espacios locales constituye una prioridad a los fines de desarrollo local sostenible. De ahí la necesidad de contribuir a la formación ambiental de los FG del Poder Popular, de manera que los prepare para integrar la dimensión ambiental en las políticas económicas y sociales, con lo cual podrán brindar soluciones más efectivas a los problemas desde una gestión pública más encaminada a la sostenibilidad.

La formación ambiental ha sido estudiada por investigadores a nivel internacional y nacional. (MEJÍAS et al. 2022; LAPORTILLA, SANTOS y FRAGOSO, 2020; PANEQUE et al. 2020; CORBETTA, 2019; CÓNDOR, 2018), entre otros. Estos

investigadores han aportado modelos, concepciones y estrategias con la intención de integrar la formación ambiental en el proceso docente educativo, significando el carácter transversal de dicho proceso formativo.

En cuanto a la formación ambiental de FG del Poder Popular, este no ha sido un tema suficientemente abordado desde las investigaciones en el área de las Ciencias de la Educación. No obstante, aunque escasos, se advierten trabajos que se convierten en referentes, tales son los realizados por (TORRES y GARCÍA, 2019; MORÁN, 2012; ASÍN et al. 2009; ASÍN, 2006), quienes resaltan la necesidad de asegurar la formación de capacidades en directivos de gobierno local. También constituyen importantes supuestos teóricos los trabajos de (ORTIZ y ALEJANDRE, 2020; PÉREZ y OVIEDO, 2019), los cuales argumentan la significación del tema ambiental y su carácter transversal en el ámbito de la administración pública. Sin embargo, no se precisa por los autores citados cómo direccionar la formación ambiental de estos sujetos de manera gradual y sistémica; no se definen los contenidos ambientales que les permitan gestionar la prevención, mitigación y/o solución de los problemas ambientales desde su misión social; ni se revelan posibles acciones como programas o estrategias a fin de potenciar esta formación.

Para profundizar en el tema se realizó un estudio exploratorio inicial, que permitió detectar fortalezas y debilidades en el proceso de formación ambiental de FG del Poder Popular. Las principales fortalezas se resumen en:


Reconocimiento a través de eventos auspiciados por Organismos


Internacionales de la prioridad de la formación ambiental de los funcionarios de gobierno a nivel local, a los fines de asegurar la formulación e implementación de políticas públicas más sostenibles.

Reconocimiento del papel clave de la formación ambiental en los FG


del Poder Popular en Cuba en el desempeño de sus funciones para la protección del medio ambiente, desde la situación ambiental del territorio, y de los nuevos escenarios de la nación.

Existencia de un sistema de gestión de gobierno basado en ciencia e


innovación, en el que se contempla la dimensión ambiental y su importancia en función del desarrollo local, reconociendo el papel clave de la Universidad para estos fines.


Y las principales debilidades se concretan en: insuficientes acciones de formación que fomentan conocimientos y habilidades en los FG para gestionar la solución de los problemas ambientales de las comunidades con un carácter participativo; las acciones son básicamente informativas e insuficientes, siendo limitado su incidencia en la solución de los problemas existentes. En consecuencia, la concepción de la formación ambiental no responde a una planificación sistémica, gradual e integral hacia la solución de los problemas ambientales, ejecutándose de forma aislada y espontánea, con un carácter reduccionista en los temas que se abordan.

Sobre la base de este reconocimiento, se detectó la contradicción general de la investigación, dada por, la necesidad de una formación ambiental del FG orientada a gestionar la solución de los problemas ambientales locales con carácter sistémico, y la realidad de una formación ambiental del FG del Poder Popular

caracterizada por ser asistémica y poco enfocada a gestionar la solución de los problemas ambientales como parte del cumplimiento de su misión social, lo que limita el impacto de su desempeño en el contexto local.

A los fines de resolver la contradicción planteada, se realizó el presente estudio con el objetivo de socializar perspectivas teóricas que permitan concebir el proceso de formación ambiental del FG del Poder Popular en Cuba, con un carácter sistémico, integral, participativo y contextualizado, que impacte en un mejoramiento de su desempeño en el contexto local, tributando a la misión social de estos sujetos: la gestión del desarrollo local sostenible.

La presente investigación se realizó en el marco del proyecto titulado: Estrategias de Educación Ambiental para mitigación, adaptación y solución de los impactos ambientales en el enfrentamiento al cambio climático en comunidades de la provincia de Pinar del Río.


La formación ambiental en Cuba


La Conferencia de Naciones Unidas sobre Medio Ambiente Humano celebrada en Estocolmo en 1972 constituyó un hito importante que marcó el desarrollo del tema ambiental en Cuba. Posteriormente a esta Conferencia, con el fin de promover la educación y formación ambiental en Cuba, en el año 1976, se crea la Comisión Nacional para la Protección del Medio Ambiente y la Conservación de los Recursos Naturales (COMARNA) con la intención de trabajar en el fomento de una conciencia favorable de todos los ciudadanos hacia el medio ambiente. En este mismo año, en la Constitución de la República, en el artículo 27 se reconoce la responsabilidad del Estado y de los ciudadanos en la protección de los recursos naturales.

Otro momento significativo en Cuba, en cuanto a política ambiental fue el impacto de la Conferencia de Río, 1992. A partir de esta Cumbre se suceden importantes momentos en el país: se modifica el artículo 27 de la Constitución de la República de Cuba, en 1992, en el que se ratifica la idea de la integración de la protección ambiental con el desarrollo económico y social; en 1993 se crea el Programa Nacional de Medio Ambiente y Desarrollo (PNMAD), adecuación cubana

de la Agenda 21, donde se apuntó el fortalecimiento de la capacidad institucional, formación y capacitación de los recursos humanos, la dimensión ambiental en la educación formal y en los procesos de educación no formal.

Por otra parte, en 1994, se sucede la creación del CITMA, fortaleciéndose la política y la gestión ambiental nacional; en 1997, se aprueba la Ley 81 del Medio Ambiente, en la que se define a la educación ambiental como proceso continuo y permanente de aprendizaje en vínculo con el desarrollo sostenible; y en 1997, la elaboración de la Estrategia Nacional de Educación Ambiental (ENEA), en el marco de la Estrategia Ambiental Nacional.

Los principales problemas para el desarrollo de la educación y formación ambiental en Cuba, y el establecimiento de sus líneas de trabajo se identificaron a partir de la ENEA, en 1997. Es el CITMA, organismo rector de la política ambiental en el país, quien coordina y orienta el trabajo de educación y formación ambiental en todos los sectores sociales, en vínculo con los gobiernos, las Universidades, Direcciones de Educación, Direcciones de Cultura, los medios de difusión y otros órganos y organismos competentes.

La educación ambiental en Cuba se concibe como un instrumento de la política y la gestión ambiental que, con un carácter transversal, se orienta al desarrollo sostenible del país, estableciendo para su desarrollo tres vías fundamentales: la educación ambiental formal, la educación ambiental no formal y la educación ambiental informal. A través de estas vías tienen lugar los diversos procesos formativos de la persona que lo habilitan en función de desarrollar acciones para la protección del medio ambiente.

Con anterioridad, desde 1994, las actividades de formación ambiental adquieren un carácter de sistema con la creación de la Red Cubana de Formación Ambiental (REDFA-Cuba) coordinada por el CITMA. La REDFA constituye la representación del Punto Focal Cubano de la Red Regional de Formación Ambiental para América Latina y el Caribe. Esta Red se articula además con las Redes, instituciones, organismos y organizaciones nacionales que la forman, y su Plan de Acción está basado en el Programa Latinoamericano y Caribeño de Educación Ambiental (PLACEA) a partir de su aprobación, así como en la Estrategia Nacional de Educación Ambiental (ENEA).

En la formación de profesionales en el contexto de la educación superior cubana, la formación ambiental ha sido reconocida como objetivo priorizado. Al respecto, se analiza como dimensión, siendo significativo desde la actividad de pregrado y posgrado, su contribución a la apropiación de conocimientos, al desarrollo de habilidades y capacidades para la solución de problemas ambientales en correspondencia con el objeto de la profesión.

De ahí la asunción en este contexto de una perspectiva que lo analiza con un carácter transversal orientado al desarrollo sostenible del país, que se concreta en la concepción e implementación de la Estrategia Ambiental de la Institución. La Estrategia Ambiental se implementa en la educación superior desde 1997, siendo sucesivamente actualizada en 2007, 2011, 2016 y 2022, como mecanismo que se orienta a gestionar el conocimiento y la innovación hacia la solución de los principales problemas ambientales con prioridad del entorno universitario y comunitario a través de los procesos universitarios. En vínculo con lo anterior, en la formación ambiental en Cuba, se ha reconocido el papel significativo de los modos de actuación, lo que deriva en la determinación de conocimientos, habilidades y valores ambientales a facilitar su apropiación a través de este proceso.

Profundizando en la importancia que tiene en Cuba la formación ambiental, en la Ley 81/97, del Medio Ambiente, en el artículo 3, se expresa explícitamente, que es deber del Estado, los ciudadanos y la sociedad en general proteger el medio ambiente. Para ello, reconoce la necesidad de incrementar los conocimientos de los ciudadanos que les permitan comprender de manera sistémica las relaciones entre la sociedad y la naturaleza.

Unido a este reconocimiento, se identifican insuficiencias en el desarrollo de este proceso en el territorio y el país, que se convierten en retos a enfrentar en el nuevo ciclo estratégico 2021-2030, según el Programa Territorial de Educación Ambiental para el Desarrollo Sostenible. Dentro de ellas, se mencionan las siguientes:


Limitado enfoque interdisciplinario y multidisciplinario de los contenidos sobre el medio ambiente y sus problemas.

Insuficiente incorporación de la dimensión ambiental y temas


prioritarios en el sistema de capacitación de los diferentes niveles de Gobierno y en los Organismos de la Administración Central del Estado (OACE), Organizaciones Superiores de Dirección Empresarial (OSDE) y escuelas ramales.

Insuficiente concertación entre las estructuras de base en los territorios


para el desarrollo de procesos de educación ambiental participativos en las comunidades.


Para revertir tal situación, constituye un objetivo priorizado una formación ambiental que derive en un incremento de los conocimientos, habilidades, valores y actitudes en la población para la acción. Lo anterior, orientado a la prevención, solución o mitigación de las principales problemáticas que afectan el desarrollo de las comunidades.


Análisis teórico y conceptual de la formación ambiental de directivos gubernamentales (FG) del Poder Popular


Para un mejor análisis del proceso de formación ambiental, se parte de considerar la formación como categoría de la Pedagogía.

En este sentido se asume la posición de (FIGUEROLA, 2018), quien a partir de sistematizar los abordajes de la categoría formación en el nivel universitario, según textos de las ciencias pedagógicas realizados en Cuba en el período de 1999- 2012, expresa que sobresale una tendencia a comprender este término de forma sistémica, siendo común su comprensión como actividad y proceso contextualizado. Al respecto, se evidencia cierto consenso en que la formación es la finalidad de la educación, siendo consustanciales a aquella las actividades del proceso enseñanza-aprendizaje (PEA), pero que no se reduce a este, apuntando la influencia de numerosos agentes en el proceso formativo del sujeto.

En relación con lo anterior, (DÍAZ, 2016), sostiene que la formación es el proceso que se da en una relación entre instrucción, educación, desarrollo, que,

atendiendo a etapas o momentos, les permite a las personas alcanzar cierta plenitud y lograr integrar conocimientos, habilidades, valores y actitudes al contexto social para comprenderlo, argumentarlo, y resolver de forma permanente problemas que transformen la realidad.

En las definiciones planteadas se concibe la formación con un carácter de proceso, contextual, planificado y consciente de acciones a desarrollar con los sujetos que participan. Estas acciones deben formularse de manera que permitan la apropiación gradual e integradora de conocimientos, habilidades y de valores, a favor de una adecuada gestión en la solución de los problemas manifiestos en los diferentes objetos de trabajo con los que interactúa en el ámbito de su desempeño. En resumen, la formación es analizada como proceso y resultado, en el cual, a la vez que el ser humano transforma la realidad, se transforma a sí mismo.

Esta perspectiva del proceso de formación lo conecta directamente con la Teoría de Educación Avanzada, en la que (AÑORGA, 2014), plantea que su finalidad es el mejoramiento profesional y humano, de ahí que se centra en el mejoramiento de los recursos humanos en su desempeño, independiente de la categoría educacional y el nivel terminal educacional alcanzado. Para ello se plantea instruir y educar, teniendo en cuenta los retos del desarrollo científico y socioeconómico, con la apropiación de valores mediante formas académicas y no académicas que favorezcan y propicien la independencia cognoscitiva, el trabajo independiente, la creatividad y la producción de los resultados científicos. En tal sentido, abarca sus implicaciones en el entorno social del individuo donde se destaca su desempeño en la actividad laboral y personal, incidiendo en la transformación de la realidad y de sí mismo.

Lo anterior presupone la aprehensión de un modo de actuación que le permita a los sujetos hacer frente a los problemas evidentes en la práctica de su desempeño. En este sentido, numerosos han sido los investigadores cubanos que han abordado temas asociados al modo de actuación en la búsqueda de soluciones para el mejoramiento del proceso de formación profesional; entre ellos se encuentran (BREIJO, NOVO y GILIMAS, 2021; BERMÚDEZ y TRISTÁ, 2019;

HORRUITINER, 2006). Los criterios de estos autores permiten analizar el modo de actuación como generalización de los métodos de trabajo que se concretan en un

sistema de acciones; actúa sobre el objeto de trabajo para la solución de problemas, lo que suponen la integración de los conocimientos, habilidades y valores que aseguran el desempeño a los fines de la solución de los problemas de la realidad.

En resumen, desde estos referentes se entiende el proceso de formación como las etapas a través de las cuales se prepara a los sujetos en los conocimientos, habilidades, valores y actitudes que les permitan comprender y solucionar los problemas de la práctica laboral con un sentido innovador y creativo. Para ello se significan las potencialidades de organizar dicho proceso atendiendo al modo de actuación en su relación con los objetos de trabajo sobre la base de los problemas de la actividad profesional. Se asume que a partir de las relaciones entre estas categorías (problemas-objetos de trabajo y modo de actuación) se dinamiza el proceso de formación estudiado en la presente investigación.

Con la intención de profundizar en las características del proceso formativo, objeto de la presente investigación, se considera necesario abordar la concepción que se asume sobre medio ambiente.

Acerca del medio ambiente, autores como (MÁRQUEZ et al., 2021a), proponen una concepción sistémica e integradora que lo vincula estrechamente con el desarrollo, al expresar que es:


[...]Un sistema complejo y dinámico, integrado por tres grandes subsistemas: naturaleza, sociedad y economía, que evoluciona a través del proceso histórico de la sociedad, reconociendo como elemento de significativa importancia en su estudio las relaciones entre la sociedad y la naturaleza, así como el papel clave de la cultura en la configuración de dichas relaciones (p. 302).


Desde esta perspectiva sistémica e integradora del medio ambiente, en la que se destacan las interacciones entre sus diferentes aspectos, poniéndose el acento en la vertiente económica y sociocultural, así es la concepción que se asume sobre los problemas ambientales, los cuales no se limitan a cuestiones del entorno natural, sino también del social y el construido, en el que se evidencian la responsabilidad de todos los actores sociales. Constituyen esencialmente, el resultado de la actividad humana, como expresión de las maneras de actuar y de relacionarse los seres humanos entre ellos y con la naturaleza.

Esta concepción sistémica e integradora de medio ambiente lo vincula estrechamente con el desarrollo. Sobre el concepto de desarrollo, según advierten (SOSA et al., 2020), ha evolucionado desde un enfoque cuantitativo, a un concepto más cualitativo, resultando ser más complejo y multidimensional, al procurar “[...] integrar y asociar las dimensiones económica y social con la dimensión ecológica”, como respuesta a “[...] los crecientes problemas ambientales y de los límites impuestos por la naturaleza a la explotación y crecimiento económico descontrolado”. (p.314).

En la actualidad son diversas las definiciones aportadas sobre desarrollo sostenible, apreciándose con la proclamación de los 17 Objetivos de Desarrollo Sostenible (ODS) en el marco de la nueva Agenda 2030, la evolución que ha experimentado este concepto, el cual ya ha trascendido la mera noción de crecimiento económico, al conjugar las tres dimensiones básicas del desarrollo: natural, social y económica.

Con relación a la dimensión ambiental los estudios de (UTRIA, 1986), citado por Ortiz y Alejandre (2020), expresan que impregna a todas las demás dimensiones del desarrollo, a la vez que sobre ella se reflejan todas éstas, de ahí que cada acción relativa a la economía y a la sociedad debe atender a la protección de los recursos naturales. En tal sentido, se reconoce a la dimensión ambiental como elemento transversal en la gestión sostenible de las políticas públicas en función del desarrollo local.

Sin embargo, según apunta Asín (2006), uno de los problemas presentes en la mayoría de las administraciones es que en todas ellas se practica la baja o nula transversalidad ambiental. En consecuencia, se hace necesario profundizar en la integración de las consideraciones ambientales en todas las políticas públicas, en tanto “[...]debe ser una política transversal que impregne la forma y el fondo de todas las políticas públicas para hacerlas más sostenibles”. (p.3).

Desde este planteamiento se fundamenta el carácter transversal de la dimensión ambiental en el desarrollo local, y la prioridad que representa para estos fines el logro de una adecuada gestión ambiental. Con esta intención se requiere dotar a los FG del Poder Popular de conocimientos, habilidades y valores asociados a la gestión ambiental, para que desde sus funciones de dirección, coordinación y

control contribuyan a la solución de los problemas ambientales manifiestos en las comunidades de conjunto con los actores locales claves, lo que incidirá favorablemente en su desempeño en el ámbito laboral y personal.

La gestión ambiental surge en la década de los sesenta como consecuencia de los altos niveles de contaminación producto de la industria (FLYNN, 2017) y el detrimento considerable de los recursos naturales y la salud humana (MARTÍNEZ y FIGUEROA, 2014). Es así que la gestión ambiental suele asociarse, especialmente, con el mundo empresarial productivo, las grandes industrias contaminantes, las extractivas y las grandes infraestructuras, entre otros agentes. No obstante, se reconoce también que la gestión ambiental implica a las administraciones públicas y, directamente, a los ciudadanos. (MUÑOZ, CASTRO y CRUZ, s.f). En opinión de Soler (2013), “[...]es el mecanismo estatal mediante el cual se logra la intervención del poder político público en el ámbito medioambiental y que procura la búsqueda de un desarrollo sostenible” (p. 15).

Muy relacionado con estos criterios, Pol Urrutia (2004), se refiere a una concepción de la gestión ambiental como toma de decisiones estructurada intencionalmente, con una visión proambiental orientada a un desarrollo más sostenible, Por otra parte, el OBSERVATORIO AMBIENTAL DE BOGOTÁ (2017), considera a la gestión ambiental, como proceso que está orientado a resolver, mitigar y/o prevenir los problemas de carácter ambiental, con el propósito de lograr un desarrollo sostenible.

Atendiendo a estas definiciones, y a los efectos de esta investigación orientada a la formación ambiental del FG del Poder Popular, se reconoce que en el concepto de gestión ambiental se integra la dimensión administrativa que tiene que ver con los procesos administrativos típicos como la planificación, coordinación, dirección y evaluación; y la dimensión ambiental relacionada con todas aquellas acciones que propician la protección del medio ambiente, lo cual constituye el elemento que lo diferencia de otros tipos de gestión (MÁRQUEZ et al., 2021b).

Se asume una concepción de la gestión ambiental que la analiza como proceso estructurado de manera sistémica, gradual, orientado a resolver, mitigar y/o prevenir los problemas ambientales con la aspiración de lograr un desarrollo sostenible.

Sobre la base de este reconocimiento, se deriva la idea de fundamentar el proceso de formación ambiental del funcionario gubernamental del Poder Popular, atendiendo a la dinámica de la gestión ambiental como actividad generalizadora, que les permita incidir en el mejoramiento de las condiciones ambientales de las comunidades. Para ello se significa su formación orientada a fomentar la participación de la población en la solución de los problemas ambientales que afectan el desarrollo de la comunidad.

El concepto de participación es clave en la concepción de un proceso de formación ambiental atendiendo a la gestión ambiental, pues se considera que es un método de trabajo que debe guiar la identificación de los problemas y necesidades, sus posibles soluciones, así como la planificación, desarrollo y evaluación, de las principales acciones que se ejecutan en la demarcación (Ley # 91 de los Consejos Populares, 2000).

Tomando en cuenta estos referentes ambientales, y en comunión con lo explicado sobre la categoría formación, se pasan a abordar concepciones que se asumen sobre la formación ambiental.

Desde esta perspectiva, a modo de sustentar la necesidad de contribuir al proceso de formación ambiental de los funcionarios gubernamentales del Poder Popular, se asumen como referentes teóricos los aportes de Novo (1998), acerca de que la formación ambiental es “[...] una educación especializada que se dirige a un grupo restringido de profesionales” "[...] los altos funcionarios, planificadores y gestores que tienen a su cargo la elaboración de las grandes directrices políticas y la toma de decisiones” (p. 14).

La formación ambiental ha sido abordada por diferentes investigadores en el contexto internacional y nacional (MEJÍAS et al., 2022; RIVERO, 2022; PANEQUE et al., 2020; CORBETTA, 2019; CÓNDOR, 2018; MÁRQUEZ et al., 2017), por citar

algunos. Entre los elementos significativos aportados por estos autores sobre la formación ambiental, se advierte el criterio de Mejías et al., (2022), quienes definen la formación ambiental en el contexto de la formación de docentes en los siguientes términos “[...]el proceso gradual, permanente holístico e integrador que se da en todos los espacios y componentes de la formación universitaria.” (p.119) De ahí su consideración como dimensión de la formación profesional.

Relacionado con este enfoque, Márquez, Casas y Jaula (2017), conciben la formación ambiental en el ámbito universitario como proceso secuenciado en etapas, a través de las cuales el profesional adquiere su plenitud desde lo instructivo, educativo y desarrollador, en función de la transformación de la realidad y sobre la base de los problemas ambientales, con la intención de fomentar la toma de conciencia y la responsabilidad en su solución. Para tales fines sostienen que el objetivo de este proceso es la gestión ambiental.

Muy relacionado con este criterio, Mejías et al., (2022), a partir de una sistematización teórica realizada, reconocen las siguientes dimensiones a considerar en el estudio de la formación ambiental: cognitiva, procedimental y actitudinal.

Sobre la dimensión cognitiva, Mejías et al., (2022), refieren que abarca el sistema de conocimientos (conceptos, categorías, relaciones) ambientales necesarios para gestionar la formación ambiental, lo cual se enfoca en la interpretación del medio ambiente como sistema, la argumentación de la problemática ambiental, sus causas y consecuencias.

Con respecto a la dimensión procedimental, se comparte el criterio de Mejías et al., (2022), al considerar que contempla el modo de actuación que permite detectar problemas y trabajar en la búsqueda de su solución. Y en cuanto a la dimensión actitudinal, Martos y Medina (2022), explican que comprende lo cognitivo referido a las creencias, conocimientos o ideas sobre el objeto de actitud; lo afectivo que viene a ser los sentimientos de valoración positiva o negativa, y lo conductual expresado en las acciones que tienen las personas de acuerdo a los estímulos externos que reciben.

En este sentido, la actitud, es expresión de una formación ambiental, a través de la cual se facilita la adquisición de conocimientos, el desarrollo de habilidades, la apropiación de valores que se evidencian en el comportamiento positivo del individuo. De ahí que, comprende la relación de los seres humanos con su entorno, y como parte de este, muestra disposición a participar en acciones que propicien la protección del medio ambiente a partir de lo que conoce y siente.

Muy relacionado con estos estudios, Márquez et al., (2018), reconocen la proyección social o comunitaria de la formación ambiental, señalando el papel clave

de la comunidad por constituir un espacio propicio para demostrar y sistematizar las competencias adquiridas a través de este proceso.

De esta manera, la formación ambiental es considerada un proceso formativo que debe ocurrir tanto en la dimensión curricular y extracurricular, reconociendo las potencialidades de esta última, al permitir que los sujetos implicados sistematizar conocimientos, habilidades y valores, en vínculo con los actores sociales y los problemas que lo afectan, a la vez que contribuyen a la transformación de la realidad ambiental. Con esta intencionalidad, Márquez, Casas y Jaula (2017), sostienen que el objetivo de la formación ambiental en los profesionales es la gestión ambiental, lo que implica en opinión de los citados autores, la secuenciación de las acciones de diagnóstico ambiental participativo, investigación ambiental, diseño, ejecución y evaluación de propuestas para la prevención, mitigación o solución de los problemas ambientales manifiestos en un determinado contexto.

En correspondencia con estos referentes se determinan los siguientes elementos claves que caracterizan la formación ambiental:

[...]su carácter sistémico, gradual e integral, a través del cual los sujetos se apropian o refuerzan valores que le permiten actuar de manera responsable, así como los conocimientos imprescindibles sobre el medio ambiente y las capacidades para diagnosticar, planificar, ejecutar y evaluar soluciones, a fin de transformar la realidad ambiental donde interactúa y tributar al cumplimiento de su encargo social. (MÁRQUEZ et al., 2023).


Bases teóricas que sustentan proceso de formación ambiental de Directivos Gubernamentales del Poder Popular


En comunión con los referentes teóricos explicados anteriormente, se determinan bases teóricas desde las Ciencias de la Educación, en tanto el objeto de la presente investigación es un proceso de formación.

Todo proceso pedagógico descansa en una concepción filosófica determinada, ello constituye el punto de partida esencial para organizar la actividad pedagógica. Al respecto, se parte de considerar las bases filosóficas que sustentan el proceso de formación ambiental de Funcionarios Gubernamentales del Poder Popular, reconociendo para ello las contribuciones de la teoría marxista-leninista sustentada en el método materialista-dialéctico. Este método constituye la base

teórica y metodológica fundamental de la investigación. Lo anterior permitió el análisis integral del proceso estudiado, determinando las relaciones principales de tipo dialéctico que lo caracterizan, así como la consideración de aspectos esenciales para su desarrollo.

Desde la Sociología de la Educación se asume las concepciones planteadas por Blanco (2001), que analiza el proceso de formación ambiental en vínculo con el contexto histórico-social, y su papel clave en la transformación de la problemática ambiental. Esta perspectiva teórica fundamenta la prioridad de concebir un proceso de formación ambiental del FG sustentado en la necesidad de dar respuesta a la problemática ambiental, que los prepare en la construcción e implementación de soluciones con la concertación de las diferentes estructuras radicadas en la comunidad: gobierno local, instituciones, empresas, organizaciones políticas y sociales.

Como bases psicológicas, se reconoce el Enfoque Histórico Cultural del soviético Lev S. Vigotsky (1896-1934), que se fundamenta en el materialismo dialéctico e histórico, señalando entre sus aportes fundamentales a los efectos de la presente investigación, la consideración de un sujeto activo, transformador de la realidad y de sí mismo; el papel rector de la educación en el desarrollo; el concepto de la Zona de Desarrollo Próximo (ZDP). Desde esta perspectiva el proceso de formación ambiental del FG del Poder Popular debe concebirse de manera tal, que asegure las condiciones para que dicho funcionario logre contribuir en la solución de las problemáticas ambientales del territorio mediante la actividad conjunta y la comunicación.

De la teoría de Vigotsky, A. N. Leontiev (1903-1979), uno de sus más importantes seguidores, retoma el papel fundamental que tiene la actividad en el desarrollo psíquico del hombre para elaborar una teoría general de la actividad (1981). Desde esta teoría se significa específicamente lo relacionado con su estructura, en tanto se considera esencial a los fines de concebir un proceso de formación ambiental con un carácter sistémico y contextualizado.

Otro concepto elaborado por Leontiev, que en opinión de Bernaza, Addine y Gonzáles (2020), ha jugado un papel importante, es el de la actividad rectora o

principal. Según estos autores esta actividad dirige el desarrollo de una determinada etapa y sobre cuya base se forman y se diferencian nuevos tipos de actividad.

Atendiendo a este presupuesto teórico, se analiza el modo de actuación para la solución de los problemas ambientales como actividad rectora o principal que orienta al proceso de formación ambiental, resultado de la sistematización e integración de acciones y operaciones, donde cada acción que lo conforma se constituye a su vez, en una actividad rectora que configura una nueva etapa en el desarrollo del modo de actuación. De ahí que como resultado de estas interacciones resulta el modo de actuación que se constituye en la actividad generalizadora.

En este proceso de sistematización e integración de acciones y operaciones para el desarrollo del modo de actuación, se significa la categoría ZDP. Es en esta distancia entre el nivel de desarrollo actual y el nivel de desarrollo potencial en el que se expresa la ZDP que debe actuar el proceso de formación ambiental, favoreciendo la apropiación e integración de saberes en el orden cognitivo, procedimental y actitudinal, que le permitan a los sujetos aplicar un modo de actuación para la solución de los problemas ambientales en interacción con los demás actores involucrados.

En correspondencia con lo abordado hasta aquí, como bases pedagógicas y didácticas se parte de considerar la Teoría de los Procesos Conscientes de Carlos Álvarez. De esta Teoría se asume la concepción de una formación ambiental con carácter sistémico que enfatiza en su vínculo con la sociedad, así como en las relaciones de derivación e integración entre los distintos componentes que caracterizan el proceso (problema, objeto, objetivo, contenido, método, medios, formas y evaluación), los cuales se pueden manifestar en la confección de cualquier plan o programa de estudio que se diseñe, apoyándose para ello en las leyes inherentes a dicho proceso. Estas bases teóricas se asumen por adaptarse a la concepción de un proceso formativo (no escolarizado).

Desde la teoría de Carlos Álvarez también se reconoce el papel del modo de actuación en el proceso de formación para la solución de los problemas que se presentan en el objeto de trabajo. En este sentido, el modo de actuación es considerado la expresión estructural de dicho proceso.

Por su parte, el objeto de trabajo queda definido en la Teoría de los Procesos Conscientes, como aquella parte de la realidad objetiva sobre la que recae la acción del profesional y donde se manifiestan los problemas. Este objeto es modificado durante la ejecución del modo de actuación. Las relaciones tríadicas entre problema-objeto de trabajo y modo de actuación, las cuales se concretan en el objetivo, se significan en la presente investigación, a fin de garantizar un proceso de formación ambiental que sea sistémico, integrador y eficiente.

A tono con estas concepciones se significa también el Modelo de Diseño Curricular sobre la Base de la Lógica Esencial de la Profesión, desarrollado por Fuentes y Mestre (1997), a partir del cual se asume el modo de actuación como hilo conductor del proceso que se estudia, sobre la base de los problemas ambientales, lo que permite determinar los objetivos generales, y a partir de estos, las invariantes en el orden cognitivo, procedimental y actitudinal que caracterizan el proceso de formación ambiental del FG.

Complementa los presupuestos pedagógicos explicados, la teoría de la Educación Avanzada, en tanto los sujetos a quienes se orienta la presente investigación, “[...]no están sometidos a un proceso educativo escolarizado que ofrezca un nivel terminal,” (AÑORGA, 2012 citado por CARDOSO, et al., 2022, p. 2). Coherente con esta teoría, el proceso de formación ambiental del FG del Poder Popular se orienta al mejoramiento profesional y humano, por lo que se construye en función de garantizar un desempeño que les permita a los sujetos hacer frente a los problemas ambientales tanto en el ámbito laboral como en lo personal.

Para ello, como proceso pedagógico que se organiza desde las concepciones de la Educación Avanzada se rige por los componentes, principios y leyes de la Didáctica, orientado a la actualización y profundización de conocimientos, habilidades y de valores, ponderando la utilización de los métodos de trabajo en equipos, la discusión y el debate. Todo lo cual conduce a la apropiación de un modo de actuación a partir de la actividad y la comunicación, sustentado en el vínculo de la teoría con la práctica.

Muy relacionado con este paradigma, desde la teoría de la Didáctica Desarrolladora de Díaz (2016), se analiza en el proceso de formación del FG el modo de actuación para la solución de los problemas ambientales, como un modo

de actuación transversal atendiendo a la misión de estos sujetos en el ámbito de su desempeño. Lo anterior es resultado también de los análisis aportados desde el análisis teórico y conceptual realizado al objeto de la presente investigación, que reconocen a la dimensión ambiental como elemento transversal en la gestión sostenible de las políticas públicas en función del desarrollo local.

En este sentido se asume el enfoque sobre transversalidad abordado por Simões, Yanez y Álvarez (2019). Estos autores analizan los problemas ambientales como tema transversal por su trascendencia social, política, económica, entre otras, lo que requiere de un modo de actuación que asegure una toma de posición personal y colectiva para su solución. “[...]Constituyendo así, como fundamentos para la práctica pedagógica al integrar los campos del ser, el saber, el hacer y el convivir a través de conceptos, procedimientos, valores y actitudes que orientan al proceso pedagógico.” (SIMÕES, YANEZ y ÁLVAREZ, 2019, p. 28).

Desde esta concepción de lo transversal se significan las aportaciones de Leff (1998), sobre la interdisciplinariedad como enfoque esencial a tener en cuenta en el proceso de formación ambiental. La interdisciplinariedad garantiza la sistematización e integración de saberes en el orden cognitivo, procedimental y actitudinal con vistas a que los sujetos se apropien de un modo de actuación en vínculo con la realidad ambiental. De esta forma, en la medida en que se potencian relaciones interdisciplinarias se va avanzando en una formación transversal que asegura el dominio del modo de actuación para la solución de los problemas ambientales locales.

Un fundamento teórico imprescindible del proceso de formación ambiental del FG, radica en los postulados de la emergente Pedagogía Ambiental aportados por autores como Leff (1998), Tovar (2017), Moscovo y Garzón (2017). Atendiendo a estos autores en el desarrollo del proceso estudiado es necesario tener en cuenta la interacción de los sujetos con la realidad ambiental, fomentando la conciencia y la construcción colectiva de soluciones a los problemas desde la experiencia concreta con el medio físico y social.

Consideraciones finales


La sistematización teórica realizada, permitió argumentar la necesidad de concebir el proceso de formación ambiental de FG del Poder Popular con un carácter sistémico, integral y participativo, enfocado a gestionar la solución de los problemas ambientales como parte del cumplimiento de su misión social.

El proceso de formación ambiental de FG del Poder Popular se sustenta en referentes y bases teóricas que aportan los siguientes aspectos esenciales a considerar en este proceso:


Concepción sistémica e integradora del medio ambiente.


El reconocimiento de la importancia de desarrollar este proceso


formativo atendiendo a la gestión ambiental como modo de actuación para la solución de los problemas ambientales existentes, lo que permitirá determinar los saberes en el orden cognitivo, procedimental y actitudinal, a favorecer su apropiación en vínculo con los actores sociales de la comunidad.

La comunidad, como espacio vital para demostrar y consolidar este proceso de formación.

Carácter gradual, interdisciplinar y transversal.


Participación social.


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EDUCACIÓN, INDIANISMO Y SOCIALISMO: LA ESCUELA AYLLU DE WARISATA (1931-40) Y LAS ESCUELAS INDÍGENAS DE ECUADOR (1944-63)12


J. Fabian Cabaluz Ducasse3


Resumen

En el presente artículo, trabajaremos de manera acotada, dos importantes experiencias educativas históricas que articulan idearios y prácticas de raigambre indianista y socialista. Para ello, analizaremos la Escuela Ayllu de Warisata desarrollada en Bolivia durante gran parte de la década de los treinta; y la experiencia de las escuelas indígenas desarrolladas en Ecuador entre los años 1944 y 1963.

Palabras clave: educación; indianismo; socialismo; escuelas indígenas


EDUCAÇÃO, INDIANISMO E SOCIALISMO: A ESCOLA AYLLU DE WARISATA (1931-40) E AS ESCOLAS INDÍGENAS DO EQUADOR (1944-63)


Resumo

Neste artigo tratamos de modo resumido acerca de duas importantes experiências históricas educacionais que articulam ideias e práticas de raízes indianistas e socialistas. Para isso, analisamos a Escola Ayllu de Warisata desenvolvida na Bolívia durante grande parte da década de 1930; e a experiência das escolas indígenas desenvolvidas no Equador entre 1944 e 1963.

Palavras-chaves: educação; indianismo; socialismo; escolas indígenas


EDUCATION, INDIANISM AND SOCIALISM: THE AYLLU SCHOOL OF WARISATA (1931-40) AND THE INDIGENOUS SCHOOLS OF ECUADOR (1944-63)


Abstract

In this article, we will work in a limited way on two important historical educational experiences that articulate ideas and practices of Indianist and socialist roots. To do this, we will analyze the Ayllu School of Warisata developed in Bolivia during much of the 1930s; and the experience of indigenous schools developed in Ecuador between 1944 and 1963.

Keywords: education; indianism; socialism; indigenous schools


1 Artigo recebido em 17/07/2023. Primeira Avaliação em 19/07/2023. Segunda Avaliação em 11/08/2023. Aprovado em 10/10/2023. Publicado em 22/02/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.59238

2 Extracto del libro: Cabaluz, Fabian (2022). Educación y marxismo latinoamericano. Ensayos de pedagogía crítica para proyectos emancipadores. Editorial El Colectivo, Buenos Aires, Argentina.

3 Doctor en Estudios Latinoamericanos por la Universidad de Chile - Chile. Investigador del Proyecto ANID, Convocatoria Nacional Subvención a Instalación en la Academia (Convocatoria año 2021, Folio SA77210044) en la Universidad de Playa Ancha, UPLA - Chile. Contacto: fabiancabaluz@gmail.com y fabian.cabaluz@upla.cl. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0398-7819.

La Escuela Ayllu de Warisata, Bolivia (1931 - 1940)


La experiencia de educación indígena más importante de la década de los treinta del siglo pasado fue la Escuela Ayllu de Warisata en Bolivia, la cual logró avanzar en la articulación de principios educativos descolonizadores con principios y postulados educativos asociados al campo socialista. Dicha experiencia fue liderada por el maestro normalista y militante del partido comunista Elizardo Pérez4 y por el indígena, campesino y educador quechua Avelino Siñani. Elizardo Pérez será el fundador y primer director de la escuela, pero sus logros hubieran sido imposibles sin el trabajo de Avelino Siñani quien, según señalan diferentes fuentes, apenas manejaba el alfabeto y su castellano era elemental, sin embargo, su cultura era la de un verdadero amauta. Siñani desde algunos años antes de la existencia de la Escuela Ayllu de Warisata había fundado una escuela indígena, con la que pretendió robustecer los conocimientos y saberes de las comunidades, enseñaba el castellano a los/as niños/as y colaboraba con los procesos de liberación del indio. Es muy importante señalar que Avelino Siñani, fue quien convenció a cada familia de la comunidad de Warisata sobre la importancia de integrarse a la escuela, donó sus tierras a la causa y se comprometió hasta el último de sus días con su defensa5 (Pérez, 2011).

Desde sus primeros días de existencia, la Escuela Ayllu de Warisata se posicionó explícitamente contra la explotación del indio, es decir, en contra del sistema de “pongueaje” como forma de explotación del trabajo indígena, y en solidaridad con los procesos organizativos y de lucha de liberación de las comunidades, pueblos y naciones indígenas. Los abusos que vivía la población indígena eran brutales, exacciones, multas, encarcelamiento, arrestos policiales injustificados, flagelamientos, despojo de tierras, golpizas, entre otras. Contra toda la violencia del sistema de “pongueaje” se debió enfrentar “la taika” (o madre) como familiarmente se referían los


4 Según señaló Salazar Mostajo (1986), Elizardo Pérez junto con otros educadores y maestros de la escuela creían firmemente en que el camino de la revolución requería avanzar en la alianza obrero-campesina, lo cual suponía un complejo trabajo de organización y construcción de los instrumentos de acción política de cada uno de los sujetos de la alianza. Es decir, según el autor, la Escuela Ayllu de Warisata colaboró con la organización de la población indígena boliviana robusteciendo particularmente el polo campesino-indígena.

5 Avelino Siñani murió el 31 de enero de 1941, a los pocos meses de la destrucción de la Escuela Ayllu, perseguido por las autoridades educativas, traicionado por algunos integrantes de la comunidad y en estado de pobreza y soledad.

indígenas a la escuela. Por lo mismo, Salazar Mostajo (1986), uno de sus profesores, sostuvo:

Warisata era el indio que empezaba a luchar por sus derechos que le habían sido negados durante cuatro centurias, era el dedo acusador de la historia, del esclavo que se levanta, ya no en un estallido pasajero de cólera, como alzado, como sublevado, sino en forma organizada y coherente, para que ese nunca extinguido anhelo de libertad se convirtiese en movimiento, y se incorporara así a la senda histórica de la revolución (MOSTAJO, 1986, p. 71-72).


Entre los fundamentos que sustentaron la experiencia de la Escuela Ayllu se pueden destacar los siguientes: primero, era una escuela preocupada de la integralidad, es decir no se preocupaba solamente de aspectos educativos, sino que también económicos, políticos, culturales, por lo mismo, el nombre de escuela-ayllu, pues con ello significaban toda la riqueza de la vida comunitaria; segundo, se apostaba por una “escuela única” entendida como coherencia y continuidad en las diferentes etapas de la educación de un estudiante6; tercero, entendían que la relación entre la escuela y la comunidad era fundamental, la escuela debía enseñar, defender, luchar y cooperar siempre de la mano de la comunidad, del ayllu; cuarto, se comprometían con una “escuela productiva” que fuera capaz de articular los aprendizajes del aula, con los talleres productivos y las actividades agrícolas; quinto, se ejercía el principio de la cooperación (ayni, achokalla y/o mincka) sobre todo entendido como trabajo colectivo en tareas y obras que beneficiaban a toda la comunidad (MOSTAJO, 1986; PÉREZ, 2011).

Intentando caracterizar la Escuela Ayllu de Warisata nos interesa señalar tres grandes elementos. El primero de ellos, refiere a la gestión o el gobierno escolar, el cual surgió vinculado a las formas de organización y autoridad de las comunidades indígenas, lo que en el caso de Warisata se materializó en la reconstrucción de la ulaka aymara-quechua o del “Parlamento Amauta”, en el cual participaban representantes de todas las Jathas (unidades territoriales). A partir de lo anterior, Elizardo Pérez se refirió a la existencia de un auto-gobierno en Warisata, cuyo órgano central era el Parlamento


6 Es interesante señalar que la noción de “Escuela única” fue tomada por Elizardo Pérez del libro de José Carlos Mariátegui titulado “La escena contemporánea”, texto que a propósito del legado de Anatoli Lunacharsky, refiere a la idea de “escuela única” en la rusia revolucionaria (MOSTAJO, 1986).

Amauta, presidido por Avelino Siñani, espacio que no sólo decidía colectivamente en torno a temas educativos, sino que también a cuestiones económicas, comerciales, de justicia comunitaria, entre otros. El “Parlamento Amauta” se configuró como el espacio deliberativo para resolver todos los temas de la comunidad, de esta forma, se construyó una experiencia única, que re-creaba la educación escolar, a partir de las formas de organización política y las estructuras de autoridad de las comunidades.

Un segundo elemento característico de la Escuela Ayllu de Warisata refiere a los saberes y conocimientos promovidos allí. Al respecto, se puede señalar que Warisata era una escuela bilingüe y mixta, en el aula se trabajaban conocimientos asociados a las matemáticas, geografía, historia, música, artes, educación física, ciencias naturales; estos conocimientos se articulaban con los de los talleres, destinados a la construcción de la escuela y las viviendas (carpintería, mecánica, herrería, cerrajería, adobe, tejas, ladrillos, estuco, etc.) y talleres7 que producían insumos para ser comercializados (sastrería, costura, hilados, tejidos, zapatería, etc.); y los conocimientos y aprendizajes del aula y los talleres se articulaban con el trabajo de la tierra, asociada a la actividad agrícola, el cultivo de la tierra y la ganadería. La producción del trabajo de la tierra y de los talleres permitía que se abastecieran cerca de 200 niños/as y jóvenes que vivían en régimen de internado en la escuela. Para quienes lideraban la experiencia de la Escuela Ayllu, la educación no podía restringirse a la enseñanza del mundo letrado, sino que debía irradiar acción vital, debía procurar la educación integral de los sujetos, debían enseñarse la cultura y lenguas propias, la escuela debía colaborar con el desarrollo económico y social de las comunidades, para lo cual eran centrales las actividades agrícolas y los talleres de producción, organizados de acuerdo a las necesidades y características de la zona (carpintería, albañilería, tejería y herrería, entre otras). Considerando lo anterior, la Escuela Ayllu de Warisata, fue una experiencia educativa que logró articularse con el trabajo productivo, tensionando de paso, la división social del trabajo y generando un modelo de escuela autosustentable y autogestionado.

Y una tercera característica de enorme relevancia remite a la de la relación de la Escuela Ayllu con la comunidad. Al respecto se debe señalar que la escuela fue

7 Elizardo Pérez (2011) señaló que el antecedente de la existencia de talleres en los espacios escolares la conoció del legado de Simón Rodríguez.

levantada con el trabajo de las comunidades indígenas, y por supuesto, que también con el trabajo de los/as educadores/as, todos quienes además de contribuir con largas y extenuantes horas de trabajo, colaboraron con materiales de construcción y herramientas. Una vez funcionando, la escuela fomentó todas las expresiones culturales, rituales, festivas, religiosas (aunque se declaraba laica), etc. de las comunidades indígenas. La Escuela Ayllu se sumó a la organización y desarrollo del carnaval de Warisata, creó el mercado de Warisata, constituyó al menos tres grandes clubes deportivos (Kantuta, Juárez y Ollanta), impulsaron campañas de sanidad e higiene en el territorio, actividades recreativas, entre muchas otras. La escuela fue un verdadero polo de desarrollo cultural y comunitario desde el cual adicionalmente se crearon cancioneros, obras de teatro, libros de poesía, conjuntos de música tradicional, torneos deportivos, publicaciones de periódicos, boletines y un verdadero conjunto de actividades culturales, recreativas, artísticas, etc. (MOSTAJO, 1986; CANQUI; QUISBERT, 2006; PÉREZ, 2011).

La experiencia de Warisata se expandió inicialmente por diferentes territorios de Bolivia, constituyendo un conjunto de 23 “núcleos escolares”, las cuales funcionaban como escuelas elementales que se vinculaban a partir de lógicas de reciprocidad y cooperación con la escuela matriz de Warisata. Todas estas experiencias compartían sus formas organizativas, sus principios y fundamentos, sus planes y programas de estudio, formas de producción y autoabastecimiento, etc. Según la propia impresión de Elizardo Pérez, unas pocas de estas experiencias fracasaron, pero la mayoría probó un desarrollo impresionante. Con posterioridad a esta expansión nacional, la experiencia de la Escuela Ayllu de Warisata se expandió por América Latina, siendo clave para ello la realización del Primer Congreso Indigenista Interamericano desarrollado en La Paz, con la participación de delegados/as y representantes de México, Perú, Ecuador, Guatemala y casi todos los países de América Latina. En dicho congreso se aprobaron numerosas indicaciones asociadas a la educación indígena que estaban completamente alineadas con la experiencia de Warisata, y a su vez, permitió visibilizar y compartir la experiencia con referentes políticos y pedagógicos de la región. Su influencia será evidente en diferentes políticas de educación indígena impulsadas en

México y Centroamérica durante las décadas de los cuarenta y cincuenta (MOSTAJO, 1986; PÉREZ, 2011).

Desde sus primeros años de existencia, la Escuela Ayllu de Warisata fue duramente agredida por los hacendados, terratenientes, gamonales y la oligarquía en su conjunto, todo lo cual se tradujo en abusos y hostigamientos a profesores, estudiantes y campesinos-indígenas, en el despojo de tierras y bienes ocupadas por la escuela, en el robo de cosechas, arrestos injustificados, golpizas como prácticas de amedrentamiento, el asesinato del profesor Alfonso Gutiérrez, calumnias a través de los medios de comunicación, entre otras. En general, los opositores a Warisata la acusaron de ser una escuela que escondía la construcción de un gran movimiento comunista en el altiplano boliviano y se señaló injuriosamente que era una escuela que ejercía la propaganda comunista. Entre 1937 y 1940 los hostigamientos, persecuciones y agravios contra los integrantes de la Escuela Ayllu fueron creciendo, hasta que en 1940 se congelaron los pagos de sueldos y se intervino la escuela, la cual fue paulatinamente desmantelada y destruida. Se acababa así una de las más importantes experiencias educativas que articulaban principios, postulados y prácticas pedagógicas indianistas con otras de inspiración socialista. Sus postulados descolonizadores y socialistas serán retomados con fuerza durante diferentes momentos del siglo XX y XXI.


Las escuelas indígenas del Ecuador (1944-1963)


Para poder comprender el marco en el cual surgieron las escuelas indígenas, es necesario señalar que la gran mayoría de la población indígena del Ecuador vivía particularmente en haciendas, lugar desde el cual trabajaban la tierra por medio de una modalidad de trabajo conocida como el “concertaje”, forma de explotación del trabajo no-salarial, a cambio de un pedazo de tierra que les alquilaban para poder sembrar y criar animales. Esta porción de tierra se conocía con el nombre de “huasipungo”. Además del trabajo entregado al hacendado, los indígenas debían pagar el diezmo del huasipungo y la primicia de las cosechas a la iglesia. Y aquí es importante señalar que la mayor cantidad de las tierras del país eran propiedad de la iglesia, por tanto, los jesuitas, agustinos, domínicos, entre otras órdenes, eran los principales terratenientes del Ecuador. La vida de la población indígena en las haciendas convivía con la

explotación, la violencia física asociada a castigos y torturas y un conjunto de abusos y tratos vejatorios, además, vivían en chozas completamente precarias, húmedas, pequeñas, hacinadas e insalubres.

A lo anterior, se debe agregar que los/as niños/as y jóvenes indígenas que vivían en las haciendas no tenían posibilidades de acceder a la educación escolar, puesto que si bien, de acuerdo a un decreto de 1899 y a la constitución ecuatoriana de 1906, las haciendas debían contar con escuelas, las que debían ser proporcionadas por los hacendados (se conocían como “escuelas prediales”), en la práctica estas casi no existieron, pues los hacendados se negaban a proporcionar educación a los/as hijos/as de los/as peones, campesinos e “indios concertistas”. Así entonces, la población indígena no tenía posibilidades de aprender a leer y escribir, pues, de hecho, se esperaba que jamás tuvieran acceso al “libro de cuentas” de la hacienda, en el que se codificaban los días de trabajo, las deudas, la producción de la hacienda, etc. Según la información propiciada en el libro de cuentas, los hacendados señalaban faltas de las que se derivaban cobros y castigos físicos. Si alguien osaba acceder al libro podía ser castigado con cepo, cárcel y tortura. Evidentemente, acceder a la lectura y escritura dejaba abierta la posibilidad de luchar contra las atrocidades de la explotación hacendal (CARLOS, 2011; DEL ÁLAMO, 2011; TERREROS, 2015; ARRIOLA; VIGIL, 2017).

En el escenario descrito se debe analizar la vida y obra de Dolores Cacuango (1881-1971) y Tránsito Amaguaña (1909-2009), fundadoras de las primeras experiencias de educación indígena del Ecuador.

Dolores Cacuango provenía de la zona de Cayambé, ubicada alrededor de 75 kilómetros al norte de Quito, trabajó como criada en la hacienda desde muy pequeña hasta que quisieron casarla a la fuerza y se fue a Quito, allí trabajó como “propia”, nombre con que se referían a las trabajadoras domésticas y aprendió a hablar el castellano. Dolores tuvo nueve hijos de los cuales ocho murieron por problemas asociados a las condiciones de pobreza. Desde la década de los veinte participó de movilizaciones, paralizaciones, marchas de la población indígena, las cuales fueron brutalmente reprimidas, sus dirigentes torturados, las chozas de las comunidades quemadas, sus alimentos destruidos. Se vinculó políticamente con el Partido Socialista Ecuatoriano (fundado en 1926), quienes habían avanzado en la constitución de

sindicatos indígenas en Cayambé y en la sierra ecuatoriana, su contacto fue el doctor Ricardo Paredes, quien en 1931 fundaría el Partido Comunista del Ecuador, al cual también se afilió Dolores. Desde su militancia fue aprendiendo a generar organizaciones, a impulsar la creación de sindicatos, a luchar por los derechos indígenas y populares. En 1944 Dolores, fue invitada, como representante del Partido Comunista del Ecuador, al Congreso Latinoamericano de la Confederación de Trabajadores de América Latina (CTAL), realizado en Cali, Colombia, momento en el cual expuso para diferentes dirigentes sociales la situación de los pueblos indígenas del Ecuador. A su vez, Dolores participó de fundación de la Federación Ecuatoriana de Indios (1944), espacio en el que asumió la secretaría general y desde el cual se impulsa la creación de las escuelas indígenas, y también participó en la creación de la Federación de Trabajadores del Litoral, organización constituida fundamentalmente por el pueblo montubio de la costa. Dolores fue una connotada dirigenta del movimiento indígena ecuatoriano, que falleció en completa pobreza el año 1971 (DEL POZO, 1988; ARRIOLA; VIGIL, 2017).

Por su parte, Tránsito Amaguaña (1909-2009), también nació y se crio en Cayambé, toda su vida estuvo signada por la crudeza de la cotidianeidad en las haciendas, trabajó como gran parte de la población indígena de la sierra bajo el régimen de “concertaje”. Su infancia estuvo marcada por situaciones extremas de violencia, pobreza, explotación. Desde su infancia se dedicó al trabajo acompañando a su madre hasta que los patrones la tomaron como sirvienta. Jamás accedió a la escuela ni aprendió a escribir en castellano. Desde muy joven, cerca de los quince años comenzó a luchar por mejorar las condiciones de vida de los indígenas, por la restitución de los derechos sobre la tierra comunales (huasipungos), por la reforma agraria. En este marco, se vinculó a Dolores Cacuango, participó en la creación y fue integrante de la Federación Ecuatoriana de Indios (FEI), del Partido Comunista del Ecuador y de la Federación de Trabajadores del Litoral. En 1963, Tránsito Amaguaña fue la primera mujer ecuatoriana en viajar a la URSS, permaneciendo allí por cerca de cuatro meses, sin embargo, a su retorno fue detenida y encarcelada, acusándola de ser agitadora y comunista y particularmente de traficar armas y dinero ruso para financiar procesos revolucionarios en Ecuador. Al igual que su compañera Dolores, Tránsito

Amaguaña, luchó toda su vida por mejorar las condiciones de vida y conquistar derechos para la población indígena (DEL POZO, 2005; DEL ÁLAMO, 2011; QUINATOA, 2015).

A lo planteado es preciso agregar un breve comentario sobre la Federación Ecuatoriana de Indios, FEI, creada en 1944, ya que desde sus orígenes la Federación estuvo vinculada al Partido Comunista del Ecuador, promoviendo una estrategia política basada en la alianza obrero-campesina, aglutinando en su seno a sindicatos, cooperativas y comunidades. Los principales objetivos de la Federación Ecuatoriana de Indios fueron: la reforma agraria y la devolución de tierras a las comunidades indígenas, la elevación de salarios y reducción de jornada de trabajo, el fortalecimiento de la cultura de las comunidades indígenas y la creación de una educación bilingüe, la ampliación de la democracia en beneficio de la población indígena, la articulación de los indígenas de todo el país y el anhelo por avanzar en articulaciones a escala continental. Ahora bien, realizando un análisis con perspectiva histórica del trabajo realizado por la FEI, se puede sostener que sus focos fueron las luchas por la tierra y la educación, los dos pilares sobre los que se sustentaba el sistema de hacienda (DEL ÁLAMO, 2011; ARRIOLA; VIGIL, 2017).

A partir de lo descrito con anterioridad, se puede comprender la decisión de Dolores Cacuango, María Luisa Gómez de la Torre, Tránsito Amaguaña y Angelita Andrango, por levantar escuelas indígenas en el Ecuador. Crear escuelas indígenas, era un paso para romper con los lazos de dependencia con respecto a la hacienda, podía contribuir a que las nuevas generaciones de indígenas supieran sus derechos, no se dejaran engañar, que tuvieran herramientas para luchar. Así, con el apoyo inicial del Partido Comunista del Ecuador y de la Federación Ecuatoriana de Indios, se fundó en 1943 la primera escuela en Yanahuaico (Pichincha), en la misma casa de Dolores Cacuango, y luego de ello, se crearon escuelas en La Chimba, San Pablo Urco y Pesillo, las que generalmente funcionarían en las propias casas de los/as comuneros/as.

Las escuelas indígenas, se caracterizaron por ser bilingües, es decir, por “enseñar la letra” (el castellano), pero a partir de la lengua materna, el kichwa. La importancia de aprender el castellano era planteada como una herramienta de defensa

contra los abusos de los hacendados y de lucha por la conquista y el reconocimiento de sus derechos. A su vez, las escuelas desde su creación albergaron a niños y niñas, tensionando la odiosa separación sexo-genérica entre hombres y mujeres. Los/as profesores/as de dichas escuelas fueron integrantes de las propias comunidades indígenas, de hecho, el hijo de Dolores Cacuango fue uno de ellos/as. Con esto, se asumía que la educación indígena debía partir de los propios indígenas. Adicionalmente, debemos señalar que en estas escuelas se estudiaban las asignaturas regulares (lenguaje, matemáticas, geografía, historia, ciencias naturales, etc.), pero también se aprendía el cultivo de la tierra, el tejido, las músicas y danzas propias, es decir, se partía del reconocimiento de la cultura y los saberes de las comunidades indígenas y se trabajaban conocimientos occidentales, es por ello que desde la década de los ochenta del siglo XX, serán reconocidas como uno de los primeros antecedentes de “educación intercultural bilingüe”.

Con todo lo anterior, las escuelas indígenas esperaban generar experiencias educativas que, por un lado, superaran las lógicas “asimilacionistas” de las escuelas oficiales, las cuales se preocupaban particularmente de castellanizar e inculcar las concepciones de mundo y valores occidentales, perseguían el objetivo de “unificar a la nación”, pero negando o excluyendo las lenguas y culturas de las comunidades, pueblos y naciones indígenas. Y por otro lado, se esperaba que no replicaran el trato recibido por los/as niños/as y jóvenes indígenas en las escuelas “oficiales”, el cual se caracterizaba por ser discriminatorio, humillante, maltratador, denigrante.

Para finalizar este escueto relato, debemos agregar que las escuelas indígenas promovidas principalmente por Dolores Cacuango y Tránsito Amaguaña, fueron duramente perseguidas y reprimidas, fueron consideradas como escuelas subversivas, como espacios de formación de comunistas. Los hacendados y mayordomos hostigaban y maltrataban a quienes tenían algún tipo de vínculo con las escuelas (profesores/as, familias y estudiantes). Para resguardar las clases, las escuelas funcionaban en forma “clandestina”, por las noches, en las chozas de la comunidad, se rotaban y tenían mesas y sillas que rápidamente podrían esconderse. Adicionalmente, se debe señalar que algunos profesores también se quejaron por las medidas de las comunidades indígenas, pues fueron acusadas de ser escuelas que no contaban con

infraestructura y los/as profesores/as no tenían los estudios pertinentes. A pesar de lo anterior, las escuelas indígenas pervivieron durante 18 años, y su ocaso se debió fundamentalmente a tres factores: Dolores Cacuango comenzó a sufrir problemas de salud producto de su avanzada edad y de la dureza de su vida, lo que implicó un distanciamiento del trabajo con las escuelas; la Federación Ecuatoriana de Indios comenzó a perder fuerzas y desgastarse; y finalmente la dictadura militar, instalada desde 1963, las acusó de ser “focos comunistas”, cerrando la última de ellas durante ese mismo año. A pesar de su desaparición, las escuelas indígenas sentaron un referente fundamental para las escuelas bilingües e interculturales levantadas durante la década de los ochenta por la Confederación de Nacionalidades Indígenas del del Ecuador, CONAIE (CARLOS, 2011; DEL ÁLAMO, 2011; TERREROS, 2015; ARRIOLA; VIGIL, 2017).


Referências


ARRIOLA, T.; VIGIL, J. I. L. Dolores Cacuango: La Pachamama habló por su voz. Quito, Ecuador: Fundación Rosa Luxemburgo, 2017.

CANQUI, R. C; QUISBERT, C. Educación indigenal en Bolivia. Un siglo de ensayos educativos y resistencias patronales. La Paz-Bolivia: Unidad de Investigaciones Históricas UNIH-PAKAXA, 2006. Disponible: https://dds.cepal.org/redesoc/publicacion?id=325 Accedido en Abril de 2015.

CARLOS, A. F. Intelectuales indígenas ecuatorianos y sistema educativo formal: entre la reproducción y la resistencia. Revista Isees, núm. 9, (2011): pag. 21-39. Disponible:file:///C:/Users/renne/Downloads/DialnetIntelectualesIndigenasEcuatorianosY SistemaEducativ-3777502%20(1).pdf. Accedido en Junio de 2016.

DEL ÁLAMO, O. Tierra, educación y lucha política: las mujeres y los procesos organizativos indígenas y campesinos de la sierra ecuatoriana durante la primera mitad del siglo XX. Anuario de Hojas de Warmi, núm. 16, (2011): p.1-28. Disponible: https://revistas.um.es/hojasdewarmi/article/view/156781 Accedido en Julio de 2016.

DEL POZO, J. Y. Mi nombre ha de vivir: y yo me he de ir a mi destino (Tránsito Amaguaña). Género, producción y aprendizaje intercultural en los pueblos andinos. Quito-Ecuador: Editorial Abya Yala, 2005.

DEL POZO, J. Y. Yo declaro con franqueza: Chashnami cansashcanchic. Memoria oral de Pesillo-Cayambé. Quito-Ecuador: Editorial Abya Yala, 1988.

MOSTAJO, C. S. La Taika: Teoría y práctica de la Escuela Ayllu. La Paz- Bolivia: Editorial GUM, 1986.

PÉREZ, E. Warisata: La Escuela Ayllu. La Paz-Bolivia: HISBOL / CERES, 2011.

QUINATOA, T. M. A. El pensamiento indígena de Dolores Cacuango y Tránsito Amaguaña. 2015. Tesis (Doctorado em Antropología Aplicada), Universidad Politécnica Salesiana, Quito-Ecuador. Disponible: https://dspace.ups.edu.ec/handle/123456789/9899. Accedido en Mayo de 2016.

TERREROS, M. I. G. Las escuelas clandestinas en Ecuador. Raíces de la educación indígena intercultural. Revista Colombiana de Educación, núm.69, pag. 75-95. 2015. Disponible: https://www.redalyc.org/pdf/4136/Resumenes/Resumo_413642323006_5.pdf. Accedido en Agosto de 2018.

V.22, no 47, 2024 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799X


MÉXICO: POLÍTICA Y GOBIERNO EN LA CUARTA TRANSFORMACIÓN1


Nayar López Castellanos2


Resumen

En este texto se realiza un análisis sobre los aspectos más relevantes que han caracterizado al gobierno de Andrés Manuel López Obrador en los últimos cinco años. En el contexto de la llamada Cuarta Transformación, México ha transitado por una intensa etapa política en la que se han generado cambios importantes a pesar de no trastocar las estructuras del capitalismo. De igual forma, se ubica el proceso mexicano en el contexto regional destacando diferencias y similitudes con respecto a otros países que han transitado por gobiernos que se ubican del centro hacia la izquierda. Palabras clave: México; AMLO; Izquierda; América Latina.


MÉXICO: POLÍTICA E GOVERNO NA QUARTA TRANSFORMAÇÃO


Resumo

Este texto analisa os aspectos mais relevantes que caracterizaram o governo de Andrés Manuel López Obrador nos últimos cinco anos. No contexto da chamada Quarta Transformação, o México passou por uma fase política intensa na qual foram geradas mudanças importantes, apesar de não perturbar as estruturas do capitalismo. Da mesma forma, o processo mexicano se situa no contexto regional, destacando diferenças e semelhanças com relação a outros países que passaram por governos localizados do centro à esquerda.

Palavras-chave: México; AMLO; Esquerda; América Latina.


MEXICO: POLITICS AND GOVERNMENT IN THE FOURTH TRANSFORMATION


Summary

This text analyzes the most relevant aspects that have characterized the government of Andrés Manuel López Obrador in the last five years. In the context of the so-called Fourth Transformation, Mexico has gone through an intense political stage in which important changes have been generated despite not disrupting the structures of capitalism. Likewise, the Mexican process is located in the regional context, highlighting differences and similarities with respect to other countries that have gone through governments that are located from the center to the left.

Keywords: Mexico; AMLO; Left; Latin America.


1 Artigo recebido em 05/10/2023. Primeira Avaliação em 09/10/2023. Segunda Avaliação em 02/11/2023. Aprovado em 17/01/2024. Publicado em 22/02/2024.

DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.60132

2 Doctor en Ciencia Política por la Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM), México. Profesor Investigador de la Facultad de Ciencias Políticas y Sociales de la Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). Coreo: nayarlp@politicas.unam.mx.

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2572-7516.

Introducción


Transcurridos cinco años (2018-2023) del gobierno de Andrés Manuel López Obrador (AMLO) y la llamada Cuarta Transformación, México atraviesa por un período de claroscuros que resulta perentorio analizar, sobre todo a la luz de las elecciones presidenciales que se llevarán a cabo en junio de 2024 y lo que significan en el plano interno y en clave geopolítica.

Con el antecedente de haber recibido en las elecciones del 2018 más de 30 millones de votos, equivalentes al 53% del total emitido, el arribo de un movimiento de centroizquierda generó enormes expectativas entre importantes sectores de la sociedad mexicana, sobre todo por la fuerza de ese respaldo popular y por haber alcanzado la mayoría en ambas cámaras del Congreso de la Unión. A cinco años, los saldos de la administración determinan un interesante escenario en torno al futuro en el mediano y largo plazo.

Es necesario acentuar que se trata del primer gobierno en la historia de México apoyado por sectores provenientes de la izquierda partidaria integrados en el Movimiento de Regeneración Nacional (MORENA), y, a pesar de la alianza con algunos grupos políticos conservadores ligados sobre todo a iglesias confesionales, las expectativas de cambio generadas en la población fueron amplias, centradas sobre todo en el campo social y en la promesa impostergable de erradicar la corrupción sistémica.

Tras el triunfo, México se consideró como un nuevo integrante de la llamada oleada progresista latinoamericana y caribeña, con lo cual se podía fortalecer no sólo el equilibrio de fuerzas políticas frente a Estados Unidos, sino una abierta posibilidad de ampliar una integración con espíritu soberano. Muchas interrogantes surgieron sobre cómo sería, precisamente, la relación con la Casa Blanca, históricamente caracterizada por una creciente dependencia económica y subordinación política.

Los anteriores gobiernos de la derecha mexicana dejaron un país devastado por el Estado neoliberal impuesto durante el período de Carlos Salinas, quien ocupó la presidencia de forma fraudulenta entre 1988 y 1994. Para 2018, el país estaba inmerso en la violencia, el narcotráfico y la corrupción, además de altos índices de pobreza y desigualdad social. El desafío era inconmensurable para el nuevo

gobierno, no obstante, los compromisos de campaña anunciaban un futuro alentador.

Luego de cinco años de gobierno, y a uno de que termine su período, planteamos en este texto algunos puntos para el análisis. Se trata sobre todo de ofrecer herramientas para hacer un balance de lo acontecido, indudablemente atravesado por la pandemia de la Covid-19 y sus impactos políticos, económicos y sociales, así como por debates y confrontaciones en diferentes frentes de la sociedad, los grupos organizados y las elites políticas y empresariales3


Los saldos políticos del gobierno


En los años transcurridos, López Obrador ha enfrentado a una oposición partidista que lejos de generar planteamientos políticos serios, se ha dedicado a sostener una dinámica de ataques virulentos, muchos difamatorios, que poco daño han causado tanto a su imagen y popularidad como a MORENA, lo cual se ha demostrado en los resultados electorales del período en los que el partido gobernante ha ganado la gran mayoría de los gobiernos estatales y poderes legislativos en disputa, tal y como fue el destacado caso de la principal plaza electoral del país, la gubernatura del Estado de México, que siempre estuvo en manos del ex hegemónico Partido Revolucionario Institucional (PRI).

La derecha mexicana representada por el Partido Acción Nacional (PAN), el PRI y el ex izquierdista Partido de la Revolución Democrática (PRD), se ha sostenido fundamentalmente a través de los medios de comunicación, sobre todo con el respaldo de un grupo de periodistas, con frecuencia, más estridentes que respetuosos de su profesión, y el uso indiscriminado de las redes sociales. Si bien la pérdida del gobierno y de espacios de poder han mermado la capacidad de maniobra de estos partidos y la práctica de la corrupción generalizada, y siempre impune, es un hecho que los poderes fácticos, encabezados fundamentalmente por grandes empresarios, dueños de medios de comunicación y capos del crimen organizado, entre otros actores con los que comparten los mismos intereses, les otorgan el respaldo y la proyección necesaria para mantenerse en el circuito político

3 Este artículo se elaboró en el marco de la investigación del Proyecto PAPIIT IN307921 Crisis societal, colapso ecológico y modelos emergentes en el Gran Caribe, apoyado por la DGAPA de la UNAM.

nacional. Un ejemplo muy particular es el de Claudio X. González, hijo del empresario Claudio X. González Laporte, dueño de Kimberly-Clark de México y quien fue líder del Consejo Mexicano de Negocios y del Consejo Coordinador Empresarial (CCE). El controvertido abogado ha fundado algunas organizaciones civiles de corte abiertamente conservador que en realidad han acompañado las políticas neoliberales de los gobiernos anteriores, además de convertirse en uno de los principales detractores de AMLO y promotor de la derecha opositora.

A pesar de recuperar un importante protagonismo del Estado en el manejo de áreas estratégicas de la economía, como es el caso de la nueva empresa que opera la extracción del litio y la reconstrucción de la estructura de refinerías de Petróleos Mexicanos (PEMEX), las estructuras fundamentales del modelo neoliberal no se han trastocado de forma sustancial. Por ello no sorprende la relación armoniosa que el gobierno ha sostenido con la iniciativa privada, así como el caudal de inversiones extranjeras que se han dado en estos cinco años, teniendo como ejemplo el caso particular de Tesla, empresa propiedad del multimillonario Elon Musk dedicada, según su sitio de internet, a la generación de energía solar, baterías y vehículos eléctricos.4 Después de cumplir la promesa de no afectar a la iniciativa privada ni revertir las principales reformas estructurales neoliberales, AMLO ha logrado sostener una buena relación con algunos de los principales hombres de negocios del país, en particular con Carlos Slim, propietario de Grupo Carso, Grupo Financiero Inbursa, TELMEX y América Móvil, así como el hombre más rico en México y octavo a nivel mundial.5 En sí mismas, las inversiones privadas no resultan negativas, más bien el problema es que seguir bajo este esquema se mantiene intacto el status estructural de la dependencia.

Otro rasgo sustantivo del gobierno de López Obrador se encuentra en la estrecha relación con las fuerzas armadas. En abierto respaldo al Ejército y la Marina, el mandatario les ha trasladado responsabilidades sustanciales, comenzando por su permanencia en labores de seguridad pública, reflejadas sobre todo con la creación de la Guardia Nacional, la construcción y operación de aeropuertos, como el de Santa Lucía, mega proyectos como el Tren Maya y el

4 Información tomada del sitio de internet <https://www.tesla.com/es_mx/about>. Consulta 7 de diciembre de 2023.

5 Según el sitio de internet <https://carlosslim.com/act_empresarial.html y https://www.forbes.com.mx/millonarios-2023-la-joya-de-la-corona-brilla-en-la-fortuna-de-carlos-slim>. Consulta: 7 de diciembre de 2023.

Corredor Interoceánico del Istmo de Tehuantepec, puertos y aduanas y otras actividades económicas de gran trascendencia, aunado al constante aumento del presupuesto de la Secretaría de la Defensa Nacional (SEDENA) y la Secretaría de Marina (SEMAR).

Desde diversos enfoques, se observa una clara militarización del país que sin duda resulta preocupante no sólo por lo que ello implica en la vida pública sino, sobre todo, por los antecedentes de un ejército que tiene dramáticas cuentas pendientes con el pasado en el campo de los derechos humanos, destacando crímenes de Estado y lesa humanidad como la matanza estudiantil del 2 de octubre de 1968, la de 11 de junio de 1971, conocida como el halconazo, la guerra sucia para enfrentar a los grupos guerrilleros con las mismas estrategias que practicaron los militares sudamericanos durante sus dictaduras, el caso de Aguas Blancas y los 43 normalistas de Ayotzinapa, entre otros tantos hasta ahora impunes.

La amnesia manifiesta del gobierno actual en torno al involucramiento de ese pueblo uniformado en la violación de derechos humanos durante las décadas de guerra contra el narcotráfico, y en las masacres, represiones y crímenes de Estado y lesa humanidad del siglo pasado contra ferrocarrileros, médicos, telegrafistas y maestros, contra estudiantes en Tlatelolco y San Cosme; en el asesinato de dirigentes populares, como Primo Tapia de la Cruz, Rubén Jaramillo y su familia, en desapariciones forzadas, como las narradas por el general José Francisco Gallardo en su tesis de doctorado, en los años de la guerra sucia, cuando se adoptan técnicas contrainsurgentes utilizadas por los militares franceses en Argelia, como los vuelos de la muerte, y en la formación de grupos clandestinos, como el Batallón Olimpia, la Brigada Blanca, los halcones, o los grupos paramilitares en Chiapas, los peces más bravos que aconsejan los manuales de guerra irregular de Sedena, para neutralizar a la guerrilla (LÓPEZ Y RIVAS, 2021, p. 85).


Por otro lado, uno de los propósitos enarbolados en la campaña electoral fue el combate a la corrupción, fundamentalmente desplegado en el desarrollo de un amplio paquete de medidas de austeridad que incluyó la reducción de sueldos en los altos cargos de la administración pública y demás prebendas, la desaparición del Estado Mayor Presidencial, que estaba integrado por ocho mil elementos, el cierre de Los Pinos como residencia oficial del Ejecutivo y su transformación en centro cultural, la venta del avión presidencial, la cancelación del avanzado proyecto del aeropuerto en el Lago de Texcoco, el cierre de diversas fundaciones y organismos descentralizados que operaban con presupuesto público pero bajo parámetros de

opacidad que permitían actos de corrupción, y el fin de las millonarias pensiones que existían para ex presidentes, incluyendo personal de apoyo y seguridad, entre otras acciones.

Cabe también destacar que una de las mayores prioridades que ha tenido la administración de AMLO ha sido el de los programas sociales. Bajo la estrategia de un Estado benefactor o neodesarrollista, se activaron un conjunto de apoyos monetarios bajo el marco general del Programa para el Bienestar, los cuales comenzaron con las pensiones para adultos mayores, incluso, impulsando su carácter universal al elevarlas a rango constitucional, siendo precisamente una de sus principales iniciativas cuando fue jefe de gobierno de la Ciudad de México (2000-2005). También se crearon los programas Jóvenes Construyendo el Futuro, Sembrando vida, Beca para el Bienestar Benito Juárez de Educación Básica, Media Superior y Superior, de apoyo a madres trabajadoras, para personas con discapacidad, para la agricultura, la pesca y diversas actividades económicas, entre otras.

Sin embargo, esta batería asistencial, por cierto, individualizada, no resuelve las causas de la desigualdad, la pobreza y la marginación, que origina el capitalismo. Al respecto, Daniel Martínez señala de forma atinada la diferencia entre las concepciones de la izquierda y el progresismo que podemos encontrar en la centroizquierda y en el centro.

La izquierda entiende la justicia social como un objetivo estratégico que abarca un extenso abanico de temas y reivindicaciones populares. Derechos laborales, de salud, educación, vivienda, previsión social y un largo etcétera. El progresismo limita este abanico a una relativa justicia donde exista redistribución económica, enfocada en la compensación monetaria para los más pobres y en el consumo masivo para el resto. Las ayudas progresistas no se traducen en desarrollo, permiten que los sectores populares accedan a bienes y servicios, muchas veces buscando como retribución aumentar su caudal electoral (MARTÍNEZ, 2022, p. 169-170).


A pesar de ello, el despliegue de programas ha sido uno de los principales objetos de ataque desde la actual oposición otrora grupo gobernante, ya fuera procedente del PRI o del PAN, pues justo el modelo neoliberal que sostuvieron disminuyó sustancialmente las partidas sociales del Estado, buscando incluso la bancarrota de las instituciones públicas para justificar la privatización de las riquezas nacionales. Con ello, estos partidos extremadamente desprestigiados en la sociedad

mexicana profundizaron las desigualdades sociales y desarticularon las estructuras económicas del Estado para entregarlo de lleno al capital dentro de la postura sumisa que el gobierno mexicano ha tenido frente al vecino del norte.

Justo en este aspecto, la relación con Estados Unidos bajo el periodo de AMLO no se ha modificado sustancialmente, a pesar de algunas decisiones simbólicas significativas como retirarse del Grupo de Lima, importante herramienta de la ofensiva encabezada por la Casa Blanca contra el gobierno constitucional del presidente venezolano Nicolás Maduro, el rescate y asilo otorgado al mandatario boliviano Evo Morales frente al golpe de Estado de la derecha fascista respaldada por Washington, y de la permanente denuncia sobre el inhumano bloqueo económico, financiero y comercial contra Cuba, país con el que se han fortalecido las relaciones diplomáticas.

A pesar de ello, se mantienen las coordenadas centrales de esta histórica subordinación de México frente a Estados Unidos, sobre todo en lo concerniente a las políticas migratorias, la negociación del nuevo Tratado de Libre Comercio de América del Norte (T-MEC) y otros aspectos de la relación bilateral, como el campo de la seguridad y la lucha contra el narcotráfico.

Sobre el T-MEC, el equipo de transición de López Obrador se insertó en la última fase de la negociación del acuerdo que, en su esencia, había llevado la administración del priista Enrique Peña Nieto. El nuevo tratado contiene las mismas condiciones de disparidad comercial entre los tres países y las reglas de un mecanismo de libre comercio plenamente neoliberal, y favorable a Estados Unidos.

En el caso particular de la migración, destaca la militarización de la frontera sur a través de la Guardia Nacional, “grupo militarizado que originalmente había sido creado para combatir al crimen organizado y que hoy tiene a 6,000 elementos desplegados en la región fronteriza con Guatemala. Esta decisión, dicho sea de paso, ha enmudecido a muchos votantes decepcionados por López Obrador (Sandoval, 2019),”.

En otro ámbito, hay que señalar que los conflictos que se han desatado por las acciones de resistencia de comunidades campesinas y pueblos originarios en contra de los megaproyectos, expresan la contradicción antagónica que el gobierno de AMLO tiene con este componente sustancial de la nación mexicana. Por ejemplo, la creación del Instituto Nacional de los Pueblos Indígenas (INPI), profundizó esa

contradicción, pues constituyó una reactivación de la vieja política indigenista que el PRI utilizó durante décadas para mantener en el tutelaje a los pueblos indígenas, y sobre todo se planteó fragmentar a las comunidades, al convertirse en un intermediario y operador de las políticas clientelares gubernamentales.

Las relaciones del gobierno con los pueblos indígenas organizados de forma independiente, como los que se aglutinan en el Congreso Nacional Indígena (CNI) y se coordinan con los mayas zapatistas del Ejército Zapatista de Liberación Nacional (EZLN), se caracteriza por la confrontación, e incluso, sus voceros consideran que se trata de una guerra del nuevo gobierno contra los pueblos. El problema radica en el choque de perspectivas sobre lo que se entiende por desarrollo y progreso, pero, más grave aún, es pensar que beneficiando a los grandes capitales se pueden resolver los históricos problemas de pobreza y desigualdad que prevalecen en el sureste mexicano, como es el caso particular de toda la infraestructura turística privada que se construye alrededor del Tren Maya.

Por último, es preciso señalar que, bajo la premisa de que la mejor política exterior es la política interna, AMLO prácticamente no ha salido del país para realizar visitas de Estado o participar en cumbres multilaterales. En el contexto de un mundo cada vez más multipolar, la voz de una nación a través de su máximo representante resulta prioritaria en el sentido más básico de las relaciones internacionales. A pesar del peso simbólico que representan las fotos y los discursos, resulta fundamental la presencia física de los presidentes en los circuitos políticos y diplomáticos por lo que significa el diálogo directo en los encuentros entre líderes.

Más allá del planteamiento discursivo sobre la voluntad de acercarse al Sur, una parte importante de la política exterior mexicana se ha alineado en favor de los intereses de Estados Unidos. No existe ningún acercamiento efectivo, que sea mayor al del pasado inmediato, con América Latina y el Caribe, ni en acuerdos comerciales, mecanismos de integración o alianzas estratégicas. En una visión global, incluso destaca la negativa del gobierno mexicano de acercarse, no se diga integrarse, a los BRICS, acrónimo surgido de los países que componen originalmente dicha asociación económica (Brasil, Rusia, India, China y Sudáfrica); sobre todo ahora que el grupo se amplió con la incorporación de seis países más.

Ante este panorama, a pesar de ciertas expectativas que en un principio se generaron sobre un posible cambio de las relaciones con Estados Unidos, así como

en el fortalecimiento de la identidad latinoamericanista y caribeña de México tras el triunfo de AMLO, sin más, Washington continúa siendo la prioridad central de la cancillería, y el Sur ha quedado básicamente en los buenos deseos, salvo la profundización de la relación con Cuba, expresada en las visitas del presidente cubano Miguel Díaz-Canell a México, una de ellas como invitado de honor al desfile militar en conmemoración del inicio de la lucha de Independencia, la compra de vacuna Abdalá contra la Covid-19 y la contratación de personal médico cubano. Incluso, destacó la aplaudible decisión de AMLO de no asistir a la Cumbre de las Américas celebrada en junio de 2022 en Los Ángeles, por no haber sido invitada Cuba.


México y la tercera década del progresismo


Después de 25 años de iniciado el llamado ciclo progresista, que más bien hay que identificar como un ciclo de gobiernos de centro, centroizquierda y de izquierda, la región ha atravesado por acontecimientos políticos sellados por la continuidad del intervencionismo estadounidense a través de una poderosa ofensiva conservadora que ha impactado de forma determinante este conjunto de procesos, incluyendo seis golpes de Estado, Venezuela (2002), Honduras (2009), Paraguay (2012), Brasil (2016), Bolivia (2019) y Perú (2022); en el caso de Venezuela y Bolivia, revertidos.

Ante una derecha que paulatinamente está retornando a su etapa más abiertamente autoritaria y fascista, se vuelve más urgente la necesidad de cambios de fondo y no sólo de forma. Justo los casos que se inscriben en esta coordenada, y que han resistido todo el peso de la agresión externa, Venezuela y Bolivia, constituyen el mejor ejemplo de que no se puede avanzar si se mantienen las estructuras políticas diseñadas por el capital para preservar su existencia. Al respecto, Roberto Regalado apunta:

De ello se deriva que el progresismo y la nueva socialdemocracia latinoamericana no se expliquen cómo es posible que “la democracia”, cuyas reglas del juego tanto se esforzaron por perfeccionar y transparentar, haya sido utilizada por “la derecha”, no para desplazarlas del gobierno mediante una “alternancia civilizada”

-lo cual esperaban que sucediera en algún momento-, sino para expulsarlas del sistema, criminalizarlas, judicializarlas e intentar destruirlas por completo, y que no tengan idea alguna de qué hacer

al respecto. Por su parte, la nueva generación promotora de transformaciones revolucionarias no avanzó lo suficiente en el proceso de rupturas parciales sucesivas con el sistema social imperante. Por ello, se siente obligada a “atrincherarse” en los poderes del Estado bajo su control, con el fin de defenderse de los ataques del imperialismo, de los poderes del Estado controlados por la oligarquía y de los poderes fácticos nacionales (REGALADO, 2019, p. 24).


Por las características y los alcances del actual gobierno, es evidente que México se inscribe dentro de la esfera de los proyectos moderados del progresismo latinoamericano y caribeño. Nunca se planteó, aun teniendo la capacidad legislativa para hacerlo, la opción de transformar las estructuras políticas, económicas, sociales y culturales que perfilaran cambios profundos y de largo plazo, como podría haberse generado a partir de la convocatoria de una Asamblea Constituyente que reflejara en un nuevo Estado, el México actual, a partir de una profunda transformación política, económica, social, ética y defensora de los derechos de la naturaleza.

En este contexto, resulta trascendente valorar la relevancia y la urgente necesidad de analizar las formas de organización económica, que no desarrollo económico, que requieren América Latina y el Caribe. Se trata de reconfigurar, desde las estructuras, el lugar y la función que las naciones latinoamericanas y caribeñas cumplen en el escenario mundial y, de forma particular, en la división internacional del trabajo: exportadoras de materias primas y mano de obra, con el objetivo de plantearse la desarticulación de esta vieja pero renovada dependencia de las potencias del capitalismo global. México ocupa un rol preponderante en esta condición por su estrecha relación con Estados Unidos.

A pesar de resolver problemáticas económicas de primer orden, el llamado neo-extractivismo no fortalece un camino propio y soberano, al no trastocar las relaciones de la dependencia estructural y sistémica, ni la posibilidad de consolidar una integración que permita alcanzar la autosuficiencia económica y el fin de las asimetrías entre los países de la región, y, mucho menos, contribuye a frenar el colapso ecológico que está en marcha. Es evidente que en el mediano plazo no resulta una tarea sencilla, ni se puede decretar el fin de este modelo de producción, sin una alternativa clara que permita transitar hacia otro estadio económico y social, la cual debe estar acompañada necesariamente por una participación protagónica de los pueblos. Aún y con la recuperación del Estado como actor central de la economía, esta dependencia estructural sigue siendo una realidad mientras no se

diversifiquen las áreas productivas y persista el carácter mono-exportador de una parte importante de las economías de la región.

Con todo y sus contradicciones, la dinámica neo-extractivista ha permitido, por ejemplo, a Venezuela (desde 1999) y Bolivia (desde 2006), y en su momento a Ecuador (2007-2017), generar una redistribución social de las ganancias como nunca se había dado, reduciendo sustancialmente los niveles de pobreza y logrando notorios avances sociales en salud, educación y vivienda. Sin embargo, es un hecho que el capitalismo no resuelve la condición estructural de la dependencia externa, ni las causas que generan pobreza y desigualdad. En los casos mencionados, la oligarquía nunca desapareció y sus medios de producción siguieron fundados en la explotación y la obtención de plusvalía. De igual forma, el capital extranjero, europeo, estadounidense y/o chino, ha seguido jugando un papel central en el funcionamiento de estas economías.

Sin negar el beneficio tangible de toda la red de becas y apoyos económicos desplegada por el actual gobierno mexicano, reflejado en el último reporte del Instituto Nacional de Estadística y Geografía (INEGI)6, es un hecho que en México se mantienen altos niveles de pobreza y que las causas sistémicas de su existencia no han sido atendidas. Tal y como sucedió con otras experiencias progresistas moderadas como Brasil, Argentina y Uruguay, la fragilidad de los programas sociales es tan real que el retorno de un gobierno neoliberal prácticamente anula de fondo tales políticas, como sucedió, por ejemplo, con Jair Bolsonaro y Mauricio Macri, y ahora Milei, representantes de regímenes neofascistas, siniestros para sus pueblos y para la región entera.

Salvo Cuba y Venezuela, y en buena medida Bolivia, países donde se desarrollan profundos procesos de transformación orientados hacia el socialismo y la construcción de un poder popular indiscutible, con todo y sus contradicciones y errores, y a pesar de los devastadores efectos del bloqueo económico, comercial y financiero impuesto por Estados Unidos en el caso de los dos primeros, el resto de las experiencias de gobierno van del centro hacia la izquierda, algunos de evidente

6 Según estimaciones del Consejo Nacional de Evaluación de la Política de Desarrollo Social (CONEVAL) basadas en la Encuesta Nacional de Ingresos y Gastos de los Hogares (ENIGH) 2022, realizada por el INEGI, la población en situación de pobreza se redujo de 55.7 millones de personas en 2020 a 46.8 millones en 2022, es decir, aproximadamente la población en situación de pobreza se redujo en 5 millones. CONEVAL (2023), "Medición de la pobreza" en CONEVAL, disponible en

<https://www.coneval.org.mx/Medicion/MP/Paginas/Pobreza_2022.aspx>. Consulta: 6 de diciembre de 2023.

factura socialdemócrata, con todos los límites que ello representa porque en ningún momento se han contemplado impulsar cambios estructurales y mucho menos sistémicos.

En lo inmediato, no queda claro si hay perspectivas en México que apunten hacia una transformación estructural de la economía ni de la política. Más allá de una buena administración y la continuidad de mecanismos sociales que se plantean disminuir las desigualdades, debe construirse un proyecto político que se proponga el fin de la explotación y la dominación capitalistas, la transición a una plena democracia participativa, el reconocimiento de las autonomías de los pueblos indígenas, el ejercicio real de la soberanía nacional y popular, y la reconfiguración sistémica para enfrentar el colapso ecológico en marcha.

Los gobiernos progresistas y de izquierda han fracasado en su proyecto de articulación de acuerdos básicos entre las élites conservadoras dueñas del capital y la población, a la cual sin duda le otorgan mayores y mejores beneficios sociales, pero no espacios de participación directa y de decisión en los destinos políticos y económicos del gobierno que ellos mismos eligieron. La izquierda gobierna desde la derecha del pueblo y el carácter institucional de los gobiernos progresistas proviene de la legalidad de una matriz ya superada por la historia. Esta democracia fraudulenta, tal vez reduce la incertidumbre de los sectores populares y proporciona legitimidad a las acciones de gobierno, pero no garantiza en absoluto una transformación de fondo en la lucha por una sociedad sin explotados y explotadores. Hasta ahora parece condenada a terminar de manera cíclica en derrotas electorales de la izquierda (MARTÍNEZ, 2022, p. 211).


La experiencia regional ha dejado un balance positivo en el terreno de los derechos sociales, en la construcción de mecanismos de integración como ALBA, CELAC, Mercosur y en su momento UNASUR, en un significativo impulso en las relaciones Sur-Sur y la multipolaridad, entre otros aspectos, pero la balanza que está cargada hacia la hegemonía del capital prácticamente no se ha movido. Aunque existan diferentes explicaciones, como la falta de mayorías legislativas y los errores propios, la realidad es que algunos de esos procesos no tienen mayor problema en reducir su actuación a una administración eficiente del sistema impuesto por el capital. Por esta razón, estos casos no sufren ningún ataque por parte de la Casa Blanca.

Apuntes finales


Los cinco años de AMLO reflejan las dificultades del ejercicio del gobierno en un sistema plagado de vicios y una cultura política en la que prevalecen los intereses del capital, de los grupos del poder político, la Iglesia, las elites económicas, y, por supuesto, la creciente fuerza e impunidad del crimen organizado y el avasallamiento mediático que no tiene límites en su actuar, muy lejano de la ética y la honestidad.

La crisis de seguridad y violencia sistémica y multidimensional no ha variado sustancialmente en este gobierno. No sólo se ha tratado de un problema multifacético en el entorno de las instituciones, sino también de una sociedad fracturada y de un sector de consumidores que legitiman por la vía de los hechos la existencia del mercado que controla la delincuencia de forma impune.

En el entorno de un colapso ecológico y societal en desarrollo, caracterizado no sólo por los graves y en muchos casos irreversibles daños a los ecosistemas, aunado a la pobreza, la desigualdad, el hiperconsumismo y la violencia multidimensional que trastoca los límites de la racionalidad, resulta urgente un cambio de paradigma sobre los proyectos que las fuerzas políticas ubicadas del centro hacia la izquierda necesitan plantear e impulsar en los espacios institucionales. En ese plano se encuentra el reto que tiene la candidata de MORENA, Claudia Sheinbaum, favorita en las encuestas para la próxima contienda presidencial, en torno a sólo darle continuidad al proyecto de AMLO o encabezar una transformación profunda en los diversos aspectos mencionados.

No hay duda de que, así como América Latina fue convertida en un laboratorio del neoliberalismo, también ha sido el principal escenario mundial de la construcción y el desarrollo de proyectos alternativos, de rebeliones y resistencias como destacan Cuba, Venezuela, Bolivia, el Movimiento de los Sin Tierra, los zapatistas y las autonomías del mandar obedeciendo, actores que consolidan la realidad de que otros mundos pueden ser posibles. Propuestas como el ecosocialismo, el Buen Vivir/Vivir Bien, el Comercio Justo, el socialismo comunitario, entre otras, reflejan que hay otras opciones al capitalismo neoliberal y depredador que hegemoniza el siglo XXI. México debe conocer y reflexionar en torno a estos planteamientos y contribuir a la construcción de otros modos de vida en el futuro mediato.

Bibliografía


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V.22, no 47, 2024 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799X


EL MUNDO DEL TRABAJO EN EL PENSAMIENTO DE JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI1

César Germaná2

Resumen

En el actual periodo de transición del sistema-mundo moderno/colonial, ¿sigue vigente la obra de Mariátegui? ¿Tiene algo que decirnos para comprender América Latina y el mundo contemporáneo y para pensar en su transformación? ¿Podemos encontrar en sus reflexiones herramientas teóricas y políticas que nos ayuden a modelar un nuevo orden social más igualitario y democrático? Estas son cuestiones a comentar como introducción a sus reflexiones sobre el mundo del trabajo en el Perú de 1920. Mariátegui llevó adelante una ruptura radical con el modo de examinar los problemas de nuestra sociedad.

Palabras clave: Sistema, Orden, Democracia, Descolonialidad, Modernidad.


O MUNDO DO TRABALHO NO PENSAMENTO DE JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI


Resumo

No atual período de transição do sistema-mundo moderno/colonial, a obra de Mariátegui ainda é relevante? Tem algo a nos dizer para entender a América Latina e o mundo contemporâneo e pensar em sua transformação? Podemos encontrar em suas reflexões as ferramentas teóricas e políticas que nos ajudam a modelar uma nova ordem social mais igualitária e democrática? Estas são as questões para discutir como introdução às suas reflexões sobre o mundo do trabalho no Peru de 1920. Mariátegui rompeu radicalmente com o modo de encarar os problemas de nossa sociedade.

Palavras-chave: Sistema, Ordem, Democracia, Decolonialidade, Modernidade.


THE WORLD OF WORK IN THE THOUGHT OF JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI


Abstract

In the current transition period of the modern/colonial world-system, Mariátegui's work is still valid? It has something to tell us to understand Latin America and the contemporary world and to think about its transformation? We can find in his reflections the theoretical and political tools that help us model a new, more egalitarian and democratic social order? These are the questions to discuss as an introduction to his reflections on the world of work in Peru in the 1920s. Mariátegui carried out a radical break with the way of examining the problems of our society.

Keywords: System, Order, Democracy, Decoloniality, Modernity.


1 Artigo recebido em 01/08/2023. Primeira Avaliação em 22/08/2023. Segunda Avaliação em 24/08/2023. Aprovado em 20/09/2023. Publicado em 22/02/2024.

DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.59432

2 Doctor en Estudios Iberoamericanos por la Universidad de Stendhal – Grenoble III, França. Profesor Emérito de la Universidad Nacional Mayor de San Marcos (UNMSM), Perú.

Correo: cgermanac@unmsm.edu.pe. CV: https://ctivitae.concytec.gob.pe/appDirectorioCTI/Login.do. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0289-6894.

Introducción. La vigencia del pensamiento de Mariátegui


En el actual periodo de transición del sistema-mundo moderno/colonial,

¿sigue vigente la obra de Mariátegui? ¿Tiene algo que decirnos para comprender América Latina y el mundo contemporáneo y para pensar en su transformación, en los inicios del siglo XXI? ¿Podemos encontrar en sus reflexiones las herramientas teóricas y políticas que nos ayuden a modelar un nuevo orden social más igualitario y más democrático? Estas son las cuestiones que me gustaría comentar como introducción a sus reflexiones sobre el mundo del trabajo en el Perú del decenio de 1920. Mi interés es poner en evidencia la vigencia del pensamiento descolonial de Mariátegui desde una mirada desfetichizada de su obra. Evidentemente, Mariátegui no utilizó la noción de "marxismo descolonial", pero tampoco de "marxismo anticolonial. Pero considero que es la perspectiva más apropiada para interpretar de la manera más adecuada su manera de abordar el examen de la realidad histórico-social.

Mariátegui llevó adelante una ruptura radical con el modo de examinar los problemas de nuestra sociedad y de su transformación. Su perspectiva de conocimiento lo condujo fuera del campo intelectual dominante al plantear problemas y conceptos nuevos. El núcleo central de esa nueva manera de conocer fue la ruptura con el eurocentrismo. El eurocentrismo no se refiere a todo lo que hacen los europeos –y, por extensión, los estadounidenses- sino a una forma específica de pensar y conocer que se desarrolló en Europa y que se impone en el mundo como la única y legítima perspectiva de conocimiento, excluyendo o subalternizando otras formas de conocer la realidad. El proyecto intelectual de Mariátegui puede ser visto como un camino hacia la descolonialidad del saber, una de las primeras búsquedas de una perspectiva cognoscitiva no eurocéntrica.

Tres problemáticas me parecen fundamentales para comprender la perspectiva teórica y política de Mariátegui: a) la concepción creadora del marxismo;

b) la afirmación de la especificidad de la formación social peruana y latinoamericana; y c) el proyecto de emancipación social centrado en el socialismo indoamericano.

En cuanto a la concepción del marxismo, Mariátegui rechazó la versión dogmática del marxismo según la cual se trataría de una teoría válida para todo tiempo y lugar, como lo sostuvo en el “Mensaje al congreso obrero”, en enero de 1927, con motivo del Segundo Congreso Obrero de Lima:

“El marxismo, del cual todos hablan pero que muy pocos conocen y, sobre todo, comprenden, es un método fundamentalmente dialéctico. Esto es, un método que se apoya íntegramente en la realidad, en los hechos. No es, como algunos erróneamente suponen, un cuerpo de principios de consecuencias rígidas, igual para todos los climas históricos y todas las latitudes sociales. Marx extrajo su método de la entraña misma de la historia. El marxismo, en cada país, en cada pueblo, opera y acciona sobre el ambiente; sobre el medio, sin descuidar ninguna de sus modalidades. Por eso, después de más de medio siglo de lucha, su fuerza se exhibe cada vez más acrecentada. Los comunistas rusos, los laboristas ingleses, los socialistas alemanes, etc. se reclaman igualmente de Marx. Este solo hecha vale contra todas las objeciones acerca de la validez del método marxista” (MARIÁTEGUI, 1994, p. 206).

La originalidad de la concepción del marxismo pone en evidencia que el pensamiento del Amauta se orientó en la perspectiva de la construcción de un marxismo descolonial, en la medida en que rompe con los esquemas eurocéntricos.

Teniendo en cuenta esta concepción del marxismo, es posible señalar que el núcleo central de la investigación de Mariátegui consiste en evidenciar la especificidad de las sociedades latinoamericanas. A diferencia de los enfoques eurocéntricos marxistas y no marxistas, considera que América Latina no es Europa por lo que la teoría marxista solo tiene como referente la realidad y no busca adecuar la realidad a la teoría. De esta manera, la teoría marxista podrá dar cuenta de la originalidad de la formación social latinoamericana. Se pueden citar dos fenómenos que ponen en evidencia la singularidad de la región. De un lado, la importancia de las poblaciones indígenas en la conformación de estas sociedades; de otro lado, cómo el proyecto de una nación peruana ha sido una promesa incumplida en los 200 años de vida independiente. Estos dos hechos son un ejemplo que muestra la particularidad de América Latina.

La concepción de un marxismo descolonial y el enfoque de la especificidad de la formación social latinoamericana constituyen el fundamento que permite precisar la visión de Mariátegui sobre la emancipación social como un horizonte socialista. Se trata del proyecto de construir otro mundo más igualitario y democrático planteado en la propuesta de socialismo indoamericano como proyecto de reconstitución del sentido histórico de la sociedad peruana, como se plantea en Germaná (1995). Proposición que se mantiene en la problemática que tiene como núcleo el proceso y el proyecto de los pueblos originarios andinos del Buen Vivir. De manera todavía embrionaria y dispersa se está desarrollándose una tendencia que ambiciona la

descolonialidad del poder y que traduce el espíritu del Foro Social Mundial de Porto Alegre. Constituye un proceso, implicado en el desenvolvimiento milenario de los pueblos indígenas, y un proyecto que tiene como centro el bien vivir (suma qamaña o sumak kawsay) como horizonte histórico de sentido. Lo precisa la definición de Aníbal Quijano que lo considera como “un complejo de prácticas sociales orientadas a la producción y a la reproducción democráticas de una sociedad democrática” (QUIJANO, 2014, p. 847). Este proyecto implica una racionalidad alternativa a la racionalidad instrumental eurocéntrica del patrón de poder colonial/moderno. Esta específica racionalidad se encuentra en la base de una nueva forma de existencia social que moldea a los diferentes ámbitos de las relaciones sociales: la solidaridad entre los seres humanos y la armonía entre los seres humanos con la naturaleza.

Esta perspectiva pone en evidencia la vigencia y trascendencia del pensamiento de José Carlos Mariátegui. En él se encuentran los puntos de partida para un análisis crítico -no eurocéntrico- de la realidad social y de su transformación. En el periodo de transición en el que estamos viviendo la obra de Mariátegui leída de manera desfetichizada es sumamente fructífera para avanzar en el proyecto de la descolonialidad del poder; esto es, en la imprescindible búsqueda de un nuevo horizonte histórico de sentido. “El pasado incaico –escribió́ Mariátegui en el artículo “La tradición nacional”- ha entrado en nuestra historia, reivindicado no por los tradicionalistas sino por los revolucionarios. En esto consiste la derrota del colonialismo […]. La revolución ha reivindicado nuestra más antigua tradición” (MARIÁTEGUI, 1994, p. 326). Mariátegui llamó a esta tradición “comunismo incaico”. Pero no se trataba -para él- de volver al pasado pre-colonial, sino de entender las raíces indígenas del futuro; de alcanzar la realización de las esperanzas del pasado. En este sentido, sus reflexiones sobre el socialismo pueden vincularse con las actuales propuestas de los pueblos indígenas andinos y amazónicos del Buen Vivir. El núcleo central de este proyecto está dado por la descolonialidad de las relaciones de poder que se establecieron con la conquista europea de lo que sería América: la igualdad en las relaciones de género, la reciprocidad en las relaciones de trabajo, el autogobierno en las relaciones de autoridad, la interculturalidad –o diálogo de saberes- en las relaciones intersubjetivas y que los seres humanos sepamos estar atentos a una “escucha poética” de la naturaleza, que es una realidad viva y no un mundo silencioso y monótono, como lo han señalado con bastante perspicacia Ilya

Prigogine e Isabelle Stengers (2004, p. 325) refiriéndose a la nueva alianza entre la ciencia y el mundo natural.

Por las razones expuestas, las reflexiones de Mariátegui constituyen un valioso incentivo para explorar las herramientas teóricas que nos permitan entender el mundo en que vivimos y para avanzar en el debate sobre su radical transformación. Y en nuestro caso, las relaciones sociales vinculadas al trabajo. El examen de la visión que tenía Mariátegui del mundo del trabajo, en el Perú de la década de 1920, nos ofrece algunas pistas para poder explorar las relaciones de trabajo en el mundo actual. No es el propósito de este artículo el debate con la extensa bibliografía que existe sobre la obra de Mariátegui y su interpretación de la realidad peruana. Solo he seguido –por su riqueza interpretativa- la presentación del pensamiento de Mariátegui que ofrece Aníbal Quijano (QUIJANO, 1981).

Las relaciones sociales vinculadas al trabajo constituyen un ámbito fundamental de la existencia social de los seres humanos. Mariátegui, que desarrolló una obra fundamental para comprender las principales tendencias que mostraban hacia dónde se estaba dirigiendo la formación social peruana, señaló algunas de las características principales de la situación del mundo del trabajo en el Perú de los años de la década de 1920. Sus reflexiones hacían parte simultánea de la búsqueda del horizonte histórico de sentido hacia dónde queremos dirigirnos y exploró los caminos más eficaces que nos permitirían llegar a dónde queremos dirigirnos. En cuanto a lo primero, indaga las condiciones en la que se encontraban los trabajadores asalariados (obreros y empleados) -que habían surgido con la implantación de la economía capitalista desde fines del siglo XIX, la situación de los trabajadores agrícolas sometidos al trabajo servil o semiservil de la semifeudalidad agraria, y las formas de trabajo de la economía comunista indígena. En cuanto a los segundo, hacia dónde queremos dirigirnos, esto es, el horizonte histórico de futuro, desarrolló la propuesta del socialismo indoamericano, en donde las relaciones de trabajo se regirían por reciprocidad tal como se venía manteniendo en los pueblos originarios andinos. En cuanto a lo tercero, las vías que deberíamos transitar para lograr el establecimiento del socialismo indoamericano, examinó el papel que desempeñan las diversas formas de organización de los trabajadores como los sindicatos, las cooperativas, las diversas asociaciones y, sobre todo, las comunidades indígenas.

  1. Las tendencias del desarrollo del mundo del trabajo en el Perú de la década de 1920


    Para Mariátegui, el punto de partida del análisis de la formación social peruana fue la crítica radical de ese orden social. Esa crítica le permitiría identificar las características específicas de los procesos de organización y de transformación de la sociedad peruana. Ese trabajo está plasmado en el libro publicado en 1928 7 Ensayos de interpretación de la realidad peruana. La imagen del Perú que se nos presenta en esa investigación es la de una formación social como una totalidad histórica compleja. El Perú, así como las otras sociedades latinoamericanas, no han seguido el proceso de desenvolvimiento igual al de las sociedades europeas, esto es, tienen una lógica de desarrollo específica, diferente al de los países centrales. Así, después de examinar los rasgos principales de la evolución de la economía peruana en “nuestra postguerra” llega a la siguiente constatación final:

    “Apuntaré una constatación final: la de que en el Perú actual coexisten elementos de tres economías diferentes. Bajo el régimen de economía feudal nacido de la Conquista subsisten en la sierra algunos residuos vivos todavía de la economía comunista indígena. En la costa, sobre un suelo feudal, crece una economía burguesa que, por lo menos en su desarrollo mental, da la impresión de una economía retardada” (MARIÁTEGUI, 1994, p. 13-14).


    Sin duda alguna, ha sido Aníbal Quijano quien ha puesto de relieve esta tesis central en el pensamiento de Mariátegui, y la considera, además, como su aporte teórico-metodológico fundamental:

    “Este enfoque del carácter de la economía peruana, como compleja y contradictoria articulación entre capital y precapital, bajo la hegemonía del primero, del mismo modo como todavía se articulan "feudalismo" y "comunidad indígena" en la sierra, ambos bajo el capital, produciendo efectos no solamente sobre la lógica del desenvolvimiento económico sino sobre la mentalidad de las clases, es el hallazgo básico de la investigación mariateguiana. De allí derivan sus desarrollos sobre el carácter y las perspectivas de la revolución peruana" (QUIJANO, 1981, p. 83).


    En este sentido, la concepción de Mariátegui sobre la sociedad peruana -una realidad constituida por elementos desiguales y contradictorios, pero que se combinan de una manera característica-, le permitió comprender los nexos y las mediaciones entre la economía capitalista moderna, la semifeudalidad agraria y el comunismo indígena. A partir de allí, pudo pensar en las características particulares

    que asumiría la revolución socialista en el Perú sin adoptar una posición europeizante -consideraba impracticable una solución capitalista para los problemas del país- ni en un ingenuo utopismo andinista-pues lo juzgaba insuficiente para un socialismo moderno.

    Mariátegui examina las relaciones sociales del trabajo en cada ámbito de “nuestra economía actual”, que se presenta como heterogénea estructuralmente: el trabajo asalariado en la economía capitalista, el trabajo servil en la economía de la semifeudalidad agraria y el trabajo comunitario basado en la economía comunista indígena.


    El trabajo en la economía capitalista


    Para Mariátegui, un “formal capitalismo” se había establecido en el Perú desde finales del siglo XIX, sobre todo en la costa, espacio económico que refuerza su hegemonía en la economía peruana. Este capitalismo, en la visión del Amauta, tiene tres características distintivas. En primer lugar, no es el resultado de un desenvolvimiento interno, como ocurrió en Europa, sino que es impuesto desde fuera; se trata entonces de un capitalismo imperialista. En segundo lugar, es un capitalismo monopólico pues controla ramas enteras de la producción para la exportación (minería, petróleo, agricultura de exportación, comercio de importación y exportación, actividades bancarias y financieras). En este sentido Mariátegui escribió: “la época de la libre concurrencia en la economía capitalista ha terminado en todos los campos y en todos los aspectos. Estamos en la época de los monopolios, vale decir de los imperios” (MARIÁTEGUI, 1994, p. 261). En tercer lugar, el capitalismo imperialista monopólico configuraba una economía semicolonial pues no estaba vinculada al mercado interno sino al mercado de los países centrales. Las ganancias se acumulan en el centro, pero no en las sociedades periféricas.

    Con el capitalismo imperialista y monopólico surge el trabajo asalariado. Su población es relativamente pequeña en relación con la población del país (se calculaba que hacia 1930 el Perú tenía alrededor de 5 millones habitantes, donde la cuatro quintas partes eran indígenas). Pero no solo era una población reducida (no superaba los 150000 trabajadores) sino que era muy heterogénea. En las

    actividades más significativas se encontraban los trabajadores en las minas, en el petróleo, en las plantaciones azucareras, en la pequeña industria manufacturera3.


    El trabajo servil y semiservil en la economía de la semifeudalidad agraria


    A diferencia de la agricultura de la costa, en la sierra se mantenía una economía centrada en el latifundio y la servidumbre. “El régimen de trabajo -escribió Mariátegui- está determinado principalmente, en la agricultura, por el régimen de propiedad. No es posible, por tanto, sorprenderse de que en la misma medida en que sobrevive en el Perú el latifundio feudal, sobreviva también, bajo diversas formas y con distintos nombres, la servidumbre” (MARIÁTEGUI, 1994, p. 40-41). Se trataba de un “colonialismo-feudalismo” como lo definió Mariátegui, pues era un sistema que había surgido en la colonia y que se mantuvo durante la república. En este sistema, la existencia del latifundio hacía posible la explotación ilimitada de la población indígena por el hacendado. El terrateniente entregaba al trabajador indígena un pedazo de tierra, de la dependía su subsistencia, la que tenía que pagar en trabajo o en productos. Mariátegui señala esta situación en una repuesta al cuestionario del Seminario de Cultura Peruana que se publicó en la revista La Sierra:

    “El valor de la hacienda de la sierra no depende de nada tanto como de su población, de sus fuerzas de trabajo propias. El latifundista dispone de las masas campesinas porque dispone de la tierra. El instrumento capital es ínfimo. El bracero que recibe un magro pedazo de tierra, con la obligación de trabajar en las tierras del señor, sin otra paga, no es otra cosa que un siervo. ¿Y no subsiste acaso la servidumbre en la cruda y característica forma del "pongazgo"? Ninguna ley autoriza, ciertamente, la servidumbre. Pero la servidumbre está ahí evidente, viva, casi intacta. Se ha abolido muchas veces los servicios gratuitos; pero los servicios gratuitos subsisten, porque no se ha abolido, económicamente, la feudalidad” (MARIÁTEGUI, 1994, p. 269).

    Al capital le interesaba participar, junto con los gamonales, en la explotación de los indios en la medida en que la reproducción de la fuerza de trabajo asalariada se realizaba en la economía precapitalista. Por esta razón Mariátegui sostenía que


    3 “La minería, por otra parte, ocupa a un número reducido aún de trabajadores. Conforme al Extracto Estadístico, en 1926 trabajaban en esta industria 28,592 obreros. La industria manufacturera emplea también un contingente modesto de brazos. Sólo las haciendas de caña de azúcar ocupaban en 1926 en sus faenas de campo 22,367 hombres y 1,173 mujeres. Las haciendas de algodón de la costa, en la campaña de 1922-23, la última a que alcanza la estadística publicada, se sirvieron de 40,557 braceros; y las haciendas de arroz, en la campaña 1924-25, de 11,332” (MARIÁTEGUI, 1994, p. 14).

    “el capitalismo extranjero se sirve de la clase feudal para explotar en su provecho estas masas campesinas”4.


    El trabajo basado en la reciprocidad en la economía comunista indígena


    Con diversas denominaciones –“comunismo inkaico”, “comunismo indígena”, “comunismo agrario del ayllu”, “socialismo indígena”- Mariátegui identificaba un patrón de producción caracterizado por la ausencia de la propiedad privada de la tierra y por el trabajo comunitario. Aunque esta forma de producción existía con anterioridad a la dominación inca, fue con el Tahuantinsuyo que adquirió un papel fundamental en la organización del Estado. Por esta razón, Mariátegui afirma que “el ayllu -la comunidad- fue la célula del imperio” (MARIÁTEGUI, 1994, p. 37).

    La destrucción española del Tahuantinsuyo no logró la destrucción del ayllu que logró sobrevivir a la dominación colonial y a la república. En el siglo XX, el Amauta constataba la subsistencia, en la sierra, de “algunos residuos vivos de la economía comunista indígena” que coexistían con la semifeudalidad agraria y con la economía capitalista. Su característica principal la veía en la organización comunitaria del trabajo que se basaba en la reciprocidad, esto es, el intercambio de bienes o de trabajo entre los miembros del ayllu.


  2. El trabajo en el proyecto del socialismo indoamericano


    En la compleja sociedad peruana de inicios del siglo XX, Mariátegui llegó a desarrollar una concepción original del socialismo a la cual dio el nombre de socialismo indoamericano. Esta visión del socialismo tiene como núcleo central la


    4 J. C. Mariátegui, "El problema de las razas en la América Latina", (MARIÁTEGUI, 1994, p. 169). Ha sido Quijano quien ha desarrollado con acierto esta idea de Mariátegui al examinar el problema de la reproducción de la fuerza de trabajo capitalista en la economía semicolonial. Sostiene la tesis de la sobreexplotación del obrero y, en consecuencia, el incremento de las ganancias de los capitalistas, al recibir aquellos un salario inferior al valor de su fuerza de trabajo. Este fenómeno fue posible porque la producción y la reproducción de la fuerza de trabajo se realizaban en la economía precapitalista. En lo que respecta a este mecanismo del funcionamiento de la economía semicolonial, Quijano afirma lo siguiente: “En los países sedes centrales de la acumulación monopolista, tales productos (medios de subsistencia del obrero) provenían de la industria o de la producción agropecuaria capitalista, y por lo mismo incorporaban mayor valor a la mercancía fuerza de trabajo de esos países. En cambio, en el Perú, la escasa significación de la producción industrial interna en el consumo de los trabajadores de los "enclaves", así como los altos precios de la producción importada impedían el acceso de esos trabajadores al consumo y usos de estos productos, implicaban que la reproducción de la fuerza de trabajo se hiciera con la producción proveniente de la parte precapitalista de la economía. Por lo tanto, incorporando menor valor a esa mercadería, en relación a la de los países centrales” (QUIJANO, 1985, p. 30-34).

    idea de una reconstitución del sentido histórico de la existencia social; perspectiva que era diferente de aquellas que defendían sus contemporáneos, pues le interesaba encontrar una racionalidad alternativa. La búsqueda de un nuevo sentido histórico de la existencia social orientaba sus reflexiones, sus investigaciones y su práctica política. Su objetivo principal no era la "toma del poder político"; al contrario, Mariátegui exploraba la forma de resolver el problema de cómo sería posible alcanzar la reinserción de las funciones del Estado en el seno de la sociedad. En breve, quería elaborar un proyecto que tendía a la afirmación de la solidaridad en tanto condición y consecuencia de la socialización de los medios de producción y del propio poder político. Así, se descubre en sus escritos una concepción del socialismo que es la expresión de la propia realidad peruana. Para el Amauta, el socialismo no sería el producto de la aplicación de una receta previamente establecida. Bien al contrario, lo veía como un proceso creador resultante de determinadas fuerzas sociales: percibía la existencia de una conciencia socialista en los trabajadores de las ciudades y constataba la supervivencia "de elementos de socialismo práctico" entre los campesinos indígenas. Para lograr plasmar su proyecto, examinó desde un punto de vista teórico e histórico, la economía, la política y las relaciones intersubjetivas que existían en el Perú. Su socialismo indoamericano, por ello, apuntaba a darle un nuevo sentido histórico a la sociedad peruana.

    Mariátegui concibió el socialismo como un proceso que se encontraba inscrito en lo más profundo de la realidad peruana y no como la aplicación de un modelo abstracto, previamente elaborado. Es decir, lo vio como el proceso de modificación permanente y cotidiana del orden social heredado del pasado. Esta perspectiva lo llevó a rechazar tanto el regreso a un orden premoderno como el paso a la modernidad capitalista. Es por eso por lo que orientó su investigación hacia la búsqueda de formas nuevas de vida emancipadas. Considero que allí reside la importancia de la problemática del socialismo desarrollada por el autor de los 7 Ensayos.

    Ciertamente, Mariátegui no buscaba volver al pasado pre-colonial; aspiraba, más bien, a hallar las raíces originarias del futuro:

    “El socialismo, en fin, está en la tradición americana. La más avanzada organización comunista primitiva, que registra la historia, es la inkaica. No queremos ciertamente, que el socialismo en

    América sea calco y copia. Debe ser creación heroica. Tenemos que dar vida, con nuestra propia realidad, en nuestro propio lenguaje, al socialismo indoamericano. He aquí una misión digna de una generación nueva” (MARIÁTEGUI, 1994, p. 261).


    Las transformaciones radicales que se han producido con el desmoronamiento de la Unión Soviética y con el derrumbamiento de los países de Europa del Este desde 1989 han puesto en evidencia, en la propia realidad histórica, los límites y las contradicciones de una de las formas de socialismo: el socialismo burocrático. Así, el hundimiento del “socialismo realmente existente" nos recuerda que es absolutamente necesario repensar los movimientos políticos y de ideas que surgieron en el siglo XIX y que se reclaman del socialismo. Este análisis parece particularmente urgente hoy.

    En mi opinión, en este momento crucial que vive la humanidad, Mariátegui tiene algo que decirnos. La óptica privilegiada que nos permite adoptar nuestra propia actualidad nos hace captar mejor cómo su concepción socialista no conduce a las aporías del socialismo burocrático ni a la pasividad de la democracia liberal. Además, a pesar del tiempo transcurrido desde su muerte, algunos de sus temas permiten aportar nuevas perspectivas al viejo debate sobre el socialismo.

    Para comprender la vitalidad de esta perspectiva es necesario partir de la hipótesis según la cual Mariátegui no concebía el socialismo como un modelo acabado de la futura sociedad, sino que lo pensaba como una constante búsqueda de formas de vida nueva, diferente a las del orden vigente. Además, consideraba que no podía existir ningún grupo de intelectuales o partido político, capaz de detentar la verdad y de imponer a los trabajadores un socialismo ya hecho.

    En este sentido, el socialismo para Mariátegui aparece como un método que permite la constante exploración de la sociedad para encontrar allí las posibilidades de su transformación. Así, en su proyecto se elaboran los elementos necesarios para construir una teoría sobre el socialismo en el Perú, a partir de las condiciones sociales concretas del país y en función de los objetivos de liberación que se encuentran inscritos en esta realidad.

    Entre estos objetivos, tres me parecen particularmente fundamentales: Primero, la creación de nuevas relaciones materiales como base de nuevas relaciones sociales. Segundo, la construcción de un poder político basado en las posibilidades de autogobierno de los individuos. Tercero, la cristalización de

    relaciones de solidaridad consideradas como el fundamento de un nuevo sentido de la existencia social.

    En cuanto a las relaciones sociales vinculadas al trabajo, Mariátegui proponía que el ayllu o comunidad indígena sería la célula material del socialismo indoamericano, como lo sostuvo en el texto “Principios de política agraria nacional”:

    “El ‘ayllu’, célula del Estado incaico, sobreviviente hasta ahora, a pesar de los ataques de la feudalidad y del gamonalismo, acusa aún vitalidad bastante para convertirse gradualmente, en la célula de un Estado socialista moderno” (MARIÁTEGUI, 1994, p. 322).

    Esta propuesta significaba que las relaciones de trabajo estarían regidas por la reciprocidad, esto es, el intercambio entre las personas se establecía por la relación de dar-recibir, lo requería que el trabajo se organizara comunitariamente.


  3. El papel del mundo del trabajo en la construcción de los caminos más eficaces para la construcción del socialismo indoamericano


    Un problema que podemos identificar en la obra de Mariátegui consiste en la búsqueda de los caminos más eficaces para alcanzar el nuevo orden social que debería construirse, esto es, el socialismo indoamericano. Con este objetivo buscó en la realidad las fuerzas sociales capaces de cuestionar el vigente orden oligárquico. No las imaginó, no fue una arbitraria especulación intelectual. Exploró lo que estaba ocurriendo en la sociedad peruana de la década de 1920 y encontró las fuerzas sociales antioligárquicas que buscaban construir un nuevo orden social.

    El proyecto de Mariátegui reposaba en la idea según la cual el socialismo se construiría según el ritmo de las experiencias vitales de los propios trabajadores, los que irían librándose progresivamente de la dominación del dinero y del poder y conquistando su autonomía individual y colectiva.

    Mariátegui veía en los movimientos sociales de los trabajadores del campo y de la ciudad las fuerzas capaces de llevar adelante la lucha por una nueva sociedad. Consideraba fundamentales el movimiento de los campesinos, el movimiento obrero, el movimiento estudiantil, el movimiento de los maestros de escuela y el de los empleados del sector servicios. En las demandas de todos ellos encontraba el rechazo al orden oligárquico y la aspiración para alcanzar una nueva forma de existencia social.

    Mariátegui se vinculó con el movimiento obrero con anterioridad a su viaje a Europa. Apoyó la lucha por el establecimiento de la jornada de las 8 horas y también la huelga contra el “alza de las subsistencias”. Cuando regresó al Perú el año 1923, participó activamente en los procesos de organización de los trabajadores que culminaron, en 1929, con la creación de la Confederación General de Trabajadores del Perú.

    Mariátegui también consideraba importante que la clase media “se orientase a la organización gremial”. Por eso, además del apoyo a las luchas obreras, resaltó la importancia de la organización de los maestros de escuela que reclamaban mejores condiciones de vida, pero también el cambio del contenido y de los métodos de enseñanza y una revalorización de su rol social. En este sentido escribió, en “El problema del preceptorado”, que “no es la remuneración miserable lo único que aleja de la enseñanza a los jóvenes que se sienten inclinados al magisterio. Es en general, la condición miserable y humillada del preceptor del Estado, condenado casi siempre, para conservar su puesto, a renunciar a su dignidad intelectual y espiritual, enrolándose mansamente en el séquito de capituleros de un gamonal omnipotente” (MARIÁTEGUI, 1994, p. 375).

    Otro grupo al que Mariátegui prestó atención fue el de los trabajadores de servicios. Aunque veía sus limitaciones, consideró un hecho significativo la fundación de la Confederación de Empleados de Lima y Callao en la medida en que “merece ser señalado como un importante signo de concentración y actividad de la clase media” (MARIÁTEGUI, 1994, p. 237).

    Teniendo en cuenta la importancia que Mariátegui le asignaba a las organizaciones de los trabajadores en la lucha por la transformación del orden social existente por uno socialista, los sindicatos y las comunidades indígenas eran las formas de organización que consideraba claves en la lucha por alcanzar el socialismo indoamericano.


  4. Algunas consideraciones sobre el mundo del trabajo en Perú de la segunda mitad del siglo XX


    El examen que propone Mariátegui del mundo del trabajo del Perú de la década de 1920 nos ofrece una perspectiva teórica y metodológica para entender la heterogeneidad estructural de la formación social peruana de ese periodo y su

    necesaria transformación. Esa perspectiva de análisis se puede resumir en tres momentos, como lo hemos señalado al inicio de este artículo. Primero, se examinan las tendencias del desarrollo del mundo del trabajo; segundo, se discute sobre la nueva sociedad que quisiéramos tener; y, tercero, se exploran los caminos más apropiados para alcanzar esa nueva sociedad. En lo que sigue se presentan algunos sucintos trazos de una investigación que sería necesario llevar adelante sobre las características de las transformaciones en el mundo del trabajo que se producen en el Perú desde mediados de los años 1950.

    Para este examen se puede tener como punto de partida la afirmación de la existencia de una nueva heterogeneidad estructural de la sociedad peruana, hipótesis propuesta por Quijano (1990) para explicar la naturaleza de las sociedades latinoamericanas actuales. Esta nueva heterogeneidad estructural aparece más compleja cuando examinamos los patrones de producción que han ido surgiendo en el proceso de reorganización del Perú en la segunda mitad del siglo XX, lo que ha determinado una extrema diferenciación de la fuerza de trabajo.

    En primer lugar, aparece la heterogeneidad del capital. Este está atravesado por tres divisiones principales: i) capital formal vs. capital informal; ii) capital del circuito interno de acumulación vs. capital del circuito internacionalizado de acumulación; iii) capital monopólico vs. capital no monopólico. Según esas líneas de diferenciación se tiene las principales formas de producción y de la fuerza de trabajo:

    1. Capital monopólico internacionalizado y capital monopólico del circuito interno de acumulación. Está constituido por actividades de producción de bienes o servicios en gran escala, con tecnología avanzada y con alta productividad. Estas actividades se encuentran insertadas en el mercado mundial, en un caso, y en otro, en el mercado interno. La fuerza de trabajo en este sector está altamente calificada y con alta productividad. Sus ingresos son elevados y no existe un ejército industrial de reserva. Cuantitativamente minoritaria se concentra principalmente en Lima y en los enclaves mineros y petroleros.

    2. Capital no monopólico formal. Se trata del capital mediano y pequeño. Utiliza tecnologías relativamente simples, es de baja productividad y produce bienes o servicios en pequeña escala. Este sector absorbe la parte mayor del trabajo asalariado. Sus ingresos son medios y bajos y tiene diversos niveles de calificación. En este sector el ejército industrial de reserva tiene un rol fundamental para la determinación de los salarios.

    3. Capital no monopólico informal. Se trata del capital no regulado legalmente o que utiliza fuerza de trabajo contratada en un mercado informal de mano de obra. Se puede considerar la existencia de un capital que actúa parcialmente en la informalidad o que sus actividades son totalmente informales o de trabajadores que venden su trabajo o fuerza de trabajo a empresarios formales o informales. Predomina la fuerza de trabajo no calificada. Sus ingresos son insuficientes y se encuentra entre la población explotada sobre todo por la extensión de la jornada de trabajo. En este sector el ejército industrial de reserva es la clave para comprender la situación de extrema explotación en la que se encuentran los trabajadores, las modalidades dominantes son las del "pauperismo" y la "intermitente", las que configuran lo que Quijano ha denominado una "masa marginal". El capital se ha informalizado para contrarrestar la baja de la tasa de ganancia y disminuir el peso de los trabajadores organizados sindicalmente. Este hecho trae como consecuencia la existencia de una de las peores formas de trabajo degradado: sin beneficios sociales, con salarios muy bajos y con largas jornadas de trabajo en condiciones inadecuadas.

      En segundo lugar, la pequeña producción mercantil simple. Se trata de pequeñas unidades productivas que venden bienes o servicios (trabajo) al mercado pero que por su nivel de productividad no están en condiciones de ingresar al proceso de acumulación ampliada del capital. En esta forma de trabajo cada productor posee y trabaja con sus propios medios de producción para producir valores de uso (trabajo útil: actividad productiva encaminada a un fin, la creación de valores de uso); en este sentido diferente al "trabajo abstracto". El trabajo útil viene a ser "trabajo cuya utilidad viene a materializarse así en el valor de uso de su producto"). Las relaciones entre los propietarios tienen un carácter de relaciones de cambio (venden valores de uso para comprar valores de uso y así satisfacer sus necesidades). En consecuencia, la producción mercantil simple implica: i) propiedad privada de los medios de producción; ii) división social del trabajo; y iii) intercambio de bienes y servicios en el mercado.

      En tercer lugar, la economía de la reciprocidad. Se trata de un sector donde se intercambia trabajo y fuerza de trabajo por fuera del mercado. Es diferente a otras formas de trabajo sin salario (como el trabajo en el hogar o la pequeña producción mercantil simple) porque se organiza según la lógica comunitaria, esto es, interviene en un modo de organización social donde todos los miembros son iguales y

      participan en los asuntos públicos de manera inmediata y directa. Si bien existe incipientemente en organizaciones populares (consumo, servicios, producción), su desarrollo completo implica la existencia de una estructura de autoridad, como en el caso del autogobierno de las comunidades urbanas, pues requiere de un plan comunitario de trabajo.

      En el proceso de reorganización de la sociedad peruana iniciado en los años setenta, es posible constatar el surgimiento de un sector nuevo de la economía donde los individuos intercambian bienes y servicios por fuera del mercado. Se trata de un fenómeno definido, por la existencia de relaciones sociales de reciprocidad.

      La investigación de este fenómeno es todavía incipiente. A decir verdad, hasta hoy no se ha logrado constituir una problemática específica capaz de delimitar teóricamente el objeto del estudio. Sin embargo, empiezan a aparecer algunas interrogantes que permiten comenzar a ordenar datos e informaciones obtenidos con otros propósitos, particularmente en los estudios sobre la informalidad y los movimientos sociales urbanos. Estas reflexiones tienen por objeto contribuir al planteamiento de conceptos que permitan comprender los modos de constitución, funcionamiento y consecuencias del sector económico basado en relaciones sociales de reciprocidad.

      Considero de fundamental importancia el estudio de este fenómeno. Por una parte, porque permite descifrar el sentido de las tendencias en las que se está procesando la reorganización de la sociedad peruana; por otra parte, porque es posible empezar a precisar la naturaleza de los actuales procesos de cambio social. Es evidente que por tratarse de un fenómeno que abarca a extensas capas de la población, el estudio de las relaciones sociales de reciprocidad constituye una tarea prioritaria para las ciencias sociales.

      Se debe tener en cuenta que es necesario considerar las relaciones sociales de reciprocidad como un proceso y no como un objeto. Esto significa no quedarnos con las apariencias: pobreza, informalidad, estrategias de sobrevivencia. Se tiene que conceptualizar estos hechos en términos de las relaciones de producción que los constituyen y permiten comprender su institucionalización y sus transformaciones.

      Por otra parte, es indispensable desligar el fenómeno de la reciprocidad de una concepción ética de la solidaridad. En este sentido, no se trata de un sentido altruista de la vida que llevaría a las personas a colaborar con los demás con el

      objeto de ayudarlos a sobrevivir en las condiciones de extrema pobreza en las que se encuentran. Más bien, tiene relación con las condiciones materiales de la existencia social que lleva a un conjunto de individuos a resolver sus problemas para subsistir. Desde esta perspectiva, las relaciones de reciprocidad aparecen como una respuesta racional en el contexto de la reestructuración de la economía peruana en el período reciente y allí, a no dudarlo, surge una nueva ética.

      Por esta misma razón, se tiene que señalar la novedad del fenómeno. No es posible pensar que se trate del antihistórico restablecimiento de relaciones sociales del Perú prehispánico. Quizás, ciertamente, exista un trasfondo cultural que permita el desarrollo de condiciones para su emergencia; pero, en lo fundamental, son nuevas relaciones sociales producto de la actual organización social del país. Una forma social antigua en un arreglo social nuevo necesariamente tiene una naturaleza inédita pues las relaciones sociales solamente pueden definirse al interior de una estructura social específica.

      Por lo tanto, lo definitorio del fenómeno es la forma característica en la que se realizan los intercambios de trabajo y de fuerza de trabajo. A diferencia de otros niveles de la actividad económica, en estas relaciones no está presente el mercado, ni su medio, el dinero. En lugar de ello, el intercambio se produce mediante equivalentes fijos, esto es, no negociables. La reciprocidad reemplaza al mercado y el trueque al dinero. Este tipo de relaciones sociales supone que los cambios se realizan entre individuos socialmente equivalentes. No se pueden establecer relaciones de reciprocidad entre desiguales. Por ello, no existe la explotación ni el objetivo de la actividad económica es la ganancia.

      Estas reflexiones han estado orientadas a examinar tres problemas principales. En primer lugar, determinar los mecanismos y las condiciones que han hecho posible el surgimiento de este tipo de relaciones sociales. En segundo lugar, establecer sus modos de organización y funcionamiento. Y, en tercer lugar, señalar sus tendencias de desarrollo.

      En cuanto a lo primero, el hecho determinante está dado por el proceso de reorganización de la economía capitalista y sus consecuencias sobre la sociedad peruana. La crisis del capital iniciada en los años setenta significó la ruptura del modelo de acumulación capitalista instaurado después de la Segunda Guerra Mundial y un proceso de reestructuración de los modos de producción, circulación y consumo a escala mundial. En la sociedad peruana, esos cambios se han traducido

      en el reordenamiento y en la emergencia de las relaciones sociales de producción, como las relaciones de reciprocidad.

      En cuanto a lo segundo, esas relaciones de producción se articulan vinculadas a organizaciones comunitarias, con actividades de tipo artesanal, agrícola y, sobre todo, de servicios de consumo básicos. Su función principal es la de proveer recursos para la subsistencia y, de este modo, posibilitar la sobrevivencia de amplias capas de la población que el proceso de reestructuración de la sociedad peruana tiene a excluir y marginar. Ciertamente, los individuos involucrados en esas relaciones de producción también están vinculados con otras formas de producción (trabajo asalariado o pequeña producción mercantil simple, por ejemplo). Este hecho no niega la existencia de relaciones de reciprocidad; solamente pone de manifiesto sus complejas articulaciones con el conjunto de la sociedad.

      Finalmente, en relación al tercer problema, se puede señalar que la ampliación y consolidación de las relaciones de reciprocidad dependerá del ritmo y las posibilidades del reordenamiento del capitalismo dependiente en el Perú. Las tendencias de la economía actual muestran, sin embargo, que la exclusión es intrínseca al sistema y que las relaciones de reciprocidad han llegado para instalarse de manera duradera, con efectos significativos en la economía, la estructura social, la política y la cultura de la sociedad peruana en su conjunto.


      Referencias


      GERMANÁ, C. El socialismo indoamericano de José Carlos Mariátegui: Proyecto de reconstitución del sentido histórico de la sociedad peruana. Lima: Amauta, 1995.

      MARIÁTEGUI, J. C. Mariátegui Total. Lima: Amauta, t. I., 1994.

      PRIGOGINE, I. y STENGERS, I. La nueva alianza. Metamorfosis de la ciencia. Madrid: Alianza Editorial, 2004.

      QUIJANO, A. Reencuentro y debate: una introducción a Mariátegui. Lima: Mosca Azul Editores, 1981.

      QUIJANO, A. Imperialismo, clases sociales y Estado en el Perú: 1890-1930. Lima: Mosca Azul Editores, 1985.

      QUIJANO, A. La nueva heterogeneidad estructural de América Latina. Hueso Húmero, núm. 26, pág. 8-33, febrero. 1990.

      QUIJANO, A. Cuestiones y horizontes. De la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder. Lima: UNMSM/CLACSO, 2020.

  5. 2, no 47, 2024 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799X


OCIO Y TRABAJO EN CLAVE DE BUEN VIVIR. REFLEXIONES PARA CONSTRUIR OTRO FUTURO1


Alberto Acosta2


“Los ratos de ocio son la mejor de todas las adquisiciones.”

Sócrates


Resumen

Atrás quedan las promesas del “desarrollo”, nutridas de uno de los corazones de la Modernidad: el “progreso”. En la vorágine, estamos abocados a replantearnos el tema del trabajo y del ocio. Se ha transformado el fenómeno del “ocio”, para expresar libertad y autonomía en un espacio mercantil de la vida misma. El “ocio mercantil” es reflejo de un mundo “mal desarrollado”, donde “trabajo” y “ocio” terminan igualmente alienados a la acumulación del capital. Pero no todo es desalentador. Hay reflexiones y acciones que demandan la construcción de sociedades radicalmente distintas.

Palabras clave: Modernidad, Desarrollo, Progreso, Ocio y Trabajo.


TRABALHO E ÓCIO COMO CHAVE DO BEM VIVER: REFLEXÕES PARA CONSTRUIR OUTRO FUTURO


Resumo

São antigas as promessas de "desenvolvimento", alimentado por um dos corações da Modernidade: o “Progresso”. No furacão somos obrigados a reconsiderar a questão do trabalho e do lazer. O fenômeno do “lazer” se transformou, para expressar liberdade e autonomia, em um espaço comercial da própria vida. O “lazer comercial” é reflexo de um mundo “pouco desenvolvido”, onde “trabalho” e “lazer” acabam igualmente alienados, para a acumulação de capital. Mas nem tudo é desanimador. Há reflexões e ações que demandam a construção de sociedades radicalmente diferentes.

Palavras-chave: Modernidade, Desenvolvimento, Progresso, Lazer e Trabalho


WORK AND LEISURE IN THE KEY OF GOOD LEAVING


Abstract

Gone are the promises of "development", nourished by one of the hearts of Modernity: "progress". In the maelstrom, we are bound to reconsider the issue of work and leisure. The phenomenon of "leisure" has been transformed, to express freedom and autonomy, it became a commercial space of life itself. "Commercial leisure" is a reflection of a "poorly developed" world, where "work" and "leisure" end up equally alienated, to the accumulation of capital.

But not everything is discouraging. There are reflections and actions that demand the construction of radically different societies.

Keywords: Modernity, Development, Progress, Leisure and Work.


1 Artigo recebido em 08/01/2024. Primeira Avaliação em 09/01/2024. Segunda Avaliação em 11/01/2024. Aprovado em 19/01/2024. Publicado em 22/02/2024.

DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.61362

2 Economista ecuatoriano. Profesor universitario. Ministro de Energía y Minas (2007). Presidente de la Asamblea Constituyente (2007-2008). Candidato a la Presidencia de la República del Ecuador (2012-2013). Compañero de lucha de los movimientos sociales. Autor de varios libros y artículos. Correo: alacosta@48@yahoo.com.

El punto de partida


Atrás quedan las promesas del “desarrollo”, nutridas de uno de los corazones de la Modernidad: el “progreso”. Cada vez más se desvanecen las ilusiones para superar el “subdesarrollo” en el mundo. La cruzada incesante y frustrante por alcanzar “el desarrollo” persiste. Se oscila desde los economicismos que igualan “desarrollo” con crecimiento del PIB a visiones más complejas como del “desarrollo a escala humana” o del “desarrollo sustentable”, por citar apenas un par3.

Es importante tener en cuenta que también aquellos países que se asumen “desarrollados” están presos en la trampa del “progreso”. Incluso aquellas economías exitosas de los últimos años, como la china y la india, caminan hacia el mismo naufragio programado. En todos los casos el problema no son los senderos escogidos, sino el concepto mismo de “desarrollo”, el que nos lleva a un camino sin salida. Y, mientras el desencanto aumenta, emergen con creciente fuerza discusiones y sobre todo propuestas e inclusive acciones encaminadas a construir otros horizontes.

Lo que interesa ahora es criticar y superar al concepto mismo de “desarrollo”. Incluso los “grandes logros tecnológicos” son insuficientes –y algunos hasta contraproducentes- para resolver los graves problemas de la Humanidad. Los resultados están a la vista y, por supuesto, los retos también.

En medio de esta vorágine de la Modernidad, cobra cada vez más fuerza el fenómeno del “ocio” (que en ningún caso puede ser confundido con “tiempo libre” provocado por el desempleo o forzado por una pandemia). En vez de expresar libertad y autonomía del ser humano, el “ocio” vilmente devino en un espacio mercantil de la vida misma, otro más de los tantos espacios mercantiles creados por el capital. De ser una parte integral de la vida en muchas comunidades, un momento de creatividad y celebración de lo sagrado, el “ocio” pasó a ser un mero espacio de descanso para reponer la fuerza de trabajo y seguir produciendo.

Así, el “ocio mercantil”, objeto incluso de políticas públicas, es un reflejo más de un mundo “maldesarrollado” (TORTOSA, 2010). Un mundo donde “trabajo” y “ocio” terminan igualmente alienados, subordinados a la lógica de acumulación del capital. Pero no todo es desalentador. Hay reflexiones y acciones alternativas.

3 Este artículo resume gran parte del texto del autor (2021), mencionada en la bibliografía, actualizando y ampliando varios puntos.

¿Qué entendemos por Buen Vivir?


El principio que inspira al Buen Vivir4 es la armonía o, si se prefiere, el equilibrio (sin ser la contraposición de fuerzas opuestas). Equilibrio y armonía en la vida del ser humano consigo mismo, en los individuos en comunidad, entre comunidades, a pueblos y naciones. Y todos, individuos y comunidades, viviendo en armonía con la Naturaleza. Qué claridad tienen las palabras del líder indígena ecuatoriano, Luis Macas Ambuludi:

“En este contexto, caben algunas precisiones sobre el concepto del Sumak Kawsay. A partir de nuestras vivencias, podemos decir que se trata de un concepto que es la columna vertebral en el sistema comunitario. Es una construcción colectiva a partir de las formas de convivencia de los seres humanos, pero ante todo, en coexistencia con otros elementos vitales, donde se constituyen las condiciones armónicas entre los seres humanos, la comunidad humana y las otras formas de existencia en el seno de la Madre Naturaleza. Desde nuestra comprensión, la vida es posible, en tanto existe la relación y la interacción de todos los elementos vitales.”

Punto clave, somos comunidad humana y comunidad natural, en suma una sola comunidad de vida.

En esta concepción de vida la relacionalidad es preponderante, pues el mundo posee un incesante y complejo flujo de interacciones e intercambios: todo se relaciona con todo. Dar y recibir, desde infinitas reciprocidades, complementariedades y solidaridades, es la base del Buen Vivir. Trabajar y celebrar, como manifestaciones extraordinarias de la cotidianidad, son momentos para disfrutar de forma más intensa la vida al compartir en comunidad lo sagrado de la Naturaleza e incluso al redistribuir el bienestar acumulado inequitativamente.

Es decir, el Buen Vivir asume la postura ética que debe regir la vida humana: cuidar de sí mismo y simultáneamente de los demás seres (humanos y no humanos), buscando siempre equilibrios que aseguren el fluir de la vida. Un mundo inspirador de armonías y equilibrios, donde la vida está por sobre cualquier otra


4 Consultar a más de los textos del autor de estas líneas, entre otros, en Oviedo Freire 2010; Huanacuni Mamani 2010; Houtart 2011; Giraldo 2014; Esterman 2014; Gudynas 2014; Solón 2016. Se puede incorporar otras reflexiones que pueden sintonizarse con elementos del Buen Vivir provenientes de los aportes conviviales de Ivan Illich (2015), tanto como las lecturas de André Görz (2008), pensadores sucitadores de profundos procesos de reflexión transformadora desde Europa.

consideración.5 En sencillos términos políticos, diríamos que el Buen Vivir busca reproducir la vida y no el capital.

Si bien el Buen Vivir debe comprenderse desde diferentes enfoques y visiones evitando homogenizaciones -pues restringen las visiones y comprensiones de otras opciones por igual potentes-, el núcleo de los debates encierra lo holístico de ver a la vida como relación, relación del ser humano consigo mismo y con otros seres humanos y no humanos: la Pachanama (Madre Tierra), en una permanente complementariedad entre los unos y los otros. En este punto dejamos constancia de la trascendencia de los Derechos de la Naturaleza, incluidos en la Constitución de Ecuador del año 2008 (ACOSTA, 2019a).

Una lectura muy clara es la que ofrece - desde la Amazonía - el pueblo kechwa de Sarayaku al presentar su propuesta de kawask-sacha o selva viviente:

“Kawsak-sacha es un ser vivo, con conciencia, constituido por todos los seres de la Selva, desde los más infinitesimales hasta los seres más grandes y supremos; incluye a los seres de los mundos, animal, vegetal, mineral, espiritual y cósmico, en intercomunicación con los seres humanos brindando lo necesario para revitalizar sus facetas emocionales, psicológicas, físicas, espirituales y restablecer la energía, la vida y el equilibro de los pueblos originarios.”

Tal cosmovisión debe analizarse desde la historia y el presente de los pueblos indígenas, como parte de su continuidad histórica. Aquí pasado y futuro se funden en un presente de (re)conocimiento y (re)construcción de alternativas alterativas, atado a sus luchas de resistencia frente a interminables procesos de conquista y colonización. En definitiva lo que cuenta es recuperar, sin idealizaciones, el proyecto colectivo de futuro de la comunidad indígena con una clara continuidad desde su pasado.

Estas utopías andinas y amazónicas -posibles y realizadas- se plasman en su discurso, en sus proyectos políticos y especialmente en sus prácticas sociales y culturales, inclusive económicas. Aquí radica una de las mayores potencialidades del Buen Vivir, siempre que tengamos la capacidad de aprehender las experiencias de pueblos que viven con dignidad y armonía desde tiempos inmemoriales, pero sin idealizar la muchas veces dura y compleja realidad indígena.


5 Una conclusión que podríamos ampliar también a la Encíclica Laudato del Papa Franciso. La discusión que abrió esta Encíclica –marginada por los grandes medios de comunicación- ofrece aproximaciones muy interesantes, para muestra el texto de Wolfgang Sachs (2017).

Actualmente el mundo indígena sigue siendo víctima de dominación, explotación y represión propios de la larga noche colonial, cuyas sombras aún oscurecen nuestros días republicanos sea con gobiernos neoliberales o progresistas. La influencia colonial y capitalista está presente y se filtra cada vez más a través de múltiples formas en su mundo. También cabe aprender de aquellas historias trágicas de culturas desaparecidas por diversas razones (incluyendo sus errores, agresiones a la Naturaleza, desigualdad, violencia); en estas experiencias hay elementos para pensar soluciones innovadoras ante los actuales desafíos sociales y ecológicos.

Entonces, esta aproximación a las experiencias indígenas no está exenta de conflictos, aproximaciones excluyentes e inclusive dogmáticas.

Sin negar otros aportes, en muchos saberes indígenas -fuentes insoslayables del sumak kaysay (traducido en Ecuador como Buen Vivir y en Bolivia como Vivir Bien)- no existe una idea análoga al “desarrollo”6. No hay una concepción lineal de la vida que establezca un estado anterior y posterior, a saber, de “subdesarrollo” y “desarrollo”; dicotomía por la que deberían transitar personas y países para conseguir el bienestar, como ocurre en el mundo de la Modernidad. Tampoco existen conceptos análogos a “riqueza” y “pobreza” vistos como acumulación y carencia material. En estos mundos, el ser humano es visto como un actor más en la Naturaleza, y no como “su corona”.

Sin negar las especificidades de los mundos indígenas de Nuestra América, es necesario complementar y ampliar sus conceptos y vivencias con otros discursos, propuestas y prácticas nacidas desde diversas regiones del planeta, espiritualmente emparentadas en su lucha por una transformación civilizatoria.

En este punto lo que nos interesa es reconocer que al Buen Vivir pueden juntarse muchas otras visiones que rompen con la civilización del capital, proponiendo enfoques y propuestas -similares en muchos aspectos, sin ser iguales en todo- presentes en otras partes del planeta, con varios nombres y características. Se trata de valores, experiencias y sobre todo de prácticas existentes en diferentes

6 Las expresiones más conocidas del Buen Vivir o Vivir Bien, remiten a conceptos existentes en lenguas indígenas de América Latina, tradicionalmente marginados, pero no desparecidos: sumak kawsay o allí kawsay (en kichwa), suma qamaña (en aymara), ñande reko o tekó porã (en guaraní), pénker pujústin (shuar), shiir waras (ashuar) entre otras. Existen nociones similares en otros pueblos indígenas, por ejemplo: mapuches de Chile, kyme mogen; kunas de Panamá, balu wala; miskitus en Nicaragua, laman laka; así como otros conceptos afines en la tradición maya de Guatemala y en Chiapas de México.

períodos y regiones de la Madre Tierra. Son, en definitiva, alterativas en tanto escapan de las bases de la dominante civilización capitalista; en especial, el antropocentrismo y el utilitarismo.

Aquí cabría destacar el ubuntu (sentido comunitario: una persona es una persona solo a través de las otras personas y de los otros seres vivos) en África (D'ALISA, DEMARIA, KALLIS, 2015), el eco-svaraj en la India (democracia ecológica radical, KOTHARI, 2019), el Kyosei en Japón (simbiosis, convivialidad o vivir juntos; Fuse, 2019), el comunitarismo de los zapatistas, la comunalidad de los pueblos de la Sierra Norte de Oaxaca, y de otras regiones de ese Estado del sureste mexicano (GUERRERO OSORIO, 2019).

¿Cómo propiciar y enriquecer dicho diálogo, incluso con estas visiones alternativas que disputan el sentido histórico desde dentro y en los márgenes de la Modernidad con visiones alternativas que surgen de discusiones incluso “convencionales” ?, he ahí uno de los grandes retos que aboraderos rápidamente a continuación.


El Buen Vivir en diálogo con otras visiones alternativas


Aquí cabe notar que, mientras gran parte de las posturas convencionales sobre “desarrollo” e incluso muchas corrientes críticas nacen de conocimientos propios de la Modernidad. Sin negar las potencialidades de esas aproximaciones alternativas, tenemos que reconocer que nuestra miopia y/o comodidad nos amarran todavía a muchas de esas bases de la Modernidad.

Así, por ejemplo, esta constatación confronta de lleno con uno de los pilares de las economías dominantes: el crecimiento económico. Desmontar el fetiche del crecimiento económico de los altares de las diversas lecturas y teorías económicas

-de la liberal a la marxista- es muy complejo. Ya en los años setenta, Herman Daly hablaba de la manía del crecimiento económico. Este mismo economista, en línea con el pensamiento de Nicholas Georgesku Roegen, de origen rumano, el gran pionero de la economía ecológica anticipó las amenazas en ciernes. Daly (1971) concluía en la necesidad de pensar en un decrecimiento económico puesto que el crecimiento constituye una especie de harakiri para la Humanidad.

A Kenneth Boulding (1966), economista que veía a la Tierra como una nave espacial, también en sintonía con Georgesku-Roegen, se le atribuye haber

exclamado que “cualquiera que crea que puede durar el crecimiento exponencial para siempre en un mundo finito es loco o economista”. Una afirmación que conlleva una gran verdad: ninguna economía puede crecer de forma permanente atropellando los límites biofísicos y menos aún atropellando la vida de los seres humanos.

Este punto es medular: Georgesku-Roegen y Daly introdujeron los aspectos ecológicos en la discusión, entendiendo a la economía como un subconjunto del ecosistema. El mismo Daly (1999) resaltó la irracionalidad la economía convencional, que funciona como una máquina idiota. Es decir, como una máquina que metaboliza los recursos naturales, los procesa y agota, desecha y contamina, y debe extraer cada vez más recursos para poder seguir funcionando. Esa es la lógica de acumulación de los modelos de acumulación antropocéntricos.

Daly identificó también otro tema: el punto absoluto de saturación en términos de consumo. Este tema ya fue abordado por John Maynard Keynes discutió este tema en 1930: él aseguraba que se llegaría al límite absoluto de saturación, en términos de consumo, en el año 2030. Entender este tema puede ser hasta posible, pero superarlo es lo complejo. El poder tiene mucha fuerza para sostener la idea de que con el crecimiento económico permanente se pueden satisfacer patrones de consumo apuntalados en necesidades infinitas; una de aquellas promesas

-¡incumplibles!- de la Modernidad.

Enriquecer este debate con todas las opciones posibles es indispensable. Incluso de las críticas al desarrollo, se pueden rescatar algunas lecturas potentes. Para citar apenas un aporte, Manfred Max-Neef, Antonio Elizalde y Martín Hopenhayn (1993) anotan con claridad que el “desarrollo” se refiere a las personas, no a los objetos. Por ello, el objetivo del “desarrollo” es satisfacer las necesidades fundamentales. Ellos consideran que esa satisfacción presenta simultaneidades, complementariedades, compensaciones, siendo las necesidades siempre las mismas en todo tiempo y lugar. Además, ninguna necesidad importa más que otra ni hay un orden fijo de precedencia entre necesidades. Las necesidades no solo son carencias (economicismo típico). Las necesidades comprometen, motivan y movilizan, de modo que son también potencialidades y hasta pueden ser recursos. (p.ej. la necesidad de participar es potencial de participación. Y los satisfactores que interesan son los que tienen potencial sinérgico sobretodo.

No está por demás recordar la división que hacía John Maynard Keynes (1930), cuando se pronunció sobre el tema, pensando en la necesidad de reducir el empleo productivo:

“las necesidades de los seres humanos pueden parecer insaciables. Pero éstas pueden ser de dos clases – aquellas necesidades que son absolutas en el sentido de que las sentimos cualquiera que sea la situación de los otros seres humanos que nos rodeen; y aquellas que son relativas en el sentido de que las sentimos sólo si su satisfacción nos eleva, nos hace sentir superiores, respecto de nuestros prójimos. Las necesidades de la segunda clase, aquellas que satisfacen nuestro deseo de superioridad, pueden ser en efecto insaciables; pues cuanto más alto sea el nivel general, más altas aún serán aquéllas. Pero esto no es tan cierto en cuanto a las necesidades absolutas – pronto podría alcanzarse un cierto punto, más pronto de lo que somos todos conscientes, en el que estas necesidades estén satisfechas en el sentido de que prefiramos dedicar nuestras energías adicionales a propósitos no-económicos.”


En tal sentido, para alcanzar el Buen Vivir la sociedad debería privilegiar los satisfactores sinérgicos que abarcan varias necesidades a la vez. También debería potenciar los “bienes relacionales”, que contribuyen al bienestar no solo por lo que compran y consumen sino también por “lo que hacen con otras personas”. Es decir, se precisan bienes y proyectos que no solo cubren, por ejemplo, las necesidades de subsistencia y afecto, sino que abarcan también las de entendimiento, solidaridad y participación, sin perder de vista nunca el ocio.

A la vez que se recuperan los saberes de la ancestralidad o indigenidad, podemos incorporar múltiples cuestionamientos al “desarrollo” y abrir la puerta al postdesarrollo (UNCETA 2014, 2018), y a las alternativas ecologistas, tanto como a las propuestas que parten del paradigma de los cuidados, muchas sintonizadas con la visión de las armonías con la Naturaleza que caracterizan el Buen Vivir.

De hecho, en paralelo al posicionamiento del Buen Vivir en el ámbito de la discusión política maduraron aún más las críticas acumuladas al “desarrollo”. Tales propuestas de origen andino-amazónico cobraron inusitada fuerza política a inicios de este milenio, al entrar en los debates nacionales - particularmente de Bolivia y Ecuador - en un momento de crisis generalizada del Estado-nación, oligárquico y de raigambre colonial. Es destacable esta irrupción de los movimientos indígenas, en tanto vigorosos sujetos políticos portadores de su propia visión de vida. Propuestas

que, lamentablemente, no inspiraron para nada las políticas de los gobiernos de esos países.

El relacionamiento entre las críticas tradicionales al desarrollo y las visiones post-desarrollistas es a la vez una oportunidad y una amenaza. Como oportunidad, puede llevar a construir de forma horizontal y respetuosa nuevas comprensiones del mundo e imaginar alternativas; y, como amenaza, puede reeditar el apropiamiento y la subordinación de estas visiones indígenas por parte de las tradicionales y usurpadoras lecturas de la modernidad (CARBALLO, 2015). Justo eso aconteció con los gobiernos progresistas de Ecuador (Rafael Correa) y Bolivia (Evo Morales), que vaciaron de contenido el Buen Vivir, para transformarlo en herramienta de propaganda y dispositivo de poder de sus caudillos.

Dejemos sentado que el Buen Vivir –siendo por excelencia un discurso político- no sintetiza ninguna propuesta terminada ni indiscutible, no emerge de reflexiones académicas, ni de propuestas de algún partido político. Y, por cierto, si el Buen Vivir proviene de una matriz andino-amazónica ancestral o de matrices similares -como las afroamericanas-, portadoras de otras racionalidades y otros sentipensares (ESCOBAR, 2014), es muy complejo, sino imposible, entenderla usando el instrumental teórico de la Modernidad.

Estas cosmovisiones plantean alternativas a la cosmovisión occidental al surgir de raíces comunitarias no capitalistas, armónicamente relacionadas con la Naturaleza y desde territorios específicos. Así, el Buen Vivir propone una transformación civilizatoria biocéntrica, ya no antropocéntrica7 (en realidad se trata de impulsar una trama de relaciones armoniosas vacías de todo centro); comunitaria, no solo individualista; sustentada en la pluralidad y la diversidad, no unidimensional, ni monocultural. Para entenderlo se precisa una profunda decolonización intelectual en lo político, en lo social, en lo económico, en lo cultural (QUIJANO, 2014).

Asimismo, al hablar de Buen Vivir, pensamos en plural. Es decir, imaginamos buenos convivires, y no un Buen Vivir único y homogéneo, imposible de cristalizar. El


7 Inclusive el Papa Francisco (2015) destaca que “el antropocentrismo moderno, paradójicamente, ha terminado colocando la razón técnica sobre la realidad, porque este ser humano ni siente la Naturaleza como norma válida, ni menos aún como refugio viviente... En la modernidad hubo una gran desmesura antropocéntrica”.

Buen Vivir, insistamos, no podría erigirse en un mandato global único como sucedió con el “desarrollo” a mediados del siglo XX.

Para el Buen Vivir, en lo social y lo económico el trabajo es clave. Al trabajo se lo ve como una institución de construcción de la sociedad y de ayuda recíproca en lo comunitario. No se trata del trabajo alienante y explotador del capitalismo. El trabajo en el Buen Vivir intencionalmente busca el bien común, y no la acumulación individual que - según el “ingenuo” liberalismo económico - generaría resultados sociales positivos.

En el Buen Vivir se trabaja para satisfacer necesidades e intereses colectivos, con una acción comunitaria llena de condiciones festivas y afectivas. En este contexto aparece el ocio -en paralelo integrado con el trabajo- como vivencia comunitaria que permite reproducir y disfrutar la vida, compartiendo y equilibrando las relaciones. Es importante, entonces, conocer los principios que organizan de alguna manera este mundo de relaciones y ritualidades indígenas.8

Estas formas y prácticas indígenas han sido y son, en consecuencia, igualmente potentes articuladores de rituales culturales y ceremoniales de convocatoria y cohesión de comunidades, así como espacios de intercambio de normas socioculturales. No olvidemos, por ejemplo, que los mercados indígenas, en tanto espacios de convivencia sociocultural, están presentes muchos antes de que lleguen los españoles al Abya Yala, es decir muchísimo antes de que el capitalismo intente expropiarlos. En síntesis, lo económico no se reduce a una esfera separada del resto de la sociedad. Se conecta siempre con lo político, lo social, lo comunitario, lo cultural, y la Naturaleza, sin marginar lo espiritual, que no puede confundirse con lo religioso. Y este reencuentro de las diversas esferas -artificialmente separadas por la Modernidad- podría ser una de las grandes tareas para pensar en otros mundos, en tanto que echemos abajo los muros que separan las actividades productivas del consumo compartido, tanto como el trabajo del ocio.

Es obvio que estas formas de organizar la producción y el consumo generan complicaciones -al menos inicialmente- si se las piensa en espacios más amplios, no comunitarios. Pretender integrarlos en la episteme de la micro- o macroeconomías


8 Aquí, de una gran cantidad de trabajos sobre la economía de los pueblos kechwas, se pueden consultar los textos de Pacari (2021), Guadinango (2012), de la Torre y Sandoval (2004). Para recuperar las enseñanzas del pueblo aymara los aportes de Huanacuni Mamani (2010).

convencionales, aparece como imposible por los límites epistemológicos de todas las ramas de la mal llamada “ciencia económica” (Acosta y Cajas Guijarro 2018).

Otra economía requiere pensarse fuera del antropocentrismo. Hay que aceptar que todos los seres tienen igual valor ontológico sin importar ni su “utilidad” ni el “trabajo” requerido para su existencia. Necesitamos reconocer valores no-instrumentales en lo no-humano, superando el andamiaje materialista de las viejas escuelas económicas. Es decir, esa otra economía acepta que las sociedades necesitan - como toda formación social - de producción, distribución, circulación y consumo para reproducir su vida material y sociopolítica. Procesos que deben regirse por una racionalidad socioambiental y no por el capital, que ahoga al planeta en sus propios desperdicios (SCHULDT, 2013) y es el responsable de tantas pandemias. Esa economía del Buen Vivir demanda des-mercantilizar en primera instancia los bienes comunes (HELFRICH, 2012) y paulatinamente la misma Naturaleza, además de reconocer sus Derechos.

Un corolario de lo dicho es que no podemos seguir mercantilizando la Naturaleza, propiciando su explotación desenfrenada. Tenemos que reencontrarnos con ella asegurando su regeneración, desde el respeto, la responsabilidad y la reciprocidad, pero sobre todo desde la relacionalidad, y eso implica su desmercantilización: un reto en extremo complejo, pero indispensable de asumir.


Trabajo y ocio conviven para el Buen Vivir


Un punto fundamental. La división entre trabajo y ocio debe desaparecer. En palabras de Mihaly Csikszentmihalyi, “cuando el trabajo está bajo nuestro control y supone la expresión de nuestra individualidad, la distinción entre trabajo y ocio se evapora”; más aún si esa individualidad se expresa en comunidad, puesto que somos comunidad.

Por cierto, esa posibilidad demanda superar trabajos alienantes, con jornadas extenuantes o condiciones deplorables, así como toda precarización laboral, como puede ser la actividad en una mina o la misma explotación de las mujeres en los hogares, por ejemplo. Entonces, en este punto cabe introducir el análisis de otras opciones para propiciar cambios que desmonten toda forma de precarización del trabajo, como podría ser, a modo de ejemplo, la renta básica universal incondicional

y permanente (RAVENTÓS, 2021): un tema que confronta lo individualizante que conlleva esta propuesta con la necesidad de consolidar procesos comunitarios propios del Buen Vivir.

Aquí emerge, en suma, la necesidad de una revisión integral del tiempo destinado al trabajo. Y por igual cabe dudar ¿cuál forma social está implícita en los avances tecnológicos -presuntamente democratizadores- a los que deberíamos enterarnos todos? Por ejemplo, en la cotidianidad muchos “avances” tecnológicos sustituyen a la fuerza de trabajo -sea física o intelectual- volviendo caducos a varios trabajadores (ROTMAN, 2017), así como excluyendo o desplazando a quienes no pueden acceder a la tecnología; todo esto redefine al trabajo mismo, normalmente contribuyendo a flexibilizarlo, casi siempre generando más explotación. Esta tendencia se ha potenciado grandemente a través de muchas formas de trabajo virtual o de la mano de la UBERización de varias actividades. Y por cierto habría que recuperar las reflexiones de Jeremy Rifkin que profetizó “el fin del trabajo” (1995), lo que no necesariamente conduce a desarmar las estructuras alienantes de la producción capitalista. Como resultado de estos procesos lo humano deviene mera herramienta para la máquina, cuando la relación debería ser inversa.

John Maynard Keynes, en un texto notable sobre las “Posibilidades económicas de nuestros nietos” de 1930, ya anticipó lo que podría provocar el avance de la técnica. Desde esa perspectiva, para que exista una técnica que incluya a las personas al trabajo en vez de excluirlas, es necesario transformar las condiciones y relaciones sociales de producción. El objetivo es que la técnica potencie las capacidades humanas, y no que las reemplace y las deje en el desempleo al margen de la sociedad. Y que los avances técnicos ahorradores de trabajo –más productividad dirán los economistas tradicionales, más explotación dirán los enfoques más críticos– mejoren la vida de los trabajadores y las trabajadoras, reduciendo sus jornadas de trabajo.

En este punto cabría tomar nota de lo que denunciaba Paul Lafargue (1848), en su libro “El derecho a la pereza”:

“La pasión ciega, perversa y homicida del trabajo transforma la máquina liberadora en instrumento de esclavitud de los hombres libres: su productividad los empobrece. (…) A medida que la máquina se perfecciona y sustituye con una rapidez y precisión cada vez mayor al trabajo humano, el obrero, en vez de aumentar su reposo

en la misma cantidad, redobla aún más su esfuerzo, como si quisiera rivalizar con la máquina. ¡Oh competencia absurda y asesina!”.


Carlos Marx (1867) ampliará la afirmación de Lafargue, su yerno:


“Es evidente que, al progresar la maquinaria, y con ella la experiencia de una clase especial de obreros mecánicos, aumenta, por impulso natural, la velocidad y, por tanto, la intensidad del trabajo (…) Tan pronto como el movimiento creciente de rebeldía de la clase obrera obligó al estado a acortar por la fuerza la jornada de trabajo, comenzando por dictar una jornada de trabajo normal para las fábricas; a partir del momento en que se cerraba el paso para siempre a la producción intensiva de plusvalía mediante la prolongación de la jornada de trabajo, el capital se lanzó con todos sus bríos y con plena conciencia de sus actos a producir plusvalía relativa, acelerando los progresos del sistema capitalista”.

Inclusive John Stuart Mill (1848), inglés liberal y humanista, una de las primeras personas que anticipó la necesidad de una economía estacionaria, afirmó que

“Confieso que no me agrada el ideal de vida que defienden aquellos que creen que el estado normal de los seres humanos es una lucha incesante por avanzar, y que el pisotear, empujar, dar codazos y pisarle los talones al que va delante, que son característicos del tipo actual de vida social, constituyen el género de vida más deseable para la especie humana; para mí no son otra cosa que síntomas desagradables de una de las fases del progreso industrial. (…) la mejor situación para la naturaleza humana es aquella en la cual, mientras nadie es pobre, nadie desea tampoco ser más rico ni tiene ningún motivo para temer ser rechazado por los esfuerzos de otros que quieren adelantarse”.

Volviendo a Carlos Marx, él de los Grundrisse (1857-1858), podemos afirmar que “una nación es verdaderamente rica cuando en vez de doce horas se trabajan seis”, pues no es “el tiempo de trabajo la medida de la riqueza, sino el tiempo libre”.

En este punto emerge una cuestión crucial. Resulta indispensable plantearse con seriedad la reducción, redistribución y reducción del horario laboral, abriendo espacio a ocupaciones social y culturalmente productivas (y no degradantes). Es hora de hacer realidad las reflexiones de otros pensadores como John Maynard Keynes (1930), Bertrand Russell (1932), Karl Goerg Zinn (1998), Niko Paech (2012), entre otros, quienes -que no se distinguieron y distinguen por su vagancia, cabría apostillar, pero si por sus críticas al trabajo asalariado- desde diversas lecturas sugieren reducir la jornada a 3 o 4 horas al día. Otro destacado personaje que debe

ser recordado, sin ser economista o algo por el estilo, es Oscar Wilde (1891), quien rescataba la importancia del ocio liberador.

Uno de los más lúcidos pensadores latinoamericanos, Enrique Leff, plantea que -para transitar hacia otra organización de la producción y de la misma sociedad-, es necesaria

“una estrategia de deconstrucción y reconstrucción, no a hacer estallar el sistema, sino a re-organizar la producción, a desengancharse de los engranajes de los mecanismos de mercado, a restaurar la materia desgranada para reciclarla y reordenarla en nuevos ciclos ecológicos. En este sentido la construcción de una racionalidad ambiental capaz de deconstruir la racionalidad económica implica procesos de reapropiación de la naturaleza y reterritorialización de las culturas.” (2008).

Responder a este reto económico, que además es simultáneamente un reto social y por cierto político, resulta cada vez más urgente en el mundo entero, pero sobre todo en los países industrializados, los mayores responsables de la debacle ambiental global. Que quede claro. No se trata de que los países empobrecidos se mantengan en la pobreza y miseria para que los países ricos sostengan sus insostenibles niveles de vida. Eso nunca. Lo que sí debe ser motivo de atención en el Sur es no repetir estilos de vida social y ecológicamente insostenibles. En los países “subdesarrollados” es, por tanto, igual de urgente abordar con responsabilidad el tema del crecimiento económico. Así, inicialmente, es al menos oportuno diferenciar el crecimiento “bueno” del “malo”; crecimiento que se define por las correspondientes historias naturales y sociales que quedan detrás, tanto como por el futuro que pueda anticipar.

Esta no será una tarea fácil: “Habiendo enseñado la suprema virtud del trabajo intenso, es difícil como puedan aspirar las autoridades a un paraíso en el que hay mucho tiempo libre y mucho trabajo”, más aún cuando se considera “la virtud del trabajo intenso como un fin en si misma, más que un medio para alcanzar un estado de cosas en el cual el trabajo ya no fuera necesario”. Y en este mundo del “trabajo intenso” a la postre “concedemos demasiada poca importancia al goce y a la felicidad sencilla, y no juzgamos la producción por el placer que da al consumidor” (RUSSEL, 1932). Preocupación que coincide plenamente con la de Keynes, formulada un par de años antes.

Esta aproximación al tema nos conduce a una refutación apasionante y también controvertida al supuesto derecho al trabajo, un reclamo –hoy poco conocido- por una sociedad de la abundancia y del goce, liberada de la esclavitud del trabajo:

“Trabajad, trabajad, proletarios, para aumentar la fortuna social y vuestras miserias individuales; trabajad, trabajad para que, haciéndoos cada vez más pobres, tengáis más razón de trabajar y de ser miserables. Tal es la ley inexorable de la producción capitalista”, reclamaba Paul Lafargue en su ya mencionado libro “El derecho a la pereza” (1848).

No hay duda que también para hacer frente de manera justa y democrática al colapso climático es imprescindible transformar y repartir el trabajo, tal como lo proponen y demandan en la actualidad muchas organizaciones en el planeta, como, para mencionar apenas un ejemplo, Ecologistas en Acción (2020); planteamientos que se sintonizan con las discusiones expuestas anteriormente y que tienen ya una larga historia.

Esta tarea implica un esfuerzo de largo aliento y de profundas transformaciones, en el marco de transiciones múltiples, cuyas connotaciones adquirirán una creciente urgencia en tanto se profundicen las condiciones críticas desatadas nacional e internacionalmente, en lo social, ecológico y hasta económico.

Es preciso reconocer que en la actualidad se despliegan acciones transformadoras desde todos los ámbitos posibles. Cada vez se plantean nuevos y más concretos elementos de cómo generar esas transiciones que, por cierto, estarán ajustadas a los respectivos territorios y momentos. Entre otros se pueden mencionar y recomendar las propuestas de Christian Felber (2012) sobre cómo intentar cambiar las empresas capitalistas hacia una economía del bien común. Urge también revisar el estilo de vida vigente de las élites y que sirve de – inalcanzable - marco orientador para la mayoría de la población.

En ese proceso de transiciones múltiples se tendrá que procesar, sobre bases de real equidad, la reducción del tiempo de trabajo y su redistribución9, así como la redefinición colectiva de las necesidades en función de satisfactores ajustados a las disponibilidades de la economía y la Naturaleza. Más temprano que tarde, aún en


9 Véase las reflexiones de Karl-Georg Zinn (1998), Profesor de la Universidad Técnica de Aachen, que plantea generar empleo desde la redistribución del trabajo, por ejemplo.

los mismos países “subdesarrollados” (no se diga en los “desarrollados”), tendrá que priorizarse la suficiencia en tanto se busque lo que realmente se necesita, en vez de una siempre mayor eficiencia -desde una incontrolada competitividad y un desbocado consumismo- que terminará destruyendo a la Humanidad.

En este punto emerge también con fuerza la cuestión del consumo. Aunque pueda ser obvio, vale insistir en la toma de “conciencia respecto al tiempo que le dedicamos al consumo de bienes materiales a costa de los bienes relacionales y el tiempo que le dedicamos al ocio y al entretenimiento” (SCHULDT, 2013). Tema aún más complejo si se lo analiza desde los logros tecnológicos alcanzados, que no han provocado la ansiada liberación del trabajo alienante.

En síntesis, individuos y comunidades deberán “ejercitar su capacidad de vivir diferente” (todos y todas en dignidad, en armonía con la Naturaleza, NdA), como plantea el alemán Niko Paech; un economista suscitador de reflexiones transformadoras desde su práctica comprometida y coherente, que esboza el camino hacia “una economía del post-crecimiento” dando paso a la “liberación de lo superfluo” (BEFREIUNG VOM ÜBERFLUSS, 2012); con esta opción de cambio, creada desde abajo, a la postre individuos y comunidades presionarían a que los gobernantes las incluyan en sus políticas. En esta línea también caben las propuestas de Pierre Rabhi (2013), un agricultor, pensador y escritor francés de origen argelino, que invita a caminar hacia una sociedad de “la sobriedad feliz”.

Definitivamente, los países deben “aprender a vivir con lo nuestro, por los nuestros y para los nuestros”, como recomendaba el argentino Aldo Ferrer, reduciendo la nociva dependencia del mercado externo. Las palabras de John Maynard Keynes (1933) parecen haber inspirado años más tarde a Ferrer, pues el economista inglés simpatizaba más con una suerte de desarrollo nacional que uno sustentado en el enredo económico entre nacionanes.

En definitiva, la tarea es repensar el mundo del trabajo vinculándolo con otros mundos de los que nunca debió aislarse. Y en ese empeño toca repensar también el ocio, no para normarlo, sino para liberarlo; no para hacer de él un negocio, sino para desmercantilizarlo ampliando su potencial comunitario, creativo y lúdico, diversificándolo desde la enorme pluriversidad cultural del mundo.

Ya no se trata solo de defender la fuerza de trabajo y de recuperar el tiempo de trabajo excedente para los trabajadores, es decir de oponerse a la explotación de

la fuerza de trabajo recuperando el derecho al ocio como un Derecho Humano. Tampoco es suficiente superar el consumismo alienante y destructor. En juego está, además, la defensa de la vida en contra de esquemas antropocéntricos de organización socioeconómica, destructores del planeta vía depredación y degradación ambientales. Tanto la explotación al ser humano como a la Naturaleza es inadmisible.

Lo anterior nos dice cuán urgente es superar el divorcio entre Naturaleza y Humanidad, así como el divorcio entre producción alienante y ocio emancipador. Tal cambio histórico es el mayor reto de la Humanidad si no quiere terminar sus días en medio de la barbarie, la locura y el suicidio colectivo.


El Buen Vivir una utopía realizada y por realizar


Todo este texto huele a utopías, y de eso mismo se trata. Hay que escribir todos los borradores posibles de las utopías que sean necesarias para terminar cambiando este mundo tan cargado de violencias, desigualdades, así como de irracionalidades e injusticias, con pandemias diversas que no paran y que aumentarán si no hay un cambio de rumbo10. En suma, se trata de utopías que critican esta distópica realidad desde los buenos convivires. Utopías posibles que, al ser proyectos de vida solidaria y sustentable, deben ser alternativas colectivamente imaginadas, políticamente conquistadas y construidas, a ejecutarse con acciones democráticamente radicales, en todo momento y circunstancia. En la mira está superar la miseria de la modernización, tan miserable que ya nos está llevando a la Modernización de la miseria.

La tarea incluye dar paso a diversas prácticas alternativas y sobretodo alterativas, muchas existentes ahora en todo el planeta. Estas son, sobre todo, acciones orientadas por horizontes utópicos -en algunos casos se podría incluso de hablar de utopías realizadas- que propugnan una vida en armonía entre los seres


10 Las reflexiones sobre cómo construir otros mundos aprendiendo de lo que representa la pandemia del coronavirus llenan ya lista enteras de bibliografía. Sería inútil tratar de al menos recoger las más relevantes. Por su profundidad me permito recomendar el trabajo de Horacio Machado Aráoz: “Imaginando un (otro) mundo pospandemia Desafíos y posibilidades

desde la Ecología Política del Sur” (2020).

humanos y de estos con la Naturaleza, que van prefigurando respuestas cada vez más potentes, que incluso trascienden las fronteras de muchos países11.

Las propuestas del Buen Vivir provenientes del mundo originario andino-amazónico no son las únicas alternativas con capacidad alterativas. Hay muchas otras. La demanda histórica radica, entonces, en sumar múltiples propuestas de vida comunitaria, así como las que afloran desde una multiplicidad de luchas feministas, campesinas, ecologistas, entre otras. Hay inclusive una multiplicidad de puntos de encuentro con las acciones del movimiento “decrecentista” 12 surgido desde el Norte global, en estrecha sintonía con el post-extractivismo particularmente en el Sur global (ACOSTA Y BRAND, 2017).

Para propiciar esta “gran transformación”, se cuenta con esas prácticas concretas, no con simples teorías. Inclusive existen diversas opciones de acción planteadas a nivel internacional.13 Y en este esfuerzo múltiple hay mucho que aprender del Buen Vivir, visto siempre en plural: buenos convivires.

En definitiva, hay que cuestionar el fallido intento de impulsar -como mandato global y como camino unilineal- el “progreso” en su deriva productivista y el “desarrollo” como dirección única, sobre todo su visión mecanicista de crecimiento económico. No se trata de reeditar los ejemplos supuestamente exitosos de los países “desarrollados”. Primero, eso no es posible. Segundo, no son realmente exitosos. Tercero, el mero intento nos está llevando a una hecatombe.

La tarea no es fácil. Superar visiones dominantes y construir nuevas opciones de vida tomará tiempo. Habrá que hacerlo sobre la marcha, reaprendiendo, desaprendiendo y aprendiendo a aprender nuevamente, y todo esto simultáneamente. Estas acciones exigen una gran dosis de constancia, voluntad y humildad; y sobre todo mucha creatividad y cada vez más alegría. Una tarea que


11 La propuesta de dejar el crudo en el subsuelo en la Amazonía ecuatoriana: la Iniciativa Yasuní-ITT, fue y sigue siendo un gran ejemplo de acción global, surgida desde la sociedad civil de un pequeño país como es Ecuador (Acosta 2014). Propuesta que está a punto de hacer realidad luego del histórico triunfo en la consulta popular para dejar el crudo en el subsuelo, realizada el 20 de agosto del 2023.

12 Federico Demaria, Francois Schneider, Filka Sekulova, Joan Martínez-Alier; “¿Qué es el decrecimiento? De un lema activista a un movimiento social, Revista Ecuador Debate 103, CAAP, Quito, 2018.

13 Recuperar nuevos espacios estratégicos de acción es una tarea cada vez más urgente; por ejemplo, la gran transformación puede y debe darse en niveles globales a partir de propuestas surgidas desde abajo (Acosta, Cajas-Guijarro 2020).

tendrá que proyectarse desde los barrial y comunitario14 hacia lo global15, pasando por lo nacional y regional; sin caer en las garras del Estado16 y menos aún del mercado así como tampoco en las enormes trampas de la tecnología.

Todo lo anteriormente expuesto nos demanda superar visiones, derivadas de prácticas aparentemente indiscutibles, que se han enquistado en nuestras sociedades, sobre todo de la mano de la modernidad del capital, pues como escribía Lafargue en 1848:

“Una extraña locura se ha apoderado de las clases obreras de los países en que reina la civilización capitalista. Esa locura es responsable de las miserias individuales y sociales que, desde hace dos siglos, torturan a la triste humanidad. Esa locura es el amor al trabajo, la pasión moribunda del trabajo, que llega hasta el agotamiento de las fuerzas vitales del individuo y de su prole. En vez de reaccionar contra tal aberración mental, los curas, los economistas y los moralistas, han sacro-santificado el trabajo”.

Esta comprensión plantea una tarea más en la gran transformación civilizatoria. El “ocio mercantil” tendrá que ser reemplazado por el “ocio emancipador”; el trabajo alienante deberá emanciparse de las relaciones de explotación; y, en la medida que trabajo y ocio estén bajo nuestro control, se evaporará la perversa distinción entre los dos. Eso nos demanda cambiar mientras construímos sociedades radicalmente distintas a las capitalistas, en donde ya no sea “el tiempo de trabajo la medida de la riqueza, sino el tiempo libre” (MARX, 1857-1858), sustentándolas en esquemas que aseguren la vida de digna de todos los seres humanos y no humanos, cabría anotar.


Bibliografía


ACOSTA, A. Ocio y trabajo en clave de Buen Vivir – Reflexiones para construir otro futuro. En: Acosta, Alberto; Garcia, Pascual; Munkck, Ronaldo; Posdesarrollo – Contexto. Contradicciones. Futuros. Universitat Técnica Particular de Loja -UTPL, Abya Yala, Quito. 2021.

ACOSTA, A. El derecho humano al ocio, no al trabajo. 2020. Disponible en https://rebelion.org/por-el-derecho-al-ocio-no-al-trabajo/.


14 Consultar en Acosta 2019b.

15 Consultar en Acosta, Cajas-Guijarro 2020.

16 Consultar en Acosta 2018a.

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V.22, no 47, 2024 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799X


OS SENTIDOS MILENARES DO MINKA E AS PECULIARIDADES DOS POVOS DO CAMPO NA BAHIA1

Renné da Glória Andrade2 Marisa Oliveira Santos3

Ana Elizabeth Santos Alves4


Resumo

O artigo apresenta reflexões sobre Minka, termo que, na língua quéchua, refere-se ao trabalho coletivo e a outras práticas milenares dos povos andinos que dão sentido à vida em comunidade. Depois de abordar a etimologia da palavra, indicamos pesquisas que evidenciam que, na atualidade histórica, o trabalho coletivo se constitui como elemento fundamental dos processos de produção da existência humana. Tecemos considerações sobre povos do campo no estado da Bahia, afirmando que, contraditoriamente, há no interior do modo de produção capitalista, sociabilidades fundadas na solidariedade e no bem comum.

Palavras-chaves: Minka; povos do campo; trabalho coletivo; trabalho-educação.


LOS SENTIDOS ANCESTRALES DEL MINKA Y LAS PECULIARIDADES DE LOS PUEBLOS DEL CAMPO DE BAHIA


Resumen

El artículo presenta planteamientos acerca del término Minka que en Quéchua (o Quíchua) se refiere al trabajo colectivo y a otras prácticas ancestrales de pueblos andinos que aportan sentido a la vida en comunidad. Primero abordamos la etimología de la palabra Minka y luego indicamos investigaciones que ponen de manifiesto que, en la actualidad, el trabajo colectivo es elemento fundamental en los procesos de producción de la existencia humana. Formulamos consideraciones acerca de los pueblos del campo de la provincia de Bahia, en Brasil, asegurando que, contradictoriamente, es posible encontrar en el interior mismo del modo de producción capitalista sociabilidades basadas en la solidaridad y en el bien común.

Palabras clave: Minka; pueblos del campo; trabajo colectivo; trabajo-educación.


THE MINKA'S OLD SENSES AND THE PECULIARITIES OF COUNTRYSIDE PEOPLE IN BAHIA


Abstract

The article presents reflections about Minka, a term that, in the Quechua language, refers to collective labor and other ancient practices of Andean peoples that give meaning to community life. After addressing the etymology of the word, we indicate research that shows that, in current historical times, collective work constitutes a fundamental element in the production processes of human existence. We comment about rural communities in the state of Bahia asserting that contradictorily we find within the capitalist mode of production, sociability based on solidarity and the common good.

Keywords: Minka; rural communities; collective work; work-education.


1 Artigo recebido em 19/09/2023. Primeira Avaliação em 25/09/2023. Segunda Avaliação em 03/10/2023. Aprovado em 13/10/2023. Publicado em 22/02/2024.

DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.60464

2 Doutoranda em Memória, Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB),

Bahia - Brasil. E-mail: renne9152@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0645747592845028. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5365-9808.

3 Doutora em Memória, Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Bahia - Brasil. Professora do Departamento de Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. E-mail: momarisa@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8597629222043489.

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6413-142X.

4 Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Bahia - Brasil. Professora do Programa de

Pós-Graduação Stricto Sensu em Memória: Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Bahia - Brasil. E-mail: anaelizabeth.anamestrado@gmail.com.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/6609391193846733. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0603-2113.

Introdução


Minka é um conceito andino, milenar, de origem quéchua que se refere ao trabalho coletivo que dá sentido à vida em comunidade. São atividades comunitárias que todos(as), ou parte do grupo são convidados(as) a participar. Em algumas delas, o Minka beneficia toda a comunidade por ser uma prática em prol de um bem comum. Entretanto, há também o Minka que é praticado pelo trabalho voluntário em benefício de uma pessoa, quando são prestadas trocas e solidariedade (Sousa, 2020). São práticas econômicas e culturais que expressam os costumes5, os símbolos, as tradições dos modos de vida dos povos originários e que permanecem “associados e arraigados às realidades materiais e sociais da vida” (Sider apud Thompson, 1998, p. 22) de mulheres e homens ao longo da história, produzindo suas existências.

No desenvolvimento social de comunidades tradicionais na América Latina, há formas práticas de compartilhamento dos saberes andino e amazônico que ainda permanecem vivas e uma delas é o Minka (ACOSTA, 2016). É o caso de comunidades do Peru (SOUSA, 2020) e do Equador (ARAÚJO; SILVA, 2022), em que pese estes países estarem submersos na lógica hegemônica capitalista que, muitas vezes, busca desestruturar o trabalho coletivo e os costumes desses povos.

O objetivo deste artigo é mostrar que os povos do campo carregam em sua historicidade modos de vida que se manifestam em costumes, tradições, formas particulares de reprodução ampliada da vida e que, na sua diversidade, produzem o trabalho coletivo, mesmo estando imersos numa sociedade fundada pela lógica do modo de produção capitalista.

Conforme nos assegura Lia Tiriba (2018) os “espaços/tempos do trabalho de produzir a vida associativamente” demarcam as particularidades da reprodução ampliada da vida o que pressupõe:

[...] a propriedade coletiva dos meios de produção, o controle coletivo do processo de trabalho e a distribuição equitativa dos frutos do trabalho. Em outras palavras, pressupõe culturas do trabalho associado entremeadas por singularidades de gênero, raça e etnia que vão se entrelaçando, tendo a criação da sociedade de produtores livremente associados como horizonte. Nesse processo,


5 Os costumes são transmitidos entre as gerações historicamente por meio das relações sociais e de trabalho (Thompson, 1998).

novas relações entre seres humanos e natureza e entre os próprios seres humanos se ampliam em todas as esferas da vida biológica e social. Suas bases materiais e simbólicas estão fundadas no respeito à natureza externa e ao ser humano, na produção associada e na autogestão do trabalho e da vida social que permita a homens e mulheres a produção de sociabilidades fraternas e solidárias. (TIRIBA, 2018, p. 85).


O trabalho, ao mesmo tempo em que pode ser um meio alienante, pode também se constituir como elemento historicamente necessário para a libertação do ser humano. A materialidade histórica da reprodução ampliada da vida contrapõe a lógica do capital de reprodução simples da vida por meio de uma infinidade de práticas, pelas quais os seres humanos se tornam cidadãos produtivos na perfeita interação ser humano/natureza mediada pelo trabalho, no respeito às pessoas por meio de ações solidárias e fraternas, bem como no respeito aos recursos naturais cuidando de sua preservação.

Como lembram Tiriba e Fischer (2023, p. 06), “o trabalho é a categoria que nos dá elementos para análise das determinações econômicas, políticas e culturais que o constituem e que formam diferentes modos de produção da existência humana”. Para Saviani (2007, p. 155), “o que garante a existência humana é a educação, ou seja, o homem forma-se homem pela produção e pelo processo educativo. O trabalho define a essência humana”. Esse movimento expressa a condição mediadora do desenvolvimento histórico do ser humano em cada formação social e as maneiras como os atos de trabalhar e educar ocorrem nesse processo; logo o trabalho é um ato educativo (SAVIANI, 2013). Assim, consideramos que o princípio educativo do trabalho na relação entre seres humanos e natureza é em si uma relação dialética.

Nos modos de vida dos povos do campo, no trabalho como princípio educativo prepondera a cooperação e a ajuda mútua, embora, muitas vezes, esses povos estejam envoltos em diferentes formas degradantes de relações de trabalho impostas pelo modo capitalista de produção.

Este artigo está organizado em três partes. Na primeira, tratamos das origens do Minka entre os povos andinos tradicionais, pela sua forma de agir pautada nos princípios de solidariedade e de reciprocidade, que dão sentido aos modos de vida

nas suas comunidades. Em seguida, analisamos pesquisas6 acerca de povos tradicionais e de outros povos do campo e da cidade (ribeirinhos, quilombolas, pequenos produtores rurais, entre outros grupos vinculados à agricultura e ao trabalho associado), levando em conta o trabalho como elemento fundante da vida humana que, em seu caráter coletivo, integra os saberes das experiências, os costumes, as formas organizativas de luta e as resistências. E, finalmente, convergimos para campos empíricos do estado da Bahia: Quilombo de Furadinho e Povoado do Peri Peri, que coadunam com as diversas manifestações de sociabilidade no trabalho coletivo que se expressam nos costumes relacionados ao casamento, na religiosidade, nas lutas e nas resistências pela terra. Nesse movimento contraditório, considerando a sociabilidade imposta pelo capital, vamos entender os sentidos milenares do Minka.


Os sentidos milenares do Minka


Minka7 é uma palavra originária da língua quéchua ou quíchua proveniente do “período arcaico entre 3200 e 1800 a.C.” (ENCISO; MENDONZA, 2011, p. 43). Trata-se de um conceito andino milenar que tipifica os processos e as atividades de trabalho coletivo, prática comum entre os povos indígenas (ENCISO; MENDONZA, 2011).

De acordo com Solano e Lazarini (2013, p. 122), as nações Chanka, Kolla (Aymara) e Chimu desenvolveram, na região andina, diferentes práticas de trabalho coletivo, sendo as principais delas o Ayllu8 e o Minka. Tinham em comum uma visão


6 Reconhecemos que diferentes pesquisadores(as) de linhas teóricas distintas desenvolvem estudos sobre povos tradicionais e outros povos do campo. No corpo deste texto, vamos ressaltar algumas pesquisas realizadas por professores(as) e seus(suas) orientandos(as) no âmbito do Neddate/These (UFF), do Museu Pedagógico e PPGMLS (UESB), do Grupo Trabalho, Conhecimento e Educação (UFRGS), do GEPTE (UFPA) e da PUC-RIO. Formamos um coletivo de pesquisa em conjunto com esses pesquisadores(as). Juntos(as), temos contribuído para tornar visíveis, por meio dos nossos objetos de pesquisa, discussões em torno da categoria comunidade, que abarca diferentes empirias das comunidades ribeirinhas, quilombolas, pescadores artesanais, pequenos produtores rurais, além de grupos de economia popular solidária, economia doméstica, movimentos de ocupação de fábricas, moradias, MST e MPA.

7 Autoras, a exemplo de Elizabeth Ibarra (2019), Larissa Araújo e Ana Tereza Silva (2022), denominam o trabalho coletivo, as práticas coletivas milenares como Minga, especialmente quando se referem a mobilizações sociais. Optamos por unificar as expressões como Minka para facilitar a escrita do texto. Cástor Sousa (2020, p. 143) refere-se a Minka como tarefa comunitária que vem dos incas. Acosta (2016) trata Minka ou Minga como sinônimos.

8 Organização ligada ao sentido comunitário na formação das comunidades indígenas camponesas no Peru (Portugal, 2007).

integrada dos elementos da natureza – o ar, a terra, as plantas – que constituem a vida de mulheres, homens e animais no mundo, mediada por relações de trabalho comunitário. Posteriormente, essas nações foram conquistadas e incorporadas ao Império Inca, mas continuaram a exercer um modo de vida fortemente ligado à natureza por suas relações sociais comunitárias e uma concepção de mundo constituída por valores que buscavam preservar a vida das pessoas e o trabalho coletivo.

O Minka é reconhecido como uma das antigas práticas culturais nas comunidades campesinas, nos Andes peruanos (SOUSA, 2020). Alberto Acosta (2016, p. 186-185) resume o sentido do que é Minka.

Minka ou minga: é uma instituição de ajuda recíproca no âmbito comunitário. Assegura o trabalho destinado ao bem comum da população. Realiza-se para satisfazer as necessidades e os interesses coletivos da comunidade. Por exemplo, na execução de obras como a construção e manutenção de caminhos ou canais de regadio. Portanto, é um mecanismo de trabalho coletivo que permite superar e enfrentar o esquecimento e a exclusão dessas populações pelo sistema colonial e republicano [...]. A minka é também um potente ritual cultural e cerimonial de convocação e coesão das comunidades, assim como um espaço de intercâmbio de normas socioculturais.


É uma prática social comunitária, pautada nos costumes, que perdura ao longo do tempo e prima pelo bem viver da comunidade, pois sintetiza relações de reciprocidade, compromisso e complementaridade. Trata-se de uma prática em que a comunidade se une para trabalhar em torno de um objetivo comum. No Equador, no Chile e na Colômbia é considerado como um evento social de resistência9, que mostra a unidade e a solidariedade entre os povos. Um exemplo são as lutas por alternativas de vida empreendidas por movimentos de resistência indígena camponesa no Equador. Os Minkas (“mingas comunitárias”) são também recorrentes como forma de trabalho coletivo (mutirões de trabalho comunitário) dos movimentos sociais para alimentar a população, ou também, em uma escala menor, na organização da vida social no campo, com a mobilização de vizinhos e familiares para os preparativos de casamentos, aniversários, ou funerais, assim como nas atividades agrícolas, como a semeadura e a colheita (ARAÚJO; SILVA, 2022).


9 Por exemplo, na Colômbia as descrições da “minga de resistência” ressaltam o histórico descontentamento indígena com o governo local (IBARRA, 2019).

Portanto, podemos considerar os Minkas como mutirões de trabalho coletivo/comunitário, seguindo a compreensão de Pedro Ivan Christoffoli (2021, p. 277) que define a realização de processos associativos e cooperativos de trabalho, a exemplo de mutirões nas trocas de serviços no plantio e na construção de casas.

No Brasil, a forma de trabalho coletivo com intuito colaborativo é conhecida como mutirão, em inglês collective effort ou joint effort. Essa prática de trabalho tem como princípios a solidariedade e a coletivização. O termo mutirão tem suas origens na cultura ameríndia e seu significado remete a motirõ que, na língua Tupi, está relacionado à atividade de colheita e de construção, na qual as pessoas se reúnem para ajudar umas às outras.

José de Souza Martins, em História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea, descreve como funciona o mutirão em comunidades:

A doação de trabalho que se faz a outrem no mutirão é doação de trabalho concreto. Eventualmente, essa doação pode se transformar em troca de dia, isto é, em expectativa da contrapartida de uma doação semelhante. Mesmo assim, do ponto de vista dos que trocam é troca de trabalho concreto, não é trabalho pelo trabalho: é limpa de roça, colheita de milho ou de arroz (MARTINS, 2000, p. 716).


O trabalho de mutirão envolve determinada atividade concreta, cujo produto é um valor de uso fundamental no atendimento das exigências materiais e culturais de sobrevivência de mulheres e homens em uma dada comunidade. As trocas desses trabalhos criam entrelaçamentos “culturais/intelectuais/morais/materiais” (MÉSZÁROS, 2002), reproduzidos historicamente na vida dos indivíduos e entendidos como “funções primárias de mediação dos seres humanos com a natureza” (MÉSZÁROS, 2002, p. 212-213). Tal processo envolve múltiplas dimensões das lutas cotidianas dos sujeitos pela existência e não é constituído por hierarquias estruturais de dominação, uma vez que se baseia em um projeto de vida coletivo. A partir da relação entre trabalho-educação é que situamos a compreensão dos fundamentos do Minka, o trabalho coletivo e seu princípio educativo.

Minka é uma forma de trabalho coletivo de produção da vida social praticada por povos de diferentes culturas. É uma relação de troca comunitária que resiste ao modo de produção capitalista e permanece existindo em diversos espaços/tempo históricos, a exemplo dos povos da floresta, das comunidades indígenas, dos

quilombolas rurais e urbanos, dos ribeirinhos, dos assentamentos rurais e das experiências de trabalho no âmbito do movimento da economia solidária.

No caminho do que é Minka (ou na busca por “objetos Minka de pesquisa”10), Ellen R. S. Miranda e Doriedson S. Rodrigues (2020) estudam os mutirões como práticas costumeiras, que atuam na luta e na resistência de povos tradicionais em comunidade quilombola no Baixo Tocantins, estado do Pará. As investidas do capital na região, com a introdução do cultivo da pimenta-do-reino para o mercado internacional e o uso de trabalho intensivo precarizado, vêm transformando trabalhadores e trabalhadoras em mão de obra barata, levando-os a sobreviver em condições subumanas. Em face do assalariamento, os mutirões vão assumindo um caráter residual, embora signifiquem a negação do trabalho alienado implantado pelo cultivo da monocultura e, ao mesmo tempo, momentos de afirmação das identidades desses povos, por meio da integração de saberes do trabalho, ou de celebrações festivas com reciprocidade na troca de comidas e colaborações.

Também podemos considerar os Minkas comunitários, lembrando as “mingas de resistência” do movimento grevista no Equador (mencionado anteriormente) e compará-los às pesquisas realizadas por Jesús Jorge Pérez García (2022) em Cuba. Esse autor realizou estudos sobre lutas comunitárias em territórios rurais e concluiu que as comunidades observadas por ele são mobilizadas por “necessidades sentidas comunais” em situações de resistência coletiva, mediante a organização de grupos de trabalho comunitário. Os trabalhadores e as trabalhadoras se associam na luta política, na produção de bens e serviços, mediados(as) pelas ações de trabalho. “A articulação destas pesquisas indica que as comunidades rurais se mobilizam por necessidades sentidas comuns, permeadas de cultura, que os fazem continuar lutando [...] pelas práticas que se mantém, resistindo e vivendo” (GARCIA, 2022, p. 1). Em comunidades tradicionais, o trabalho coletivo abrange o plantio, a colheita, faz parte de uma rede de solidariedade que se relaciona com os valores e os costumes, nas formas de expressão simbólica da cultura e nas experiências vivida, percebida e sentida que demarcam os modos de vida.

10 Conforme palestra: "Trabalho-Educação: sentidos milenares do Minka", proferida pelo prof. Dr. Doriedson Rodrigues (UFPA) na mesa temática: “Trabalho, cultura, territórios quilombolas e educação no campo”, em 26 de outubro de 2022, que contou com a participação das professoras Maria Clara B. Fischer (UFRGS), Lia Tiriba (UFF) e Ana Elizabeth Alves (UESB). A mesa fez parte da programação do CT-32, do XIV COLÓQUIO NACIONAL/VII COLÓQUIO INTERNACIONAL DO MUSEU PEDAGÓGICO e do XII SEMINÁRIO NACIONAL/II INTERNACIONAL DO HISTEDBR.

As pesquisas desenvolvidas por Betânia Cordeiro e Maria Clara Bueno Fischer (CORDEIRO, 2020) também ajudam a compreender os sentidos de Minka. As autoras se dedicam a estudar os saberes do trabalho associado implicados na constituição de redes de economia solidária em uma perspectiva autogestionária e têm como sujeito privilegiado de interlocução a Cooperativa Central Justa Trama, uma cooperativa do setor têxtil e de confecções. A cooperação em meio a esses sujeitos está pautada em necessidades materiais e subjetivas que se opõem a processos privados e heterogeridos de organização do trabalho. Ela prima pela ajuda mútua, por relações horizontalizadas, por saberes compartilhados, de forma a afirmar as identidades dos produtores livremente organizados. Para as pesquisadoras, o trabalho associado e a vida social de homens e mulheres são fontes de saberes. Alicerçadas em Thompson (1981, p. 16), advertem que a experiência vivenciada é válida e efetiva para esses sujeitos dentro de determinados limites e defendem a importância da educação para a classe trabalhadora, de forma que a qualifique socialmente para o saber que emerge da práxis.

Na pesquisa desenvolvida por William Amaral Souza e Lia Tiriba (SOUZA, 2020), as evidências de Minkas se manifestam nas lutas e nas estratégias de manutenção dos costumes presentes nos modos de vida, em amplas dimensões, entre os povos e as comunidades tradicionais nos vales dos rios Guaporé e Madeira, em Rondônia. Os achados da pesquisa mostram que esses povos têm resistido e lutado diariamente contra o processo de expansão do capital com o agronegócio e o neoextrativismo, que atuam no sentido de desestruturar os modos de vida de homens e mulheres que vivem em sintonia com a natureza. Os Minkas de resistência social atuam no sentido de preservar os modos de vida, atuam como “o elemento de estruturação de sua identidade e resistência frente às dificuldades da vida, e condição vital para a sua existência, a qual não pode ser pautada pela lógica dos processos de sociabilidade do capital” (SOUZA, 2020, p.186).

Trazemos também para debate a pesquisa desenvolvida por Mahalia Aquino (2018), na qual denuncia a problemática socioambiental instaurada na Bacia do Rio Doce provocada pelo rompimento da barragem de Fundão e a contaminação da área por rejeitos de minérios de ferro. A empresa Samarco (Vale+BHP Billiyon) Mineração S.A. é a responsável pela devastação ambiental que se coaduna com a dinâmica de opressão e expropriação do capital na sua forma mais perversa. O

crime ambiental afetou direta ou indiretamente as populações ribeirinhas, que perderam moradias, locais de trabalho, costumes e tradições, comprometendo todo o conjunto de relações sociais “ao longo do percurso da lama tóxica, até a foz do Rio Doce, no encontro com o mar em Regência (Linhares-ES)” (AQUINO, 2018, p. 244). As comunidades ribeirinhas e os movimentos sociais, em contrapartida, organizaram mobilizações em forma do que poderiam ser considerados Minkas, que se constituíram em ações políticas para protestar contra a empresa, unir esforços para mitigar o sofrimento dos atingidos e propor alternativas de sobrevivência. Podemos citar as estratégias de ocupação dos trilhos da Ferrovia Vitória-Minas para impedir a passagem dos trens de minério (essa foi uma das ações de resistência mais efetivas, pois chamava a atenção da mídia e das empresas que, rapidamente, solicitavam ao Estado a reintegração de posse, pois cada minuto do trem parado, sem mover o minério em direção ao porto, significava perda de lucro); as reuniões do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) nas comunidades; a organização de grupos para trocas de informações no WhatsApp; as manifestações contra a Renova (empresa sem fins lucrativos mantida pelas empresas criminosas) e as mobilizações junto ao Ministério Público.

A luta política desses povos constitui espaços de socialização e formação crítica dos sujeitos contra as estratégias de manutenção dos lucros da Empresa Samarco (Vale+BHPBilliyon) e, consequentemente, evidencia a lógica imposta pelo modo de produção capitalista.


Os sentidos Minka na Comunidade Quilombola de Furadinho e no Povoado do Peri Peri no estado da Bahia


A Comunidade Quilombola de Furadinho e o Povoado do Peri Peri, ambos na Bahia, guardam memórias acerca da organização da vida comunitária, do trabalho coletivo, da reciprocidade e da solidariedade entre os vizinhos constituindo elementos culturais que fortalecem os vínculos de convivência social. Que memórias11 Minkas esses povos revelam?


11 Na realização dessas pesquisas, consideramos as memórias desses povos como um “recurso” (MONTESPERELLI, 2004) que atribui significados às lembranças de um tempo passado ressignificado no presente. Essas memórias foram colhidas por meio de observações de campo, rodas de conversa e entrevistas semiestruturadas.

O surgimento da Comunidade Quilombola de Furadinho remete à segunda metade do século XIX, conforme o Diagnóstico do Quilombo de Furadinho-DQF (BAHIA, 2013). Furadinho12 localiza-se a 554 km de Salvador, capital baiana, e a 36 km do município de Vitória da Conquista, em uma área de relevo acidentado, com uma pequena faixa de planície. O bioma típico é a caatinga, com chuvas esparsas em determinados períodos do ano. No período de formação do quilombo, as terras eram isoladas, de difícil acesso, distantes da Imperial Vila da Vitória (atual Vitória da Conquista).

O Quilombo de Furadinho foi um reduto de lutas e de Minkas de resistências às diversas investidas que tentanvam capturar os(as) negros(as) escravizados(as) e os(as) indígenas. Segundo relatos coletados junto aos(as) moradores(as) e sistematizados pelo DQF (BAHIA, 2013), o local abrigava escravos(as) fugitivos(as), indígenas e trabalhadores(as) livres.

A memória do grupo registra Manoel Fortunato como o primeiro morador. Seus(as) vários(as) descendentes se espalharam pela área desbravada, no intuito de se preservarem e de, ao mesmo tempo, usarem os lugares como estratégia de fuga. Eles e elas foram responsáveis pela constituição de vários quilombos na atual região de Vitória da Conquista.

O processo de expropriação iniciou-se em razão da inexistência de documentos, dificuldade criada pela chamada Lei de Terras13, e da facilidade dos fazendeiros de forjarem documentos, o que possibilitou a venda e a cessão indiscriminada de terras a terceiros, reforçando a grilagem e o favoritismo na região. Essa dinâmica desigual de acesso à terra e a sua posse está entrelaçada com a formação do território brasileiro, onde a terra sempre foi instrumento revelador de poder. Por essa razão, foi negado, aos invisibilizados, o direito de possuí-la ao mesmo tempo em que se reforçava o poderio da elite rural (ALENTEJANO, 2012).


12 A localidade abriga em torno de 120 famílias, o que constitui um total de cerca de 560 pessoas, entre moradores(as) da sede e de comunidades adjacentes. A área da comunidade gira em torno de

580 hectares, com lotes de, aproximadamente, 1 a 5 hectares por família. Furadinho recebeu a Certificação da Fundação Cultural Palmares como Comunidade Remanescente Quilombola (CRQs) em 20/05/2016. A Portaria nº 104/2016 foi publicada no Diário Oficial da União (DOU). O processo para demarcação e regularização das terras quilombolas da comunidade de Furadinho foi aberto junto ao INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), em 2014, processo de nº 54160.00182/2014-66, mas, até o momento, o órgão não emitiu um parecer. Um dos impasses, de acordo com o órgão, é a falta de mão de obra.

13 Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, conhecida como Lei de Terras.

Tal situação se torna contundente em uma memória presente nos documentos históricos da comunidade. “Chegaram as pessoas brancas, vendiam… Os moradores ficaram tudo sem terra, só com uma cercazinha ali… e foram tomando tudo, terra, tudo, sem documento. Tiveram muitas brigas, mas quem tinha dinheiro vencia” (BAHIA, 2013, p. 05). O relato demonstra a luta desses(as) quilombolas que, sem os recursos necessários, sem o conhecimento das leis e sem uma orientação precisa, viram-se indefesos(as) em relação aos(as) fazendeiros(as) da vizinhança, que tinham conhecimentos e alianças políticas. Surgiram, portanto, Minkas em defesa do território nas tensões entre os interesses da classe dominante e das pessoas quilombolas.

Os saberes da experiência de trabalho como expressão de resistência podem ser observados nos costumes que vigoram na organização da vida comunitária. Os festejos de casamento no Quilombo de Furadinho são formas Minkas de partilha e de organização do trabalho, são regulados “por práticas que conferem aos sujeitos o poder de decisão sobre o processo de produzir a vida social” (TIRIBA; FISCHER, 2012, p. 614)14.

O trabalho coletivo é um Minka comunitário que visa à preparação para a festa, engloba arrumação do espaço, iluminação, ornamentação, preparação de alimentos, distribuição, música e dança. Boa parte do material utilizado é emprestado pelos(as) vizinhos(as), que ajudam com o que podem: madeiramento, lona, ferramenta, assim como bancos, mesas, toalhas, panelas e os talheres que serão utilizados na festa. Também doam alimentos para a elaboração dos pratos que serão servidos. Nessas antigas práticas de organização do casamento, há trabalhos específicos para homens e mulheres. O contrapiso, a latada ou tenda, onde será servida a refeição e que depois se transforma em salão do forró fica sob a responsabilidade dos homens, assim como a iluminação. Eles também tratam as carnes, enquanto as mulheres são responsáveis pela limpeza, pela ornamentação e pelo preparo dos alimentos e sobremesas. Os garçons são identificados por uma toalha branca colocada em volta do pescoço; apenas homens servem as mesas. O tamanho enorme da mesa dá a dimensão do coletivo. Na primeira mesa, segundo as

14 No percurso da pesquisa, tivemos a oportunidade de presenciar a celebração de um casamento em 17 de junho de 2023 no Quilombo de Furadinho-BA. Na ocasião, verificamos o registro de práticas tradicionais que reforçam costumes, solidariedade e reciprocidade manifestadas no jantar coletivo servido para celebrar a festividade, na queima de fogos de artifício para anunciar a chegada dos noivos, na dança no terreiro para culminância da solenidade.

práticas costumeiras, sentam-se os recém-casados, os padrinhos e as madrinhas e os parentes de primeiro e segundo graus. Nas mesas subsequentes, os(as) demais convidados(as). O forró, que se inicia somente depois de todos(as) serem servidos(as), estende-se durante toda a noite.

O trabalho coletivo de preparação do festejo do casamento é constituído por grupos que se identificam pelos saberes da experiência e todos(as) colaboram. Quando, por algum motivo, alguém está impossibilitado de realizar o trabalho, a pessoa procura outra que possa substitui-la. A chegada dos recém-casados à casa dos pais da noiva é marcada por estrondos de foguetes, o que simboliza o início dos festejos na residência. A chuva de papel picado e arroz, no momento da entrada, representa votos de felicidade e fartura. Todas essas ações fortalecem o Minka e preservam os costumes.

O modo de vida no Quilombo de Furadinho se manifesta na forma como as pessoas se solidarizam, por meio do trabalho coletivo, seja nas festividades, como um casamento, seja nos momentos de tristeza, como a perda de um familiar, seja para suprir uma necessidade individual ou coletiva. Isso ratifica o que está documentado em E. P. Thompson (1981) como sendo reflexo de um aprendizado da vida social. Sem esse movimento, a produção material da vida cessaria.

Porém, é importante observar que, ao mesmo tempo em que esses costumes asseguram a produção da existência e dos modos de vida, muito do vivido faz parte da cultura residual, do encontro entre o velho e o novo, e, deste último, abarca-se o conflito de valores no encontro inevitável entre a vida em comunidade e a investida do capital para promover o desapossamento dos saberes e da vida (THOMPSON, 1981; WILLIAMS, 2011).

Em outros dizeres e aproximando-nos de Martins (2021), é como se os chamados grupos “civilizados” alimentassem a intolerância, a ambição e a morte, enquanto os povos do campo elaborassem um lugar de uma residual concepção de esperança atravessada pelas ameaças do tempo novo, como se fosse um tempo de redenção e de justiça pelo que são. É o caso das memórias suscitadas a respeito dos festejos e das danças que aconteciam na comunidade:


Já teve muitos festejos, uns levantavam a bandeira de São Roque, ou de São Sebastião ou de Bom Jesus, foram morrendo e os filhos foram desligando... festejo que está tendo ai, só da igreja católica... tinha festa de reis... sambava a noite toda... Aqui só tem uma mulher

que é tia minha... na festa de Cosme ela reza e faz samba a noite toda, ela trabalha, reza um povo ai... O padroeiro da comunidade é Bom Jesus. Comemora dia 6 de agosto. Faz uma festa lá na igreja, faz um leilão... fazia samba, depois os sambadores foram morrendo outros mudaram, essa rapaziada não sabe brincar não... de uns três anos pra cá ninguém vê reis mais não15 (BAHIA, 2013, p.17).


Os festejos religiosos de tradição católica em homenagem ao padroeiro da comunidade são organizados por meio do trabalho coletivo. O leilão solidário é uma forma de angariar recursos para a organização dos festejos em homenagem a Bom Jesus, que ocorre em 6 de agosto. Os(as) moradores(as) fazem a doação dos materiais que serão leiloados e, em uma das noites, após a novena, é realizado o leilão. As novenas são distribuídas por grupos comissionados que envolvem Crismandos (jovens), Catequese e Legião de Maria (mulheres) e o Terço dos homens (organizado por homens).

Famílias numerosas são um traço característico no Quilombo de Furadinho, o que se constitui em um apoio imprescindível ao trabalho coletivo na agricultura familiar. Os saberes do trabalho assentam no manejo do solo, no plantio e na colheita nos moldes deixados pelos antepassados e que continuam sendo empregados com sutis modificações. Nas práticas de trabalho coletivo, não há pagamento em espécie, há uma troca de força de trabalho, em que todos(as) os(as) envolvidos(as), tios(as), sobrinhos(as), cunhados(as) são beneficiados(as) no trabalho em seus lotes, o que constitui um Minka do bem comum. A produção agrícola gira em torno do plantio da mandioca e da produção de farinha, embora outros produtos também sejam cultivados, como feijão de corda (catador), milho, abóbora e algumas hortaliças. O pequeno excedente, bem como a farinha de mandioca produzida na comunidade, é vendido no Ceasa e em feiras livres de Vitória da Conquista, que funcionam diariamente, mas que têm seu ponto forte de vendas nos finais de semana. Entretanto, sobreviver exclusivamente da produção agrícola tem sido cada dia mais difícil.

O modo de produção da existência no Quilombo de Furadinho não está atrelado apenas ao trabalho coletivo; outras formas de trabalho coexistem no mesmo espaço, como o trabalho por diária, as roças por meias, a empreitada, o


15 Mantivemos a variação linguística originária desses povos em respeito ao seu modo de falar, por entender que tais variações são elementos históricos de uma sociedade heterogênea, visto que denotam a peculiaridade de um povo, sobretudo no que diz respeito à língua. Portanto, não devemos ignorar a variação linguística existente na sociedade.

trabalho assalariado, que leva os(as) moradores(as) a se deslocarem diariamente para Vitória da Conquista, onde trabalham no comércio, nas indústrias, nas residências e no serviço público. Poderíamos dizer que, para uma parcela considerável de moradores(as) na faixa dos trinta e poucos anos, o trabalho agrícola ocorre em tempo parcial, concomitante ao trabalho assalariado. Além da dependência do assalariamento, a comunidade é beneficiária de recursos disponibilizados pelo Governo Federal, que faculta aos(às) idosos(as) aposentados(as) poderem contribuir significativamente na complementação da renda familiar.

A outra comunidade para a qual nossos estudos convergem é o Povoado do Peri Peri, também na Bahia16. Nesse povoado, os afazeres diários do trabalho familiar concentram-se no cultivo da mandioca em pequenas propriedades rurais familiares, no funcionamento esporádico de dez parcas casas de farinha, no cultivo de pequenas roças, na produção de requeijão caseiro, na criação de animais domésticos, na produção de ovos caipiras, no cultivo de frutas de quintal e nas pequenas hortas. O fruto desse trabalho permite às pessoas residentes a possibilidade de complementarem a renda com os produtos que são comercializados na feira livre, que acontece toda segunda-feira, na sede do município. Com essas atividades, os saberes do trabalho vão se constituindo historicamente. Muitos(as) sobrevivem exclusivamente da aposentadoria e da transferência de renda dos programas sociais; em alguns casos, os(as) idosos(as) são os(as) responsáveis pela manutenção das famílias.

As atividades de socialização coletiva refletem o sentido Minka de existir, fortemente vinculado à Igreja Católica ou ao futebol no campinho de várzea da localidade. Os(as) moradores(as) são pequenos(as) proprietários(as) rurais de pequenos minifúndios, faixas encurtadas de terra, porque, segundo eles(elas) próprios(as), a terra foi se dividindo tanto com o passar do tempo, que, atualmente, está dimensionada entre meio hectare e, no máximo, 10 hectares, por vezes


16 O povoado de Peri Peri é integrante dos 47 povoados que compõem Belo Campo (BA), município emancipado de Vitória da Conquista em 1962, localizado numa área de vegetação denominada mata de cipó. A distância entre os dois municípios (Belo Campo e Vitória da Conquista) é de aproximadamente 64,5 km, via BR 116 e BA 263. O Povoado do Peri Peri está localizado a 13,4 km da sede do município de Belo Campo. De acordo com informações coletadas na comunidade, a população estimada no Povoado do Peri Peri corresponde, aproximadamente, a 927 moradores reunidos em 225 famílias.

herdada dos antepassados. A tendência é a faixa de terra destinada aos(às) pequenos(as) proprietários(as) do Peri Peri diminuir ainda mais.

Nas escutas de narrativas, é habitual ouvir descrição de “parcelamento”, que reside na cessão da posse da terra entre gerações, como meio de viabilizar moradia e trabalho para os(as) filhos(as), já que é comum que as família se constituam muito cedo, em torno de 18 anos para as mulheres e de 22 para os homens. O parcelamento, que é geracional e sequenciado, vai diminuindo a relação absoluta entre o povo do campo e a terra, primeiro no tamanho e, depois, na função. Na região de Peri Peri, por exemplo, a sucessão de terras entre os(as) avós dos(as) que hoje detêm a posse da terra compreendia propriedades em torno de 25 alqueires17. Atualmente o legado, em média, corresponde a menos de um alqueire de terra.

Dessa forma, o destino e o sentido da terra vão ganhando, diante das circunstâncias, novos formatos e novos significados, muitas vezes atrelados mais à moradia do que à função produtiva da terra. O parcelamento, que gera a diminuição da extensão territorial da propriedade privada, segundo Wanderley (2009), em seu movimento visível, constitui um forte instrumento de formação do proletariado no campo, ou da submissão dessa força de trabalho específica ao capital.

O cultivo da mandioca em pequenas propriedades rurais familiares, nos roçados, é parco. Nossos estudos têm identificado algumas razões que podem justificar esse movimento, entre elas: o desmonte do trabalho familiar; a redução das famílias extensas; a falta de incentivo à produção de pequenos produtores; a inserção da fécula da mandioca pela grande indústria; o uso e a função dados à terra. O trabalho familiar enfraquecido também vai mobilizando a força de trabalho para a cidade, ou para os grandes centros, por meio do assalariamento, ou das novas morfologias assumidas pelo trabalho, como a informalidade e os trabalhos esporádicos.

A produção da existência no Povoado do Peri Peri está entrecruzada com a expressão do coletivo que se esboça no pertencimento, na solidariedade, nos sentimentos vicinais. O sentimento de pertencimento ainda é muito forte no dia a dia do povoado: os laços de solidariedade, entrelaçados no provisório, por meio da família, da vizinhança e da amizade, expressam os costumes nos modos de vida. A solidariedade é muito presente nas festas de casamento com a utilização de antigas


17 Cada alqueire mede 2,42 hectares, e cada hectare corresponde a 10.000 metros quadrados.

práticas, na partilha do alimento e na ajuda mútua entre vizinhos(as), no caso de doenças ou de festividades locais, como a Festa do Menino Jesus, que acontece no mês de dezembro e que envolve moradores(as) e comunidades circunvizinhas. São momentos em que todo o trabalho é convocado por meio do mutirão e não está, sob hipótese alguma, atrelado a questões mercantis. O doar-se é uma questão de honra e de orgulho entre homens e mulheres, é o coletivo na união de um propósito que se manifesta nos costumes. Essas formas Minkas constituem experiências coletivas, formativas de luta em prol do bem viver.

Essa estrutura desvela o trabalho coletivo quando permite que as atividades sejam realizadas em prol de um interesse comum ou, sobretudo, do fortalecimento dos costumes e das tradições enraizadas no modo de ser da população. A Festa do Menino Jesus é o momento de consagração e agradecimento pela colheita, ou de “rezas” para que o ano vindouro possa ser abençoado quando o resultado esperado não foi alcançado. O fortalecimento da religiosidade confere, como analisa Tonet (2018), sentido à vida humana por meio da orientação em busca de segurança, amparo e conforto. A religião exerce, dessa maneira, ora a função social de um apelo de resignação diante do que não está sob o controle humano, ou do que está longe de sua compreensão e domínio, como é o caso das intensas chuvas, ou dos prolongados períodos de estiagem e ora se apresenta como o fundamento imprescindível ao controle social, que, como reforça o autor, está especialmente voltado para as classes dominadas. Tal observação acolhe, segundo os nossos estudos, a realidade, tanto do Quilombo de Furadinho, quanto do Povoado do Peri Peri.

O trabalho coletivo abrange as várias demandas que surgem no dia a dia do povoado. Uma farinhada, prática tradicional por exemplo, pode reunir pessoas conhecidas, ou a parentela direta para que aconteça a contento. Os casamentos mobilizam homens e mulheres na feitura da comida e nos preparos que antecedem o rito. Cada um doa um pouco de si para que o evento aconteça satisfatoriamente, pois, em seu entendimento, a família que surge é parte integrante do todo onde vivem e das memórias que os constituem. Essas manifestações são Minkas encontrados nos valores sociais, na reciprocidade, nos padrões de socialização, nos vínculos familiares e emocionais que persistem.

Nos estudos realizados até o presente momento, pudemos perceber que o luto é uma perda coletiva, é um momento de partilha e de ajuda mútua. Nos velórios, é costume as famílias não enlutadas ajudarem a que passa pelo processo: seja na organização do espaço, na preparação do alimento a ser servido aos visitantes, seja no amparo pelo momento de consternação vivido, o que reforça, mais uma vez, o trabalho como reflexo das práticas sociais coletivas e das memórias que vão costurando antigas práticas no modo de viver no Povoado do Peri Peri.

Os processos de expropriação dos meios de produção pelo capital e a falta de intervenção pública, somados ao acirramento da falta de emprego e de trabalho assalariado – uma realidade nos campos brasileiros – reforçam, de alguma maneira, o trabalho associado como forma de resistência. A carência de moradia e as condições precárias de sobrevivência também são uma realidade no campo brasileiro e não destoam do que encontramos em nossas pesquisas no Peri Peri, quando, em 2018, a comunidade se uniu, por meio do trabalho associado, para erguer a casa de uma das moradoras que perdeu seu abrigo depois de um período de fortes chuvas. Do material, à força de trabalho empregada, foi na feição e no entendimento do comum e do coletivo que a casa de Dona Maria Leonarda foi reerguida18.

Nesse movimento, percebemos que a posse da terra não garante as condições materiais de produção da vida e da existência, já que Dona Maria Leonarda possuía um pedaço de terra, mas não dispunha dos recursos para erguer sua moradia, foi a força do coletivo que permitiu a materialidade do feito. Nesse sentido, a terra entre os pequenos produtores rurais do Povoado do Peri Peri pode revelar contornos fora da sua função social, ou, em outros dizeres, ela nem sempre compreende o sentido exclusivo de produção: pode ir cedendo espaço ao sentido de moradia, residência e, aos poucos, esmaece a própria ruralidade dela requerida ou pertencente.

Os casamentos, os velórios e as festas religiosas do Bom Jesus e do Menino Jesus exemplificam os costumes na vida coletiva do Quilombo de Furadinho e do Povoado do Peri Peri. Eles acabam por convergir o coletivo na união de um


18 Foi diante do relato da perda e da recuperação de sua casa, numa pequena roda de conversa, que a moradora nos contou que o acesso à casa lhe trouxe a motivação de frequentar a escola para escrever seu próprio nome quando aposentasse. Tais momentos denunciam explicitamente dois descasos à classe trabalhadora no Brasil: acesso à educação e direito à moradia.

propósito comum que perpassa também o cultural e se expressa na manutenção das tradições, denotando o modo de vida dessas comunidades. Mesmo com todas as investidas do capital no sentido de extirpar os vínculos de sociabilidade, os sentimentos de pertencimento ao lugar, essas comunidades resistem na manutenção de práticas sociais de trabalho coletivo. Mesmo de forma inconsciente, instigam outra perspectiva de produzir a vida de forma mais equitativa, no fortalecimento de ações que promovam o “bem viver” (ACOSTA, 2016), tanto no Quilombo de Furadinho, quanto no Povoado do Peri Peri.


Considerações finais


O Minka tem se constituído historicamente como a principal forma de resistência dos povos indígenas da América Latina, cujo sentimento de cooperação, reciprocidade e ajuda mútua constituem os pilares desse modo de produzir a vida, em uma integração entre seres humanos e natureza e seres humanos entre si. Na atualidade, o trabalho coletivo se constitui em uma potência transformadora capaz de ressignificar os modos de vida em comunidades tradicionais. Os sentidos milenares do Minka nos ensinam que é possível lutar por uma sociedade com equidade social, desde que a classe trabalhadora fortaleça a tomada de decisão por práticas de trabalho coletivo ou associado. A linha de reflexão encaminhada por Alberto Acosta (2016, p. 192) define que essas lutas devem ser organizadas por “princípios básicos de reciprocidade, redistribuição e solidariedade [...] construídos em todos os espaços possíveis da vida em comunidade, começando pelos lares e escolas, além de diversas outras instâncias da vida dos seres humanos”.

Reunir estudos sobre povos do campo e da cidade nos permite debruçar sobre outras formas de produzir a existência que persistem na sociedade capitalista, ainda que de forma subordinada ao capital. Os Minkas de resistência permanecem entre os povos do campo, os ribeirinhos, os quilombolas em seus costumes, suas lutas em defesa do território, na organização de cooperativas de trabalho que se contrapõem ao modo de produção capitalista.

Nas comunidades tradicionais e nos povoados do campo pesquisados por nós na Bahia, o Minka perdura pelos costumes de solidariedade e cooperação entre os(as) moradores(as) em relação à ajuda mútua nos velórios, nos casamentos, nos

adoecimentos e nas festividades religiosas. São modos de vida fundados nos laços de parentesco, mas também na amizade e no pertencimento religioso.

As práticas de trabalho coletivo dos povos do campo se encontram hoje ameaçadas pelas fortes influência e interpenetração do capital. A unidade de produção familiar sofre pressões sociais e econômicas com a baixa produtividade do trabalho, por isso seus integrantes precisam exercer trabalho temporário nas fazendas produtoras em outras regiões, ou exercer atividades fora da roça, a exemplo da construção civil e do trabalho doméstico. A desestruturação dos modos de vida se manifesta nos testemunhos de homens e mulheres que vão, aos poucos, denunciando a desarticulação do trabalho coletivo, os sentidos distintos dados à terra, desenhando, em movimentos diferentes, o desmonte da produção da existência de tais povos e ameaçando o sentido Minka de existir.

A história dos povos originários e de outros povos do campo na América Latina é marcada por muitos desafios em relação à violência e à dominação da classe dominante e de seus representantes contra os subalternos desde os tempos da colonização. As consequências desse processo histórico mediado pelo grande capital em alianças e acordos de disseminação territorial permanecem até os dias atuais. A expansão da propriedade privada da terra e a exploração do trabalho barbarizaram e seguem barbarizando esses povos, especialmente, no que diz respeito aos desafios de sobrevivência e à manutenção dos costumes. (BATTESTIN; BONATTI; QUINTO; 2019). Os modos de vida desses povos, incluídos os quilombolas, os camponeses, os ribeirinhos sempre foram negados e ocultados na tentativa de se instituir a lógica da racionalidade capitalista. Entretanto, constatamos cenários de lutas e resistências, a exemplo dos movimentos indígenas na Colômbia, em 2008 (IBARRA, 2019), no Equador, em 2019 (ARAÚJO; SILVA, 2022), da luta

pela terra no Brasil (RODRIGUES, 2017), da luta do Exército Zapatista de Libertação (EZLN), no México (TIRIBA; FISCHER, 2013).

Experiências históricas de lutas sociais de povos da América Latina na perspectiva da autogestão carregam “elementos e/ou possibilidades para ‘Além do Capital’ como diz Mészáros” (NASCIMENTO, 2019, p. 36): ocorrem lutas no trabalho, nas empresas heterogeridas, lutas contra a submissão do trabalho assalariado ao capital, lutas que vão assumindo formas radicais de organização e

programas e que vão se contrapondo à organização capitalista do trabalho e ao Estado (Nascimento, 2019, p. 105).

Os povos originários, através de revoltas, insurreições e revoluções, inauguram um ciclo de lutas de caráter “pós-neoliberal” e revolucionário entre 1910 e 1911, na Revolução Mexicana, em Chiapas. No início do século XXI, em Cochabamba, no território boliviano, ocorrem a Guerra da Água e a Guerra do Gás, as quais permitiram observar as formas de “poder comunitário” afloradas em momentos de crise, o que configuraram Minkas de resistência e de luta por um futuro mais livre e com maior equidade social. São lutas que trouxeram à tona o debate sobre essa forma comunitária, comunal de viver.

Embora as forças ativas do capital tentem desestruturar o trabalho coletivo, esses povos reafirmam suas lutas e práticas econômico-culturais que se contrapõem à lógica dominante. Nessas ações, os sujeitos vão se educando e se formando, ao mesmo tempo em que mostram que é possível viver bem na integração ser humano/natureza mediada pelo trabalho. O modo dos povos tradicionais de se relacionar com a natureza contém, “simultânea e intrinsecamente, sua conservação e preservação. Trata-se de uma concepção de modo de vida que pressupõe muito mais a natureza como parte da vida, do que apenas a vida como parte da natureza” (OLIVEIRA; FARIAS, 2009, p. 3).

As formas de resistência desses povos se expressam, essencialmente, na luta diária pela manutenção da terra, na labuta para continuarem existindo e mantendo a reprodução da unidade familiar, ou ainda na recriação de outras formas de organização social que se contrapõem à forma capitalista preponderante.


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PARA ANALISAR MODOS DE VIDA: RAYMOND WILLIAMS E ESTRUTURA DE SENTIMENTOS EM TORTO ARADO1

Luís Eduardo da Conceição Chagas2

Lia Tiriba3

Resumo

Refletimos sobre a hipótese cultural “estruturas de sentimentos” de Raymond Williams, tendo em conta a relevância da arte e da literatura como fontes de pesquisa para apreensão de formas de fazer, sentir e pensar de determinados grupos sociais, entendidas como elementos constitutivos do processo histórico. Indicamos que essa categoria também contribui para acessar modos de vida que se manifestam nas relações dos seres humanos com a natureza, no trabalho e na convivência em uma comunidade. Analisamos o romance Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, articulando “estruturas de sentimentos” aos conceitos de modos de vida, natureza e cultura.

Palavras-Chave: Estruturas de Sentimentos. Raymond Williams. Modos de vida. Comunidades Tradicionais. Torto Arado.


PARA ANALIZAR MODOS DE VIDA: RAYMOND WILLIAMS Y ESTRUCTURAS DE SENTIMIENTOS EN

TORCIDO ARADO


Resumen

Reflexionamos sobre la hipótesis cultural “estructuras de sentimientos” de Raymond Williams, considerando la relevancia del arte y la literatura como fuentes de investigación para comprender las formas de hacer/sentir/pensar de ciertos grupos sociales, entendidos como elementos constitutivos del proceso histórico. Indicamos que esta categoría también contribuye al acceso a modos de vida, que se manifiestan en las relaciones con la naturaleza, el trabajo y la convivencia en el territorio de una determinada comunidad. Analizamos la novela brasileña Torcido Arado, de Itamar Vieira Junior, articulando “estructuras de sentimientos” con los conceptos de modos de vida, naturaleza y cultura.

Palabras Clave: Estructuras del sentimiento. Raymond Williams. Modos de vida. Comunidades Tradicionales. Torcido Arado.


TO ANALYZE WAYS OF LIFE: RAYMOND WILLIAMS AND FEELING STRUCTURES IN CROOKED PLOW: A NOVEL


Abstract

We reflect on Raymond Williams' cultural hypothesis “structures of feelings”, considering the relevance of art and literature as research sources for understanding ways of doing/feeling/thinking of certain social groups, understood as constitutive elements of the historical process. We indicate that this category also contributes to accessing ways of life, which are manifested in relationships with nature, work and coexistence in the territory of a given community. We analyzed the brazilian novel Crooked Plow, by Itamar Vieira Junior, articulating “structures of feelings” with the concepts of ways of life, nature and culture.

Keywords: Feeling Structures. Raymond Williams. Ways of Life. Traditional Communities. Crooked Plow.


1 Artigo recebido em 29/09/2023. Primeira Avaliação em 06/11/2023. Segunda Avaliação em 16/10/2023. Aprovado em 31/01/2024. Publicado em 22/02/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.60059.

2 Graduando em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói - Brasil; bolsista de Iniciação Científica (Pibic/UFF) na pesquisa “Trabalho-educação, modos de vida e estruturas de sentimentos em comunidades tradicionais”, coordenada pela Profa. Dra. Lia Tiriba (UFF). E-mail: luischagas@id.uff.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5951266593108817. ORCID: https://orcid.org/0009-0008-4860-1530.

3 Doutora em Ciências Políticas e Sociologia pela Universidade Complutense de Madrid (UCM), Espanha. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, Niterói - Brasil. E-mail: liatiriba@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2006259738336754.

ORCID: http://orcid.org/0000-0003-0117-4160.

Introdução


O modo de produção capitalista tem hegemonia sobre outros modos de produção da existência humana. Ao longo da história do capitalismo, embora resistam, os grupos e as classes sociais que existem “fora” do sistema dominante têm sido submetidos às mediações do capital, o que interfere sobremaneira em seus modos de viver, sentir e pensar o mundo. Desde a chegada dos europeus à América, a intensidade das políticas liberais, neoliberais e, agora, em particular, de cunho neofascista, tem afetado ou destruído o sociometabolismo dos seres humanos com a natureza. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o rompimento da Barragem do Fundão em Mariana (MG), no final de 2015, que culminou na morte de 19 pessoas, contaminou a bacia do Rio Doce com rejeitos de mineração, deixando milhares de pessoas desabrigadas. Como expressou um trabalhador da pesca, “não existe pescador sem pesca”; por isso, em pesquisa junto a comunidades pesqueiras no estado do Espírito Santo (onde deságua o Rio Doce), Mahalia Aquino (2023) perguntou: se o trabalho é a forma como os seres humanos estabelecem relações com a natureza, como pode um ribeirinho viver sem rio?

Considerando a unidade dialética e, portanto, contraditória entre ação/pensamento/ação, entre modo de fazer, sentir e pensar – o que caracteriza a práxis – teríamos que nos perguntar até quando os seres humanos e outros seres da natureza vão suportar os processos de reprodução ampliada do capital. No contexto em que a produção destrutiva do capital leva às últimas consequências as contradições entre trabalho, capital e vida, torna-se importante o conhecimento de modos de vida calcados em relações sociais mais igualitárias entre os seres humanos e de respeito com a natureza, da qual somos parte integrante.

Neste texto, refletimos sobre a hipótese cultural “estruturas de sentimentos” de Raymond Williams, tendo em conta a relevância da arte e da literatura como fontes de pesquisa para a apreensão de formas de fazer, sentir e pensar de determinados grupos sociais, entendidas como elementos constitutivos de processos históricos estruturados. Indicamos que essa categoria também contribui para acessar modos de vida que se manifestam nas relações dos seres humanos com a natureza, no trabalho e na convivência no território de uma determinada

comunidade. Analisamos o romance brasileiro Torto Arado, de Itamar Vieira Junior4, articulando “estruturas de sentimentos” aos conceitos de modos de vida, natureza e cultura.5

Como construto, “estruturas de sentimentos” foi utilizado por Williams em estudos que envolvem literatura de época, como romances ingleses dos séculos XV, XVI, XVII e XVIII, nos quais analisa, nas relações cidade/campo, os aspectos do cotidiano de vida e trabalho das pessoas, neles incluídos seus sentimentos quanto às mudanças que vão ocorrendo ao longo da formação social, econômica e cultural do capitalismo na Inglaterra. Como Williams, compreendemos que a categoria “estruturas de sentimentos” constitui-se como uma “hipótese cultural”, no sentido de que pode contribuir para a apreensão dos processos históricos. E seguindo E.P. Thompson (1981) quanto a procedimentos teórico-metodológicos que pressupõem a formulação de “hipóteses sucessivas”, aventamos uma segunda hipótese: a de que a categoria “estruturas de sentimentos” também pode contribuir para acessar elementos constituintes de modos de vida que, ao longo da história, vão se tornando hegemônicos nos territórios onde se tecem as chamadas comunidades tradicionais.

Seguindo a trilha de Raymond Williams – galês, sociólogo, escritor, crítico literário que, juntamente com E.P. Thompson foi membro do grupo de historiadores marxistas do Partido Comunista da Grã-Bretanha – trazemos à discussão o romance Torto Arado, de Itamar Vieira Junior (1° edição, 2019). Entendemos que essa obra apresenta em sua narrativa um enredo propício para a apreensão da categoria “estrutura de sentimentos” e sua articulação com a categoria “modos de vida”, uma vez que Vieira nos revela relações com a natureza, relação de trabalho e de convivência que se circunscrevem no contexto de luta pela reprodução ampliada da vida, fundada no valor de uso e no valor-comunidade. Como hipótese cultural (WILLIAMS, 1979), o romance Torto Arado revela-nos necessidades e expectativas


4 Itamar é graduado e mestre em geografia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Seu doutorado ocorreu na mesma instituição, porém na área de Estudos Étnicos e Africanos (2017). Sua estreia na literatura se deu com o livro de contos Dias (Caramurê produções, 2012), que venceu o XI Prêmio Projeto de Arte e Cultura. Foi seguido por A oração do carrasco (Mondrongo, 2017), vencedor do prêmio Humberto de Campos da União Brasileira de Escritores; pelo romance Torto Arado (Todavia, 2018), vencedor do prestigiado prêmio português Leya e por ainda mais um livro de contos chamado Doramar ou a odisseia: histórias (Todavia, 2021) e por seu mais recente romance Salvar o fogo (Todavia, 2023).

5 Esse texto é resultado parcial da pesquisa “Trabalho-educação, modos de vida e estruturas de sentimentos em comunidades tradicionais”, coordenada pela Profa. Dra. Lia Tiriba (UFF), com participação de Luís Eduardo da Conceição Chagas, como bolsista de iniciação científica (PIBIC/UFF).

(THOMPSON, 1981), ou seja, condições objetivas e subjetivas que em determinado território dão origem a experiências de classe e à formação de consciência de classe, redimensionando os poderes no território.

O enredo de Torto Arado é dividido em três partes, intituladas “Fio de Corte”, “Torto Arado” e “Rios de Sangue”, respectivamente. Itamar Vieira Junior inicia sua narrativa por volta de meados do século XX. Localizada no interior da Bahia, a fazenda Água Negra é o palco dos acontecimentos da história, uma propriedade da família Peixoto e morada de uma comunidade de ex-escravizados e seus descendentes que encontraram naquele território um local onde poderiam se estabelecer. Acontece que, após a abolição da escravidão no Brasil em 1888, essas pessoas se viram em situação de desalojamento e, assim, acabam por aceitar as condições deprimentes impostas pelos proprietários da fazenda apenas para que pudessem sobreviver ali, através do trabalho de suas próprias mãos.6 Acompanhamos o desenrolar da narrativa através dos olhos e dos pensamentos das irmãs gêmeas Bibiana e Belonísia, moradoras da fazenda, e dos chamados “encantados”7.

Ainda que uma obra fictícia, o romance apresenta uma contextualização histórica verídica que envolve um dos principais momentos da história do Brasil e, em particular, de um grupo social que experimentou (e ainda experimenta) uma época conturbada de incertezas e sofrimento. Assim, a modo de Raymond Williams, nossa intenção é recorrer à categoria “estruturas de sentimentos” para identificar pensamentos e sentimentos que permeiam o cotidiano de vida e de trabalho, as relações dos seres humanos com a natureza, enfim, o modo de vida de homens, mulheres e crianças trabalhadoras de Água Negra; como eles sobreviveram, como


6 Itamar Vieira Junior revelou em entrevistas que seus escritos em Torto Arado foram baseados em sua própria experiência. Baiano de 44 anos e filho de mãe analfabeta e de pai que terminou o ensino médio depois de muitas dificuldades, Itamar vivenciou os dilemas no acesso à educação escolar em sua infância. Em entrevista à rádio Brasil de Fato, o autor disse: “Estou pensando na minha perspectiva familiar mesmo, nos meus laços de parentesco, nas minhas origens [...]. Então eu não diria que eu dou voz aos silenciados. Talvez eu estivesse mesmo entre eles, afinal, essa é minha origem também”. Ver

<https://www.brasildefato.com.br/2023/06/20/itamar-vieira-junior-autor-de-torto-arado-fala-sobre-preco nceito-e-racismo-da-critica>. Acesso em 10 de setembro de 2023.

7 Os “encantados” são figuras importantes na narrativa. Podem ser entendidos como espíritos antigos cultuados no “Jarê”, religião de matriz africana que também se relaciona com cultos indígenas e com o cristianismo. A última parte do romance é narrada por uma encantada chamada “Santa Rita Pescadeira” e por meio dela descobrimos que esses espíritos são originários do continente africano e, aparentemente, acompanharam os escravizados enviados ao Brasil com o tráfico atlântico.

influenciaram e foram influenciados pelos acontecimentos que se deram na fazenda, no seu entorno e nas relações sociais mais amplas.

Para dialogar com o romance Torto Arado, percorremos um longo caminho, organizando o texto em quatro partes. Na primeira, na perspectiva da concepção materialista da história e da cultura, abordamos o conceito de “modos de vida” e suas possíveis articulações com a categoria “estruturas de sentimentos”. Em seguida, procedemos ao estudo de Torto Arado e, por meio de sua narrativa, buscamos localizar as condições de existência dos trabalhadores e das trabalhadoras da fazenda Água Negra, os traços econômicos e culturais e os sentimentos que circundam o enredo e seus personagens naquele contexto histórico de medo, indignação e conflito. Na terceira parte, para enriquecer a discussão sobre Torto Arado, abordamos os conceitos de “natureza” e “cultura” em Raymond Williams. Na quarta e última parte, recuperamos suas reflexões acerca de culturas “emergentes, residuais e dominantes”, conceitos abordados em diferentes obras do autor e relacionados, de alguma forma, com as “estruturas de sentimentos” – categoria que pode nos ajudar a acessar modos de vida em comunidade tradicionais, ainda que em formação.


“Modos de vida” e “estruturas de sentimentos” como conceitos de junção


Em Modo(s) de vida e modos de produção da existência humana: ensaio teórico-metodológico (TIRIBA, 2021), problematizamos a categoria “modos de vida”, a qual ganhou um significado comum no linguajar popular e passou a ser utilizada de forma vaga e imprecisa, remetendo-nos à ideia de mudanças culturais decorrentes de processos de urbanização e industrialização que incidem na vida cotidiana. Ressaltamos que o termo em questão pode ser confundido como sinônimo de “estilo de vida”8 e pode se aproximar do conceito de “meios de vida”9, entre outros.


8 Conceito estudado por Pierre Bourdieu. Segundo Julian Durval (2017), Bourdieu entende esse termo como “práticas dos grupos sociais e das frações de classe em relação ao gosto musical, a preferências de esporte e lazer e a outras formas de consumo de bens materiais e simbólicos, dependendo das condições econômicas e sociais dos sujeitos".

9 Conceito utilizado por Antônio Candido (2010), em Os parceiros do Rio Bonito, para indicar a vida familiar, as formas de subsistência, as representações mentais, as relações de trabalho, a solidariedade e outras formas de sociabilidade que, ao longo do processo de expansão capitalista, vão conformando e transformando a vida do caipira paulista.

Sob (e com) as lentes do materialismo histórico-dialético, seus significados se ampliam se apreendidos como concreto pensado: os modos de vida têm como base material e simbólica o modo de produção que, em uma determinada época, é hegemônico a outros modos de produção da existência humana (TIRIBA, 2021, p. 412). Assim como toda categoria, deve ser entendida na sua materialidade e historicidade, requerendo sua articulação como “conceito de junção” (THOMPSON, 1981), entre eles “estruturas de sentimentos”. Na concepção materialista da história e da cultura, os modos de vida revelam como as pessoas vivem, pensam e sentem o conjunto das relações econômicas, culturais, sociais, ambientais e entre outras, as relações de saber. A análise dos modos de vida requer considerar a centralidade do trabalho na formação humana, tendo em conta a universalidade, a particularidade e a singularidade das experiências históricas individuais e coletivas, todas elas carregadas de tradições, normas, valores e costumes em comum. Requer revelar as relações que os seres humanos, mediadas pelo trabalho, estabelecem entre si, com os seres não humanos e com outros elementos da natureza. Sem dúvida, a questão da forma de propriedade, individual/privada ou coletiva/social, dos meios de produção da vida é um elemento fundamental, estruturante de sentimentos sobre o modo de viver a vida em comunidade, em sociedade.

Carlos Rodrigues Brandão e Maristela Borges (2014, p. 1) explicam o conceito de comunidade a partir de enfoques diversos: comunidade primitiva (autóctone); comunidade tradicional (lugar dos pobres, dos expropriáveis, dos resistentes, em uma situação de fronteira); comunidade de exclusão (formada por desalojados e migrantes pobres, habitantes coletivos de grandes cidades e, de modo geral, escanteada para alguma de terra urbana de sobra); comunidade de adesão (agrupamento ou rede de pessoas que se reúne por escolha mútua para criarem uma unidade de ação social). Comunidade: “[...] o lugar humano da vida”. Vale destacar que a comunidade é um lugar de integração, sociabilidade, tradição e afeto; entretanto, é importante considerar que também é um lugar de hierarquias, conflitos e resistências. Pode ser considerada como uma unidade de produção da vida, como espaço/tempo de relações sociais, cuja materialidade se configura como um território de luta por hegemonia10.


10 Sobre as particularidades de comunidades rurais, por nós entendidas como comunidades tradicionais, ver Alves (2016).

Aspectos dos modos de viver, sentir e pensar de comunidades podem ser conhecidos em Trabalho-educação e (re)estruturação de modos de vida: experiências, lutas e resistências na(s) Amazônia(s) brasileira(s) (SOUZA; MIRANDA, 2022, p. 81). Os autores evidenciam as experiências de luta e resistência de grupos sociais11 que vivem na Amazônia brasileira e que enfrentam, cotidianamente, o desmatamento contínuo da maior floresta tropical do mundo devido aos interesses do agronegócio e à mineração dos territórios, que causam danos inimagináveis ao solo e às águas, além da violência a qual os habitantes dessa região são submetidos, vinda daqueles que desejam intimidá-los. Por meio de entrevistas e rodas de conversa com homens e mulheres de comunidades tradicionais, ressaltam os sentimentos que envolvem os membros dessas comunidades e os elementos da natureza que os cercam. Para eles:

Os modos de vida definem a relação das pessoas com o território em que vivem. Logo, território e modos de vida são categorias que se integram. Nessa relação, o bem-estar comum é um ideal a ser alcançado. A comunidade tem que estar bem, mas a natureza também precisa estar (SOUZA; MIRANDA, 2020, p. 81).


Percebe-se a importância dada pelos membros dessas comunidades à sustentabilidade do ambiente onde habitam e onde seu sustento é produzido e cultivado, visando a reprodução humana e de seus modos de vida. A partir de estudos teóricos e empíricos acerca das formas de estar, pensar e sentir o mundo,

[...] definimos como modo de vida um conjunto de práticas sociais, econômicas e culturais cotidianas compartilhadas por um determinado grupo social no processo de produção da vida material e simbólica. Como expressão da cultura, diz respeito aos costumes, às tradições, aos valores, às crenças e aos saberes que orientam as normas de convivência na vida familiar, no trabalho e em âmbito comunitário (TIRIBA, 2021, p. 414).


Uma série de questões deve ser considerada para uma melhor análise de modos de vida, entre elas: “Mediados pelo trabalho, que relações homens e mulheres estabelecem com a natureza? Qual o objetivo do trabalho? O que produzem e como produzem? Para quê e para quem trabalham? Existe exploração do trabalho?” (TIRIBA, 2021, p. 415). Outras perguntas são fundamentais para a


11 A pesquisa em questão gira em torno de comunidades quilombolas do Forte Príncipe da Beira e de Santa Fé, além de comunidades que se situam na Reserva Extrativista do Rio Cautário. Também foram objetos de pesquisa os assentamentos Morrinhos e Santa Rita, a comunidade tradicional de São Carlos do Jamari e as comunidades que ficam na Reserva Extrativista do Lago Cuniã.

apreensão dos modos de vida, em particular em comunidades tradicionais que perduram no atual contexto histórico, apesar dos limites que lhes impõe o capital:

Como são as relações de convivência no trabalho e em âmbito comunitário? Quais os critérios para distribuir os frutos do trabalho? Que sentidos são atribuídos ao trabalho de produção da vida? Quais são as tradições, os costumes, as crenças e os valores que orientam a vida comunitária? Como a religiosidade se manifesta? Que relações estabelecem com o tempo de trabalho e com o tempo de ócio? Que relações estabelecem com a natureza e com o território onde produzem sua existência? Tendo como referência as unidades domésticas, quais são os parâmetros de qualidade de vida? O que dizem as crianças, os jovens e os adultos sobre a vida em comunidade? O que desejam para si, seus familiares e demais moradores? Quais são os saberes do trabalho? O que a vida ensina? O que a escola ensina? Quais as mediações do capital na conformação das maneiras de fazer, sentir e pensar a vida em comunidade? E em relação ao Estado? Quais são os conflitos, as dificuldades, os desafios e as formas de luta para preservação da vida em comunidade? (TIRIBA, 2021, p. 415).


Nessa perspectiva, entre os elementos objetivos e subjetivos, materiais e simbólicos que constituem os modos de vida, podemos acrescentar a categoria “estruturas de sentimentos”, a qual, para Raymond Williams, constitui-se como fonte de pesquisa histórica.

Rayner Gonçalves Souza, no artigo Estrutura de sentimentos e a compreensão do cenário artístico brasileiro: uma leitura a partir da obra de Marcelo Ridenti, indica que “estruturas de sentimentos”, segundo Raymond Williams,

alude à capacidade de empreender uma leitura sobre os tempos históricos em que se pode perceber uma determinada proximidade entre manifestações artísticas, culturais e científicas capazes de revelar um determinado contexto de produção de ideias (SOUZA, 2017, p. 2).


Para Luciano de Oliveira (2016), Williams trabalhou com as “estruturas de sentimentos” em um grande número de suas obras, mas nunca buscou afirmar uma definição mais concreta, talvez por conta da dificuldade que a ação oferecia em decorrência da complexidade e da generalidade de ocorrências nas quais esse conceito pode ser apontado. Atribui à Drama From Ibsen to Eliot, publicado em 1952, as origens do conceito; posteriormente, ele aparece nos escritos do autor sobre teatro, cinema e literatura. Oliveira atenta para o fato de que Williams analisa diversas obras literárias para identificar as “estruturas de sentimentos” vigentes em determinados povos em certos períodos de tempo, mais especificamente, na

população operária inglesa durante o processo da Revolução Industrial. Da mesma maneira, viaja até a Era Medieval e encontra na roda da fortuna uma “estrutura de sentimentos”. Esses são apenas exemplos que demonstram como o autor galês trabalhou seu conceito, aplicando-o a diferentes épocas e buscando identificar por meio da arte e da cultura elementos morais, filosóficos e éticos que marcaram diversos momentos históricos.

Em meio a seus comentários sobre Reading and Criticism, livro publicado em 1950 e que nunca foi traduzido para o português, Oliveira define o capítulo dedicado às relações entre literatura e sociedade como o mais complexo da obra. Nele, Williams fala sobre seu procedimento ao utilizar a literatura como uma evidência em si, sendo ela a “base sobre a qual se revela elementos da experiência individual no interior de determinada cultura da qual temos apenas registros numéricos, dados frios que tornam a análise apenas abstrata” (OLIVEIRA, 2016, p. 39). Nesse sentido, Williams defende que a literatura deve ser lida levando em consideração seu valor interno.

Escritor, pesquisador e crítico literário, Williams nasceu em Llanfihangel Crucorney, uma aldeia remota no País de Gales, próximo da fronteira com a Inglaterra, em 1921. O galês viu o desenrolar da 2° Guerra Mundial durante sua adolescência, chegando a ir para os campos de batalha nos últimos anos do conflito12. Considera que crescer em um ambiente rural e observar o contraste entre a vida campesina e os grandes centros urbanos enquanto ambos seguiam se modernizando foi uma grande influência que contribuiu com o foco especial que os estudos culturais vieram a ter em suas obras. Isso é revelado em O campo e a cidade (2011), lançado originalmente em 1973, obra em que analisa o desenvolvimento da sociedade inglesa e como isso foi representado na literatura a partir do século XVI. Williams busca localizar a relação entre a perspectiva literária e as mudanças que, efetivamente, ocorreram na sociedade concluindo que as transformações que se deram na sociedade inglesa foram explicitadas na literatura e, como diria Marc Bloch (2001), por vezes de maneira voluntária e por vezes, involuntária. As “estruturas de sentimentos” são citadas no livro já em suas primeiras


12 Após retornar da Segunda Guerra Mundial, ele se formou na Trinity College, em Cambridge. Posteriormente, foi professor na própria Cambridge e em Oxford. Williams também ingressou nas fileiras do Partido Comunista Britânico e se tornaria um dos principais nomes da Nova Esquerda Inglesa, juntamente com Maurice Dobb, Edward Thompson, Dorothy Thompson, Eric Hobsbawm, entre outros.

páginas, porém ficam apenas como uma categoria de análise não definida teoricamente.

Williams (1979, p. 134) considera que as “estruturas de sentimentos” carregam “elementos especificamente afetivos da consciência e das relações”, mas não se trata de “sentimento em contraposição ao pensamento, mas de pensamento tal como sentido e de sentimento tal como pensado”. Nesse sentido, essas estruturas podem ser entendidas como o pensamento influenciado pelos sentimentos e vice-versa, os quais movem e são movidos pelas práticas sociais, em um determinado espaço/tempo histórico, também estruturado. Por sua vez, indo ao encontro da categoria “estruturas de sentimentos” em Raymond Williams, Tiriba (2021, p. 8) afirma que “os modos de vida manifestam as relações que homens e mulheres trabalhadoras mediadas pela memória coletiva e por experiências vividas e herdadas estabelecem com o território em que produzem sua existência”. Assim, considerando a relevância da literatura como fonte histórica, percorremos a obra de Itamar Vieira Junior para localizar, em sua narrativa, os traços históricos, sociais e culturais que nos remetem tanto a “estruturas de sentimentos” como a modos de vida, entendidas como “conceitos de junção” (THOMPSON, 1981).


Torto Arado e a experiência do trabalho de produção da vida


Em Marxismo e Literatura (1979), ao argumentar sobres os diferentes tipos de hegemonia que uma época pode ter, Raymond Williams escreve:

[...] O que temos realmente de dizer, como uma maneira de definir os elementos importantes tanto do residual como do emergente, e como um meio de compreender o caráter do dominante, é que nenhum modo de produção e, portanto, nenhuma ordem social dominante, nunca na realidade, inclui ou esgota toda a prática humana, toda a energia humana e toda a intenção humana (WILLIAMS, 1979, p. 128).


Ambientado no interior da Bahia em meados do século XX, Torto Arado carrega em sua narrativa diversos elementos que justificam essa afirmação de Raymond Williams. A sociedade capitalista, com suas práticas e seus valores, apossa-se de muitos elementos da fazenda Água Negra – o local onde se passa a narrativa – mas nunca consegue destruir a conexão das pessoas com o campo e

com suas atribuições, o amor delas pela terra e pela natureza, nem o trabalho como mediação nos processos de reprodução da vida. Tratemos disso em partes.

O enredo se passa na Chapada Diamantina, na fictícia fazenda Água Negra que se localiza em algum lugar entre os rios Utinga e Santo Antônio. É dito que o personagem Zeca Chapéu Grande viveu em uma fazenda chamada Caxangá junto com seus irmãos e sua mãe, Donana. Eles viviam na condição de moradores que pagavam sua estadia com o trabalho que realizavam, ficando com muito pouco do que produziam para eles mesmos. A situação se complica em um momento de forte estiagem e Zeca parte em busca de uma terra que, segundo tinha ouvido falar, possuía água em abundância. Já trabalhando e vivendo em Água Negra, Zeca traz para a fazenda sua mãe e seus irmãos e depois forma uma nova família ali.

Podemos identificar diferentes “estruturas de sentimentos” relacionadas com as experiências que os trabalhadores da fazenda vivenciam durante a narrativa do livro. Nota-se uma explícita diferença entre a estrutura de sentimentos dos primeiros homens que chegaram a Água Negra para trabalhar e a das gerações seguintes – da qual Bibiana e Belonísia, as protagonistas da narrativa, fazem parte. Elas nasceram quando as regras e os acordos entre os proprietários e os trabalhadores já estavam estabelecidos.

Zeca Chapéu Grande é o pai das duas protagonistas e foi também um dos primeiros moradores da fazenda. Como curandeiro, ele carregou o papel de líder da comunidade e manteve a estabilidade das relações entre os moradores e os proprietários da fazenda durante toda a sua vida. Ao mesmo tempo, ele buscava, de todas as formas possíveis, conceder um futuro melhor a seus filhos e a todos os outros, o que vemos claramente pela maneira como ele buscou a introdução da educação escolar naquelas terras. Ele desejava, acima de tudo, que seus filhos tivessem uma vida melhor do que a que ele teve.


Quem acompanhasse sua vida de lida na terra ou a seriedade com que guardava as crenças do jarê acharia que eram os bens maiores de sua existência. Mas pessoas como nós, quando viam o orgulho que sentia dos filhos aprendendo a ler e do valor que davam ao ensino, saberiam que esse era o bem que mais queria poder nos legar (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 66).


A construção da escola foi um dos momentos mais importantes de Água Negra, realizada pelos próprios moradores da fazenda, os responsáveis pelo crescimento de absolutamente tudo que havia ali. Foi graças à busca com afinco de

Zeca Chapéu Grande pela educação escolar que ela pode, finalmente, ser introduzida naquele local, o que nos faz perceber que, mesmo o homem que muito prezava pela manutenção das relações ali existentes, teve um papel essencial no desenvolvimento da mentalidade dos mais jovens e da população local. Ele teve um papel no desenvolvimento das novas “estruturas de sentimento”, indicando que as práticas sociais têm um papel importante na estruturação dos sentimentos.

Os primeiros sentimentos estruturados se baseiam, sobretudo, em uma conformação com qualquer tipo de imposição dos patrões, pois existia o medo, entre os trabalhadores, de perder a moradia naquele local que concedia a eles uma casa fixa e terra para plantar suas próprias hortas. O medo aparece então como um elemento real da “estrutura de sentimentos”, sendo justificado dentro do próprio livro, como será abordado posteriormente.

Nesse contexto, os pensamentos dos moradores de Água Negra – influenciados por seus sentimentos e vice-versa – em relação às suas situações são ilustrados no seguinte trecho:

[...] Poderia ficar naquelas paragens, sossegado, sem ser importunado, bastava obedecer às ordens que lhes eram dadas. Vi meu pai dizer para meu tio que no tempo de seus avôs era pior, não podia ter roça, não havia casa, todos se amontoavam no mesmo espaço, no mesmo barracão (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 41).

Assim, apesar de a população trabalhadora de Água Negra ser a responsável por todo o cuidado e trabalho daquela terra, seus integrantes ainda carregavam, em suas mentes, a percepção de que eles eram apenas hóspedes, empregados naquele local e que poderiam ser castigados sendo mandados embora por qualquer deslize. Observamos um sentimento geral de subordinação aceita. Isso pode ser visto, por exemplo, no trecho a seguir:

Em troca, poderia se construir uma tapera de barro e taboa, que se desfizesse com o tempo, com a chuva e com o sol forte. Que essa morada nunca fosse um bem durável que atraísse a cobiça dos herdeiros. Que essa casa fosse desfeita de forma fácil se necessário. Podem trabalhar – contavam nas suas romarias pelo chão de Caxangá –, podem trabalhar, mas a terra é dessa família por direito. Os donos da terra eram conhecidos desde a lei de terras do Império, não havia o que contestar (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 183).


Entendemos que os sentimentos vão se estruturando e se reestruturando em um determinado espaço/tempo histórico. Os primeiros trabalhadores que chegaram

à fazenda passaram pelo processo de estruturação dos sentimentos em relação à vida em Água Negra até considerarem o que tinham como “suficiente”.

No prefácio do volume 1 de A formação da classe operária inglesa, Thompson (2021) apresenta sua concepção de “classe” como um fenômeno histórico, baseado nos acontecimentos que envolvem a experiência e a consciência dentro das relações sociais. A classe é entendida como uma formação social e cultural, resultante de processos que ocorrem em cada período histórico. Além disso, a identificação de um grupo social como uma classe se relaciona com a defesa de interesses comuns entre os membros desse grupo, em oposição aos interesses de outro grupo que se difere ou até se opõe, inserido dentro de um mesmo contexto social. O autor define que:

[...] a experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram – ou entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais (THOMPSON, 2021, p. 10).


Também podemos nos voltar para o geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira. Em A Geografia agrária e as transformações territoriais no campo brasileiro, o autor discorda de muitos teóricos, ao considerar que o desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro acontece de modo contraditório e combinado13. Nesse sentido, o autor defende que, na realidade, “os camponeses continuam lutando para conquistar o acesso às terras em muitas partes do Brasil”. Eles passaram a lutar para “continuarem sendo camponeses”.

Ao mesmo tempo que esse desenvolvimento avança reproduzindo relações especificamente capitalistas (implantando o trabalho assalariado pela presença no campo do bóia-fria), ele (o capitalismo) produz também, igual e contraditoriamente, relações camponesas de


13 A discordância entre Oliveira e outros geógrafos se dá pelo fato de que alguns acreditam que no Brasil houve feudalismo e defendem que seria necessário acabar com essas relações feudais e estabelecer o trabalho assalariado em maior escala. De acordo com Oliveira, esses geógrafos entendem que “a luta pela reforma agrária seria um instrumento que faria avançar o capitalismo no campo”. Outra vertente considera que o campo brasileiro já está se desenvolvendo segundo lógicas capitalistas e que, em breve, os camponeses irão desaparecer, pois eles seriam um “resíduo social” que o capitalismo superaria. Essa teoria afirma a inevitável conversão dos camponeses em proletários. Segundo Oliveira, o que acontece é que esses teóricos possuem uma “concepção teórica que deriva de uma concepção política de transformação da sociedade capitalista”. Ou seja, eles assumem que a chegada do socialismo só seria possível se a sociedade capitalista fosse formada por apenas duas classes sociais rivais: a burguesia e o proletariado. Logo, acabam confundindo suas teorias acadêmicas com seus ideais políticos (OLIVEIRA, 1998, p. 70-72).

produção (pela presença e aumento do trabalho familiar no campo) (OLIVEIRA, 1998, p. 73).


O autor ainda resgata uma bela citação de Marx:


[...] o modo de produção da vida material condiciona o processo em geral da vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência (MARX, 1974 apud OLIVEIRA, 1998, p. 69).

Com isso, fica claro que as experiências das gerações de moradores de Água Negra não são as mesmas, o que, inevitavelmente, repercute na formação da consciência de classe. Na narrativa construída por Vieira Junior, o processo de reestruturação de sentimentos que se deu junto às novas gerações – indo desde os nascidos na fazenda até aqueles que chegaram lá jovens – é marcado pela não aceitação das explorações vividas na fazenda. São sentimentos de indignação que existiam há muito tempo, mas que encontram certa organicidade e materialidade quando Severo, primo e esposo de Bibiana, volta para a fazenda trazendo consigo suas experiências e seus ideais e, ao compartilhá-los com todos, interfere no ambiente. Interessante notar que Severo não nasceu em Água Negra. Severo foi com sua família para lá no início de sua adolescência, ou seja, ele era como um “estrangeiro” introduzido naquele ambiente estranho. Ambiente ao qual ele se adaptou, porém nunca deixou de questionar. Sempre foi ambicioso e não conformado, como é possível observar em uma de suas conversas com Bibiana, uma das narradoras de Torto Arado:

Ele se sentia à vontade para falar sobre seus sonhos, tinha planos de estudar mais e não queria ser empregado para sempre da Fazenda Água Negra. Queria trabalhar nas próprias terras. Queria ter ele mesmo sua fazenda, que, diferente dos donos dali que não conheciam muita coisa do que tinham, que talvez não soubessem nem cavoucar a terra, muito menos a hora de plantar de acordo com as fases da lua, nem o que poderia nascer em sequeiro e várzea, ele sabia de muito mais (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 72).


Neste ponto do livro, vemos Bibiana sendo provocada a pensar um pouco além. Severo a influencia a considerar novas possibilidades. Bibiana é apenas a primeira de muitos outros que seriam inspirados por Severo. Ele teve um papel que quase podemos definir como o de um “influenciador revolucionário”, principalmente após a morte de Zeca Chapéu Grande e a venda da fazenda, e acabou tendo uma

importância imensurável para aquela população. Vemos isso em Zezé, irmão mais novo de nossas protagonistas, que, em certo momento, faz questionamentos a Zeca Chapéu Grande:

Um dia, meu irmão Zezé perguntou ao nosso pai o que era viver de morada. Porque não éramos também donos daquela terra, se lá havíamos nascido e trabalhado desde sempre. Por que a família Peixoto, que não morava na fazenda, era dona? Por que não fazíamos daquela terra nossa, já que dela vivíamos, plantamos as sementes, colhíamos o pão? Se daí tiramos nosso sustento (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 85).


Eram dúvidas sinceras de alguém que nasceu naquele ambiente e sempre viveu naquela situação, mas que enfim vocalizava seus questionamentos porque já entendia que as coisas não precisavam ser daquela forma. Na sequência, o jovem é então repreendido por seus questionamentos por Zeca Chapéu Grande, que volta a relembrar o quão difíceis eram as coisas antes da fazenda e que o importante era aceitar as condições atuais para que eles não voltassem àquela situação terrível de falta de moradia do pós-abolição. A diferença nos sentimentos entre os mais velhos e os mais jovens se revela na página seguinte:

Ele [Zezé] não comentava, mas continuou a indagar sobre as mesmas questões, continuava a expor suas ideias. Dos mais velhos ouviu os mesmos argumentos defendidos por Zeca. Dos mais novos ouviu que seus questionamentos faziam sentido, que seus pais, avós, morreram sem possuir nada (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 186).


É dito popularmente que um “desejo de liberdade” cresce entre as novas gerações, o que até mesmo pode colocar em oposição pais e filhos de uma mesma moradia. Esse é um explícito caso de “estruturas de sentimentos” em conflito, a tradicional e a emergente. Nesse mesmo capítulo do livro, temos a primeira menção à palavra “quilombolas” e, mais pelo fim do livro, Bibiana explica o motivo pelo qual aquelas pessoas passaram a se classificar dessa forma.

Disse que era professora, casada por muitos anos com um militante. Disse que era quilombola. Escutou que ninguém nunca havia falado sobre quilombo naquela região. ‘Mas a nossa história de sofrimento e luta diz que nós somos quilombolas’, respondeu, tranquila, diante do escrivão e do delegado (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 256).


Nesse ponto do enredo, já avançado, temos um grande número de moradores de Água Negra ativamente lutando por seus direitos. Com o dinheiro da

aposentadoria dos mais velhos e com as mãos fortes dos mais jovens, começam a substituir as casas de barro por casas de tijolos. Fortalecem suas bases em uma demonstração de que sua permanência ali não seria passageira. O medo do desalojamento que sobreveio após a venda da fazenda foi um dos principais motivos que levou essa população a mudar de postura, reestruturando seus sentimentos. E tudo isso aconteceu em um terreno repleto de indignação.


Reunidos com Bibiana, decidiram que se tivesse a ordem de um juiz – eles acreditavam que era possível pela influência que Salomão tinha entre os ilustres cidadãos da região –, deitariam no chão diante de suas casas para impedir os tratores de demolir. Que nenhuma família desampararia a mais próxima, independente das diferenças que guardavam no dia a dia. Juntos resistiriam até o fim (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 256).


Outro importante aspecto do romance é expresso em Belonísia. Ela era voltada aos saberes do campo, que era com o que mais se identificava. Sabia ler e escrever principalmente graças a sua mãe, já que frequentou a escola criada na fazenda por pouco tempo e logo a deixou de lado para trabalhar com seu pai nas matas, aprendendo sobre as ervas, as raízes, os animais, as chuvas e as estações. Essa irmã trabalhava principalmente com suas mãos nos campos. Interessante notar essas diferenças nos sentimentos entre as duas irmãs, que nasceram e cresceram juntas.


Diferente de Bibiana, que falava em ser professora, eu gostava mesmo era da roça, da cozinha, de fazer azeite, e de despolpar buriti. Não me atraia a matemática, muito menos as letras de dona Lourdes. Não me interessava por suas aulas em que contava a história do Brasil, em que falava a mistura entre índios, negros e brancos, de como éramos felizes, de como nosso país era abençoado. Não aprendi uma linha do Hino Nacional, não me serviria, porque eu mesma não posso cantar (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 97).


Através dos olhos e dos pensamentos de Belonísia vemos a história se desenrolar na parte 2 do livro, intitulada “Torto Arado”, na qual é recuperado o acidente que sofre essa personagem. Quando criança, ela tem sua língua cortada acidentalmente por uma faca afiada, o que culmina na impossibilidade da personagem de se comunicar oralmente. Todos os sons de sua boca saíam distorcidos, mal formulados. Como é ilustrado quando ela tentava dizer sua palavra favorita, “arado”, resultando sempre em um “arado torto”. Esse acidente foi um dos

eventos que mais afetou seu desenvolvimento, levando-a a se tornar uma personagem mais introspectiva e com uma ligação muito forte com a terra. Assim como Bibiana, a irmã Belonísia é uma personagem que se destaca em uma comunidade na qual se pressupunha que uma mulher viúva e sem filhos continuaria vivendo sozinha, tendo a companhia apenas de suas plantações. Sua valentia se destacava: “Que se atrevesse a vir me agredir que faria o mesmo com sua carne: a faria se soltar da face com um golpe apenas. Antes que qualquer homem resolvesse me bater, lhe arrancaria as mãos ou a cabeça, que não duvidassem de minha zanga” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 121).

Os pensamentos de Belonísia evidenciam as relações entre seres humanos/natureza mediadas pelo trabalho e a íntima conexão que aquelas pessoas tinham com a terra. Uma das passagens que nos chama a atenção é quando o autor diz que as farturas das plantações provenientes das boas épocas de colheita coincidiam com uma época em que muitas crianças nasciam: uma interessante maneira de articular a vida que sai da terra com a produção da vida humana. “Depois do fim da estiagem, nasceram crianças como orelha-de-pau em troncos apodrecidos nos charcos que se tornaram a vazante. Passei a acompanhar Salú quase toda semana para ajudar as mulheres no parto” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 105).


“Cultura” e “Natureza” em Torto Arado


Ao realizar a reconstrução histórica do conceito de “cultura”, Williams (1979) apresenta uma definição contrária à ideia de “civilização” formulada após a Revolução Francesa e que faz referência apenas ao continente europeu. Atravessando desde Rousseau até o movimento romântico, “cultura” adquire o sentido de um “processo de desenvolvimento íntimo”, sendo relacionados a ela então elementos como família, arte, vida pessoal e religião. Acrescenta-se ainda, concepções mais antigas ligadas à cultura, como “modos de vidas totais” ou sistemas de valores de diferentes grupos.

Nesse sentido, é possível identificar diversos elementos da cultura da comunidade de trabalhadores de Água Negra. As famílias são sempre numerosas. O homem sai para trabalhar na roça e a mulher realiza as tarefas de casa e cuida dos filhos. Vemos que a violência doméstica poderia ocorrer, o que a população local via

com maus olhos, porém se conformava com a ocorrência. É comum a ideia de que “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Assim, nota-se claramente a influência do patriarcado.

A religiosidade se expressa, principalmente, no culto aos “encantados”. Esses aparecem, por vezes, como personagens da história e acompanhamos até mesmo os seus pensamentos em momentos nos quais relembram os ciclos da vida que observaram ao longo dos séculos, assim como a tragédias e sofrimentos diversos que viram os escravizados serem submetidos. Os encantados se mostram como espíritos eternos que possuem a capacidade de tomar corpos humanos, porém, na história, estão gradualmente sendo esquecidos. Outra característica relevante é a sua aparente conexão com a natureza. Os encantados parecem, muitas vezes, algum tipo de manifestação mística da natureza.

Nesse sentido, podemos recorrer novamente a Williams para dissecar as ideias de natureza presentes em Torto Arado. Assim como o autor faz com “cultura”, o conceito de “natureza” também recebe uma reconstrução histórica e sua utilização inicial, segundo o autor, parte da ideia de natureza como a constituição essencial do mundo. Com o passar dos séculos, o significado de natureza, enquanto conceito foi repaginado e assumiu novos aspectos conforme novas sociedades surgiam e as mais antigas se desenvolviam.

Com esses poucos exemplos, temos toda uma gama de significados: desde a natureza como uma condição primitiva anterior à sociedade humana; passando pelo sentido de uma inocência original na qual houve uma queda e uma maldição que exige redenção; passando pelo sentido particular de uma qualidade de nascimento, como na raiz latina; passando também pelo sentido das formas e moldes da natureza que podem paradoxalmente ser destruídos pela força natural do trovão; até a forma simples e persistente da deusa personificada, a própria Natureza (WILLIAMS, 2011b, p. 96).


A discussão acerca do conceito de natureza se acentua a partir do século

XVIII com a participação de diversos intelectuais, como Hobbes e Locke e, em suma, a natureza passa a ser vista como separada do ser humano. Graças a certos marcos da humanidade, como o desenvolvimento de técnicas agrícolas e a Revolução Industrial, as pessoas passam a ser vistas, por muitos autores, como tendo o poder de operar esse conjunto de objetos que seria a natureza. Os críticos a esse tipo de concepção formulam então um novo sentido de natureza, que seria

“tudo o que não era humano, tudo o que não fora tocado ou estragado pelo homem: a natureza como os locais solitários, como o selvagem” (WILLIAMS, 2011b, p. 103).

Enfim, cabe-nos apenas ressaltar que Williams considera que “a ideia de natureza contém, embora muitas vezes de modo despercebido, uma quantidade extraordinária da história humana” (WILLIAMS, 2011b, p. 89), o que o levou a concluir que a ideia de natureza é a ideia do ser humano, ou seja, a concepção humana do que é a natureza reflete os valores – ou os sentimentos estruturados – dos diferentes grupos e sociedades. A natureza é a projeção das ideias dos seres humanos sobre ela.

Em Torto Arado, “natureza” não aparece como conceito, não é teorizada. Entendemos sua concepção através dos pensamentos e, mais ainda, dos sentimentos dos personagens, principalmente, de Belonísia. Natureza é vista com alegria e gratidão, como fonte de alimento, como observamos nos momentos de pesca e nas passagens em que os personagens colhem os frutos daquilo que plantaram no solo. Natureza também é sentida como tristeza e sofrimento. É entendida como indomável e cruel muitas vezes, com os vendavais e as cheias dos rios, que destruíam plantações inteiras; ou nos momentos de seca em que nada crescia do chão, e o que estava vivo em cima, descia sem vida. A natureza pode ser vista como fonte de justiça e socorro, era a ela que as pessoas recorriam quando precisavam de ajuda, clamando pela intervenção dos encantados para que concedessem alívio e correção da exploração praticada contra os trabalhadores da fazenda. Enfim, a natureza era vista, acima de tudo, com respeito. Uma “estrutura de sentimentos” se manifesta na concepção, nem sempre oralizada, que aquela comunidade de trabalhadores tinha da natureza. Isso é expresso em diversas passagens do livro, entre elas, nesta sobre a relação entre Bibiana e Severo:

Tudo foi crescendo de forma tão pujante que era como se meu corpo se guiasse sozinho, e Severo agia da mesma forma na trama em que estávamos enredados. Naquela terra mesmo, entranhada da secura da falta de chuva, deixamos nossos suores para que lhe servisse de alívio. O silêncio da ausência dos pássaros, dos animais que migravam para onde havia água, foi rompido por nossos sussurros. Depois de tanto ouvirmos falar sobre as crianças mortas, a natureza, misteriosa e violenta, nos impelia para conceber a vida (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 56).


Outra passagem que podemos citar sobre natureza é quando Belonísia está relembrando os ensinamentos que seu pai, Zeca Chapéu Grande, lhe passou:

Com Zeca Chapéu Grande me embrenhava pela mata nos caminhos de ida e de volta, e aprendia sobre as ervas e raízes. Aprendia sobre as nuvens, quando haveria ou não chuva, sobre as mudanças secretas que o céu e a terra viviam. Aprendia que tudo estava em movimento – bem diferente das coisas sem vida que a professora mostrava em suas aulas. Meu pai olhava para mim e dizia: ‘O vento não sopra, ele é a própria viração’, e tudo aquilo fazia sentido. ‘Se o ar não se movimenta, não tem vento, se a gente não se movimenta, não tem vida’, ele tentava me ensinar. Atento ao movimento dos animais, dos insetos, das plantas, alumbrava meu horizonte quando me fazia sentir no corpo as lições que a natureza havia lhe dado (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 72).


Dominante, residual e emergente na literatura e na história


O historiador Walter Fraga Filho (2004) defende que, após a promulgação da Lei Áurea, os então ex-escravizados tomaram diferentes decisões. Obviamente, muitos abandonaram os engenhos de açúcar para buscar melhores condições de vida em outros locais, ou para voltar para perto de seus familiares. Ocorreu assim um grande número de viagens para o continente africano, enquanto outros buscaram se estabelecer em comunidades urbanas, o que gerou uma série de conflitos. Entretanto, muitos continuaram a residir nos locais onde nasceram e trabalharam até aquele momento, porém demarcando limites às ações dos senhores e estabelecendo requisitos mínimos, que seriam o fim dos castigos físicos e do trabalho sem remuneração.

De forma contraditória, diversas motivações podem ter sido decisivas. Segundo Filho, uma delas teria sido o apego emocional das pessoas a esses lugares, principalmente em relação às memórias positivas construídas no mundo dos engenhos, pois ele “não guardava apenas a memória dos dias duros da escravidão, era também testemunho do esforço incessante para conquistar espaços e para cultura de deuses e santos” (FILHO, 2004, p. 239). Ao longo dos anos de escravidão, segundo o autor, muitos escravos conquistavam direitos resultantes de acordos feitos com os senhores, como o acesso a sua própria moradia e a possibilidade de constituir família. Ir embora dali também poderia significar deixar tudo para trás. Além disso, o trabalho nas lavouras de cana já era conhecido por todos eles, o que lhes concedia, ao menos, uma garantia de trabalho. Filho (2004) argumenta que a permanência nas antigas propriedades escravistas também foi

uma escolha estratégica para que essas pessoas pudessem sobreviver no pós-abolição.


Nos anos que se seguiram à abolição, as condições climáticas e a conjuntura econômica e social não foram favoráveis a quem pretendia migrar para outras localidades. Possivelmente a seca que assolou a Bahia entre a segunda metade de 1888 e 1890, o desemprego, a carestia de gêneros e a fome não motivaram grande fluxo migratório do Recôncavo para outras regiões da província. Além disso, depois do fim do cativeiro, intensificaram-se a repressão policial e o preconceito em relação aos indivíduos egressos da escravidão (FILHO, 2004, p. 238).


Para se definirem como homens e mulheres livres no mundo dos engenhos, eles passaram a se identificar como “moradores”, “roceiros” ou “lavradores”, numa tentativa de se distanciar do antigo termo atribuído a eles, o de “escravos”.

Um dado também interessante de se destacar é que os registros de nascimento feitos por volta do fim do século XIX e início do século XX revelam um grande número de mulheres que deram à luz ainda vivendo na casa de seus pais. Filho considera que isso pode indicar que as gerações mais novas não possuíam a mesma garantia de acesso a terras, ou à moradia como a que havia nos engenhos, o que dificultava ainda mais a situação dos ex-escravizados e de seus descendentes no pós-abolição (Filho, 2004, p. 295-296).

Lúcio Kowarick, em Trabalho e Vadiagem (1987), aborda a questão do grande fluxo migratório de trabalhadores do exterior para o Brasil, durante os séculos XIX e

XX. Argumenta que a crescente reserva de mão de obra que se formou no país acabou prejudicando os atores nacionais na hora de conseguir se firmar em algum trabalho. Kowarick chega a considerar que muitos imigrantes se apressaram em direção às plantações, quando viram os então ex-escravizados abandonando-os após a abolição em 1888. E ainda, por não encontrarem opções de sobrevivência, muitos escravizados acabavam retornando aos cafezais:


É preciso, nesse sentido, frisar que o assim chamado elemento nacional, após a Abolição, tendeu a ser absorvido pelo processo produtivo só em áreas de economia estagnada, onde a imigração internacional foi pouco numerosa ou, até mesmo, nula. [...] O imigrante deixou poucas oportunidades para os nacionais que passaram a realizar tarefas mais árduas e de menor remuneração, como o desbravamento e preparo da terra, e, praticamente, extinguiu as possibilidades de emprego para os ex-escravos (KOWARICK, 1987, p. 95).

Raymond Williams acredita que o termo “estruturas de sentimentos” pode ser definido como “experiências sociais em solução”. Indica que esses sentimentos foram estruturados a partir das experiências dos grupos sociais e aqui, em particular, a partir das experiências de trabalho e de classe vividas por homens e mulheres trabalhadoras. O autor afirma a existência de grande complexidade na relação de “estruturas diferenciadas de sentimento em classes diferenciadas”. Assim, o aparecimento de novas “estruturas de sentimentos” se conecta com as transformações que ocorrem nas classes sociais, seja na forma de ascensão de uma classe, seja nos processos de rompimento, contradição e mutação que podem ocorrer dentro de uma mesma classe (WILLIAMS, 1979, p. 136-137). Nesse sentido, os conceitos de culturas dominantes, residuais e emergentes, trabalhados por Raymond Williams em Marxismo e Literatura, também podem ser incluídos nessa análise. Em suma, cada um desses “tipos de cultura” diz respeito à posição que uma cultura possui na sociedade em relação às outras, tendo em conta a base material.

Entendemos que as condições nas quais a população de Água Negra trabalhava e vivia podem ser consideradas como uma cultura residual, ou seja, uma cultura efetivamente formada no passado, durante o período da escravidão, mas que é ainda efetiva dentro de uma nova cultura, a capitalista, a dominante. A exploração do trabalho é claríssima e as pessoas se sentem sem alternativas, a não ser continuar ali para que possam sobreviver. Esses são aspectos de uma cultura residual escravista que foram incorporados pela cultura dominante atual, capitalista.

Da mesma forma, o meio de vida dos trabalhadores da fazenda, baseado no trabalho braçal nas roças, produzindo diretamente seu próprio alimento também faz parte de uma cultura residual incorporada pela cultura dominante, já que, em meados do século XX, o capitalismo já era a cultura hegemônica. Nesse caso, a incorporação se deu também por meio da exploração do trabalho dessa população como uma forma dos proprietários da fazenda obterem lucro. Em Cultura e Materialismo (2011), no capítulo no qual fala sobre base e superestrutura, Raymond Williams tece considerações sobre as maneiras, as condições e os motivos pelos quais a cultura dominante pode anexar uma cultura residual.


Uma cultura residual está geralmente a certa distância da cultura dominante efetiva, mas é preciso reconhecer que, em atividades culturais reais, a cultura residual pode ser incorporada à dominante. Isto porque alguma parte dela, alguma versão dela – sobretudo se o resíduo é proveniente de alguma área importante do passado – terá

de ser, em muitos casos, incorporada se a cultura dominante quiser fazer sentido nessas áreas. Também porque, em certos aspectos, uma cultura dominante não pode permitir que muitas dessas práticas e experiências fiquem de fora de seu domínio sem correr certo risco (WILLIAMS, 2011a, p. 56-57).


Uma questão a se levantar é se uma cultura residual incorporada pela dominante não se tornaria então apenas um elemento da cultura dominante. Sobre culturas emergentes, Raymond Williams escreve:


O que importa, finalmente, no entendimento da cultura emergente, em distinção da cultura dominante e residual, é que ela não é nunca apenas uma questão de prática imediata. Na verdade, depende crucialmente de descobrir novas formas ou adaptações da forma. Repetidamente, o que temos de observar é, com efeito, uma emergência preliminar, atuante e pressionante, mas ainda não perfeitamente articulada, e não o aparecimento evidente que pode ser identificado com maior confiança (WILLIAMS, 1979, p. 129).


Já a emergência de uma “consciência de classe” – seguindo o conceito desenvolvido por Edward Thompson – dentro da comunidade de Água Negra nos revela uma cultura emergente. Raymond Williams escreve que o aparecimento de uma nova “estrutura de sentimentos” pode se relacionar com a ascensão de uma classe, assim como pode acontecer através do rompimento, ou da mutação dentro de uma classe. Nesse sentido, entendemos que o desenvolver de uma consciência comum entre pessoas de uma mesma comunidade também pode desenvolver novas “estruturas de sentimentos” sobre o “modo de vida” que pretendem que se torne hegemônico. Esse é o caso da população trabalhadora da fazenda Água Negra.


A título de conclusão


Como analisado neste estudo, o conceito de Raymond Williams possui uma grande importância na análise de obras literárias como fonte histórica. O autor considera que a literatura – antes de outros tipos de criação artística, como o teatro e o cinema – é extremamente propensa para a busca de “estruturas de sentimentos”, como uma forma de estudar grupos e sociedades diversas ao longo do tempo. Em Torto Arado, na obra de Itamar Vieira Junior que apresenta uma narrativa com rico conteúdo histórico e social, é possível perceber essa categoria, a qual nos permite compreender aspectos relacionados aos modos de vida de uma comunidade quilombola, em formação, no interior da fazenda Água Negra. Ao longo

da narrativa, são explicitadas as condições objetivas e subjetivas de reprodução da vida que vão conformando os sentimentos de homens, mulheres e crianças em relação à necessidade de ruptura com relações sociais impostas por seus ex-senhores que, mesmo com a “libertação da escravatura”, os mantêm aprisionados.

Percebemos que os sentimentos da população trabalhadora da fazenda, inicialmente, eram de conformação em relação às difíceis condições de vida que enfrentavam nas primeiras décadas do século XX, o que culminou na aceitação das imposições extremamente abusivas feitas pelos proprietários da fazenda. Com o surgimento de novas gerações, traços econômicos e culturais característicos da geração anterior são transmitidos e se desenvolvem, assim como novos traços são criados, dando origem aos sentimentos estruturados da nova geração. São as “estruturas de sentimentos emergentes”, o que leva aquela comunidade de trabalhadores até mesmo a se identificar como Quilombolas.

Os jovens de Água Negra, pessoas que nasceram e cresceram em situações diferentes das que seus ancestrais experienciaram em suas juventudes, questionam as condições em que se encontram e, mais do que isso, buscam a mudança. No final da narrativa, vemos a comunidade unida, compartilhando sentimentos que se expressam por meio de uma consciência de classe que leva aquelas pessoas a se reconhecerem como um grupo quilombola que luta por seus direitos, como trabalhadores daquele local e contra a vontade dos novos proprietários da fazenda, que desejam expulsá-los dali. O enredo criado por Itamar Vieira Junior expressa, propositalmente, ou não, fortes traços marxistas que envolvem a luta de pessoas contra os abusos do capitalismo – entendida como luta de classes – e que se relacionam com as experiências vividas por muitos negros, negras e afrodescendentes no século XXI. Remete-nos à necessidade de reafirmação de modos de vida em comunidades tradicionais como forma de resistir ao modo capitalista de produção da existência humana. Afinal, “toda luta de classes é luta por valores”, como nos ensina E.P. Thompson, companheiro de Raymond Williams nos estudos sobre cultura na perspectiva do materialismo histórico-dialético.

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V.22, no 47, 2024 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799X


PEDAGOGIA DA ALTERNÂNCIA EM RONDÔNIA: PROPOSTA DE EDUCAÇÃO PARA ALÉM DO CAPITAL1


Diana da Silva Ribeiro2 Arminda Rachel Botelho Mourão3


Resumo

O artigo em questão tem como objetivo discutir a Pedagogia da Alternância como uma proposta de educação para além do capital e compreender a sua contribuição para a educação atual no Brasil. Desta forma, as discussões trazem a história do movimento da Pedagogia da Alternância e a temática da educação a partir de Mészáros (2008). Os resultados mostram como é possível, mesmo dentro de uma estrutura capitalista, vivenciar algumas experiências pedagógicas que se caracterizam como educação contra hegemônica, materializando-se a partir das lutas da sociedade civil organizada.

Palavra-chave: Pedagogia da Alternância; Educação contra hegemônica; Educação para além do capital.


PEDAGOGÍA DE LA ALTERNANCIA: PROPUESTA DE EDUCACIÓN MÁS ALLÁ DEL CAPITAL


Resumen

El artículo en cuestión tiene como objetivo discutir la Pedagogía de la Alternancia como propuesta de educación más allá del capital y comprender su contribución a la educación actual en Brasil. De esta manera, las discusiones acercan la historia del movimiento de la Pedagogía de la Alternancia y el tema de la educación a partir de Mészáros (2008). Los resultados muestran cómo es posible, incluso dentro de una estructura capitalista, vivir algunas experiencias pedagógicas que se caracterizan como educación contrahegemónica, materializadas a partir de las luchas de la sociedad civil organizada.

Palabra clave: Pedagogía de la Alternancia; Educación contrahegemónica; Educación más allá del capital.


PEDAGOGY OF ALTERNANCE: EDUCATION PROPOSAL BEYOND CAPITAL


Abstract

The present article aims to discuss the Pedagogy of Alternance as a proposal for education beyond capital and understand its contribution to current education in Brazil. In this way, the discussions bring the history of the alternation pedagogy movement and the theme of education from Mészáros (2008). The results show how it is possible, even within a capitalist structure, to experience some pedagogical experiences that are characterized as counter-hegemonic education, materializing from the struggles of organized civil society.

Keyword: Pedagogy of Alternance; Counter-hegemonic education; Education beyond capital.


1 Artigo recebido em 21/09/2023. Primeira Avaliação em 15/10/2023. Segunda Avaliação em 16/11/2023. Aprovado em 22/01/2024. Publicado em 22/02/2024.

DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.59981

2 Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Manaus - Brasil. Email: dianadasr@hotmail.com.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/1949757799062104. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7938-2467.

3 Doutora em Educação: História, Política, Sociedade pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), São Paulo- Brasil. Professora Titular da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Manaus - Brasil.

E-mail: arminda.mourao@ufam.edu.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3864748731992379. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1940-9477.

Introdução


As discussões propostas neste artigo científico fazem parte das vivências da disciplina de Educação na Amazônia no ano de 2023 durante o curso de Doutorado em Educação, no âmbito da Universidade Federal do Amazonas.

Como objetivo geral pretendeu-se discutir a Pedagogia da Alternância como uma proposta de educação para além do capital, bem como compreender a sua contribuição para a educação atual no Brasil. A origem dessa experiência é discutida por Granerau (2020), em que explica como surgiu no contexto da França em 1935 um método de ensino cujos protagonistas foram os povos do campo.

Em solo brasileiro, tal proposta originou-se no Espírito Santo com o Movimento de Educação Promocional do Espírito Santo-MEPES na década de 1960 em um contexto histórico desafiador, tendo como principal articulador dessas primeiras Escolas, o Padre Humberto Pietrogrande, jesuíta que conheceu a experiência da Escola Família Agrícola na Itália. Assim, a Pedagogia da Alternância no Brasil surgiu da vertente italiana. Sua origem no Brasil é discutida por Nosella (2014), atualmente o autor científico que contribui com inúmeras pesquisas sobre a materialização da Escola Família Agrícola no país, além de ministrar palestras e assessoria para os Centros Familiares de Formação por Alternância (CEFFAS).

No presente artigo, defendemos a Pedagogia da Alternância nos dias atuais como uma proposta de educação para além do capital, isso dentro de um processo contraditório, que é dinâmico, ou seja, está sempre em movimento. Desse modo, a Pedagogia da Alternância se desenvolve como anseio e luta da classe trabalhadora, articulando uma pedagogia nos diversos contextos locais e para além da educação ofertada pelo capital, serve também para desenvolver uma consciência humana e solidária.


História da Pedagogia da Alternância


A história do movimento da Pedagogia da Alternância tem início na França no século XX, no ano de 1935. A sua origem é permeada pela crise econômica, pós-guerra e profundas problemáticas sociais que afetavam o país. O ano de 1935

estava marcado pela Segunda Guerra Mundial. A estrutura do século XX é discutida por Hobsbawm (1991) como uma era de catástrofe.

Uma era de catástrofe, que se estendeu de 1914 até depois da Segunda Guerra Mundial, seguiram-se cerca de 25 ou trinta anos de extraordinário crescimento econômico e transformação social, anos que provavelmente mudaram de maneira mais profunda a sociedade humana que qualquer outro período de brevidade comparável. Retrospectivamente, podemos ver esse período como uma espécie de Era do Ouro, e assim ele foi visto quase imediatamente depois que acabou, no início da década de 1970. A última parte do século foi uma nova era de decomposição, incerteza e crise - e, com efeito, para grandes áreas do mundo, como a África, a ex-URSS e as partes anteriormente socialistas da Europa, de catástrofe. (HOBSBAWM, 1991 p.15).

É nessa conjuntura de grandes catástrofes da Primeira Guerra Mundial e da crise de 1929 que vai surgir uma proposta ousada na França voltada para a educação e com bases na agricultura. Os camponeses vivenciavam as desigualdades tanto sociais como educacionais, pois não havia uma proposta para os filhos dos trabalhadores rurais. Daí, viu-se a necessidade de pensar mecanismos para elaboração de um método de ensino que não só atendesse o homem do campo, mas que fosse elaborado pelos próprios povos do campo e suas especificidades para a mudança das situações de injustiça, ocasionando um novo quadro social, bem como formando pessoas para serem dirigentes do território.

Os sindicatos, as escolas, as empresas, os bancos, o comércio, os serviços das modernas cidades industriais preparavam, de diferentes maneiras, seus quadros de intelectuais orgânicos, seus administradores, chefes, operadores, enquanto o campo só ‘ensinava’ a labuta de sol a sol, isto é, só ensinava aos jovens camponeses que seu destino era de serem explorados sem reagir. (GRANERAU, 2020 p.13).

Pierre-Joseph Granereau, consciente da referida realidade, almejou organizar uma escola camponesa própria, de elevada qualidade em Sérignac Péboudou, com o intuito de formar dirigentes, intelectuais orgânicos, pessoas que liderassem o desenvolvimento do território camponês, quebrando a hereditária submissão econômica, política, social e cultural à cidade. (GRANERAU, 2020).

Ressalta-se aqui que o termo “intelectuais orgânicos” é um conceito criado por Gramsci e se refere à ação de indivíduos ou a organização social (sindicato, partido político, etc.) que se propõe a assumir inúmeras tarefas no processo de superação

da sociedade de classes, sobretudo em três perfis dialeticamente articulados: as de cunho científico-filosófico, as educativo-culturais e as políticas (MARTINS, 2011).

Considerando a concepção gramsciana, podemos explicar a gênese da Pedagogia da Alternância como uma proposta elaborada pela classe camponesa, sendo discutida nesse viés como um sistema educativo que originariamente buscou formar seus próprios intelectuais orgânicos, a partir de uma nova compreensão da realidade camponesa, criando formas de resistência e emancipação.

Para esse projeto, Granerau transformou sua casa paroquial numa escola e ministrava aulas com a ajuda de um professor. Essas aulas aconteciam em tempo integral durante oito dias seguidos, em regime de internato, reenviando os alunos/as para casa nos outros dias do mês. (GRANERAU, 2020).

Quando esses jovens retornavam para suas casas, continuavam o trabalho do campo e levavam algumas tarefas para a sessão familiar se dedicando aos exercícios, pesquisas de experiência e as leituras que foram indicadas durante o período que estavam no internato que é denominado de sessão escolar. Contudo, passado o período inicial dessa proposta, a casa paroquial não era mais suficiente para que continuassem as atividades escolares naquele ambiente. Assim, ocorreu a mudança para a cidade de Lauzun. Foi em Lauzun que o projeto inicial se fortaleceu.

Pouco a pouco, o Projeto Político Pedagógico se refinou, integrando cultura geral, ciência e tecnologia, com o apoio da Associação de pais agricultores. Também em Lauzun, os alunos permaneciam alguns dias na escola, em regime de tempo integral e internato, e outros fora dela. Era a Alternância se consolidando. (GRANERAU, 2020 p.15).

O objetivo da alternância era que os tempos escolares e extraescolares formassem um processo formativo, orgânico, uma verdadeira escola de líderes, de dirigentes capazes de criticar seu próprio território, questionando também, quando necessário, os conteúdos escolares, às vezes abstratos, inadequados e insuficientes. (GRANERAU, 2020).

Essa experiência se consolidou na França na nomenclatura de Maison Familiale Rurale4, e se fortaleceu por meio da relação com os sindicatos rurais existentes, também com a Juventude Agrícola Católica, movimento que vinha sendo


4 Tradução: Casa familiar rural.

realizado por diversos sujeitos sociais para questionar os problemas e interpretá-los no seu tempo.

Para Nosella (2014), a Maison Familiale nunca foi uma escola isolada da ação e desenvolvimento socioeconômico de seu meio naquele tempo, sendo que se abriram três escolas até o ano de 1940 e no segundo momento ocorreu uma expansão relativamente grande dessas Maisons Familiales (anos 1944/45). Isso pode ser explicado pelo motivo que esse período, na França, era reconhecido por uma grande reflexão dos franceses sobre si mesmos, principalmente a partir do desastre da ocupação alemã. Este novo tipo de reflexão encontrou relação com a iniciativa das Escolas-Famílias por se tratar de uma experiência que estava tomando corpo e com possibilidades nacionais democráticas. Houve também, neste mesmo período, um movimento de redescoberta dos valores do campo e da vida rural. Com essa expansão, em 1942 surgiu a primeira Escola de Monitores (o Centro de Formação) e em 1942, criou-se a União Nacional das Maisons Familiales. (NOSELLA, 2014).

O sacerdote e os primeiros agricultores tinham inventado a alternância, mas, para eles, isso nada mais era que uma prática, sem refletirem sobre o que isso poderia representar para a educação. Inventaram o internato, mas não construíram uma teoria sobre o ambiente educativo. Neste momento registra-se a importante presença do educador André Duffaure (1946/47), quando foi elaborado o famoso instrumento pedagógico chamado de Plano de Estudo. O período de 1945 a 1960 foi, portanto, o período da expansão e da sistematização da experiência. As Maisons Familiales passaram de 30 para 500 e a literatura pedagógica sobre a experiência foi aumentando cada vez mais. (NOSELLA, 2014 p.51).

Após se consolidar na França, essa proposta adquiriu força e outros países da Europa como a Itália passaram a organizar a experiência, que atualmente está presente em diversos países do mundo.

O Brasil foi o primeiro país da América Latina a desenvolver a Pedagogia da Alternância, tendo como principal idealizador o Padre Humberto Pietrogrande, Jesuíta que trouxe a experiência da Escola Família Agrícola para o país a partir de sua experiência na Itália, na região de Veneto.

A origem da Pedagogia da Alternância no Brasil é discutida por Nosella (2014), atualmente o autor científico que contribui com inúmeras pesquisas sobre a materialização da Escola Família Agrícola no país e também contribui na formação

dos monitores (professores/as que atuam na pedagogia da alternância da Escola Família Agrícola).

A Pedagogia da Alternância surge em 1969 no Brasil, por meio da ação do Movimento de Educação Promocional do Espírito Santo (MEPES) com a fundação da Escola Família Agrícola de Alfredo Chaves, Escola Família Agrícola de Rio Novo do Sul e Escola Família Agrícola de Olivânia. (PESSOTTI, 1978 apud TEIXEIRA et.al., 2008, p. 229).

Isso também é reconhecido em documentos do Ministério da Educação (MEC):

No Brasil, a denominada Pedagogia da Alternância foi introduzida, em 1969, no Espírito Santo – Movimento de Educação Promocional do Espírito Santo/ MEPES – a partir de Anchieta, encontrando rápida expansão com a orientação dos Padres Jesuítas. Nesse estado e em mais quinze Unidades da Federação Brasileira a alternância mais efetiva é a que associa meios de vida sócio-profissional e escolar em uma unidade de tempos formativos. Tais são as Escolas Famílias Agrícolas (EFA). A expansão dos Centros Familiares e Formação por Alternância alcançou Estados brasileiros do Norte, Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste, sendo possível identificar oito formas de organização, algumas das quais não oferecem educação escolar. (PARECER CNE/CEB/MEC n.º 001/2006.)

Vale ressaltar que esse documento apesar de mencionar essas oito experiências, reconhece que a rede dos Centros Familiares de Formação por Alternância (CEFFA) se organiza em três associações – UNEFAB (União das Escolas Famílias Agrícolas do Brasil), ARCAFAR–SUL (Associação das casas familiares do Sul do Brasil) e ARCARFAR NORTE NORDESTE – em que estão presentes as EFA (Escola Família Agrícola), CFR (Casa familiar Rural) e ECOR (Escolas comunitárias rurais) com três centros no Espírito Santo, somando 217 escolas que adotam a Pedagogia da Alternância. (PARECER CNE/CEB/MEC n.º 001/2006.)

As Escolas Famílias Agrícolas (EFA) são mencionadas no Parecer CNE/CEB/MEC n.º 001/2006 com 123 centros, presentes em 16 estados brasileiros, ou seja, possuindo maior expressão da Pedagogia da Alternância no Brasil, desenvolvendo os anos finais (segundo segmento) do Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação Profissional Técnica de nível médio.

No Doutorado, nosso objeto de pesquisa se refere à experiência da Escola Família Agrícola materializada no contexto da Amazônia ocidental, onde está

localizado o estado de Rondônia e a AEFARO- Associação das Escolas Famílias Agrícolas de Rondônia.

A primeira Escola Família Agrícola em Rondônia foi fundada na cidade de Cacoal, sendo inaugurada em 1989. Após essa fundação, começa a expansão para outros municípios. (VALADÃO, et.al, 2003). “A Diocese de Ji-Paraná passou a ser a mantenedora das instituições. Em 1992, os idealizadores decidiram criar a AEFARO, uma entidade própria para coordenar as ações.” (RIBEIRO, 2022 p. 55).

A AEFARO é uma associação da sociedade civil organizada que há 31 anos articula e desenvolve a Pedagogia da Alternância em Rondônia, sendo apoiada por mulheres e homens do campo, movimentos sociais, povos e comunidades tradicionais, ao mesmo tempo que fortalece a agricultura familiar e se torna espaço das lutas dos povos do campo.

A agricultura familiar é um contraponto ao modo de produção capitalista, pois não se sustenta nos princípios da propriedade privada e favorece os pequenos agricultores e trabalhadores que buscam uma relação diferente com a natureza, ao retirar o essencial para uma vida no campo, permitindo-lhes qualidade de vida e a valorização da cultura camponesa. (SILVA, 2014 apud MOURÃO, 2020).

A associação é a responsável por gerir, promover ações, formação dos professores/as que atuam nas EFAs de Rondônia, além de promover anualmente um encontrão das EFAs no Estado, buscando fortalecer sua práxis. Além disso, a AEFARO organiza o caderno da alternância comum a todas as EFAs do estado, um instrumento importantíssimo, que faz a ligação entre os tempos vividos pelo alternante, sendo que a família, o tutor/a responsável e o próprio alternante, registram as observações vividas.

Em síntese, a AEFARO detém um acervo pedagógico, pois, é quem organiza os instrumentos da Pedagogia da Alternância em Rondônia, dialoga com as 6 (seis) EFAs filiadas, articula e planeja o ano letivo, o calendário escolar, bem como elabora os documentos pedagógicos, as orientações gerais para o bom funcionamento da vida cotidiana nas EFAs, considerando que a Pedagogia da Alternância em Rondônia é um movimento que tem relação com a UNEFAB- União Nacional das Escolas Famílias Agrícolas do Brasil e também com o Movimento Internacional da Pedagogia da Alternância.

No Brasil, esta educação assume as lutas do movimento “Por uma educação do Campo”. “A educação do campo nasce colada aos processos produtivos do campo, significa dizer que a valorização do trabalho que forma e produz o ser humano é necessário, uma vez que possibilita a dignidade para as famílias da comunidade”. (MOURÃO et.al, 2020 p.110).

Como podemos observar, tal sistema educativo adquiriu bases a partir das lutas sociais promovidas pela sociedade civil organizada, o que podemos considerar que é um projeto emanado das lutas de classe, em um período da História brasileira marcado pelo golpe da ditadura civil-militar.

A expansão do capitalismo mercantil, num processo de acumulação do capital, marca um drama histórico na América Latina, cujas contradições tornam-se mais complexas após a degradação do sistema colonial. As novas sociedades latino-americanas, geradas a partir dos processos de independência, nascem baseadas na escravidão, na exploração do trabalho, na concentração de terras e na produção voltada para o mercado externo, gerando cada vez mais acumulação do capital e pobreza. (PAIVA, ROCHA e CARRARO, 2010).

A partir disso, “as Nações da América Latina são histórica e constitutivamente dependentes. Em primeiro lugar, elas foram criadas como colônias, pelas metrópoles europeias surgidas com a expansão do mercantilismo.” (IANNI, 1974 p. 125). Sobre esse drama histórico, Galeano (2010) faz uma crítica a invasão do capital estrangeiro na América Latina, que historicamente acumula riquezas utilizando uma das forças de trabalho mais barata do mundo.

O Brasil enquanto país da América Latina tem uma história marcada pela herança colonialista em sua estrutura. Nesses moldes, as populações do campo enfrentam problemáticas referentes às lutas pelo direito à terra e moradia. Lideranças ligadas ao MST percebem em seu processo que a educação é necessária para formar uma classe de intelectuais orgânicos. Assim, a educação do campo está inserida nesse processo de luta por diversos direitos, sobretudo à dignidade da vida no campo, se opondo historicamente aos ideais de uma elite dominante, que negava o ensino às populações camponesas, como também os seus direitos básicos, ao impor uma educação excludente por meio de formação esvaziada de sentido a estes povos. Na contradição desse ideal hegemônico surge o movimento por uma educação do e no campo.

A realidade que deu origem ao movimento por uma educação do campo é de violenta desumanização das condições de vida no campo. Uma realidade permeada de opressão, injustiças e desigualdades, que exige transformações sociais estruturais e urgentes. Os sujeitos da educação do campo não se conformam com essa realidade perversa. São os sujeitos da resistência no e do campo; da luta pela terra e pela Reforma Agrária; sujeitos da luta por melhores condições de trabalho no campo; sujeito da resistência pela terra dos quilombos e pela identidade própria desta herança; sujeitos da luta pelo direito de continuar a ser indígena e brasileiro, em terras demarcadas e em identidades e direitos sociais respeitados; e sujeitos de tantas outras resistências políticas, pedagógicas e culturais. (CALDART, 2011).

Desse modo,


A Educação do Campo é gestada mediante a organização dos movimentos sociais e por esse motivo está estreitamente vinculada ao trabalho no campo, em que o território se contrapõe à monocultura e nesse sentido é o campo das múltiplas culturas e múltiplas identidades, que requer diálogos capazes de permitir a sua visibilidade enquanto território de existência de um povo. (MOURÃO et.al., 2020 p. 446).

Dentro dessa realidade de país, anterior ao processo da 1ª Conferência Nacional de Educação Básica do campo em 1990, onde se originou o termo educação do campo, algumas lideranças em Rondônia ligadas principalmente à Teologia da Libertação e aos movimentos sociais articularam uma educação que se contrapõe à monocultura. Em Gramsci (2001), a escola já deve contribuir para desenvolver o elemento da responsabilidade autônoma nos indivíduos, deve ser uma escola criadora.

Os Movimentos Sociais Populares do Campo são importantes para forjar uma educação rica e significativa nesse viés.

Como sujeitos coletivos forjadores da história, os Movimentos Sociais Populares do Campo formulam estratégias de luta e ocupação da terra e, nessa caminhada, gestam, também, as propostas de educação que lhes interessa. A Pedagogia da Alternância, que articula o trabalho agrícola à educação escolar é uma destas propostas. Por isso precisa ser vista na dimensão histórico-dialética de apontar para o trabalho na sua perspectiva de emancipação humana e, ao mesmo tempo, de se confrontar com os limites estruturais com que o capital, em seu movimento constante de reprodução/acumulação, reage ao processo de organização dos Movimentos Sociais Populares do Campo. (RIBEIRO, 2010 p. 137).

Sobre isso, tomamos como exemplo o fato de que a proposta originária da Pedagogia da Alternância encontra-se modificada no contexto francês, uma vez que “na França, a formação por alternância se apresenta institucionalmente recomendada por organismos oficiais e empresariais” (ARAUJO e SILVA, 2023 p. 4). Comparando com o contexto brasileiro, a formação por alternância não é sequer, satisfatoriamente regulamentada pela legislação educacional brasileira, sendo ainda uma experiência restrita à aprendizagem rural, vinculada aos movimentos sociais e tomada como estratégia pedagógica de emancipação dos trabalhadores, cumprindo, portanto, uma forte função política, cuja identidade se verifica, principalmente, pela alternância entre um período de permanência na escola e outro de permanência na vida familiar e comunitária. (ARAUJO e SILVA, 2023 p.

4).

Para além da educação ofertada pelo capital, a Pedagogia da Alternância, nesse contexto que discutimos, busca materializar uma educação emancipadora e transformadora da realidade social, gerando consciência e reflexão crítica do meio. Obviamente que esse processo não é estático, mas contraditório, dinâmico e dialético. Tal perspectiva educativa está sempre em transformação, sendo ainda um projeto em disputa por diferentes interesses.


Educação para além do capital


A educação para além do capital é tema do livro de Mészáros (2008), no qual aborda entre outras questões a lógica do capital e seus impactos na educação.

“A concepção de educação aqui referida- considerada não como um período estritamente limitado da vida dos indivíduos, mas como o desenvolvimento contínuo da consciência socialista na sociedade como um todo.” (MÉSZÁROS, 2008 p. 79).

Para esse autor, o mundo está a vivenciar a lógica global de um sistema de reprodução capitalista. Nesse cenário, os processos educacionais estão imbricados com os processos sociais e é necessária uma reforma na educação. No entanto, essa reforma não será possível sem a transformação da realidade social em que essas práticas educacionais estão inseridas. (MÉSZÁROS, 2008).

A educação se opera, na sua unidade dialética com a totalidade, como um processo que conjuga as aspirações e necessidades do

homem no contexto objetivo de uma situação histórico-social. A educação é, então, uma atividade humana partícipe da totalidade da organização social. Essa relação exige que a considere como historicamente determinada por um modo de produção dominante, em nosso caso, o capitalista. E, no modo de produção capitalista, ela tem uma especificidade que só é inteligível no contexto das relações sociais resultantes dos conflitos das duas classes fundamentais. (CURY, 1986 p.13).


Mesmo a vivenciar um sistema altamente destrutivo e predatório, é possível visualizar na sociedade práticas concretas que vão sendo organizadas contrárias a educação ofertada pelo capital, resultantes da luta de classes e por isso, se caracterizam como propostas de educação contra hegemônica, por serem reacionárias ao modelo de educação do Estado na lógica do capital e organizarem com meios próprios outro modelo de educação possível.

Vale frisar que tais propostas não solucionam os problemas da educação na totalidade do Brasil, mas se caracterizam como uma forma de resistência, promovendo reflexão crítica e ocasionando transformações que podem ser percebidas a longo prazo em determinados contextos locais e sociais onde ocorrem historicamente, suscitando em pequenas mudanças possíveis de serem visualizadas nesses contextos.

Nesse sentido, a mudança é plausível na ordem hegemônica alternativa não como um passo ou passos particulares adotados com o pretexto da finalidade ou do fechamento (há sempre algum desafio novo gerado e, de fato, bem-vindo no curso da transformação socialista), mas somente pelo desenvolvimento contínuo, nunca completado da consciência socialista. (MÉSZÁROS, 2008 p. 109).

No desenvolvimento contínuo da consciência socialista, a educação é fundamental para gerar reflexão crítica sobre o meio, organizando formas de se contrapor a dominação do capital.

Este é o caso da Pedagogia da Alternância praticada pelos CEFFAs, cuja materialidade histórica se verifica numa totalidade que é praticada a nível mundial, em um contexto que era permeado pela guerra, pela fome, pelo êxodo rural. É a partir da contradição com a educação ofertada pelo Estado que se desenvolveu tal experiência pedagógica na França.

Não se pode confundir a existência de escolas públicas com o direito à educação. O direito à educação pressupõe o papel ativo e responsável do Estado tanto na formulação de políticas públicas para

a sua efetivação, quanto na obrigatoriedade de oferecer ensino com iguais possibilidades para todos. (ARAÚJO, 279 p. 287).


A existência de uma educação formal no contexto da França no ano de 1935 não significa que se tratava de um direito à educação garantido, mas de uma escola defasada, controlada pelo Estado, para formar na lógica de dominação e que excluía, principalmente os trabalhadores do campo.

Mészáros (2008 p.49) faz uma crítica a “uma concepção tendenciosamente estreita da educação e da vida intelectual, cujo objetivo obviamente é manter o proletariado ‘no seu lugar’.” Gramsci (2001), por sua vez, defende o argumento de que:

Não há atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção intelectual, não se pode separar o homo faber do homo sapiens. Em suma, todo homem, fora de sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um “filósofo”, um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção do mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para manter ou para modificar uma concepção do mundo, isto é, para suscitar novas maneiras de pensar. (GRAMSCI, 2001 p. 52-53).

As classes populares não podem ser reduzidas à mão de obra barata. Todos precisam ter acesso à educação e ao conhecimento historicamente construído pela humanidade, condizente com as realidades específicas de país e regiões. Por isso, a sociedade civil organizada é muito importante, pois reage a esse sistema que não apenas está posto, mas imposto.

No início, essa experiência em educação pautada na pedagogia da alternância “nem possuía autorização legal. Adaptava o calendário escolar ao ritmo da lavoura. Os primeiros jovens eram quatro”. (GRANERAU, 2020, p.14). Aqui podemos lançar nosso olhar para visualizar a lei da dialética da qualidade gerando quantidade, pois a Pedagogia da Alternância se expandiu pela França, depois pelos países da Europa e atualmente existe nos cinco continentes. O Brasil foi o primeiro país da América Latina a organizar as Escolas Famílias Agrícolas na década de 1970 no Espírito Santo, o que representa uma mudança qualitativa na medida em que essa proposta se expande em seu território.

Para Politzer, Besse e Caveing (2000, p. 83), “a evolução das coisas não pode ser indefinidamente quantitativa: transformando-se, sofrem, por fim, uma mudança qualitativa. A quantidade transforma-se em qualidade. É uma lei geral.”

Com isso, se percebe que a Pedagogia da Alternância vai criando nos diversos contextos locais propostas de educação para além do capital, com uma organização própria dos tempos e espaços escolares, do currículo e os instrumentos pedagógicos que são construídos coletivamente, numa visão que não está atrelada a dominação do capital, mas protagonizada pelos trabalhadores, movimentos sociais, associações e a comunidade que a organiza.

Essa educação busca vivenciar uma prática diferente, com modelo pautado na partilha, sobretudo dos alimentos que provém da agricultura familiar, construindo novas relações ainda que seja dentro de uma sociedade cuja estrutura é o capital. São fortalecidos os laços entre povos do campo, cria-se um espaço de lutas, de debate, escuta, na qual esses povos passam a ser protagonistas do seu processo educativo. Assim, percebe-se que os organizadores da Pedagogia da Alternância não agem com passividade diante da educação dominante, mas agem dentro de um processo de luta de classes para buscar gerar uma educação crítica, consciente e que forme uma classe de dirigentes, pois “o movimento e a mudança que existem em tudo o que nos rodeia, estão na base da dialética” (POLITZER, BESSE e CAVEING, 2000 p. 62).

Uma visão dialética do homem e de seu mundo histórico-social implica conceber os dois termos da contradição (indivíduo-sociedade) de modo a rejeitar tanto a concepção que unilateraliza a adaptação do indivíduo à realidade do status quo, como a que propõe a realidade como um dado estático. Mas, além disso, implica conceber a realidade social como efetivo espaço da luta de classes, no interior da qual se efetua a educação, rejeitando a impositividade da dominação, como o espontaneísmo das classes dominadas. (CURY, 1986 p.13).

É esse processo dialético que nos permite considerar que a Pedagogia da Alternância se constrói no Brasil como uma proposta para além do capital, já que recusa a imposição de educação da classe dominante, para criar o seu método de ensino, indo além da educação ofertada pelo capital a fim de pensar a comunidade, a cultura, a História e a ancestralidade dos povos do campo que têm nos CEFFAs um espaço de luta e resistência na formação da consciência socialista. “A educação para além do capital visa a uma ordem social qualitativamente diferente.” (MÉSZÁROS, 2008 p. 71).

A intervenção positiva da educação na elaboração dos meios de contrapor-se com êxito à dominação global do capital, pelo estabelecimento das formas organizacionalmente viáveis de solidariedade socialista, é vital para o grande desafio internacional de nosso tempo histórico (MÉSZÁROS, 2008 p.124).

Diante dos desafios deste século XXI, na qual se percebe o capitalismo em seu estágio avançado e altamente predatório, a educação mesmo que esteja inserida no sistema capitalista exerce um fator primordial para gerar consciência, ou seja, gerar a contradição. Vale considerar que quando nos referimos à categoria educação, não estamos dizendo apenas da educação formal, mas da educação social, que acontece nas rodas de conversa, nas comunidades e experiências para além da educação no âmbito estatal, que vai gerando algo novo, possibilitando um pensamento mais crítico e suscitando debates sobre os desafios atuais dentro do processo da luta de classes.

A história de todas as sociedades até agora tem sido a história das lutas de classe. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, membro das corporações e aprendiz, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em contraposição uns com os outros e envolvidos em uma luta ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta, que terminou sempre com a transformação revolucionária da sociedade inteira ou com o declínio em conjunto das classes em conflito. (MARX e ENGELS, 2008 p.10).

Marx evidencia nos seus escritos o caráter histórico da luta de classes, ou seja, algo que não é estritamente da sociedade capitalista. Na luta de classes os interesses são antagônicos. No que se refere ao momento atual da sociedade capitalista, podemos dizer que a única maneira de mudar essa estrutura é por meio da revolução. No entanto, este processo é longo, não acontecerá em pouco tempo, o que nos permite afirmar que é preciso uma formação consciente e crítica da atual e das futuras gerações.

Diante disso, a educação é importante para formar a consciência crítica, reflexiva. Nesse sentido, a Pedagogia da Alternância se insere, não na lógica do Estado, mas a partir de uma metodologia que existe mundialmente e se contrapõe a modelos de educação excludente da classe trabalhadora.

As finalidades da sua proposta são de dois tipos: de um lado, a formação integral da pessoa, a educação e, de maneira concomitante, a orientação e a inserção socioprofissional; de outro lado, a contribuição ao desenvolvimento do

território onde está sendo implantado o CEFFA. Para isso, a sequência da alternância ou unidade de formação considera três tempos: 1) o meio familiar, profissional e social; 2) o CEFFA; 3) o meio. Para que essa sequência aconteça, é posto em prática um conjunto de organizações, atividades, técnicas e instrumentos. (GIMONET, 2007).

O caderno da vida ou da realidade é o instrumento básico da Pedagogia da Alternância, um livro da vida em que o alternante registra e ilustra o seu percurso formativo no espaço-tempo da formação em quatro fases: 1) plano de estudo ou guia de pesquisa elaborado pelo grupo-classe antes da saída do CEFFA; 2) durante a estadia na família e/ou no meio profissional, a realização e a expressão, por cada um, das pesquisas ou estudos; 3) ao retornar no CEFFA, acontece a apreciação, por um dos monitores/as, do documento escrito trazido e seu melhoramento; 4) formatação do estudo, ou seja, sua transcrição como também sua ilustração para construir um documento de qualidade. A colocação em comum constitui seu prolongamento normal bem como a visita de estudo e as aulas teóricas. (GIMONET, 2007).

Na sua raiz histórica, a Pedagogia da Alternância origina-se em um processo de resistência camponesa para se contrapor a um modelo hegemônico de educação nas escolas francesas e daí passa a se desenvolver em Lauzun, ganhando identidade. Hoje, essa proposta continua desenvolvendo seu método de ensino pautado em instrumentos que são coletivos, partilhados e elaborados pelos protagonistas desta experiência que são as famílias, as associações e a comunidade, o que é reconhecidamente um marco para a educação de um modo geral.


Considerações finais


Ao discutir a Pedagogia da Alternância como proposta de educação para além do capital, nos debruçamos em obras da literatura a partir da categoria totalidade, reconstruindo historicamente o objeto, bem como fazendo dentro desse movimento dinâmico e dialético a relação com a sociedade capitalista e a necessidade da formação de uma consciência socialista que poderá surtir efeitos favoráveis de longo alcance no passar dos anos.

A intervenção positiva da educação precisa ser fortalecida e discutida, pois pode elaborar meios de se contrapor a uma dominação global como bem enfatizamos nesse artigo a partir de Mészáros (2008). Não obstante, reconhecemos a lógica do capital e seu caráter desumanizador da vida e das relações sociais, o que possibilita considerar que esse processo de transformação é lento, por vezes parece ser utópico, no entanto, é contínuo e pode ser duradouro, ocasionando no desenvolvimento de um processo revolucionário.

Sabemos que a educação não vai mudar toda a realidade, mas ela é parte da história humana e dentro do processo da luta de classes pode ser compreendida como ferramenta essencial na formação de seres humanos críticos e que anseiam por mudanças dessa estrutura perversa do capital.

Com isso, a educação é importante para gerar consciência, organizando experiências que se contrapõem à lógica de dominação do capital e, por isso, discutimos a Pedagogia da Alternância como uma proposta para além do capital, não porque ela esteja fora do capital, o que não é possível nessa estrutura, mas por estar dentro de uma lógica global capitalista e mesmo assim se contrapor em seu processo histórico ao modelo de educação do capital, se firmando em meio ao processo das lutas e resistência camponesa.


Agradecimentos


À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas- FAPEAM e Coordenação de Aperfeiçoamento de Profissional de Nível Superior - CAPES.


Referências


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TRABALHO COMO CENTRALIDADE MARXISTA

NO SÉCULO ATUAL E OS PRINCÍPIOS DE UMA EDUCAÇÃO POPULAR BRASILEIRA PARA A COLETIVIDADE1

Marcos Antonio Macedo das Chagas2

Resumo

Refletimos sobre a contribuição de Marx no século XIX, com o intuito de entender as demandas socioeducacionais do século atual. Comparamos concepções categóricas de Hegel, Gramsci e Lukács para analisar a educação pública de tempo integral em favor das classes subalternas e gêneros diversos. Para tal, tomamos como exemplo os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs/CIEPs-RJ), idealizados e materializados por Darcy Ribeiro, entre os anos 1983-1987. Indicamos a importância da educação popular de acesso gratuito às crianças e aos adolescentes, para além dos turnos escolares tradicionalmente fragmentados.

Palavras-chave: Marx; Marxismo; Darcy Ribeiro; CIEPs; Cultura.

TRABAJO COMO CENTRALIDAD MARXISTA EN EL SIGLO ACTUAL Y LOS PRINCIPIOS DE UNA EDUCACIÓN POPULAR BRASILEÑA PARA EL COLECTIVO

Resumen

Reflexionamos sobre la contribución de Marx en el siglo XIX para comprender las demandas socioeducativas del siglo actual. Comparamos concepciones categóricas del pensamiento de Hegel, Gramsci y Lukács para analizar la educación pública de tiempo integral a favor de las clases subalternas y diferentes géneros. Para ello, tomamos como ejemplo los Centros Integrados de Enseñanza Pública (CIEPs/CIEPs-RJ), idealizados y materializados por Darcy Ribeiro, entre 1983-1987. Indicamos la importancia de la educación popular de acceso gratuito para niños y adolescentes, más allá de los turnos escolares tradicionalmente fragmentados.

Palabras clave: Marx; Marxismo; Darcy Ribeiro; CIEPs; Cultura.

WORK AS A MARXIST CENTRALITY IN THE CURRENT CENTURY AND THE PRINCIPLES OF A BRAZILIAN POPULAR EDUCATION FOR THE COLLECTIVE

We reflect on Marx's contribution in the 19th century in order to understand the socio-educational demands of the current century. We compare the categorical conceptions of Hegel, Gramsci and Lukács in order to analyze full-time public education for the subaltern classes and different genders. To do this, we take as an example the Integrated Public Education Centres (CIEPs/CIEPs-RJ), idealized and materialized by Darcy Ribeiro between 1983-1987. We point out the importance of popular education with free access to children and adolescents, beyond the traditionally fragmented school shifts.

Keywords: Marx; Marxism; Darcy Ribeiro; CIEPs; Culture.


1 Artigo recebido em 01/05/2023. Primeira Avaliação em 15/08/2023. Segunda Avaliação em 11/08/2023. Terceira Avaliação: 13/10/2023. Aprovado em 21/01/2024. Publicado em 22/02/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.58364.

2 Doutor em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro - Brasil. Professor e pesquisador do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro (ISERJ), Rio de Janeiro - Brasil. Email: marcos.chagas@yahoo.com.br.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/5548443279059773. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7451-0527.

Introdução


A condição imprescindível para o reconhecimento do gênero humano, em sua diversidade, está na garantia da igualdade de relações, constantemente obstruída pelos interesses burgueses reproduzidos entre nós. Ao refletirmos sobre a contribuição de Marx no século XIX, tentamos aproximações e dissensões, presentes no marxismo, conforme as demandas do século atual. Daí a importância de os espaços educacionais públicos, em sua organização político pedagógica, atentarem para a pluralidade dos sujeitos que ali aprendem e ensinam, sob as contradições que ora se apresentam. Para tal, tomamos como exemplo os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs/CIEPs-RJ), idealizados e materializados por Darcy Ribeiro (1922-1997), entre os anos 1983-1987. Escolas no terreno da educação popular de acesso livre às crianças e aos adolescentes.

A escola pública é uma conquista, em meio à modernidade, contrária aos interesses privados (SAVIANI, 2005). Contudo, se realizou como estratégia para atender demandas liberais da burguesia nascente e não com o intuito de gerar emancipação e autonomia à classe trabalhadora. Os CIEPs, reinterpretando Candau (2008), buscaram o multiculturalismo que deve estar presente na relação ensino-aprendizagem: pluralidade, como função crítica, considerando o “[...] lugar social das ideias, códigos e práticas de produção e reinvenção dos vários nomes, níveis e faces que o saber possui” (BRANDÃO, s.d., p. 5). Ou seja, práxis que não se desvincule da experiência humana da qual todos, todas, todes, em sociedade, constroem.

Para que a escola pública gratuita, laica, de qualidade, receptiva às culturas populares seja possível, intentamos um diálogo não só com o pensamento do próprio Karl Marx, mas com algumas concepções categóricas formuladas por outros três pensadores – Hegel, Lukács e Gramsci – tendo por finalidade abordar questões que contribuam para o debate no campo da educação pública brasileira.

Karl Marx (1818-1883), em suas inflexões, percebeu que as massas exploradas “[...] sequer reconheciam a si mesmas como donas de uma voz política, muito menos como detentoras de poder” (GABRIEL, 2013, p. 16). Importa destacar que Marx foi um pensador atuante nas relações modernas do século XIX. Compreender o tempo histórico da ocasião tendo o cuidado de não lhe exigir o que não pôde vivenciar é de suma importância nas análises empreendidas fora de sua

época. Embora, no artigo aqui tratado, façamos aproximações marxistas no trato da educação, anotamos que Karl Marx não se dedicou com profundidade aos temas educacionais. Contudo, como menciona Netto (2020), a concepção teórico-metodológica marxiana contribua para uma crítica rigorosa do mundo atual. Afinal, Marx é “um pensador indispensável para a construção da humanidade humana” (PAULA, 2020, p.15).

Atualmente os ciclos do capital ocupam tempos mais prolongados do que Marx, em seu momento histórico, conheceu. Desta feita, se torna necessário “[...] estudar e compreender a evolução do capitalismo para além dos seus ciclos curtos de expansão e crise econômica” (DANTAS, 2003, p.5). O avanço histórico da sociedade capitalista, ainda mais agudizado no século XXI, influenciou a organização do ensino, desprezando a importância de uma escola pública de cultura socializante, sobretudo àqueles indivíduos pertencentes às camadas populares. A prática socioeducacional elevada é tarefa primordial do Estado. A escola pública em paridade com os melhores colégios particulares da elite brasileira, deve ser luta incessante da camada economicamente empobrecida.

Calcados em autores marxistas, nos remetemos à existência dos Centros Integrado de Educação Pública (CIEPs), definidos por Darcy Ribeiro, no Rio de Janeiro. Tais escolas, buscaram incutir novas práticas culturais em dissenso com os interesses capitalistas. Perspectivas inéditas, mas que, paralelamente, revelaram conflitos e contradições. O personalismo do mestre parece ter dificultado um diálogo aglutinador com os profissionais da educação e docentes da rede estadual, ficando estes à margem da proposta dos CIEPs. Apesar dos encontros proporcionados pelo Programa Especial de Educação (PEE) buscar convergências, não houve consenso entre a categoria.

Fato positivo, é que o olhar interdisciplinar de Darcy permitiu interações de outras materialidades no ambiente educativo estabelecendo, por exemplo, a função do Animador Cultural nas escolas dos CIEPs. O programa de animação cultural reunia Animadores Culturais, selecionados nas comunidades onde se localizavam as escolas dos CIEPs, visando aproximar a organização dos saberes curriculares com a cultura popular – uma atitude em favor do alunado diferenciada da concepção tradicional de ensino.

Com o fito de articular questões que justifiquem a compreensão de uma educação para além do que propõe a sociedade burguesa, dividimos o artigo, além

desta Introdução, em: A contribuição hegeliana no materialismo dialético de Marx; “Igualdade” e “equidade” como categorias conflitivas em Marx; Marxismo redivivo: a importância do pensamento crítico de Lukács; Antonio Gramsci: escola unitária como proposta “desinteressada” no espaço de cultura; Darcy Ribeiro: a experiência brasileira dos CIEPs fluminenses como perspectiva gramsciana; Considerações temporais.


A contribuição hegeliana no materialismo dialético de Marx


Observando o ponto central dos estudos de Marx, destacamos Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) como crítico da filosofia da história de Immanuel Kant (1724-1804). Segundo Bottomore (1998), Hegel (1816) ao analisar a filosofia kantiana entendeu que o conhecimento da história continha uma ação conjugada das ideias do sujeito com os elementos externos vividos por este mesmo sujeito. Apenas seria permitido ao indivíduo conhecer a aparência da coisa em si.

Contrário à separação entre sujeito e história, entre aparência e essência, Hegel afirmava que o todo reuniria espírito e indivíduo. Concluindo que a consciência desse indivíduo seria a religião. No discurso inaugural, proferido na universidade de Heidelberg, em 28 de outubro de 1816, Hegel afirmaria: “[...] a fé no poder do espírito é a condição primordial da filosofia. O homem, por ser espírito, pode e deve julgar-se digno de tudo quanto há de mais sublime” (p. 324). Aparência e essência criariam uma unicidade ideal. “Hegel sustentara que Deus, uma força racional, dirigia a dialética da história” (GABRIEL, 2013, p. 44).

Diferente da concepção hegeliana, Karl Marx (2011), afirmaria que as relações não podem “[...] ser compreendidas a partir de si mesmas ou do assim chamado desenvolvimento geral do espírito humano, tendo antes a sua origem nas condições materiais de vida” (p. 139). Ampliando seu ponto de vista, Marx (2016) infere que as relações conflitivas da sociedade burguesa têm seus princípios na economia política e não nas reações atemporais do espírito. Importa entender, em Marx, a economia não como metafísica burguesa reduzida a economicismo, mas como atividade humana na construção histórica do ser social. Nesta, o sujeito em relações sociais constrói a economia negando-a como “deificação” do real, reinando absoluta de modo “celestial” sobre todas as coisas.

Ao considerar o Estado burguês como evolução humana, o método dialético de Hegel se afirmaria como negação da negação: condição ideal para a continuidade da vida na natureza. Momento em que o “novo” consumiria o “velho” e aquele, consumido pelo tempo, voltaria a ser destruído, refazendo-se em inovadoras condições. Ou seja, “[...] Duas ideias se chocam e o resultado é uma terceira ideia, que por sua vez entra em conflito com uma outra e dá origem a algo novo” (GABRIEL, 2013, p. 40).

Apesar da crítica tecida sobre o idealismo, a dialética hegeliana foi imprescindível para Marx e Engels situarem a teoria do conflito e da totalidade; esta última seria o gume que rasga o real, indo à essencialidade material do Homem em relação direta com a sociedade. Isto é, o sujeito humano como artífice da história: aquele “[...] que não enxerga nada que dependa da sua ação tende facilmente a instalar-se na passividade (tende a contemplar a história, em vez de fazê-la.)” (KONDER, 2017, p.43, grifos do autor). Observa-se a dialética hegeliana contida na afirmação: “[O passado, vivo,] não é estátua de pedra [...] e continuamente se vai enriquecendo com novas contribuições, à maneira de rio que engrossa o caudal à medida que se afasta da nascente” (HEGEL, s.d, p. 324, inserções entre colchetes de nossa autoria).

Marx (2023; 2010; 2011) e Engels (2020) construíram a concepção materialista da história reelaborando a dialética hegeliana como realidade, fora de seu caráter “espiritual”: onde o “novo” desgrenha-se do “velho” ao mesmo tempo que lhe ultrapassa, conserva e eleva a nível superior “algo de essencial que existe nessa realidade negada” (KONDER, 2017, p. 18). Hegel foi pioneiro nas formas gerais da dialética, ocorre que esta encontrava-se “[...] de cabeça para baixo. [sendo] preciso desvirá-la, a fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico” (MARX, 2023, p. 108, inserções entre colchetes de nossa autoria).

“Desvirá-la” para compreender, a partir do movimento concreto da história, os dilemas do modelo capitalista. As condicionantes do historicismo burguês, abordadas por Marx, nos levam a refletir sobre a contradição entre igualdade e equidade nas relações capitalistas da atualidade.

“Igualdade” e “equidade” como categorias conflitivas em Marx


O conflito engendrado entre as categorias igualdade e equidade pode ser enfrentado observando as contradições entre público e privado na atualidade, a partir de uma leitura apoiada em Marx.

Como afirmado anteriormente, Karl Marx foi um pensador de sua época; o esforço em elaborar questões comparativas às ideias presentes no século XXI inspira cuidados. “Difundiu-se [...] entre os socialistas a ideia – falsa – de que, segundo Marx, os "fatores econômicos" provocavam [...] a evolução da sociedade sem que os homens [fossem os sujeitos reais da história]” (KONDER, 2017, p. 43, inserções entre colchetes de nossa autoria). Leandro Konder (2017) registra que muitos socialistas – à luz do século atual – seguiram pelo prisma do economicismo. O equívoco talvez ocorra porque Marx, nos estudos da economia britânica, deu especial atenção aos apontamentos de Adam Smith (1723-1790).

Contudo, ao estudar Smith, Marx verificou inconsistências nas relações entre público e privado nas análises tecidas pelo pensador escocês. “Adam Smith oferecia um quadro de harmonia, de benefícios e de prosperidade, destacando precisamente a ausência do Estado na esfera do interesse privado” (BOTTOMORE, 1998, p. 356, grifo itálico do autor). As teorias smithianas se punham contra os interesses coletivos da sociedade civil em favor do livre mercado. A elaboração econômica de Adam Smith, embora referência para Karl Marx, não se alinhava à teoria crítica e revolucionária do socialismo científico como fundamento do materialismo histórico. Ao se inventariar o capitalismo na modernidade, sob o enfoque marxiano, importa observar questões do pensamento hegeliano envolvendo Estado e Sociedade.

Hegel, também tocado pela concepção de Smith, elaboraria a ideia de sociedade civil separando-a da sociedade política, numa limitada compreensão de Estado. Mesmo reconhecendo o valor de Hegel, Marx registraria que “[...] a tentativa meramente política de conciliar os interesses públicos com os particulares levaria o Estado à condição de representante dos proprietários privados mais poderosos” (apud GRESPAN, 2021, p. 16-17). Proposição incapaz de eliminar o motivo da desigualdade social. Entendemos o termo “conciliação” como forma disfarçada de “equidade”, modo de a classe sociopoliticamente dominante mascarar desigualdades históricas.

Comparativamente, vemos no Brasil de momento uma clara contradição entre público e privado: o Estado, sobretudo a partir das forças congressistas, dando absurda guinada à direita (FOCUS BRASIL, 2023) de forma estrita e particular. Esse “transformismo de grupos”, como categoria gramsciana (NOSELLA, 2017), amplia a hegemonia do bloco histórico burguês. Situação reforçadora da pauta ideológica contra o processo coletivo de cunho socializante.

Efeito que atua sobre o (des)trabalho humano em favor das práticas financeiramente lucrativas, conduzidas por sinais magnéticos como “semiocapitalismo” (GHIRALDELLI, 2021). Fato que, concomitantemente, piora o já injusto domínio de outrora sobre ocupação e renda: “Nos países centrais concentram-se as atividades mais criativas e bem remuneradas, transferindo-se para a periferia as atividades mais rotineiras, repetitivas e mal remuneradas” (DANTAS, 2003, p. 5-6), precarizando de modo profundo a sobrevivência da população economicamente mais pobre.

Em meio às diferenças peculiares e interesses diversos o sentido de “equitativo”, na linguagem dos economistas burgueses, se torna difuso, impondo um caráter aglutinador dos interesses neoliberais como sinal trocado, ao substituir ideologicamente “igualdade” por “equidade”. A diferença é que a igualdade marxiana buscava acertar contas com a divisão entre classes. Separação que tem se perpetrado no capitalismo metabolizado em todos os tempos e sentidos a favor da classe dominante dos meios e modos de produzir sua própria riqueza.

O equitativo, em dissonância com a igualdade, parece selecionar seus apaniguados pelo aspecto privado e particular, embaçando o que de fato é público e de direito de todos os cidadãos. Daí o caráter revolucionário em Marx, na superação do Estado capitalista, inspirando as lutas socialistas. Ação histórica da sociedade civil, também como sociedade política, para além do poder estatal. Para Marx sociedade civil e sociedade política estavam imbricadas. Ainda que a burguesia venha assegurando o privilégio de classe. Todavia, cabe mencionar que o “socialismo real”, ocorrido no século XX, com destaques para Rússia, China e Cuba, entre outras nações, se diferiu categoricamente das propostas do “socialismo científico” elaboradas por Marx e Engels.

O discurso de equidade nos tempos atuais, negando a convicção coletiva de igualdade, torna-se hegemônico em favor de uma fantasmagórica “competência” a ser apresentada por pessoas e países, ocultando interesses do capital fictício. O que

abstrai o trabalho e aniquila as potencialidades humanas dos pauperizados por estarem fora do jogo da financeirização proxeneta. Essas ações, que vão enfeixando o atual anarcocapitalismo antiprodutivo – para não revelarem o “rei nu” –, são camufladas em narrativas “pós-modernas” como ideologias burguesas requentadas e amargas. Tais questões, demandam que as correntes marxistas não se desviem do pensamento original de Marx, mas que o reavaliem partindo das relações materialmente concretas que dão sentido histórico ao século XXI.


Marxismo redivivo: a importância do pensamento crítico de Lukács


O húngaro Georg Lukács (1885-1971) – um dos principais filósofos marxistas contemporâneos – produziu um denso pensamento. Vários são os conceitos, à luz do século passado, revisitados por Lukács no interior do pensamento de Marx. Chamando a atenção do campo socialista, Lessa (2022) comenta que Lukács em sua luta de guerrilha “criticou, incansável, o mecanicismo e o economicismo” (n.p).

Na presente questão, importa refletir sobre algumas das categorias lukácsianas, destacando que para Lukács o trabalho é a categoria fundante do ser social (LESSA,1992, p. 39-51). “O nódulo essencial do trabalho é, segundo Lukács, uma peculiar e exclusiva articulação entre teleologia e causalidade” (LESSA, 1992, p.44, grifos nossos).

Observado pela perspectiva do trabalho, considerando o investimento aprofundado de Engels (2019), após o falecimento de Marx, vemos muitos outros conceitos lukacsianos se imbricarem ontologicamente. Entre estes, se expressa a totalidade como amálgama de toda elaboração filosófica do pensador húngaro: o subjetivismo da consciência se transformando objetivamente em autoconsciência na formação do ser social materialidade catártica, que tanto a grande arte como a educação crítica, entendidas em seu modo histórico, podem proporcionar. O humano em sua existência universal reúne especificidades “inorgânicas e orgânicas”. Complexos constituídos da materialidade da essência que é sempre humana. Condição da totalidade de cada indivíduo na construção coletiva da história como generidade (LESSA, 1992).

Em seu marxismo crítico, Lukács (2003) buscando dialogar com as correntes socialistas tradicionais ressaltaria o rigor metodológico de Marx, investindo nestas ideias com argumentos categóricos variados. Ou seja, não basta aos trabalhadores

apenas a consciência psicológica de classe socialmente histórica: “A essência do marxismo crítico consiste, portanto, em reconhecer a independência das forças motrizes reais da história em relação à consciência (psicológica) que os homens têm dela” (LUKÁCS, 2003, p. 134-135).

Ao olharmos para atualidade em meio à fragilidade do comunismo no mundo, corroborado pelo avanço neoconservador, podemos verificar que Lukács de certa forma estava convicto de sua observação. Diante dos conflitos evidenciados à época do socialismo real, se intensificava a preocupação de Lukács na reorganização das categorias marxianas como exigência rigorosa do ser social. Distinguindo a factualidade de Marx, restrita ao XIX, de seu método que ainda se impõe nos tempos atuais como perspectiva revolucionária dos valores liberais burgueses.

Tal conjectura reforça a ideia de dialética que Marx buscou para construir a noção de práxis, cuja finalidade consistiria na totalidade entre o pensamento e a prática de cunho permanentemente revolucionário. Movimento alimentado nas contradições burguesas com vistas à superação temporal do capital sobre o trabalho. Daí o cuidado de os “fatores econômicos” – como quer o pensamento liberal, muitas vezes confundindo correntes socialistas, conforme abordagem de Konder (2017) – não ocuparem o lugar causal e teleológico do materialismo histórico marxiano.

Para Lukács não bastaria ao trabalhador apenas a luta pela melhoria do salário, mas reconhecer a condição de “mercadoria em si”, que no processo capitalista é frequente. Ainda que, como entendemos, “modernizada” pela dissimulação do movimento econômico alterando legislações diversas. Momento, intensificado pelo neoliberalismo, em que o trabalho precarizado se manifesta na exploração dos indivíduos egressos dos grupos sociais empobrecidos.

Nessa perspectiva, tomam impulso, especialmente, duas realidades: o trabalho flexível como expropriação ilegítima do tempo de descanso do trabalhador e o trabalho gratuito, subsumido a voluntarismo, como apropriação da “boa vontade” das pessoas. Entre outras situações de mais-valia, na sociedade do dinheiro – “O capitalismo é um sistema em que os bens e serviços, inclusive as necessidades mais básicas da vida, são produzidos para fins de trocas lucrativas; em que até a capacidade humana de trabalho é uma mercadoria à venda no mercado” (WOOD, 2001, p.12).

Comprometido com essa crítica, Lukács entenderia a consciência psicológica de classe como importante, desde que mantido o seu pôr-teleológico. A política, segundo Fortes (2016), em Lukács só é um pôr-teleológico se se construir movida pela consciência dos seus atores, sendo prenhe de transformação social. Do contrário se torna politicismo. Isto é, apenas voluntarismo. Frente à constatação, se torna necessário que o trabalhador seja formado por um pensamento ético e estético presente em sua real historicidade de classe e gênero. Assim, construindo sua práxis revolucionária.

Lukács, diferentemente da originalidade marxiana, até compreende a separação entre pensar e fazer como fato, devido ao predomínio dos valores burgueses. Mas, para a organização da consciência crítica, aqui pode estar o aspecto inicial da ideação social. Pois, “Todo ato de trabalho, segundo o filósofo húngaro, tem no momento ideal, na prévia-ideação, seu ponto de partida. É impensável qualquer ato humano que não se apresente desta forma” (LESSA, 1992, p. 44). A conformidade com o pensar sem a teleologia histórica imobiliza o ser social transformador. Importa, como critério insubstituível, passar da ideação (ideologia) à objetivação (materialidade histórica).

Diante da perspectiva marxista, percebemos que a forma de pensar ajustada apenas pelo discurso, embora consciente de mudança, nada oferece à efetiva materialidade. Nesse instante, Lukács, apoiado no rigor do pensamento marxiano, identifica a “terceira” categoria do sentido de ideologia do velho Marx de 1889 (NETTO, 2016) – tanto as ideias burguesas como as proletárias não são únicas e gerais, mas condicionadas pelas particularidades no interior de cada classe. Esta observação não condiz com o significado inicial de ideologia em Marx, ao recuperar o sentido negativo de Napoleão Bonaparte na acusação a Destutt de Tracy como ideólogo: a ideologia na condição de visão falseadora do real (NETTO, 2016).

No conceito inicial acima, há em Lukács uma contraditoriedade (tensão permanente de determinações reflexivas) como escopo mais amplo, assente no seu comprometimento teleológico (LESSA, 1992). Para Lukács: “[...] a política é uma forma de ideologia que deve conter em seu ideal o conhecimento da sociedade e suas relações mais intrínsecas com a finalidade de agir na sua transformação” (FORTES, 2016).

Em Lukács o pensamento de Marx, visando à transformação social, é também uma ideologia. Porém a ontologia socialmente construída em sua estrutura

gnosiológica, a partir da elaboração marxiana, possibilita criticamente, pelas questões históricas, o agir com eficácia. Todavia, quando a ação politicamente conservadora suplanta a ação transformadora, isto ocorre porque fatores sociais diversos, promovidos pela intervenção humana, são propícios ao seu avanço. Do mesmo modo ocorre quando ações progressistas prevalecem sobre as forças conservadoras, superando a pura contraditoriedade (LESSA, 1992).

A disputa política, além de seus pólos contraditórios e das expectativas evidenciadas nas contradições (a)estáticas, não pode ser explicada por fenômenos meramente superficiais e estratificados. Lukács, segundo Fortes (2016), procura romper com esse voluntarismo político, esse politicismo. Assim, acreditamos caminhar a dialética lukácsiana: da causalidade histórica, movida como vontade humana, em ações de achegamento aos fins transformadores – “Do pôr teleológico surge uma objetividade inteiramente diferente dos elementos [anteriormente abarcados]” (LUKÁCS, 2013, p. 53, inserção entre colchetes de nossa autoria). Teleologia inseparável de sua causalidade como movimento da classe trabalhadora, atualmente ainda mais desprestigiada e subalternizada pela financeirização do capital, como périplo revolucionário.

Essas relações ontologicamente presentes na historicidade humana, podem se recompor na tarefa educacional da formação de sujeitos conscientes de sua totalidade e autonomia. Ainda que Sérgio Lessa (1983, acessado em 2020), entre outros, não acredite na relação transformadora que se intenta em sala de aula, devido ao predomínio social dos valores burgueses. Diferentemente, entendemos que novas utopias se oferecem à formação crítica, no espaço educacional, de sujeitos inconformados pelas desigualdades provindas da divisão de classes imposta pela sociedade liberal-burguesa. Não se constrói a autoconsciência do ser social sem a educação e este constructo passa invariavelmente pela escola. Se de outro modo fosse, deveríamos negá-la definitivamente em favor dos de cima – tal feito jamais acontecerá.

Neste quadro a escola unitária, “desinteressada” de Gramsci, pode contribuir para perspectivas libertárias assentes na cultura.

Gramsci: escola unitária e “desinteressada” como espaço de cultura


Assim como Georg Lukács, Antonio Gramsci (1891-1937) anteriormente buscou superar a visão “marxista-leninista” restrita aos conceitos comunistas da Revolução Bolchevique de 1917. Gramsci, fundador do partido comunista italiano, elaboraria uma visão à frente de vertentes tradicionais do marxismo de seu tempo, procurando entender o pensamento de Marx sob uma realidade ocidental de relativo equilíbrio entre sociedade civil e Estado, como era o caso da Itália de seu tempo. Diferindo das ações do tipo oriental, nos dizeres gramscianos, ocorrida em uma sociedade ainda “primitiva e gelatinosa”.

Gramsci analisou as necessárias transformações que precisavam acontecer, não como mera transposição das ideias “marxista-leninistas” contidas nos ideais comunistas de boa parte do marxismo habitual, mas por novas e reais questões evidenciadas no século XX. Em suma, algumas dessas realidades, face ao metabolismo do capital, devem ocupar o pensamento histórico-crítico do século XXI.

Antonio Gramsci observou que o sistema capitalista italiano, com sua burguesia à frente do processo, já havia conquistado certa hegemonia, imposta como “[...] (influência cultural geral da IDEOLOGIA) na manutenção e reprodução da dominação de classe” (BOTTOMORE, 1998, p. 197, destaques do autor). Evidenciava-se que o empenho teórico de Gramsci se dava na forma de revolucionar esta hegemonia em favor dos de baixo contra o monopólio intelectual da classe dirigente de momento.

Verificava que no território italiano ocorria um fato distinto das condições que propiciaram a revolução soviética. A Itália, em plena modernidade, já possuía uma classe operária de alguma forma usufruindo das relações capitalistas burguesas, apesar de seu campesinato viver à parte das “benesses” prometidas pelo sistema. Uma ruptura com o pensamento burguês – como formulava Gramsci – deveria se colocar em diferentes perspectivas das diretrizes marxistas usuais.

No cenário italiano era preciso compreender o antagonismo de momento no contexto social dessas classes – diferenças postas taticamente em conflito pela economia política. “Com seus novos conceitos, Gramsci habilitou-se a entender o tipo de Estado que é próprio dos regimes liberal-democráticos” (COUTINHO, 2000, s/p). Situação que Marx não pôde conhecer “[...] e que nada tinha a ver com a autocracia czarista com a qual Lenin se confrontou” (COUTINHO, 2000, s/p). Todas

essas divergências, envolvendo a unificação da luta de classes entre campesinos italianos e trabalhadores operários, contra o pensamento burguês, passaria por um processo educacional unitário que expusesse a hegemonia fabricada pela “estatolatria” de Mussolini.

A nova mentalidade revolucionária envolveria os intelectuais e a educação. A partir de então, a mudança de concepção ideológica deveria ser tarefa política dos intelectuais comprometidos com os ideais populares, assim como uma organização educacional “desinteressada”: porque do interesse de todos os trabalhadores e filhos destes. A superação do governo dos funcionários em busca do autogoverno era questão primordial. Todos imbuídos de uma cultura originária das massas, como resistência ao regime de exceção. Ou seja, não caberia: “[...] identificar o Estado apenas com a "sociedade política", com os aparatos coercitivos, com o "governo dos funcionários", omitindo ou minimizando o elemento consensual-hegemônico próprio da "sociedade civil", do "autogoverno" (COUTINHO, 1998, p. 24).

Mesmo aprisionado autoritariamente pelo regime mussolinista, onde faleceria, Gramsci privilegiou em grande parte a educação como fundamental na autonomia de consciências críticas contra o poder de Estado e, igualmente, a sociedade política que o abrigava. Todavia, desenvolveu o conceito de escola unitária como proposta “desinteressada”. Processo escolar que mediado pela educação dos de baixo seria formacional a todos os alunos e alunas do seu universo. Para a palavra desinteressada não ser confundida como mero abandono, mas de interesse coletivo, fora dos padrões educacionais autoritários e/ou burgueses, Gramsci sempre a colocava, quando escrevia, entre aspas. Em sua proposta a escola “desinteressada” teria os saberes enraizados nas tradições populares. Uma escola unitária sob a perspectiva orgânica da classe trabalhadora.

Gramsci (1985), em função do que ocorria na Itália no primeiro quartel do século XX, entendia que a crise escolar se agravava pelo fato de que toda atividade prática, pensada pelo Estado, caminhava na direção de “criar uma escola para os próprios dirigentes e especialistas” e, assim, organizar um quadro (orgânico) de intelectuais, preparados para o desenvolvimento dessas especialidades. Estratégia que abandonava “a cultura geral, ainda indiferenciada, para se ocupar da formação de profissões, mediante uma precisa individualização” (CHAGAS, 2012, p. 95) – explicada da seguinte forma: “[...] a crise do programa e da organização escolar, isto é, da orientação geral de uma política de formação dos modernos quadros

intelectuais, é em grande parte um aspecto e um agravamento da crise orgânica mais ampla e geral” (GRAMSCI, 1985, p. 109).

Em função de tais contradições, entendemos que no Brasil nossa pugna deve seguir na direção de construir a escola do interesse de todos, levando em consideração os escanteados anseios populares. O que de certa forma foi sinalizado pelos CIEPs em sua breve existência.


Darcy Ribeiro: a experiência dos CIEPs como perspectiva gramsciana


Na educação pensada por Gramsci destacamos a “escola desinteressada”, aquela de educação “unitária”, como forma de envolver a cultura popular no projeto de escola pública, laica, gratuita e de qualidade para todas as categorias sociais em nosso território. A educação com características similares, embora não haja indícios de vínculos teóricos entre Darcy Ribeiro e Antonio Gramsci, vigorou nos CIEPs-RJ entre os anos 1980/1990. De fato, seu melhor momento ocorreu no período 1983-1987, inclusive chegando a outras cidades do Brasil, exemplo de São Paulo, como registra Stock (2004).

Os Centros Integrados de Educação Pública surgiram da proposta articulada por Darcy Ribeiro – marco referencial da escola popular em educação de tempo integral. Projetado arquitetonicamente por Oscar Niemeyer: “O Ciep [se apresentou como] uma escola que funcionava das 8 horas da manhã às 5 horas da tarde, com capacidade para abrigar 1.000 alunos” (RIBEIRO, 1986, p.42, inserção entre colchetes de nossa autoria).

Porém, várias foram as críticas: os professores e professoras da rede estadual, em função da proposta alternativa dos CIEPs, seriam vistos como profissionalmente incompatíveis com o recente arcabouço educacional. Muitas dessas críticas foram encampadas pelo sindicato dos professores, na época Centro Estadual dos Profissionais de Educação (CEPE), mais tarde denominado Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação (SEPE).

Assim, “[...] Darcy Ribeiro [enfrentaria] disputas com o sindicato dos professores ao declarar sua preferência por professores recém-formados, pois estes, segundo sua concepção, ainda não tinham adquirido os vícios da cultura escolar enraizada em nosso sistema educacional (MOREIRA; JÚNIOR; SOARES, 2019, p.16, inserções entre colchetes de nossa autoria). Afirmar “vícios” para

desconsiderar a importância de boa parte do professorado da rede destoava da trajetória desse emérito progressista.

No interior dos CIEPs, em meio a esses conflitos, alunos e alunas tinham a possibilidade de fazer três refeições por dia, com atendimento médico e social, área desportiva, incluindo piscina e outros dispositivos para práticas de educação física (Ribeiro, 1986). Tudo com a finalidade de que as crianças e os jovens pudessem desenvolver seus estudos a contento e com qualidade. A arquitetura dos CIEPs também esteve submetida a críticas, já que seu ambiente amplo e devassado não favorecia o uso do aparelho fônico dos professores e professoras. Nesse aspecto, cabe ressaltar que os espaços educacionais, da escola infante ao ensino universitário, frequentemente, passam por dificuldades semelhantes.

Contudo, os CIEPs foram pensados para acolhimento de todos os gêneros sociais. Ao lado das questões relevantes, reivindicadas pelos profissionais da educação, destaca-se como negativo o oportunismo interesseiro do pensamento burguês, estigmatizando os Centros Integrados de Educação Pública no sentido de escolas destinadas aos pobres, reforçando a ideia de pobreza econômica e enfermidade social. Essa disseminação ideológica foi vital para o enfraquecimento dos CIEPs. Mantendo, assim, o perverso antagonismo entre as classes sociais como fruto da segregação educacional. Darcy Ribeiro foi o educador que mais avançou no Brasil ao pensar e colocar em prática a escola em seu verdadeiro sentido universal, alinhando os conhecimentos científicos aos saberes populares. Como recorte exemplar, ao instituir o programa de “Animação Cultural”, foi capaz de quebrar a métrica da escola tradicional estritamente voltada para a erudição – propondo intervenção didática ousada e original (CHAGAS, 2012).

Nessa complexa mediação cultural a instituição, como coletivo social, se tornaria realidade. Pontuando que as manifestações são grupais e se expressam a partir de uma série de ritos herdados pelo povo como ressonância brasílica – oriundos da mescla indígena e africana como resistência ao europeu colonizador. Danças, cânticos, hábitos de comer, vestir, falar etc., até então tidos como meramente folclóricos, assumiam destaque no programa dos CIEPs. Multidimensionalidade historicamente desprezada pela cultura dominante estabelecida entre nós.

Esta dolorosa marca de domínio brotou do vínculo dos indivíduos identificados com os valores burgueses. A estética cultural dos grupos, construída fora desse

processo tende a ser classificada como modo comportamental estranho e exótico, a ser “corrigido” pela cultura dos de cima em concomitância com o modelo educacional definido pelos paradigmas da classe mandatária.

Quando Darcy Ribeiro pensou o processo de Animação Cultural, para ser efetivado dentro dos CIEPs em sua ação ativa e criativa, ante o caráter passivo da cultura predominante, teve também como meta destituir a escola da influência ideológica que a sociedade burguesa imprimiu à educação escolar. Bosi (1992) entende que a escola deve representar uma via de acesso sempre renovada à “Natureza” – trabalho permanente do historicismo à compreensão do Homem e da Sociedade. Momento ímpar de desenvolvimento da própria linguagem, em sentido lato, como expressão intercultural ao que de mais belo e humano pode ser produzido. A formação do ser convencido de sua secundarização sociopolítica, reduz o sujeito a esquemas estanques de conformações a-históricas. O Estado efetivamente coletivo – mediado por movimentos sociais organizados, em consonância com quadros progressistas – têm o dever de construir a escola única para a todas as crianças e adolescentes brasileiros.

No horizonte de Gramsci (1985), o terreno da cultura é principalmente o do trabalho como arte de se constituir humanamente o sujeito em sintonia com os valores da classe proletária. Por isso, a cultura deve avançar por dentro da escola, mas não qualquer escola, e sim a que se propõe desinteressada. Para Bosi (1992) as culturas são transversais e em seu entrelaçamento servem para ser superadas pela cultura criativa individualizada. Enquanto em Gramsci, a ideia é a de resgate histórico dos valores da classe trabalhadora contra uma pseudocultura “[..] abstrata, enciclopédica burguesa, que efetivamente confunde as mentes trabalhadoras e dispersa sua ação” (NOSELLA, 1992, p. 14-15).

Ao interpretar o pensamento gramsciano percebemos seu compromisso com a totalidade do sujeito humano, eliminando, assim, a distinção segregacionista de gênero social. Contrariamente, se torna mais vantajoso ao controle burguês, em sintonia com seus ideólogos, fragmentar cultura, trabalho e educação. Somente em articulação com esse tripé se pode intuir, de fato, a presença de homens e mulheres (todos, todas, todes) em pé de igualdade no mundo. Para tanto, há que se formar socioculturalmente quadros engajados na superação do Estado neoliberal burguês.

Darcy Ribeiro ao projetar os CIEPs como expectativa multicultural, aproximou-se do pensamento gramsciano em prol de um ensino que priorizasse os

profundos saberes coletivos da gente do mundo real, a contrapelo dos interesses que fizeram dos espaços escolares tradicionais uma arena à margem das necessidades populares. Ainda que o projeto darciniano por uma escola transformadora tenha sido temporariamente derrotado nos anos 1990 – os CIEPS, face à sua proposta de educação integral, precisam ser reestudados à luz do século XXI.


Considerações temporais


No artigo em tela, buscamos pensar o socialismo tradicional abordando pontos de contradição, que determinadas correntes marxistas construíram, inobservando as situações materiais restritas ao tempo em que foram originariamente produzidas por Karl Marx. Ao tentar superar tais entraves, restringimo-nos ao que não pôde ser pensado por Marx no século XIX, revisitando alguns de seus conceitos, com a finalidade de entender as novas demandas humanas exigidas pelas classes populares no século XXI.

O presente século, entre outras situações, exibe tecnologias de nova ordem, trazendo avanços e retrocessos. A era da “pós-verdade” cria um ambiente de comunicação múltiplo de incertezas reforçando a divisão de classes. Ao mesmo tempo em que o Estado e os representantes políticos, alinhados aos interesses particulares, impõem perdas sociais acentuadas aos indivíduos. Todas estas questões, diletas ao economicismo burguês, têm favorecido elevada financeirização da moeda, como ação especulativa de rentismo em prol do grande capital, aprofundando a miséria e a pobreza.

O próprio trabalho de base operária, ao qual Marx se debruçou para construir sua crítica à economia política, aniquilado pela desindustrialização, atualmente – após ações liberais de nova ordem eliminarem direitos conquistados pelos movimentos trabalhistas, traz profunda pauperização econômica sobre os desprotegidos socialmente.

Nesta (i)lógica, o trabalhador como mercadoria temporária, sem vínculos e direitos, está disponível para ser explorado no instante em que o capital necessita de sua mão de obra. Esses modelos, convêm destacar, não estavam presentes no tempo de Marx, proporcionando nos dias atuais alijamento de imensos contingentes de pessoas – com impressionante repercussão nas classes socialmente oprimidas.

As materialidades históricas de hoje exigem que o pensamento crítico, oriundo de grupos marxistas, se desamarre de formulações ideológicas do passado, realinhando questões identificadas por Marx. Almejando este fim, propusemos – a partir de Hegel – um diálogo com Lukács e Gramsci, buscando entender a contribuição marxiana para os conflitos sociais deste século.

A questão da cultura em Gramsci, como elemento fundamental para a educação coletiva dos indivíduos, na defesa de uma escola desinteressada porquê do interesse de todos os trabalhadores e seus filhos, teve destaque – a educação pública necessita se construir como ciência educacional em favor das classes populares em desvantagem social. Observamos o termo gramsciano, entendido como “história provisória”, ao falar do cientista revolucionário (NOSELLA, 1992), entendendo que na caminhada pela vida a história se revela como materialmente provisória. Ou seja, transformações revolucionárias ocorrem operadas por mãos humanas, como demostrou a Revolução burguesa de 1789 na França, abrindo – desde então – caminhos à sua superação.

Concomitantemente, procuramos – ao relembrar a existência dos CIEPs, como obra de Darcy Ribeiro – sublinhar, ainda que resumidamente, a importância de uma educação pública, laica, gratuita, de excelência para todas as classes, a ser enfrentada como política educacional, ante as incertezas presentes no atual cenário brasileiro.

Todavia, na proposta dos CIEPs, ocorreram adversidades: entre as quais a insatisfação de professores da rede pública regular por se sentirem preteridos, fato que para os críticos do programa intuía certo teor de dualidade e populismo. O excesso de centralização de alguns quadros da alta administração dos Centros Integrados de Educação Pública, talvez influenciados pelo personalismo de Darcy Ribeiro e por questões políticas que advinham da recente ditadura brasileira, podem ter contribuído para não se compreender antigas reivindicações represadas no âmbito estadual de governo, no sentido de valorização e melhoria do trabalho escolar geral em sintonia com os CIEPs que nasciam.

O projeto, na íntegra, se dividiria entre afirmativas e negativas, enriquecendo o debate: por um lado entre os que, como Faria (1991), defendiam o caráter socioeducacional do programa e por outros aqueles, como Mignot (2009), entendendo que a proposta mais separava que unificava os desejos por uma educação pública de qualidade ampliada.

Contudo, acreditamos que os entraves políticos e administrativos, ocorridos no delineamento dos CIEPs, deveriam servir de impulso no sentido de ampliarmos as pesquisas, no século XXI, sobre as escolas de tempo integral no Brasil a partir da experiência darciniana. “É mais importante que uma ideia já conhecida seja socializada do que inventar uma ideia nova que fique restrita a um pequeno grupo intelectual” (GRAMSCI apud COUTINHO, 2018).


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CONHECIMENTO ESTÉTICO-ARTÍSTICO NO ENSINO MÉDIO INTEGRADO: A UTILIDADE DO “INÚTIL”1

Carlos Eduardo de Souza2 Sandra Soares Della Fonte3

Resumo

O artigo visa elucidar parte do retrocesso educacional representado pelo “Novo Ensino Médio” (Lei nº 13.415 de 2017) e, por meio de um debate teórico de inspiração marxista, defender o EMI, considerando o lugar do conhecimento estético-artístico nesse projeto. O conhecimento estético-artístico tensiona a formação humana com vistas a construção do sujeito omnilateral na medida em que pode atritar com as investidas conservadoras do empresariado tendo como alvo o último ciclo do Ensino Básico. Deste modo, afirma-se a utilidade do conhecimento tido como “inútil” Palavras-chave: Ensino Médio Integrado; Conhecimento estético-artístico; formação omnilateral

CONOCIMIENTOS ESTÉTICO-ARTÍSTICOS EN LA ESCUELA SECUNDARIA INTEGRADA: LA UTILIDAD DE LO “INÚTIL”

Resumen

El artículo tiene como objetivo dilucidar parte del retroceso educativo que representa la “Nueva Educación Secundaria” (Ley nº 13.415 de 2017) y, a través de un debate teórico de inspiración marxista, defender la EMI, considerando el lugar del conocimiento estético-artístico en este proyecto. . El conocimiento estético-artístico tensiona la formación humana con vistas a la construcción del sujeto omnilateral en la medida en que puede entrar en conflicto con el embate conservador del empresariado que tiene como objeto el último ciclo de la Educación Básica. De esta manera se afirma la utilidad de conocimientos considerados “inútiles”.

Palabras clave: Escuela Secundaria Integrada; Conocimiento estético-artístico; entrenamiento omnilateral

AESTHETIC-ARTISTIC KNOWLEDGE IN INTEGRATED HIGH SCHOOL: THE USEFULNESS OF THE “USELESS”

Abstract

The article aims to elucidate part of the educational setback represented by the “New Secondary Education” (Law nº 13,415 of 2017) and, through a theoretical debate of Marxist inspiration, defend the EMI, considering the place of aesthetic-artistic knowledge in this project. Aesthetic-artistic knowledge tensions human formation with a view to constructing the omnilateral subject to the extent that it can conflict with the conservative onslaught of the business community having as its object the last cycle of Basic Education. In this way, the usefulness of knowledge considered “useless” is affirmed.

Keywords: Integrated High School; Aesthetic-artistic knowledge; omnilateral


1 Artigo recebido em 03/12/2023. Primeira Avaliação em 02/01/2024. Segunda Avaliação em 09/01/2024. Aprovado em 18/01/2024. Publicado em 22/02/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.60713.

2 Doutor em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Espírito Santo - Brasil, professor no Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG), Minas Gerais - Brasil. Email: carlos.souza@ifmg.edu.br.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/2521362709664047. ORCID: https://orcid.org/0009-0001-5125-1008.

3 Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Minas Gerais - Brasil e em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),Santa Catarina - Brasil professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGE/UFES), Espírito Santo - Brasil. Email: sdellafonte@gmail.com. Lattes: https://lattes.cnpq.br/9396743098041438. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9514-7202.

Introdução


Este artigo está sendo escrito no primeiro ano do terceiro mandato de Luís Inácio Lula da Silva como presidente do Brasil, momento em que recrudesce a polêmica sobre a revogação ou não da Lei nº 13.415, aprovada em 16 de fevereiro de 2017, que consolidou no país o chamado “Novo Ensino Médio”, produto do governo golpista de Michel Temer (SINGER, 2018). A expressão “contrarreforma do Ensino Médio” indica o traço regressivo dessa política em relação às conquistas alcançadas em reformas anteriores (FERREIRA, 2017).

Em sua proposta na forma ainda de Medida Provisória em 2016, o então Ministro da Educação José Mendonça Bezerra Filho se valeu de vários “argumentos” para justificar a ação governamental, dentre eles:

Atualmente o ensino médio possui um currículo extenso, superficial e fragmentado, que não dialoga com a juventude, com o setor produtivo, tampouco com as demandas do século XXI. Uma pesquisa realizada pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – Cebrap, com o apoio da Fundação Victor Civita – FVC, evidenciou que os jovens de baixa renda não veem sentido no que a escola ensina. [...] [quanto ao baixo índice de avaliação do ensino médio] Isso é reflexo de um modelo prejudicial que não favorece a aprendizagem e induz os estudantes a não desenvolverem suas habilidades e competências, pois são forçados a cursar, no mínimo, treze disciplinas obrigatórias que não são alinhadas ao mundo do trabalho, situação esta que, aliada a diversas outras medidas, esta proposta visa corrigir, sendo notória, portanto, a relevância da alteração legislativa (BRASIL, 2016, grifo nosso).


Os “argumentos” da contrarreforma do Ensino Médio no Brasil condensam a reação aos ares democráticos vividos durante os governos progressistas de Lula e Dilma. Relembremos, nesse período, o posicionamento de alguns intelectuais orgânicos da burguesia nacional. Tomemos o exemplo Gustavo Ioschpe, economista e colunista do jornal Folha de São Paulo, entre 1996 e 2000, colaborador da Revista Veja desde 2006 e ganhador do Prêmio Jabuti de 2005 com o livro “A ignorância custa um mundo”.

Em 2010, ao considerar que os educadores progressistas, na educação, optam por um currículo escolar amplo para a escola pública que contemple o que os filhos dos ricos têm na escola particular, Ioschpe (2010, p. 140) se reveste de “analista” da educação e declara:

Quando o governo aprova, por exemplo, a obrigatoriedade do ensino de filosofia e sociologia no ensino médio, isso significa que uma escola que hoje já não consegue ensinar o básico tem de dividir sua atenção, seus recursos e sua grade horária entre mais matérias ainda, diluindo ainda mais o aprendizado desse jovem. Isso faz com que o jovem carente possa falar de alienação e mais-valia, mas continue sem saber a tabuada ou sem conseguir escrever uma carta de apresentação. Seguirá distante das boas faculdades e, depois, dos bons empregos. Seguirá, enfim, sendo pobre.

Em artigo de 8 de abril de 2012, reagindo a mudanças no currículo escolar brasileiro, Ioschpe (2012, p. 109) declara:

Deixe-me dar um exemplo com essas novas matérias inseridas no currículo do ensino médio – música, sociologia e filosofia. A lógica que norteou a decisão é que não seria justo que os alunos pobres fossem privados dos privilégios intelectuais de seus colegas ricos. O que não é justo, a meu ver, é que a adição dessas disciplinas torna ainda mais difícil para os pobres se equiparar aos alunos mais ricos nas matérias que realmente vão ser decisivas em sua vida. A desigualdade entre os dois grupos tende a aumentar. A triste realidade é que, por viverem em ambientes mais letrados e com pais mais instruídos, alunos de famílias ricas precisam de menos horas de instrução para se alfabetizar. É pouco provável que um aluno rico saia da 1ª série sem estar alfabetizado, enquanto é muito provável que o aluno pobre chegue ao 3º ano nessa condição. O aluno rico pode, portanto, se dar ao luxo de ter aula de música. Para nivelar o jogo, o aluno pobre deveria estar usando essas horas para se recuperar do atraso, especialmente nas habilidades basilares: português, matemática e ciências. É o domínio dessas habilidades que lhe será cobrado quando ingressar na vida profissional. Se esses pensadores querem a escola como niveladora de diferenças, se a diferença que mais impacta a qualidade de vida das pessoas é a de renda, e se a fonte principal de renda é o trabalho, então precisamos de um sistema educacional que coloque ricos e pobres em igualdade de condições para concorrer no mercado de trabalho.

Sob influência desse arcabouço ideológico de valorização de “matérias decisivas” para o ingresso profissional, alinhadas ao setor produtivo, os textos preliminares que tramitavam no Congresso Nacional, que antecederam e serviram de base para a Lei nº 13.415, propunham a retirada sumária das disciplinas Educação Física, Filosofia, Sociologia e Artes do currículo do Ensino Médio. Contrários a esse ataque, docentes e estudantes de todo o país se manifestaram e protestaram. Com isso, o congresso e o governo se viram forçados a repensarem tal proposta. No texto aprovado da Reforma, foi mantida a obrigatoriedade desses conteúdos junto com outros conhecimentos, entretanto, sem garanti-los como disciplina. Como se observa no artigo 35-A da Lei 13.415/2017, em seu segundo

parágrafo, “§ 2º A Base Nacional Comum Curricular referente ao ensino médio incluirá obrigatoriamente estudos e práticas de educação física, arte, sociologia e filosofia” (BRASIL, 2017). A obrigatoriedade imprecisa do termo “estudos e práticas” contrasta com a obrigatoriedade precisa quando o documento menciona o ensino da matemática e do português: “§ 3º O ensino da língua portuguesa e da matemática será obrigatório nos três anos do ensino médio, assegurada às comunidades indígenas, também, a utilização das respectivas línguas maternas” (BRASIL, 2017). Nesse sentido, a obrigatoriedade do conhecimento na forma de “estudos e práticas” não coincide com a obrigatoriedade das disciplinas de Educação Física, Arte e Sociologia no Ensino Médio. Em outros termos, as referidas disciplinas foram desobrigadas.

Recentemente, na proposta de ajuste da Reforma do Ensino Médio de agosto de 2023, diante da necessidade de recomposição dos componentes curriculares no Ensino Médio apontada por consulta pública, o MEC (2023, s.p.) sinaliza, de modo tímido: “Sugere-se que espanhol (alternativamente), arte, educação física, literatura, história, sociologia, filosofia, geografia, química, física, biologia e educação digital passem a figurar na composição da FGB [formação geral básica]”. Portanto, o referido ajuste não reverte a desobrigação de algumas disciplinas no currículo escolar.

Ademais, esse mesmo ajuste defendido pelo MEC não reverte a orientação da Lei nº 13.415 de propor uma base curricular comum a todos os estudantes do Ensino Médio seguida por itinerários formativos (agora chamados de percursos de aprofundamento e integração de estudos), tendo, entre eles, a formação técnica e profissional.

Tudo isso, por exemplo, abala e confronta o avanço representado pelo Ensino Médio Integrado (EMI) e sua estruturação a partir dos eixos do trabalho, da cultura, da ciência e da tecnologia. Na prática e na forma como foi concebido, assim como na proposta de ajuste de agosto de 2023, essa lei implica um retrocesso em relação à frágil, mas importante conquista do Ensino Médio Integrado, instituído e implementado na década de 2000 a partir dos primeiros mandatos de Luís Inácio Lula da Silva na presidência do país.

Na contramão dessa tendência, argumenta-se, no presente artigo, a importância do conhecimento artístico para o EMI. A nosso ver, defender o caráter

inalienável do conhecimento estético-artístico no EMI implica colocar-se na luta pelo próprio EMI em contraposição ao retrocesso político representado pelo Novo Ensino Médio.


A natureza da objetivação estético-artística e a importância de sua apropriação no Ensino Médio Integrado


Estética é uma palavra polissêmica e, por essa razão, cabe-nos explicitar como a entendemos. Seu sentido etimológico vincula-se aos sentidos e à percepção. No século XVIII, Alexander Baumgarten (1983) inscreveu a estética como um campo filosófico particular, mais precisamente como ciência das faculdades sensitivas humanas, tendo o belo como objeto primordial. Em sua acepção, o belo artístico representaria a perfeição do conhecimento sensível. Se, por um lado, Baumgarten respeitou a etimologia da palavra, por outro, ele ofereceu abertura para uma longa tradição que tem atrelado a estética ao campo artístico como filosofia da arte ou do belo.

Contudo, interessa-nos, em particular, considerar, como sugerido por Vázquez (1978), a estética como meio de afirmação do humano no mundo objetivo e meio de autoconhecimento. Compreender essa indicação implica lembrar que é por meio do trabalho que o ser humano criou, cria e recria cotidianamente sua humanidade e, com isso, diferencia-se dos outros seres vivos. Portanto, como fundamento ontológico da condição humana, o trabalho revela como produto o próprio humano e está na base de toda a criação material e imaterial humana (cultural, simbólica, intelectual) acumulada ao longo da história. Logo, a estética é mais uma das objetivações humanas. Mas quais determinações históricas explicam a emergência dessa objetivação?

Segundo Vázquez a estética deve ser compreendida à luz do trabalho. A produção do patrimônio material e imaterial, ao longo dos tempos, condensa “forças essenciais humanas” (VÁZQUEZ, 1978, p. 66). Assim, tudo o homem modifica na natureza passa ser “a objetividade de si mesmo” (VÁZQUEZ, 1978, p. 67).

É no curso da produção dos meios para sua existência e satisfação que o ser humano se humaniza e se distancia das dificuldades que envolviam o atendimento das suas necessidades mais imediatas, por exemplo, se alimentar. Essas conquistas

ajudaram a aumentar as possibilidades de uma existência mais livre, aberta e complexa, em cumprimento às múltiplas potencialidades humanas.

O trabalho, portanto, não é apenas criação de objetos úteis que satisfazem determinada necessidade humana, mas também o ato de objetivação e plasmação de finalidades, ideias ou sentimentos humanos num objeto material, concreto-sensível. Nesta capacidade do homem de materializar suas “forças essenciais”, de produzir objetos materiais que expressam sua essência, reside a possibilidade de criar objetos, como as obras de arte, que elevam a um grau superior a capacidade de expressão e afirmação do homem explicitada já nos objetos do trabalho (VÁZQUEZ, 1978, p. 69).

A produção da estética-artística, como desdobramento do trabalho humano, pode ser tão prazerosa quanto a produção dos bens relacionados de forma mais direta com a sobrevivência. Desse modo, não existe uma relação de oposição do tipo: a arte é um ato da satisfação, do prazer enquanto a produção de alimento, por exemplo, é um ato de sofrimento. O que determina essas subjetividades é o modo e para quais finalidades ambas são produzidas.

Não obstante, “a semelhança entre a arte e o trabalho [prático-utilitário], que tem suas raízes na comum natureza criadora de ambos não deve nos levar a desfazer a linha divisória que o separa” (VÁZQUEZ, 1978, p. 70). Sendo assim, Vázquez (1978) reconhece a existência de um certo conflito entre a produção mais utilitária e a artística. Isso não significa que há “anulação de uma em favor da outra, mais sim a um certo predomínio de sua função prático-utilitária sobre a função espiritual que revela a relação do objeto com a essência humana” (VÁZQUEZ, 1978, p. 70). Eis aí a linha divisória a qual o autor se refere.

Dessa compreensão decorre, portanto, que a arte enquanto objetivação humana rompe com a imediaticidade prático-utilitária das coisas, ou seja, à produção artística interessa, antes de mais nada, satisfazer a necessidade do espírito, dos sentidos:

Se falamos de duas utilidades – uma prático-material e outra espiritual, que correspondem aos dois tipos de necessidades humanas, satisfeitas pelo trabalho – a primeira é a que domina em tôdas as formas que o trabalho humano adota historicamente, e que continuará dominando mesmo na sociedade comunista. A utilidade material do produto do trabalho aparece, portanto, como um limite para que o objeto seja plenamente útil no sentido espiritual antes assinalado; isto é, como meio de expressão, afirmação ou objetivação do homem. Mas o homem necessita, por sua vez, levar o

processo de humanização da natureza, da matéria, até suas últimas consequências. Por isso, deve assimilar a matéria sob uma forma que satisfaça plena e ilimitadamente sua necessidade espiritual de objetivação. Assim, pois, o limite prático-utilitário que o trabalho impõe deve ser superado, passando-se assim do útil ao estético, do trabalho à arte (VÁZQUEZ, 1978, p. 71).

Com isso, não se pode dizer que o estético não possa ser útil e nem que a arte não seja objeto do trabalho. O autor apenas reconhece que a arte, enquanto objetivação humana, torna-se realidade e se potencializa na medida em que o ser humano se afasta das dificuldades de suprir as suas necessidades mais prementes. Disso resulta que a arte incorpora e condensa séculos de experiência, assumindo grande e singular importância no processo de humanização. Demarca, assim, um estágio superior do desenvolvimento humano. Se o homem já se diferenciava muito dos outros animais, por exemplo, por usar instrumentos de caça, mais ainda se diferenciou ao produzir objetos de satisfação do espírito, com funções decorativas ou de contemplação.

Quando o homem talha figuras em pedra ou marfim, modela figuras em argila ou pinta animais selvagens nas paredes das cavernas, pode-se dizer que franqueou uma etapa em que o trabalho já havia preparado durante dezenas de milhares de anos. A arte nasce [...] a partir do trabalho, isto é, recolhendo os frutos da vitória do homem pré-histórico sobre a matéria para se elevar ao humano – mediante esta nova atividade que hoje chamamos artística – ao novo nível (VÁZQUEZ, 1978, p. 73).

Estético é o objeto que, devido a suas determinações e propriedades concreto-sensíveis nos convida à experiência sensível. De acordo com Vázquez (1978), ele pode ser natural ou humano, criado com objetivo estético ou ganhando essa função ao longo do tempo. A sua especificidade reside no fato de que, mesmo sendo uma paisagem ou um fenômeno natural, ele se torna um compósito de significações humanas. Nas palavras do autor, um “objeto subjetivizado, humanizado” (VÁZQUEZ, 1978, p. 97). A arte possui um lugar de destaque, constituindo, como mencionado, a manifestação mais complexa da cultura estética. A sua produção assume um nível elevado de liberdade em relação às necessidades imediatas, tornando-se um fim em si mesma.

Por mais que não se vincule a necessidades estreitas e materiais, a produção estético-artística satisfaz uma necessidade humana de objetivação, expressão, comunicação e também cognoscitiva. Como tal, revela-se como um conhecimento

elaborado e complexo, assim como a filosofia e a ciência, mas de natureza não conceitual. Por mais que o artista possa ser motivado no seu fazer por conceitos, sua objetivação final assume uma realidade objetiva concreto-sensível (um poema, uma pintura, uma dança, uma escultura etc.). Nessa objetividade estético-artística, de caráter figurativo, plasma-se um mundo de significações humanas.


Num quadro ou num poema não entra, por exemplo a árvore em si, precisamente a árvore que o botânico trata de apreender, mas uma árvore humanizada, isto é, uma árvore que testemunha a presença do humano (VÁZQUEZ, 1978, p. 33).


Assim, a arte apresenta-se como uma atividade criadora que, segundo Vázquez (1978, p. 71), fala do humano e pelo humano ao atender a uma “necessidade geral que o homem sente de humanizar tudo quanto toca, de afirmar sua essência e de se reconhecer no mundo objetivo criado por ele”.

Nos Manuscritos econômico-filosóficos, Marx (2004, p. 161) observa que, para acessar a riqueza objetivamente desdobrada do humano imanente à obra de arte, é necessário um processo formativo: “Se tu quiseres fruir da arte, tens de ser uma pessoa artisticamente cultivada [...]”. Nesse sentido, sua melhor apreensão e compreensão depende de condições, também objetivas, de apropriação do conhecimento estético-artístico. Daí a importância da educação escolar.

Se a arte representa esse compósito objetivo da experiência social subjetiva, o acesso a esse conhecimento representa um reencontro do humano com o humano. A “refundição das emoções fora de nós realiza-se por força de um sentimento que foi objetivado, levado para fora de nós, materializado e fixado nos objetos externos da arte, que se tornaram instrumento da sociedade” (VIGOTSKI, 1998, p. 315). Acessar esse conhecimento implica reconstruir na singularidade do indivíduo essa experiência subjetiva social plasmada no artefato artístico. Na explicação vigotskiana,


[...] a arte é uma técnica social do sentimento, um instrumento da sociedade através do qual incorpora ao ciclo da vida social os aspectos mais íntimos e pessoais do nosso ser. Seria mais correto dizer que o sentimento não se torna social mas, ao contrário, torna-se pessoal, quando cada um de nós vivencia uma obra de arte, converte-se em pessoal sem com isso deixar de continuar social (VIGOTSKI, 1998, p. 315).

Há um jogo complexo entre objetividade e subjetividade no trabalho educativo. A experiência humana sensível e afetiva se realiza a partir da objetividade histórico-social. A obra de arte testemunha a transmutação dessa experiência subjetiva em uma objetividade, em uma nova realidade (de traço concreto-sensível). Essa fixação da existência humana sensível e afetiva em um objeto permite que ele possa agora ser compartilhado com outros sujeitos. Uma vez mais, acessar a obra de arte representa reconstruir no indivíduo essa experiência social plasmada no artefato artístico.

Considerando as reflexões até o momento, a apropriação da arte afirma-se como relevante em um projeto educativo que, de modo orgânico, articule o trabalho como princípio educativo e a formação omnilateral.

O trabalho como princípio educativo não é uma técnica didática, mas um pressuposto ético-político para a formação humana omnilateral, conforme explica Frigotto (2009, p. 72):

E o trabalho é princípio educativo porque é através dele que o ser humano produz a si mesmo, produz a resposta às necessidades básicas, imperativas, como ser da natureza (mundo da necessidade), mas também e não separadamente às necessidades sociais, intelectuais, culturais, lúdicas, estéticas.

Contra as forças sociais que desmantelam, fragmentam e alienam o humano, o horizonte do sujeito omnilateral torna-se uma necessidade para o estabelecimento dos fios condutores que dão sentido e integridade à existência humana.

Um projeto educativo dessa natureza inspira e atualiza as proposições de Marx relativas à “omnilateralidade” e ao “sujeito total”, iniciadas em obras juvenis e amadurecidas em seus escritos tardios (DELLA FONTE, 2020). Ao se apropriar das experiências e reflexões do movimento comunista da época, assim como da legislação fabril inglesa referente ao trabalho infantil e à necessidade de escolarização de crianças que trabalhavam nas fábricas, Marx entende que a articulação entre escola e trabalho proposta pela burguesia poderia ser ponto de partida para uma formação mais ampla, uma “educação do futuro”, que articule educação intelectual, física e a tecnológica.

Atualizar esse legado abrange elaborar e construir


[...] formulações pedagógicas críticas no sentido de afirmarem seu compromisso com uma constituição humana ampla e complexa na

qual a dignidade do sensível seja considerada junto com a faculdade racional; e com uma compreensão abrangente de conhecimento que unifique (em sua tensão e complementaridade) o conhecimento conceitual e o estético-artístico (DELLA FONTE, 2020, p. 25).

Em termos históricos, esse compromisso foi abraçado por parcela de intelectuais brasileiros na defesa do Ensino Médio Integrado, em especial o ofertado pelos Institutos Federais de Educação.

Ainda, em 1909, o então Presidente da República, Nilo Peçanha, através do decreto nº 7.566, criou 19 Escolas de Aprendizes e Artífices, ação que pode ser considerada o início da construção mais formal de uma rede federal de Educação Profissional no país. Segundo Carvalho (2019), as Escolas de Aprendizes e Artífices eram destinadas às classes populares e tinham como objetivo maior conformá-las “ordeiramente” e “economicamente” aos ideais da República.

Nesse sentido, perpetua-se a política de educação focada nos diferentes sujeitos socias, ratificando, desse modo, o dualismo educacional já presente ao longo do Brasil colonial e imperial. As Escolas de Aprendizes e Artífices aprofundaram a ideia de uma educação funcional ao mercado (artesania), como havia sido nos Liceus de Artes e Ofícios (cf. CUNHA, 2000; BIELINSKI, 2003), na medida em que as dimensões mais técnicas, específicas de cada trabalho e ofício, ganharam destaque enquanto conhecimento “útil” ao desenvolvimento da indústria e da economia.

A trajetória da educação profissional assumida como política nacional de Estado foi atravessada por contradições. Interessa-nos chamar atenção para o fato de que, em especial a partir da década de 1940, há um deslocamento de parcela da educação profissional para o grau médio de escolarização (CUNHA, 2000). Esse movimento representou uma espécie de colonização da instituição escolar pelo modelo de Educação Profissional das entidades corporativas voltadas para o treinamento profissional e se tornou, dentro de muitos embates e especificidades históricas, a prática hegemônica da política educacional assumida pelo Estado.

No bojo dessa história, a possibilidade da Educação Profissional integrada ao Ensino Médio presente no Decreto nº 5.154, publicado no ano de 2004, abriu caminho para a implementação de uma possibilidade de formação profissional a partir de conceitos e conhecimentos mais amplos, que pudessem conferir uma formação humana mais ampla aos estudantes.

O desfecho mais importante e promissor dessa expansão das discussões e reelaborações do Ensino Profissional no Brasil veio com a Lei 11.892, de 29 de dezembro de 2008, que instituiu a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (RFEPCT) que consolidou a proposta de Ensino Médio Integrado no país. Ainda que pesem inúmeras contradições e limites, essa lei pode ser compreendida como uma importante conquista dos trabalhadores, sendo, em boa parte, síntese de suas lutas e bandeiras históricas em prol da Educação Profissional no país. Para alguns autores, significou a possibilidade concreta de uma necessária “travessia” rumo a superação do dualismo estrutural histórico da educação brasileira. O termo “travessia” implica, assim, a compreensão do momento histórico existente para que, a partir dele, lancemos a sua superação:

Travessia que implica atuar sobre a realidade até aqui produzida e buscar formas de mudanças estruturais que a modifiquem radicalmente. [...] Considerando-se a contingência de milhares de jovens que necessitam, o mais cedo possível, buscarem um emprego ou atuarem em diferentes formas de atividades econômicas que geram sua subsistência, parece pertinente que se faculte aos mesmo a realização de um ensino médio, em que ao mesmo tempo que preserva sua qualidade de educação básica como direito social e subjetivo possa situá-los mais especificamente numa área técnica ou tecnológica (FRIGOTTO, 2010, p. 77).

A nosso ver, a frágil e contraditória existência do EMI colocou-se como uma reação à colonização da instituição escolar pelo setor produtivo na medida em que, em tese, a educação profissional passa a estar subsumida aos objetivos da escolarização básica e o próprio termo integração entra no campo de disputa. Para segmentos educacionais críticos, ele passa a significar:

[...] uma concepção de educação que, desafiada pelas contradições da realidade concreta, pressupõe a integração de dimensões fundamentais da vida – trabalho, ciência, tecnologia e cultura – num processo formativo que possibilite aos trabalhadores o acesso aos conhecimentos (científicos, éticos e estéticos) produzidos histórica e coletivamente pela humanidade, bem como aos meios necessários à produção de sua existência e à sua emancipação como classe (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS; GOMES, 2014, p. 11).

Considerações finais


Tratando a educação de um modo mais geral, Ordine (2016) argumenta que a escola sofre constantes ingerências por determinação do mercado: em nome do lucro, defende-se, a qualquer custo, uma prática escolar baseada em ideias utilitaristas, praticistas e produtivistas. Visa-se, assim, a formação de “mão de obra” especializada para o mercado de trabalho e consumo. O autor argumenta, também, que o mercado, ao defender um modelo escolar utilitário ao lucro, acaba por atacar a cultura, menosprezando sua importância para a humanidade. Por seu turno, essa ofensiva contra a cultura contribui para um ataque generalizado à escola.

Ordine (2016) concebe o útil em uma concepção não utilitarista/imediata como todo conhecimento que contribui para o florescimento do espírito, para a organização de uma sociedade que vibra e se identifica com o belo. Em contraposição a isso, ou seja, dentro de uma visão utilitarista do útil, a estética-artística enquanto conhecimento sensível são alvo de extrema desvalorização e ataques. Enfim, o útil-utilitarista é uma violência contra os conhecimentos sensíveis.

Tratando mais especificamente o contexto brasileiro, Salles Botti (2020) levanta uma reflexão importante acerca do valor de certas coisas tidas como úteis na sociedade contemporânea:

Vivemos tempos estranhos. Talvez qualquer época pareça estranha, se vista de relance ou de muito perto, mas nossa época é estranha de uma forma peculiar: quanto mais o conhecimento se torna indispensável em todos os setores da vida, tanto mais a opinião pública se volta contra a mão que a alimenta. [...] ironicamente, usamos as maiores realizações de nosso intelecto para atacar o próprio intelecto e suas realizações (SALLES BOTTI, 2020, p. 410).

Seguem suas conclusões:


Como reflexo disso, no Brasil e no mundo, populações e governantes se mostram ignorantes e até hostis em relação ao conhecimento (científico ou não). A tecnologia é útil e rentável, mas a filosofia e a ciência, além das artes, são vítimas dessa situação. [...] Não sei se alguém já pensou isso explicitamente, mas é uma crença tácita que subjaz à desvalorização da educação e da ciência e à defesa ferrenha da utilidade imediata, entendida em termos econômicos (SALLES BOTTI, 2020, p. 412).

As afirmações de Salles Botti (2020) corroboram com as de Moraes (2001) quando afirma que estamos diante de um “recuo da teoria” e uma celebração de tendências pragmáticas. Além disso, ressaltamos que a desvalorização do conhecimento estético-artístico atualmente também é acompanhada pela sua criminalização e perseguição no Brasil.4

Considerando o EMI como “travessia”, defendemos que o conhecimento estético-artístico representa, no conjunto de outros conhecimentos tidos como “inúteis” (Filosofia, Educação Física, Sociologia), um ponto de tensão que impulsiona essa travessia na medida em que, diante das pressões por uma formação meramente técnico-profissional, ela afirma a utilidade do conhecimento tido como “inútil”. Afinal, como observa Marx (2004), em distinção com os demais animais, o ser humano produz sem a coação da necessidade imediata; mais precisamente, ele verdadeiramente produz quando liberto das emergências da sobrevivência e se lança a necessidades mais complexas como as estéticas.

A presença de um conhecimento como esse na escola pode, portanto, potencializar ou tensionar a formação, no sentido de permitir aos adolescentes do EMI uma apropriação mais ampla da realidade. Isso significa, politicamente e pedagogicamente, se opor às ideias e tentativas de submissão ao mercado que tem como máxima finalidade a formação de recursos humanos para o exercício alienado das profissões.

Isso posto, é que destacamos a educação estético-artística enquanto conhecimento de grande tensão para a formação humana com vistas a construção do sujeito omnilateral. Contudo, não se trata de hierarquizar a importância dos

4 No Brasil contemporâneo, é cada vez mais crescente a desvalorização da ciência e da filosofia, mas nos parece que a arte tem sido ainda mais mal compreendida e hostilizada, conscientemente por alguns governantes e, inadvertidamente, por boa parte da população que os apoiam. Para ilustrar esse fenômeno, é possível citar inúmeros eventos recentes, mas destacamos apenas três: um no âmbito da sociedade civil e os outros dois no âmbito da aparelhagem de Estado. Em 2017, a Mostra "Queermuseu – cartografias da diferença na arte da brasileira" foi fechada antes da data prevista para o encerramento, depois de protestos de grupos religiosos e do MBL (Movimento Brasil Livre); o governo do presidente Jair Bolsonaro fechou o Ministério da Cultura, assim como mandou retirar do salão nobre da residência oficial do Presidente da República a obra de arte “Orixás” da artista plástica Djanira. Informações disponíveis em: https://veja.abril.com.br/blog/rio-grande-do-sul/veja-imagens-da-exposicao-cancelada-pelo-santander- no-rs/. Acesso em 22 de outubro de 2020.

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/05/com-seis-meses-de-atraso-governo-bolsonaro-leva-c ultura-a-pasta-do-turismo.shtml. Acesso em 22 de outubro de 2020.

https://www.hypeness.com.br/2020/08/governo-retira-obra-classica-dos-orixas-do-palacio-do-planalto- em-novo-ataque-contra-religioes-negras/. Acesso em 20 de maio de 2021.

diferentes conteúdos, mas tão somente reconhecer e afirmar o papel da educação estético-artística enquanto conhecimento privilegiado na busca desse tipo de formação no EMI, pois, de modo geral, pode atritar a pressão mercadológica e as investidas do empresariado sobre a educação escolar brasileira.

Disso decorre, entre outras coisas, o dever de assumirmos, com ênfase, o elogio e a defesa dos conhecimentos sensíveis. Sob esse prisma, não cabem ajustes no Novo Ensino Médio, mas a sua revogação.


Referências


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A APROPRIAÇÃO DO PENSAMENTO GRAMSCIANO NO LIVRO “LAZER E EDUCAÇÃO” DE NELSON CARVALHO MARCELLINO1

Bernardo Jordano Gomes2 Marcelo Paula de Melo3 Rebeca Signorelli Miguel4

Resumo

Este artigo busca entender de que forma o livro “Lazer e Educação” (1995), de Nelson Carvalho Marcellino, se apropria do pensamento gramsciano e qual foi a profundidade e qualidade destas apropriações. Como metodologia, analisamos a obra de Antonio Gramsci, de seus estudiosos e outros marxistas, em paralelo ao texto de Marcellino. Concluímos que as menções aos conceitos de Gramsci não estavam integralmente fiéis à letra do seu texto, com apropriações pouco aprofundadas ou com significados modificados, além de ter havido um afastamento do pensamento gramsciano em seu estudo.

Palavra-chave: Lazer; Educação; Antonio Gramsci.


LA APROPIACIÓN DEL PENSAMIENTO GRAMSCIANO EN EL LIBRO “LAZER E EDUCAÇÃO” DE NELSON CARVALHO MARCELLINO


Resumen

Este artículo busca comprender cómo el libro “Lazer e Educação” (1995), de Nelson Carvalho Marcellino, se apropia del pensamiento gramsciano y cuál fue la profundidad y calidad de esas apropiaciones. La metodología de este estudio fue el análisis de la obra de Antonio Gramsci, sus estudiosos y otros marxistas, en paralelo con el texto de Marcellino. Concluimos que las menciones a los conceptos de Gramsci no fueron del todo fieles a la letra de su texto, con escasas apropiaciones en profundidad o con significados modificados, además de tener un alejamiento del pensamiento gramsciano.

Palabra clave: Ocio; Educación; Antonio Gramsci.


THE APPROPRIATION OF GRAMSCIAN THOUGHT IN THE BOOK “LAZER E EDUCAÇÃO” BY NELSON CARVALHO MARCELLINO


Abstract

This article seeks to understand how the book “Lazer e Educação” (1995), by Nelson Carvalho Marcellino, appropriates Gramscian thought and what was the depth and quality of these appropriations. This study's methodology was the analysis of the work of Antonio Gramsci, his scholars and other Marxists, in parallel with Marcellino's text. We conclude that the mentions of Gramsci's concepts were not fully faithful to the letter of his text, with little in-depth appropriations or with modified meanings, in addition to having a departure from Gramscian thought.

Keyword: Leisure; Education; Antonio Gramsci.


1 Artigo recebido em 15/11/2023. Primeira Avaliação em 09/01/2024. Segunda Avaliação em 07/01/2024. Aprovado em 24/01/2924. Publicado em 22/02/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.60.571.

2 Mestrando em Estudos do Lazer pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Minas Gerais - Brasil. Email: b.jordano@hotmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9725762220405328.

ORCID: https://orcid.org/0009-0002-6093-5716.

3 Doutor em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro - Brasil. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) e da Escola de Educação Física e Desportos (EEFD) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Email: marcelaomelo@gmail.com.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/9618187525201061. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0146-4275.

4 Doutora em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), São Paulo - Brasil . Professora da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), Minas Gerais - Brasil.

Email: rebecasignorelli@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5324660165932015. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8058-2527.

Introdução


O presente estudo busca analisar a presença e apropriação do pensamento de Antonio Gramsci – importante marxista e militante italiano preso durante o regime fascista italiano – na obra “Lazer e Educação” (1995), de Nelson Carvalho Marcellino – um dos principais expoentes e pioneiros dos Estudos do Lazer brasileiros. Nosso texto, portanto, tem como objetivo entender: a) como se deu a apropriação do pensamento de Antonio Gramsci nessa obra e; b) qual a qualidade e profundidade de tal apropriação. Dessas questões levantamos questões sobre como Gramsci aparece no texto de Marcellino, isto é, as citações diretas, indiretas e comentários sobre Gramsci nesse texto tão relevante para a consolidação do campo dos Estudos do Lazer. A tradição marxista ronda este campo com diferentes graus de apropriação e mesmo divergências, assim como rechaços diretos ou indiretos. A discussão de lazer, tempo livre e emancipação humana permitirá aproximar da educação não apenas em sentido escolar, mas sim de apropriação da riqueza simbólica produzida pela humanidade.

Professor da Faculdade de Educação Física da UNICAMP de 1988 a 2001 e posteriormente atuando na Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) até 2014, Marcellino teve uma produção deveras relevante no âmbito do lazer, da ludicidade e Educação, sendo referência marcante a partir de meados dos anos 1980 para o campo da Educação Física e dos Estudos do Lazer.

Tanto sua dissertação de mestrado, “Lazer e Educação: relação entre o lazer, a escola e o processo educativo” (1984), quanto sua tese de doutorado, “Lazer e Escola: fundamentos filosóficos para uma pedagogia da animação, no início do processo de escolarização” (1988), tornaram-se importantes livros para o campo posteriormente (MARCELLINO, 1987; 1990), além de outros escritos como “Lazer e Humanização” (1983a), “Estudos do Lazer: uma introdução” (1996), dentre outros. Até o momento da presente pesquisa, Marcellino contava com mais de 80 artigos publicados, 127 livros publicados/organizados em diferentes edições, diversas participações em bancas de Mestrado e de Doutorado, além de comissão julgadora de bancas para Professor Titular, de concursos públicos e de livre docência. Também orientou 39 dissertações de mestrado e 7 teses de doutorado.

Tamanho volume de publicações dedicadas ao campo do Lazer corrobora deste modo com sua relevância para o campo. Além disso, estudo produzido por Dias et al. (2017), sobre a construção do campo do lazer na década de 2000 a 2010, mostra que tais obras – “Lazer e Educação”; “Lazer e Humanização”; e “Estudos do Lazer: uma introdução” – estiveram entre as quatro obras mais citadas do campo, além de ser o autor mais citado para cinco dos dez autores que mais publicaram na revista Licere no período e de ser também o autor que mais publicou.

Tendo em vista isso, podemos considerar o ineditismo e a relevância de sua obra para a construção do campo do lazer e, em especial, do livro “Lazer e Educação”, que além de ter sua notoriedade evidenciada pelas suas contribuições para a relação entre os dois campos (o lazer e a educação), é também onde se encontram algumas das aproximações iniciais ao pensamento de Antonio Gramsci no campo do lazer, o que justifica a escolha pelo livro para o desenvolvimento do presente estudo.

Contudo, a presença da obra de Antonio Gramsci na produção inicial de Nelson Carvalho Marcellino – que depois passa a ser menos marcante – demanda situar minimamente a relevância do fundador do Partido Comunista Italiano.

Preso pela primeira vez por alguns dias em 1921, Gramsci (G.), junto a outros delegados da fração comunista cria o Partido Comunista da Itália (PCI), seção da Internacional Comunista. Sendo eleito deputado em 1924, é preso dois anos depois, em novembro de 1926, posteriormente condenado a 20 anos de reclusão. Em 1929, permitida a sua escrita na cela, inicia seus escritos do cárcere, os Cadernos do Cárcere (Q.). Gramsci é solto no ano de 1937, mas sofre um derrame cerebral, morrendo dois dias depois. Tanto sua produção pré-carcerária (intervenções jornalísticas e textos para a militância partidária) como sua produção carcerária (Cadernos e Cartas do Cárcere) são importantes documentos do pensamento social e político do século XX.

Em 1821, inicia-se uma discussão com uma proposta trazida não por um socialista ou representante do nascente movimento operário cartista na Inglaterra, mas sim pelo Lorde John Russell (naquele momento membro do partido Liberal Inglês), acerca da jornada de trabalho de 6 horas, em que marcaria uma sociedade verdadeiramente rica. Mészáros (2015) retoma essa defesa por Russel – anterior a Marx, que nesse momento tinha apenas 3 anos de idade na Alemanha – para

advertir que sem criticar radical e estruturalmente as relações sociais capitalistas, essa proposição entraria na fila das boas intenções, das quais a sabedoria popular ensina que o inferno está cheio. Como afirma Mészáros, “a ideia de fazer do tempo disponível o princípio orientador para a regulação da reprodução social implica a criação de uma ordem social radicalmente diferente” (MÉSZÁROS, 2015, p. 97). Essa tarefa histórica segue sendo o grande desafio de qualquer perspectiva emancipatória de nosso tempo, “[...] sem o qual o modo socialista de reprodução sociometabólica não poderia ser considerada historicamente sustentável” (MÉSZÁROS, 2015, p. 97). Até porque:

O aumento potencial da riqueza real por meio da adoção consciente do tempo disponível como regulador geral da produção – em contraste com o imperativo desumanizante da interminável acumulação do capital – e a imensa quantidade de tempo livre gerado pela utilização do tempo disponível quando o dia de trabalho é reduzido para seis horas, ou até mesmo consideravelmente menos do que isso, poderiam apenas funcionar como dinamite social, explodindo pelos ares o sistema do capital na ausência de atividade criativa humanamente significativa à disposição dos indivíduos (MÉSZÁROS, 2015, p. 98, grifo do autor).


O autor indica que a forma de organizar o trabalho social é integralmente incompatível com o sistema do capital. As razões da incompatibilidade ocorrem, de forma que: “a adoção do tempo disponível clama por uma determinação qualitativa do metabolismo social, no lugar da dominação fetichista da quantidade sob as condições de domínio do capital sobre a sociedade” (MÉSZÁROS, 2015, p. 98).

A organização coletiva daquilo que Mészáros chamou tanto de “objetivos produtivos genuinamente planejados da sociedade em geral” quanto das “metas autodeterminadas de realização da vida dos indivíduos particulares” (MÉSZÁROS, 2015, p. 98) só faz sentido se organizados sobre o princípio de igualdade substantiva, algo que a ordem burguesa não pode nem ouvir uma palavra. Tanto que Mészáros (2015) indica que mesmo nas fases e/ou conjunturas particulares nas quais alguma formação social em que tenha sido possível impor algumas funções corretivas necessárias da formação do Estado no capital, tal quadro – além da história revelar com milhares exemplos tanto sua duração episódica quanto sua expressa ligação umbilical com o avanço da exploração do trabalho e sócio ambiental in loco e/ou outra formação social – não consegue estar desvinculado das nuances estruturais que marcam e fundam as relações sociais burguesas.

Partindo dessa premissa, é necessária uma discussão a partir da delimitação de construção do campo em questão, como sugere a análise de Peixoto (2008). A autora analisou a apropriação e menções diretas à Marx e Engels em obras de Lazer brasileiras. Avaliou 65 autores, dentre os quais, 15 não apresentaram referência às fontes enquanto 50 apresentaram, sugerindo que “os autores que não fazem referência às obras lidas pronunciam-se negando a contribuição de Marx para a compreensão da problemática do lazer, com raríssimas referências a Engels.” (PEIXOTO, 2008, p. 90). A autora sugere ainda que:

[...] estudiosos do lazer que fazem referência a Marx e Engels sem referir-se a obras diretas por eles lidas escondem o profundo desconhecimento quanto: (1) à obra original de Marx e Engels; (2) às matrizes históricas e filosóficas que sustentam essa obra; (3) ao contexto histórico, econômico e político em que ela é elaborada; e (4) aos seus desdobramentos [...] (PEIXOTO, 2008, p. 97).


Em seu estudo, Peixoto (2008), ao analisar as características da apropriação sem referências às obras lidas, cita Marcellino por três vezes. Inicialmente destaca ser comum a contraposição entre Marx e seu genro Paul Lafargue – autor de O Direito à Preguiça. Decidimos trazer a passagem do texto de Marcellino (1995) indicada por Peixoto (2008) para dar materialidade à crítica da autora. Portanto, afirma Marcellino:

Embora o que se verifique atualmente seja a impossibilidade de referência ao marxismo como um pensamento unitário, pelas várias correntes que a denominação abriga, é certo que, em quase todas elas, ocorre a exaltação do trabalho. Seja como for, ironicamente, é o genro de Marx, Paul Lafargue, quem corajosamente elabora uma das primeiras sistematizações defendendo o lazer dos operários, em fins do século XIX, opondo-se não somente à mitificação do trabalho, como cerceamento da vida do trabalhador, mas também ao usufruto dos efeitos da exploração, pelos dominantes, também cerceados na sua vida em virtude das obrigações impostas pelo consumo. [...] As críticas ao lazer são dirigidas também pelos marxistas. Muito embora os pensadores dessa linha estejam divididos em duas correntes, uma privilegiando o trabalho e outra, o tempo fora do trabalho para a realização humana, uma vez que em Marx se encontram textos dos dois gêneros, predomina com muito peso a primeira corrente (MARCELLINO, 1995, p. 23, grifo nosso).


Posteriormente, Peixoto indica ser constante a menção por Marcellino de que Marx e os marxistas seriam críticos ao lazer e que privilegiassem o trabalho e suas péssimas condições. A passagem acima trazida de Marcellino (1995) nos obriga a

concordar com Peixoto (2008) sobre a pouca aproximação à textualidade marxiana e de seus comentadores. Por fim, é indicado que a “alusão a Marx e aos marxistas como difusores da exaltação e da mitificação do trabalho” (PEIXOTO, 2008, p. 96) está integralmente distante do manancial categorial dos fundadores da tradição marxista e marxiana.


Gramsci em “Lazer e Educação” de Nelson Carvalho Marcellino


Anterior à publicação de “Lazer e Educação”, Gramsci já figurava como uma referência importante para o conjunto de reflexões de Nelson Marcellino. Em 1983, o autor publica um texto intitulado Gramsci e a Revolução Cultural, em que defende ter “como pressuposições alguns conceitos fundamentais do pensamento gramsciano, como ‘hegemonía’, ‘bloco histórico’ e ‘intelectuais’ [...]” (MARCELLINO, 1983b, p. 33). Continua o autor indicando que:

[...] o pensamento de Gramsci não se mostra ultrapassado, mas atual e de grande contribuição para a análise dos componentes da chamada “indústria cultural”, da extinção de práticas culturais tradicionais, da invasão no campo dos costumes, ou, em síntese, para a reflexão sobre os efeitos da dominação cultural interna e externa de um povo. (MARCELLINO, 1983b, pp. 43-44).


A presença de Gramsci em sua caminhada nos anos 1980 não foi episódica. O texto que nos debruçamos, “Lazer e Educação” (1995), fruto de sua dissertação de mestrado defendida em 1984, tem como objetivo verificar as relações existentes entre o lazer, a escola e o processo educativo a fim de formular a pedagogia da animação como uma alternativa pedagógica, refletindo sobre o papel da escola, seja como instrumento, seja como objeto de educação no que toca ao lazer (MARCELLINO, 1995). O livro está dividido em: Prefácio; Introdução; quatro capítulos; Conclusão; e Bibliografia. Quanto às temáticas da Educação e do Lazer, o autor afirma o “valor da atuação no plano cultural, numa perspectiva ‘gramsciana’, como instrumento de mudança social [...]”. (MARCELLINO, 1995, p.16).

O primeiro capítulo é intitulado Dois temas polêmicos: duas fontes de mal-entendidos. Tem como objetivo “verificar as várias formas de entendimento do lazer e da educação; o enfoque dado a cada um dos temas pelos autores das áreas específicas [...].” (MARCELLINO, 1995, p. 17). Já o segundo, que tem como objetivo

“analisar o duplo aspecto educativo do lazer” (MARCELLINO, 1995, p. 17), com título similar a seu objetivo, conta com os tópicos: 1) O lazer como veículo de educação; e 2) O lazer como objeto de educação. Este conta com mais ênfase “na relação lazer e escola, em termos de conteúdo e de forma [...]” (MARCELLINO, 1995, p. 17). O quarto e último capítulo busca formular sugestões alternativas, estabelecendo elementos para a pedagogia da animação, como sugere Marcellino (1995). É intitulado Elementos para uma pedagogia da animação. É possível notar a primeira menção a Gramsci já na Introdução, quando traça as bases para o estudo, que são:

Na consideração do lazer como cultura vivenciada no “tempo disponível”, não em contraposição, mas em estreita ligação com o trabalho [...] combinando os aspectos tempo e atitude; no valor da atuação no plano cultural, numa perspectiva “gramsciana”, como instrumento de mudança social; e na crítica àvisão “funcionalista” do lazer, à concepção “utilitarista” da educação, à “desescolarização” e à visão “apocalíptica” da ação cultural. (MARCELLINO, 1995, p. 16, grifo nosso).


Marcellino opta, no início do texto, por adotar autores e textos para o seu estudo “sem preconceitos ideológicos” (MARCELLINO, 1995, p. 15) a fim de que tivesse a “necessidade de conhecer [...] as várias concepções, os diferentes valores atribuídos.” (MARCELLINO, 1995, p. 16).

É necessário, portanto, abordar a percepção do autor acerca da (suposta) existência de um plano cultural em Gramsci. Tal apropriação pode causar possíveis reflexões que culminem no tratamento de Gramsci como um marxista culturalista, isto é, alheio às relações sociais de produção da existência, em uma percepção desligada da totalidade ponderada por essa tradição.

Neste sentido, Wood (2003) ao abordar tal separação no marxismo, sugere que “depois de Marx, muitas vezes o marxismo perdeu de vista esse projeto teórico e seu caráter essencialmente político. Houve, em particular, uma tendência a perpetuar a rígida separação conceitual entre o ‘econômico’ e o ‘político’” (WOOD, 2003, p. 27). Essa iniciativa nos parece notória também em relação à obra gramsciana e, por tal motivo, vamos recorrer ao conceito de “Bloco Histórico” presente no Dicionário Gramsciano, organizado por Liguori e Voza (2017), em que, segundo Voza, “a noção de ‘bloco histórico’ [...] uma vez desenvolvida e repensada

por G., torna-se uma categoria fundamental do ‘pensamento em processo’ dos Q.” (VOZA, 2017, s.p.) e, sugerindo ainda que:

G. se vale também de seu conceito de bloco histórico na firme e recorrente crítica dos conceitos, considerados dogmáticos, de “homem em geral” e de “natureza humana”: “O homem deve ser concebido como um bloco histórico de elementos puramente subjetivos e individuais e de elementos de massa e objetivos ou materiais, com os quais o indivíduo está em relação ativa” (VOZA, 2017, s.p.).


Já o termo plano cultural não está em consonância com a obra de Gramsci. Cultura em Gramsci “seria inseparável da concepção de língua e de linguagem” (BARATTA, 2017, s.p.) nos Cadernos do Cárcere, de forma a ser apontado que:

“Cultura” nos Q é não apenas um tema muitíssimo amplo, com ramificações, adjetivações, especificações bastante variadas, mas também um conceito extremamente móvel e, por assim dizer, irrequieto, no sentido de que tende a transbordar para âmbitos categoriais diversos que, por outro lado, ao contato com ele, adquirem novo valor [...]. “Cultura” é concebida em primeiro lugar “como expressão da sociedade” [...], o que atualmente é uma noção de senso comum. Não o era no tempo de G., que nos Q. chega a tal ponto de vista tecendo uma rede categorial que confere nova roupagem à tradição marxista. (BARATTA, 2017, s.p.).


Assim, não há em Gramsci nem uma cultura abstraída das determinações que fundam as relações sociais capitalistas, bem como qualquer relação de sobredeterminação da dimensão político-cultural em relação a essas determinações. O marxismo de Gramsci permite situar a cultura, a economia e o político como componentes centrais que possam criar embates acerca das classes sociais fundamentais da ordem burguesa. Assim, o lazer como elemento do chamado campo cultural é entrecortado por determinações de diversas ordens e expressando os momentos das lutas entre as classes e as correlações de forças dos conflitos de cada tempo histórico. Isso não significa que esse chamado plano cultural seja a priori liberto dessas contradições fundantes. A menção ao embate das visões de mundo, a atuação política dos intelectuais orgânicos das classes sociais com vistas a difundir seus valores e projetos históricos, a atuação de uma ampla gama de aparelhos privados de hegemonia dessas classes sociais fundamentais, a necessidade de atuação pedagógica das classes subalternas para combater as visões de mundo burguesas em diversos âmbitos da vida social, seja no campo das

artes, da educação escolar e não-escolar, nas construções de hábitos populares não pode ser tomada como sendo parte de um “plano cultural”.

O conceito de bloco histórico acima indicado intenta justamente apontar para que não tomemos as separações entre economia, política e cultura como algo orgânico, mas sim apenas didáticas, como constantemente Gramsci alerta nos Cadernos. A dita determinação econômica há no sentido de representar um dos elementos centrais no tocante à implantação do projeto histórico da classe burguesa, realizado com base na exploração do trabalho, da separação do ser humano dos meios de produção e dos aparelhos de exercício do poder coletivo. Nesse caso, em que realmente existe uma determinação não do econômico, mas do projeto histórico burguês, que tem dimensões econômicas, culturais e políticas imbricadas. Somente considerando a imbricação e a articulação entre as dimensões políticas, econômicas e culturais das políticas sociais será possível uma visão das políticas sociais fiéis ao método marxiano, enriquecido pelas determinações gramscianas acerca do Estado e das lutas de classes em sociedade capitalistas ocidentais.

A elevação ou redução da metáfora base/superestrutura, em base explicativa da abordagem marxiana, causou um estrago tremendo no seio dessa tradição. Também desarmou das (assim justas) críticas de determinismo ou monocausalidades na explicação do real, ao afirmar a suposta “supremacia de uma esfera econômica independente de outras esferas passivamente subordinadas e reflexivas” (WOOD, 2003, p. 51).

Voltando ao texto, além da menção na Introdução, somente no sexto tópico do primeiro capítulo que Marcellino faz a sua primeira menção a Gramsci, ao tratar do tema Educação e Escola, sobretudo na educação assistemática que englobaria toda a relação pedagógica. Neste sentido, o autor entende


[...] a relação pedagógica de maneira ampla, tal como foi definida por Gramsci, que não a limita “às relações especificamente escolásticas”, mas a distingue “... em toda a sociedade no seu conjunto e em todo o indivíduo com relação aos outros indivíduos, bem como entre camadas intelectuais e não intelectuais, entre governantes e governados, entre elites e seguidores, entre dirigentes e dirigidos, entre vanguardas e corpos do exército. Toda relação de ‘hegemonia’ é necessariamente uma relação pedagógica. (MARCELLINO, 1995, p. 43).

Cabe voltar a essa passagem de Gramsci nos Cadernos para podermos aprofundar e cotejar com a interpretação de Marcellino. Gramsci (2001) lembra que toda relação de hegemonia é uma relação pedagógica, a partir do consenso ativo obtido do conjunto da população, ou pelo menos de uma maioria significativa, sendo este consenso sempre provisório, demandando estratégias permanentes de conquista e/ou manutenção. O marxista italiano defende ser preciso não limitar o termo pedagógico às relações escolares, mas o amplia a todas as relações entre e intraclasses sociais, uma vez que


[...] esta relação existe em toda a sociedade no seu conjunto e em todo indivíduo com relação aos outros indivíduos, entre camadas intelectuais e não intelectuais, entre governantes e governados, entre elites e seguidores, entre dirigentes e dirigidos, entre vanguarda e corpos de exército (GRAMSCI, 2001, p. 399).


Assim, todo Estado procura criar, difundir e manter formas específicas de sociabilidade conforme o projeto societário do bloco no poder, assumindo uma função claramente educativa. Esse projeto educativo tem por objetivo, então, “[...] adequar a ‘civilização’ e a moralidade das mais amplas massas populares às necessidades do aparelho econômico de produção e, portanto, de elaborar também fisicamente tipos novos de humanidade” (GRAMSCI, 2000, p. 23). Com isso, “[...] o Estado deve ser concebido como ‘educador’ na medida em que tende precisamente a criar um novo tipo ou nível de civilização” (GRAMSCI, 2000, p. 28). A ação estatal na dominação burguesa vai muito além de qualquer entendimento unicamente repressivo-encobridor dos fundamentos que regem essa sociedade.

Nessa direção, o marxismo de Gramsci nos remete ao entendimento de que o próprio lazer é parte desse embate de visões de mundo com vistas a obtenção do consenso ativo das massas aos projetos históricos das classes sociais fundamentais em luta. Não por acaso, o marxista sardo propunha uma ação política dos de baixo em educarem-se política e culturalmente com vistas ao que chamava de elevação cultural das massas. Seus estudos do teatro, literatura e outras formas de diversão popular eram parte da tarefa ético-política de embate às concepções de mundo burguesas no conjunto da vida social, aí incluso o tempo livre. A ampliação da escolarização também deveria ter um papel central nesse processo de elevação cultural das massas. A escola unitária, de acesso livre, gratuito e universal, era vista

por Gramsci como um dos elementos centrais na emancipação das classes populares.

Lembremos, todavia, que a Itália de Gramsci nos anos 1920 ainda era um país com escolaridade restrita e com industrialização e urbanização menos avançada em relação a outros países europeus. Deste modo, quando Marcellino (1995), em seu texto de 1987 (1ª edição do livro “Lazer e Educação”) traz as menções ao lazer no embate da batalha de visões de mundo e na ampliação da educação à escolarização, cumpre relevante papel de difusor dessa tradição no âmbito dos estudos do lazer.

Em nota de rodapé, contudo, Marcellino aponta para uma abordagem mais detida em seu artigo “Gramsci e a revolução cultural” (1983b). Nesse importante texto, que curiosamente não aparece muito na bibliografia do autor em outros momentos, existe um mergulho na obra gramsciana com vistas a abordar as contribuições do pensador sardo ao que chama de Revolução Cultural. Para tanto, o autor chama “a atenção para as dificuldades de síntese de um tema tão amplo e difuso na produção de Gramsci” (MARCELLINO, 1983b, p. 33) o que, de certa forma, poderá contribuir para que atinjamos algumas das prerrogativas básicas para o nosso estudo. Inicialmente, no estudo, Marcellino aponta para duas questões: “Gramsci [...] como o grande responsável pelo resgate do valor do plano cultural” (MARCELLINO, 1983b, p. 34), além da importância de “uma reforma intelectual e moral, ou, em outras palavras, uma Revolução Cultural” (MARCELLINO, 1983b, p. 34). A adoção da expressão “plano cultural” na análise gramsciana não é isenta de contradições, tendo o próprio Marcellino alertado às possibilidades de incutir numa abordagem que dissocie o valor cultural/político e o econômico nas abordagens marxiana e marxistas. Mais expressamente afirma:

Entretanto, o resgate do plano cultural, não significa o abandono dos planos econômico e político, como frentes merecedoras de análise de ação. Ao questionar as possibilidades da elevação civil das camadas mais baixas da sociedade, através de uma reforma cultural, sem que seja precedida por uma reforma econômica Gramsci não desvincula uma esfera da outra. (MARCELLINO, 1983b, p. 35).


Voltando-se a alguns dos conceitos gramscianos importantes trazidos por Marcellino, nos é apresentada uma “reforma intelectual e moral necessária para o estabelecimento de sua hegemonia enquanto classe” (MARCELLINO, 1983b, p. 34)

de forma que para ele, “entre os intelectuais e os ‘simples’ deve haver a mesma unidade que entre teoria e prática, ou seja, o contato entre ambos é fundamental, pois nessa interação encontra-se a base para a nova cultura” (MARCELLINO, 1983b, pp. 34-35). Entendemos que essa menção de Marcellino acerca da relação entre lazer e hegemonia, como expressão de uma reforma intelectual e moral para elevação dos níveis de entendimento da realidade por parte dos mais simples e amalgamento e quebra de cisão entre intelectuais e massa, deve ser tomado como ponto importante quanto à apropriação gramsciana pelo autor.

Posteriormente, Marcellino (1995) cita o conceito de hegemonia através de Saviani, já na obra que nos propusemos a conferir mais centralidade. Desta forma, identifica-se que “se a Escola é um instrumento de hegemonia, nós não podemos descurar [...] deste instrumento, uma vez que descurar dele seria deixá-lo ao uso exclusivo da classe dominante” (SAVIANI citado por MARCELLINO, 1995, p. 47). Já no final do último tópico, Marcellino (1995) retorna a essa citação para tratar também do lazer como instrumento de hegemonia, refletindo quanto ao processo de descurar do lazer como campo de intervenção pedagógica. Marcellino (1995) termina o tópico, dessa forma, com uma pequena reflexão acerca de um possível olhar enviesado do processo educativo, que de certa forma não estivesse levando em consideração as relações pedagógicas estabelecidas na escola enquanto hegemônicas, em uma evidente preocupação “com a difusão dos meios de comunicação de massa e sua utilização, como elemento de controle das amplas camadas populares” (MARCELLINO, 1995, p. 48). Visto isso, já ao final do capítulo, Marcellino retorna à citação de Saviani para uma reflexão:

Se o Lazer como a escola é um instrumento de hegemonia, e se como já foi colocado anteriormente – recorrendo-se a Saviani – não se pode descurar da escola se se pretende mudanças radicais no “status quo”, pode-se então descurar do lazer como campo de intervenção pedagógica? (MARCELLINO, 1995, p. 55).


Os processos de educação política para o consenso em torno de uma visão de mundo não problematizadora da realidade social e reificadora de aspectos de baixo ou nenhum impacto nas condições concretas de vida de imensa parcela população é obra de diversas instituições nas sociedades capitalistas ocidentais. Nessas, em que a sociedade civil se torna uma instância determinante da luta política entre as classes sociais, por meio da atuação dos aparelhos privados de

hegemonia das diversas classes e frações de classe, ocorrem embates constantes de forma a atingir um maior contingente populacional para defender visões de mundo. A luta política, tanto para dominação como para contestação, articula formas coercitivas com a busca pelo consenso (GRAMSCI, 2001).

Tal como o conceito de intelectuais, o conceito de hegemonia passou por alguns equívocos e más interpretações nas tentativas de reduzi-lo. Dessa forma, é apontado que:


No que diz respeito ao significado que deve ser atribuído a “hegemonia”, desde o início [...], G. oscila entre um sentido mais restrito de “direção” em oposição a “domínio”, e um mais amplo e compreensivo de ambos (direção mais domínio). (COSPITO, 2017, s.p.).


O autor aponta também para uma perspectiva que já vem sendo debatida neste texto, quanto a questão da totalidade dos conceitos gramscianos e, por isso, afirma:

Hegemonia cultural [...] não se deve contrapor à política, como testemunha o uso de expressões como “hegemonia político-cultural”, “político-intelectual”, “intelectual, moral e política” e similares, além da tese pela qual “a filosofia da práxis concebe a realidade das relações humanas de conhecimento como elemento de ‘hegemonia’ política” [...] (COSPITO, 2017, s.p.).


Voltando ao potencial educativo do lazer, neste mesmo capítulo, Marcellino aponta que:

[...] só tem sentido se falar em aspectos educativos do lazer, se esse for considerado [...] como um dos possíveis canais de atuação no plano cultural, tendo em vista contribuir para uma nova ordem moral e intelectual, favorecedora de mudanças no plano social. Em outras palavras: só tem sentido se falar em aspectos educativos do lazer, ao considerá-lo como um dos campos possíveis de contra-hegemonia. (MARCELLINO, 1995, p. 64).

A busca por transformações, ponderada por Marcellino, parece conversar com a Revolução Cultural atribuída à Antonio Gramsci pelo mesmo autor. Isso pode ser notado por conta da seguinte reflexão de Marcellino (1995), em que opta por citar o marxista italiano:


Como nos lembra Gramsci “[...] o campo da luta pela criação de uma nova civilização é absolutamente misterioso, totalmente

caracterizado pelo imprevisível e pelo imprevisto [...]. Nesse campo só é possível prever uma hipótese geral: haverá uma cultura (uma civilização) proletária, totalmente diferente de uma cultura burguesa. Haverá uma poesia, um romance, um teatro, costumes, uma língua, uma pintura, uma música – características da civilização proletária, floração e ornamento dessa nova organização social. Que nos resta fazer? Nada, além de destruir a forma presente de civilização. (MARCELLINO, 1995, p. 144).


O autor parece querer concretizar a sua ideia de Revolução Cultural, portanto, como meio para chegar à “pedagogia da animação” – seu objeto de estudo – através de perspectivas da cultura popular e folclore, a serem discutidas posteriormente, tendo os intelectuais orgânicos como executores desse processo. Para ele, portanto:

[...] a “pedagogia da animação” é uma pedagogia do movimento; do movimento desencadeado junto aos “simples”, com eles, a partir de sua vivência; e os intelectuais, organicamente ligados ao processo, para desempenharem seu papel pedagógico, precisam mergulhar – na feliz expressão de Gramsci – no “humus” da cultura popular, expressão essa que caracteriza a grande contradição: é o próprio produto decomposto das bases populares – o folclore –, amalgamado com detritos da ideologia dominante e com os restos da cultura erudita, que constitui a fonte geradora, de onde deverá germinar a “Revolução Cultural”. (MARCELLINO, 1995, pp. 146-147).


As três citações acima de Marcellino (1995) indicavam uma preocupação expressa com a tarefa de elevação cultural das massas e/ou ampliação da visão de mundo e combate de uma concepção folclórica. A menção à Gramsci foi um caminho que permitiu associar lazer ao projeto educativo de emancipação e educação política da classe trabalhadora.

A unidade de distinção entre força e consenso compõe elementos determinantes das lutas entre as classes sociais fundamentais tanto na aparelhagem estatal como mediante organismos na sociedade civil (os aparelhos privados de hegemonia). Tanto que Gramsci (2000) fala explicitamente de ambos – sociedade política e sociedade civil – como dois grandes planos superestruturais. Uma leitura apressada poderia inferir daí que o pensador sardo os concebe como autônomo e sem determinação da produção social da vida. Novamente essa posição é fartamente contradita ao longo dos Cadernos do Cárcere, tendo Gramsci um papel de continuador da trilha aberta por Marx, Engels e Lenin. O Estado ampliado para Gramsci não possui uma autonomia das relações sociais de produção da existência, mas parte central do conjunto de determinação do sistema social globalizante e totalizante que é o capitalismo. Como afirma o autor dos Cadernos do Cárcere:

“certamente o Estado não produziu ut sic a situação econômica, mas é a expressão da situação econômica; todavia, pode-se falar do Estado como agente econômico precisamente enquanto o Estado é sinônimo de tal situação” (GRAMSCI, 2001, p. 379).

Visto isso, Marcellino, já pensando no processo de “reconstrução” – alusão ao sub-título: “Destruição” e “reconstrução” – aponta para a necessidade da aprendizagem – tal como da recuperação de sentido –da cultura popular, que para o autor deve se basear na perspectiva gramsciana:


O conceito de cultura popular de Gramsci não é populista, pois não se verifica uma imposição de modelos, nem conformista, pois supõe a crítica da base popular – o folclore. Este deve ser visto “... como ‘concepção do mundo e da vida’, em grande medida implícita, de determinados estratos (determinados no tempo e no espaço) da sociedade, em contraposição (também no mais das vezes implícita, mecânica, objetiva) com as concepções do mundo ‘oficiais’ (ou, em sentido mais amplo, das partes cultas das sociedades historicamente determinadas), que se sucederam no desenvolvimento histórico”. Essa “concepção do mundo e da vida” é dinâmica, recebendo continuamente novos elementos, no mais das vezes desfigurados, de noções científicas e opiniões externas ao seu contexto. Assim, “o folclore não deve ser concebido como algo bizarro, mas como algo muito sério e que deve ser levado a sério”. O papel do intelectual com relação ao folclore, é manter uma postura crítica. (MARCELLINO, 1995, p. 146).


O conceito de Revolução Cultural para Marcellino, embora seja dotado de sentido e significações em sua militância pela consolidação do campo do lazer, parece utilizar, portanto, de uma revolução não discutida por Gramsci.

O marxista, que utiliza do conceito de revolução em diferentes formas, dentre elas a passiva e a permanente, além do par revolução-restauração, traz consigo algumas mudanças de percepções, sobretudo com a derrota do movimento operário em 1920, além da sua consciência quanto a diferenças importantes entre o Ocidente e o Oriente e sua condição carcerária – onde não podia usar o termo revolução e passa a utilizar conceitos como “guerra de posição” ou “trincheiras, fortalezas e casamatas”, por exemplo (LA PORTA, 2017). Portanto, é compreensível que:


O conceito de revolução em G. se desenvolve, por um lado, com base na consciência da importância da produção capitalista e da grande indústria para a sociedade moderna, da qual deriva a centralidade do papel da classe operária na revolução e, por outro lado, com base no destaque da subjetividade operária como mola da

revolução, que tem como objetivo a transformação do assalariado em produtor. (LA PORTA, 2017, s.p.).


Nota-se, portanto, que a “Revolução Cultural” de Marcellino, passa pela apropriação de alguns dos conceitos já debatidos, mas se dá, sobretudo, por uma ampla utilização da cultura popular e do folclore na escola para a sua pedagogia da animação e é por isso que Marcellino (1995) passa a entender a escola como um “centro de cultura popular”, tendo suas tarefas educativas baseadas em termos de conteúdo, forma, abrangência, espaço, elementos humanos e materiais, e atuando nos planos cultural e social, buscando, sobretudo, a valorização da cultura popular.


Considerações finais


A educação, em sentido amplo, como educação política e, em sentido estrito, como educação escolar, tem como finalidade majoritária reproduzir os fundamentos e as práticas culturais inerentes às relações de dominação. Entretanto, dependendo da correlação das forças sociais, poderá se constituir também em estratégia de construção da emancipação humana das relações de exploração e de dominação historicamente construídas, oferecendo elementos para a construção de uma cultura emancipadora na qual, pela consciência da dominação, possa construir um novo modo de existência.

A difusão de visões de mundo e a batalha no campo das ideias são partes essenciais dos processos educativos. Considerando que esses elementos ocorrem em todas as instâncias da vida social, não é de estranhar que o lazer (e todo seu entorno) ocupe papel de relevo na luta política contemporânea. A batalha por difundir visões de mundo em que não haja espaços para problematização da realidade social não renuncia às vivências de lazer.

Neste estudo, ao analisar o livro “Lazer e Educação” (1995), de Nelson Carvalho Marcellino (1995), foi possível encontrar diversas menções ao marxista italiano Antonio Gramsci – tal como a alguns conceitos discutidos pelo autor – tendo em vista a base de estudos definida por Marcellino, ainda na introdução de seu escrito. Entretanto, algumas de suas apropriações parecem não ser necessariamente fiéis à letra do texto gramsciano e menos ainda ao seu projeto político, tendo aparecido através de conceitos pouco aprofundados ou com

significados modificados, como é o caso de revolução cultural, cultura, intelectuais, hegemonia etc.

Foi notado também, apesar de reflexões que poderiam vir a contribuir para a consolidação da presença mais sistemática de Gramsci nos Estudos do Lazer, um afastamento que teria no pensamento gramsciano um instrumento de transformação social. Nesse sentido, é extremamente importante a percepção de que a utilização de pensamentos e conceitos marxistas – que, nesse caso tratamos como gramscianos – não torna quaisquer das análises que sejam feitas em verdades incontestáveis.

Precisamos levar em consideração o ainda estado embrionário dos Estudos do Lazer naquele momento, juntamente a um então ineditismo e relevância do autor que escreveu esta e outras obras essenciais – e clássicas – que contribuíram para a solidificação do campo que temos em vista atualmente. Assim, menos que julgamento atemporal e intelectualmente desonesto, da apropriação de Gramsci por Marcellino em um texto fruto de dissertação de mestrado do autor, importa-nos apreender como o Gramsci de Marcellino cumpriu um papel muito relevante na popularização do marxista italiano no campo da Educação Física/Estudos do Lazer, ainda que essa contribuição não seja isenta de contradições e limitações da leitura gramsciana pelo relevante autor do campo do lazer.

A despeito da presença de Gramsci no texto “Lazer e Educação”, deverá ser necessária uma análise mais aprofundada acerca do desenvolvimento da obra de Marcellino, de forma a notar uma presença que vai ficando rarefeita e até mesmo antagônica ao projeto gramsciano. Tendo tido o autor uma relevante produção teórica, além de diversas orientações de trabalhos, atuação em consultorias a governos e organismos privados, outros estudos parecem ser indispensáveis, tendo em vista a já consolidada construção dos Estudos do Lazer no Brasil que, como já discutido, não pode negar a contribuição do autor e de suas primeiras aproximações ao marxismo.


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V.22, no 47, 2024 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799X


CONTABILIDADE POPULAR: DIÁLOGOS INSURGENTES DE UMA

CONSTRUÇÃO EM REDE [Anna Carla Ferreira Silva; Bárbara Luandy Freitas de Souza; Flávia Almeida Pita; Maria Luiza D. A. Barbosa

Matheus Sehn Korting, orgs.]1


Ana Paula dos Santos de Oliveira2 Sidélia Luíza de Paula Silva3



1 Resenha recebida em 17/01/2024. Aprovada pelos editores em 22/01/2024. Publicada em 22/02/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.61459

2 Mestra em Direitos Humanos e Democracia pelo Programa de Pós-graduação em Direitos da Universidade Federal do Paraná (PPGD-UFPR), Paraná - Brasil. Advogada atuante junto à Rede Nacional de Advogados Populares (RENAP). Email: anasoliveira.juridico@gmail.com.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/4618674194809933. ORCID: https://orcid.org/0009-0005-0525-0193.

3 Mestra em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), São Paulo - Brasil, na área de Política Pública e Desenvolvimento. Email: sidelialuiza@gmail.com.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/2637191918328163. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5354-2511.

Com o presente texto apresenta-se a resenha do livro Contabilidade Popular: Diálogos Insurgentes de uma Construção em Rede, publicado em 2023, pela Editora Capina, e organizado Anna Carla Ferreira Silva, Bárbara Luandy Freitas de Souza, Flávia Almeida Pita, Maria Luiza D. A. Barbosa, Matheus Sehn Korting, consistindo em um conjunto de seis artigos que contrastam práticas e técnicas populares e acadêmicas relacionadas à sistematização do curso "Contabilidade Popular: Desmistificando o Universo do 'Contabiliquês'”, realizado em 2021 pela Capina - Cooperação e Apoio a Projetos de Inspiração Alternativa.

Os textos buscam sistematizar o processo do curso e refletir sobre seu conteúdo, com destaque para o resultado que culminou na consolidação da Rede Contar, articulação multiprofissional e interdisciplinar que reúne profissionais envolvidos com assessoria para iniciativas populares em todo o Brasil.

A coletânea de textos busca enriquecer o diálogo sobre questões técnicas e populares, visando contribuir para aprimorar a atuação das assessorias profissionais (contábil, jurídica, de gestão, educação popular etc.) ao mesmo tempo em que instrumentaliza as iniciativas com informações relevantes, com a finalidade de promover um diálogo mais efetivo entre todos os envolvidos.

O prefácio da obra, assinado pelo Professor José Raimundo Oliveira Lima (Incubadora de Iniciativas de Economia Popular e Solidária da Universidade Estadual de Feira de Santana, Bahia), enfatiza a importância da publicação para as Ciências Contábeis e assessorias que lidam com iniciativas populares. Destaca-se a relevância desse conteúdo para os processos normativos e legislativos do Estado. Ressalta também os desafios em abordar questões estruturais e na relação entre profissionais e iniciativas populares, reconhecendo a complexidade nas interações entre profissionais e usuários.

No primeiro artigo, O que é contabilidade popular e de que contabilidade e para quem estamos falando? os(as) autores(as) Anna Carla Ferreira, Bárbara Luandy Freitas de Souza, Maria Luiza D. A. Barbosa e Matheus Sehn Korting conceituam a contabilidade popular e destacam a necessidade de diálogo entre iniciativas populares e assessorias. A educação popular é identificada como a espinha dorsal para se pensar uma contabilidade popular, intrinsecamente ligada aos processos formativos, educativos e ao diálogo entre iniciativas populares e

assessorias dessa área, por vezes, contratados ocasionalmente como consultores pontuais.

Embora a sustentação da educação popular e estrutura pedagógica seja utilizada para viabilizar os processos formativos nessa área, é nítido que uma pedagogia que atenda os processos de aprendizagem da gestão democrática, ainda está em construção, sem uma “receita de bolo”, mas com experiências e intercâmbios importantes.

Nesse sentido, a metodologia campesino-a-campesino, assim como a pedagogia da alternância são processos pedagógicos dos campos populares e igualmente importantes, tanto para as iniciativas populares quanto para profissionais em seus processos de aprendizagem. É fundamental considerar esses aspectos e como podem potencializar uma contabilidade que atenda às iniciativas populares vinculadas à economia solidária e autogestão de iniciativas populares.

Além da formação, nessa interação entre assessores e iniciativas, percebe-se que a contabilidade, mesmo com a finalidade de atender às empresas, têm se adaptado a partir da reflexão sobre formalização pelas iniciativas populares, que perpassa pelo apoio de uma assessoria engajada que apresente as vantagens, desvantagens e a sustentabilidade dessa formalização de acordo com a dinâmica do grupo e suas sazonalidades, de maneira que seja garantida a sustentabilidade mínima em relação à gestão da iniciativa.

Outro desafio é estabelecer um marco de regime contábil e jurídico que seja abrangente e consiga atender à maioria das iniciativas, levando em conta as especificidades em diferentes contextos (espaço urbano, rural, quantidade de pessoas, natureza do serviço). Pontua-se as dificuldades para o avanço na tramitação de projetos de lei sobre os Empreendimentos Econômicos Solidários, que não avançou, assim como a importância desta regulamentação, que poderia facilitar a gestão administrativa, jurídica e contábil das iniciativas, aproximando a norma de sua efetiva realidade. O destaque desse texto de abertura é trazer os principais desafios de ambos os lados, tanto dos profissionais envolvidos quanto das iniciativas populares, mostrando como a contabilidade popular não apenas opera, mas também reflete sobre sua atuação.

O segundo artigo, Conversações sobre gestão democrática e educação popular, de Katia Faria de Aguiar e Matheus Sehn Korting, revela a organização do

curso realizado pela Capina, de forma virtual, entre março e julho de 2021, e os esforços pedagógicos para integrar saberes de iniciativas populares, assessorias e profissionais das Ciências Sociais aplicadas. Destaca-se a integração de conhecimentos como catalisador para a economia solidária e popular.

A interação entre análise teórico crítica, com a experiência prática do curso, possibilitou no decorrer do texto, um olhar atento e direcionado para questões cotidianas muito práticas de quem atua diretamente com vivências e processos organizativos da economia popular, na direção de tecer um possível caminho para a seguinte indagação: “como seria uma contabilidade popular [...] com menor distância entre aqueles que calculam, que detêm os saberes validados nos campos científicos universitários, e aqueles que produzem, as/os trabalhadoras/es e suas outras formas de conhecimento” (AGUIAR; KORTING, 2023, p. 18).

Os três artigos seguintes oferecem uma análise crítica das normativas e legislações, servindo como guia para empreendimentos populares e profissionais. Abordam questões estruturais do capitalismo, destacando a formalização e reprodução desigual da força de trabalho, ressaltando a necessidade de compreender as nuances do trabalho informal.

O texto Formatos institucionais das iniciativas de economia popular no Brasil, de Flávia Almeida Pita, traça seu fio condutor a partir de uma análise que ao mesmo tempo se propõe crítica e também informativa. Crítica porque considera que os formatos jurídicos disponíveis para a formalização de coletivos de trabalho popular resultam de uma deliberada estratégia de imposição, de cima para baixo, de modelos que interessam ao capital e são marcados pela colonialidade do poder (QUIJANO, 1992), desconsiderando a realidade majoritária de trabalhadores e trabalhadoras que jamais foram, como intuiu Francisco de Oliveira já nos anos 1970, “apenas depósito do ‘exército industrial de reserva’”, mas parte importante do “processo da acumulação global e da expansão capitalista e, por seu lado, reforçam a tendência à concentração de renda” (2013, p. 58). Nesse contexto, a reflexão crítica busca olhar para o sentido e a lógica da institucionalização das iniciativas de economia popular. Informativa, porque possibilita olhar para as opções existentes para essa formalização (sobretudo associações e cooperativas), trazendo elementos que podem auxiliar na definição, sempre artesanal, dos caminhos a serem escolhidos pelas iniciativas.

O quarto artigo, Incidência tributária: informações básicas voltadas às iniciativas da economia popular e solidária, de Caio Toledo, Luis Roberto Carrazza e Maria Luíza D. A. Barbosa, detalha as formas mais comuns de incidência tributária, fornecendo informações básicas e orientações para iniciativas de economia popular. Em linhas gerais, o texto busca apresentar, ainda que introdutoriamente, o conjunto de tributos municipais, estaduais e federais que incidem nas operações de comercialização, os regimes de tributação, bem como, a sua incidência em casos específicos de associações e cooperativas, e microempreendedor individual.

No quinto trabalho da obra, intitulado Demonstrações contábeis: registros contábeis para entidades sem finalidade de lucro, as autoras Ana Cândida da Silva Gomes e Bárbara Luandy Freitas de Souza trazem uma revisão da temática, levando em conta a sua importância na tomada de decisão e operacionalidade das organizações cotidianamente, destacando os desafios decorrentes da ausência de norma própria que aborde os procedimentos contábeis aplicáveis às entidade sem fins lucrativos, e as dificuldades na relação entre iniciativas populares e solidárias e assessorias, ressaltando a importância da gestão participativa.

O último texto, Rede Contar – por uma contabilidade popular, de autoria do coletivo da Rede Contar, encerra a obra com uma apresentação da Rede, esclarecendo sobre a história de sua criação, seus objetivos, ações que já vem sendo realizadas (a exemplo das “Conversa-ações”, encontros virtuais para troca de experiências e discussões em torno de temas centrais para as iniciativas econômicas populares). Ressalta-se, ainda, o desafio futuro de influenciar normativas e políticas públicas para beneficiar efetivamente as iniciativas populares.

Em síntese, Contabilidade Popular: diálogos insurgentes de uma construção em rede oferece uma visão abrangente e reflexiva sobre a contabilidade aplicada a iniciativas populares, destacando a importância da educação popular, gestão democrática e apontando desafios presentes e futuros para profissionais e empreendimentos envolvidos nesse contexto. O universo das iniciativas populares e solidárias, é amplo, rico e complexo, e não poderia ser diferente, pois é fruto de contextos e organizações coletivas diversas.

O trabalho dá conta de nos mostrar, com muita sensibilidade, que pensar e traçar elaborações a respeito de uma outra contabilidade, requer um posicionamento crítico, comprometido e atencioso à realidade e à prática de quem já faz ser possível

essa construção. No campo da tributação, o trabalho levanta questões muito centrais, especialmente, sobre a necessidade de se pensar um novo modelo, mais adequado às especificidades dos grupos e da economia popular e solidária. Ainda, no contexto da institucionalização das iniciativas, a importância da formação e emancipação política e crítica dos sujeitos envolvidos, para decidirem sobre a formalização dos vínculos, não apenas embasados na imposição externa, mas como resultado da construção conjunta dos envolvidos.

A obra se destaca como um guia fundamental para estudiosos, profissionais que atuam ou têm interesse na área, e sobretudo para as trabalhadoras e trabalhadores que buscam compreender e contribuir para o desenvolvimento da contabilidade popular no cenário brasileiro.


Referências


OLIVEIRA, F. de. Crítica à razão dualista. O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2013.

QUIJANO, A. Colonialidad y Modernidad-Racionalidad. In: BONILLA, Heraclio (org.). Los conquistados: 1492 y la población indígena da las Américas. Santafé de Bogotá, Colombia: Tercer Mundo; Ecuador: FLACSO: Libri Mundi, 1992, p. 437-447.

V.22, no 47, 2024 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799X


PODER COMUNAL E EDUCAÇÃO POPULAR NA AMÉRICA LATINA: ENTREVISTA COM CLAUDIO NASCIMENTO1


Maria Clara Bueno Fischer2



Claudio Nascimento é educador popular e profundo estudioso das experiências e teorizações sobre autogestão em nível internacional. Nesta entrevista ele nos traz uma arguta e rica contribuição para pensarmos o poder comunal e suas imbricações com os movimentos sociais e os processos de educação popular em Nuestra América. À contribuição de Paul Singer o entrevistado dá especial destaque.

1 Entrevista recebida em 08/01/2024. Aprovada pelos editores em 10/01/2024. Publicado em 22/02/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.61372

2 Doutora em Educação pela Universidade de University of Nottingham, Inglaterra. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadora CNPq. E-mail: clara.fischer@ufrgs.br.

Lattes: https://lattes.cnpq.br/3835786000876089. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2289-5282.

Seus argumentos são entremeados de um diálogo denso com diversos outros estudiosos que têm se dedicado a analisar as lutas dos povos latino-americanos. Além de realizar suas profícuas análises, oferece, generosamente, ao leitor e à leitora uma lista de referências bibliográficas acerca dos conteúdos abordados na entrevista. Convidamos a leitora e o leitor a “entrar” no diálogo proposto nesta entrevista, deixando-se informar e problematizar tema tão instigante como o da construção do poder comunal na América Latina.


Maria Clara: Como você analisa os movimentos populares em “Nuestra América”? Como os inserir em ciclos históricos? Quais seus momentos fundantes?


Cláudio: Em primeiro lugar, em se tratando da complexidade que é Nuestra América, vamos tentar “um tour de force” para apresentar uma síntese; em segundo, os temas abordados podem ser aprofundados em obras que estão nas referências bibliográficas.

Emir Sader (2009), em livro instigante em que analisa os ciclos das esquerdas na América Latina, afirma que “Novamente um começo de século surpreendente na América Latina (...). O continente onde o neoliberalismo nasceu - no Chile e na Bolívia – ainda mais se estendeu e encontrou um território privilegiado, tornou-se, em pouco tempo, o espaço de maior resistência e construção de alternativas a esse mesmo neoliberalismo: justamente por ter sido laboratório das experiências neoliberais, a América Latina viveu a ressaca dessas experiências, tornando-se o elo mais fraco da cadeia neoliberal. A que corresponde essa mudança tão radical, que o continente jamais viveu em prazo tão curto, em toda a sua história.

Vamos tentar responder à questão posta por Emir Sader, mas com uma outra visão dos ciclos históricos.

Nuestra América se tornou palco principal das lutas sociais e políticas com sentido ‘além do capital’ a partir da mutação territorial que ocorreu no início dos anos 90 em escala mundial.

A nova etapa do capital-imperialismo com base na ‘acumulação por despossesão” (HARVEY, 2003) é a base fundamental da ideologia neoliberal que se instalou em nosso continente e no mundo a partir da experiencia chilena iniciada com o golpe fascista no Chile ocorrido em 1973.

Esse novo ciclo de lutas traz características fundamentais: os instrumentos de participação popular (democracia direta), a refundação do Estado (comunal), a pluralidade das formas de propriedade (destacando o trabalho associado-autogestionário) e, também, uma ressignificação dos modos de vida (subjetividades, cultura), que Mariátegui chamava de ‘reencantamento da vida’. Neste último ponto destacam-se as novas subjetividades e sujeitos: raça, gênero, juventude, cultura e ecologia. Uma nova conjuntura, portanto, para o ecosocialismo, o feminismo comunal e mesmo para as ideias libertárias.

Essas lutas com conteúdo autogestionário-comunal são parte das lutas dos povos em nível mundial e tem uma longa história. Podemos dizer que o último ciclo dessas lutas se deu na Polônia em 1980-81 com a fundação do sindicato livre Solidarnosc, mas sobretudo com a criação da “Rede Autogestionária” abarcando as 3000 maiores empresas do país. Foi a última luta em que a classe operária industrial teve a centralidade no processo de transformação social.

O congresso de Solidarnosc, com milhares de pessoas, construiu a ideia de uma “República Autogestionária” para a Polônia. De certo modo um tipo de “Estado Comunal” com base em diversos conselhos (sobretudo de trabalhadores) e na democracia direta. Essa reivindicação vinha das lutas dos trabalhadores e populares desde as rebeliões no Leste europeu em 1953, 1956 e 1968. A Polônia tornou-se o ‘elo fraco’ do sistema de socialismo burocrático no Leste, com greves e rebeliões desde 1956,1968,1970 e 1977. Atingiu seu ápice em 1980 (Solidarnosc), atingindo todo o sistema sob hegemonia da Rússia.

Do olhar de uma ‘onda de longa duração’ (Braudel, 2019) é um fenômeno sociopolítico e cultural que tem suas origens na Comuna de Paris (1871) e nas ondas que seguiram com a revolução soviética (1917), com a fundação dos Soviets (Conselhos diversos). Entre a Comuna de Paris e os Soviets na Rússia já ocorreu uma mutação territorial: da Europa para o Oriente. Podemos mesmo falar de um ciclo da Comuna de Paris (1871) à Comuna de Gdansk (1980).

Nesses ciclos destacamos a existência da experiência de “sociedade autorregulada” (GRAMSCI, 2002), do socialismo autogestionário que existiu na Iugoslávia de 1950 até os anos 70. Vários ciclos ocorreram desse tipo de lutas pela autogestão desde a revolução libertária na Espanha (1936-39) e, no pós-guerra na Europa nos países do ‘capitalismo desenvolvido’, na Itália e na França em 1968-1976-77 e, em Portugal, a “revolução dos cravos” de 1974.

Na África destaca-se a “revolução Argelina” (1965). Na Ásia a “revolução chinesa” (1949) e, na América Latina, a “revolução cubana” (1959) e a ‘revolução sandinista’ (1979).

Em Nuestra América houve muitas lutas com características similares: a revolução mexicana (a Comuna zapatista de Morelos de 2011), a revolução de 1952 na Bolívia, a experiencia no Peru de Alvarado (1968), tendo seu ápice na experiência chilena da “Frente popular” do governo Salvador Allende (1970-1973).

Numa escala mais ampla (secular e ou milenar), temos a existência das lutas indígenas contra a Conquista espanhola (Tupac Amaru, 1781) e a existência de diversas Comunas (como a mexicana de 1521). Bruno Bosteels (2021) escreveu uma obra no sentido de um processo “da Comuna Mexicana (1781) à Comuna de Paris (1871)”.

Esse é um quadro geral!


Maria Clara: Quais as características do novo ciclo de lutas?


Cláudio: O novo ciclo iniciado na América Latina parte da rebelião neozapatista ocorrida em Chiapas em janeiro de 1994, tendo como centro a luta contra o neoliberalismo, mas portando um objetivo maior: um novo processo civilizatório. As lutas na Bolívia - a Guerra da Água em Cochabamba em 2001, a Guerra do Gás em 2003 e a Comuna de Oaxaca no México - deram seguimento a esse processo.

Uma de suas características é associar as lutas populares (de uma pluralidade de sujeitos) com eleições que levaram a governos ‘progressistas’. Um processo com avanços e recuos, mas que ainda tem seguimento com a vitória de Lula no Brasil em 2022, as vitórias no Peru e sobretudo na Colômbia, ambas em 2022, e a retomada, após o golpe de 2019, na Bolívia.

Em alguns países, a depender do caráter e do volume das lutas sociais, esses governos apresentam determinadas radicalidades ‘desde abajo’ com proposta e projetos com base em autogestão, comunas, entre outras formas e ‘desde acima’ com refundação do Estado via Constituintes como é o caso da Venezuela, da Bolívia e, no seu início, do Equador. Combinam, de forma contraditória, um “Horizonte nacional-popular” das velhas experiências nacionalistas de Nuestra América com um ‘Horizonte comunitário-popular”, característica própria a estas lutas desse ciclo.

Também podemos falar de um ciclo “Comuna Morelos-Zapatista de 1911 e da Comuna de Chiapas-Neozapatista de 1994.


Maria Clara: Como o Brasil se insere nesse ciclo?


Cláudio: A experiencia brasileira nesse ciclo insere-se no campo das ‘revoluções passivas’ (GRAMSCI, 2002) pelas próprias componentes estruturais da formação social do país (escravidão, estatismo, autoritarismo, dependência econômico-cultural). Sem dúvida, os governos do Partido dos Trabalhadores (de 2003 a 2016) desenvolveram políticas públicas de caráter ‘reformista revolucionário’ trazendo um quadro de melhores condições de vida para os mais pobres. Todavia, houve uma lacuna imensa no que diz respeito ao trabalho de educação e organização dos setores populares em torno de um projeto político de caráter popular. No que a fragmentação e debilidade dos próprios movimentos populares têm sua parcela de participação.

Olhando ‘desde abaixo’, por exemplo a questão do ‘trabalho associado-autogestão’, podemos destacar que, em relação a períodos anteriores (anos 80 e 90), é possível apontar a experiência da Economia Solidária (Ecosol) como um elemento novo que, ao menos, pautou questões fundamentais. Refiro-me à própria existência do movimento social da Ecosol com organismos desde a base até Conselho nas instâncias de Governo e Estado; propostas de legislação do trabalho associado-cooperativismo autogestionário; a existência no parlamento, via Frente Parlamentar, da Ecosol e da RILESS - Rede de Investigadores Latino-americanos de Economia Social e Solidária.

Surgiu um novo campo cultural em torno do trabalho associado-autogestão, com um amplo campo editorial e de debates; e, um novo campo da educação popular, papel da Universidade, seja com a programas e pesquisas em torno de temas como trabalho associado, autogestão, e uma nova área da educação popular nas ITCPs - Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (estas passaram a ter um papel importante, quando houve refluxo dessa área nos próprios movimentos sociais, com exceção do MST.)

As ideias de Paulo Freire foram conhecidas e aplicadas criativamente em experimentações de educação popular em uma escala quase massiva, por exemplo na própria Rede Cfes - Centros de Formação em Economia Solidária) e na rede de

educadores populares da EcoSol; na experiencia da RECID - Rede de Educação Cidadã - com debates em torno do ‘poder popular’. De certa forma Paulo Freire passou a ser conhecido nos sertões do país como nas experiências de autogestão territorial como na rede ASA - Articulação no Semiárido Brasileiro; nas experiências de Bancos Comunitários; na agroecologia, entre outras.

Acrescento a existência de uma “corrente autogestionária”, ainda dispersa e fragmentada, através de intelectuais, publicações e grupos políticos. Há um rico acúmulo de documentos políticos produzidos coletivamente na CONAES - Conferência Nacional de Economia Solidária e plenárias da Ecosol. No campo da educação popular verifica-se sistematizações e documentos didáticos produzidos na Rede dos CFES.

Enfim, do ponto de vista da História num ciclo de curta duração (2013-2016) com apoio de políticas públicas dos governos progressistas, esse acúmulo porta elementos que significam conquistas em vários campos para as lutas de resistência que se seguiram ao golpe de 2016 e frente ao regime protofascista de Bolsonaro (2019-2022) e, principalmente, para a retomada das experimentações da economia solidária, que ocorrerão no governo Lula entre 2023 e 2026.


Maria Clara: Qual a importância e vigência das ideias de José Martí e, sobretudo, de Mariátegui para a reflexão dos Movimentos Populares em Nuestra América?


Cláudio: De José Martí, sem dúvida, a luta anti-imperialista é o principal elemento de sua contribuição. Com o advento da revolução cubana, em 1959, o anti-imperialismo se articula com a proposta de socialismo. Por sua vez, de Mariátegui, penso que é a sua ideia de ‘nacionalizar o marxismo’ e, sobretudo, de um socialismo indo americano. Seu projeto nos apresenta três eixos fundamentais de grande atualidade: 1. a socialização dos recursos produtivos, ou seja, estabelecimento de relações de cooperação e solidariedade na produção; 2. a socialização do poder político, no sentido do exercício direto do poder pela sociedade em seu conjunto, através de formas de poder popular e comunal; 3. um novo sentido da vida, uma racionalidade alternativa à capitalista, com predomínio do valor de uso em relação ao valor de troca e da mercantilização da vida e um ‘reencantamento’ dos modos de vida.

Estes elementos de um ‘socialismo prático’ estão presentes nas lutas em curso em Nuestra America, sobretudo em países que buscam sair do campo das ‘revoluções passivas’.


Maria Clara: Para finalizar, quais os principais intelectuais do pensamento latino-americano para reflexão deste novo ciclo? Em particular, a partir da experiência brasileira, qual a contribuição de Paul Singer no que diz respeito à autogestão e sua pedagogia? Qual o papel da educação popular? E, na mesma perspectiva, qual a contribuição de Álvaro Garcia Linera?


Cláudio: Em nosso livro “Autogestão e Modos de Vida” apresentamos as ideias de vários teóricos/as, suas principais ideias e bibliografia. Todas /os têm pontos em comum: um ‘certo luxemburguismo’, a autogestão comunal e a pedagogia autogestionária como elemento integrante das experiências visando o socialismo. No livro defendemos este argumento nos seguintes ensaios: Anibal Quijano: Mariátegui, autogestão, Colonialidade; Rene Zavaleta Mercado: Autogestão e autodeterminação; Armando Bartra: Economia comunal e Modos de Vida; Bolívar Echeverria: A Ontologia do ethos barroco; Orlando Fals Borda: o socialismo raizal; Raquel Gutierrez Aguilar: Pachakuti e autogestão comunal; Che Guevara: Trabalho, autogestão e socialismo.

Acrescento dois complementos: primeiro, poderíamos acrescentar a esta lista quatro brasileiros: Mário Pedrosa, Rui Mauro Marini, Milton Santos e Michael Lowy. Segundo a obra do peruano Aníbal Quijano é fundamental a ideia da ‘colonialidade do poder’ e da ‘socialização do poder’ nessa fase de globalização do mundo. Com esse objetivo ampliamos nosso ensaio acima citado sobre Quijano. O novo ensaio está no meu livro “Autogestão Comunal” vol. 2 e intitula-se “Anibal Quijano: Aleph e os Caracoles (“um mundo onde cabem todos os mundos”).

E, com destaque especial, acrescento, a obra de Paul Singer. No ensaio “Paul Singer: uma tese e oito hipóteses sobre o socialismo/autogestão" (NASCIMENTO, 2018), tentei construir a trajetória de Singer com destaque para suas ideias de socialismo e pedagogia da autogestão.

Em seu livro Introdução à economia solidaria (2002), Singer faz referência à Chiapas: “[ ] o zapatismo mexicano talvez seja o paradigma e a promoção de

comunidades que renovam suas tradições culturais É nesse contexto que se verifica

a reinvenção da economia solidaria” (SINGER, 2022) (destaque do entrevistado).

Em todas essas lutas a questão gramsciana de que uma revolução cultural do cotidiano esteve presente. Em todos os campos do metabolismo social torna-se necessário um longo e profundo trabalho de educação popular e cultural. A ideia da autogestão é portadora da ideia da educação popular. Isso vale para educação popular em seu sentido libertário (Paulo Freire): sem autogestão não há educação popular e sem educação popular não há autogestão!

A ideia de socialismo em Singer sistematiza diversas experiências de um longo processo histórico que ele analisou: os Kibutzes, o Solidarnosc, a Revolução russa e a Iugoslávia). No pensamento de Singer a questão pedagógica é intrínseca e orgânica. Singer sempre teve o papel de educador popular.

Sobre a pedagogia da autogestão, gostaria de destacar a obra de Paul Singer que reflete a experiencia do movimento economia popular e solidária em conjunto com a política pública da SENAES (Secretaria Nacional da Economia Solidária), quando coordenada por Singer.

A experiencia que ele teve nos Governos Lula-Dilma, à frente da SENAES permitiu o desenvolvimento de um ‘campo público”, através da REDE CFES, em que um ‘intelectual coletivo’ (Rede de educadores populares) sistematizou o que chamamos de ‘pedagogia da autogestão’. Tinha como paradigma que “A Ecosol é um ato educativo”, ou, como diria Gramsci que todo ato de hegemonia é um ato pedagógico.

Diz Singer: “A Ecosol é um ato pedagógico em si mesmo...Contudo, a EcoSol é um passo decisivo para além desse aprendizado pela vivência, pois ela propõe a solidariedade não só como imposição da necessidade, mas como opção por outro modo de produção”. (SINGER, 2005, p.20 – destaque do entrevistado).

Na linha do processo educativo, em uma de suas obras Singer afirma: “Uma grande parte da construção do socialismo tem de ser realizada ainda sob hegemonia capitalista. O conjunto da Economia Solidária assim constituída deve ser considerado como uma vasta escola de capacitação socialista”. (SINGER, 2018, p.159, destaque do entrevistado).

Nesse sentido, as ideias de Singer de “agentes de desenvolvimento solidário” o aproximam das ideias de Orlando Fals Borda. E a ideia de “revoluções silenciosas do cotidiano”, por sua vez, o aproxima da ideia de ‘longa revolução’ de Raymond

Williams (2023). Os três têm, também, em comum a necessidade de transformações culturais e educativas em um longo processo tendo por horizonte o socialismo, a construção de uma hegemonia. O pensamento de Gramsci é um elemento comum aos três.

Trata-se de um novo campo da educação popular no Brasil. E está presente em todas as experiências da Economia Solidária na América latina. Muitas Redes se formaram: “Currículo Universal da economia solidaria”, a “Rede internacional de economia solidaria”, a “Rede das economias transformadoras”, a “Escola internacional de autogestão”, entre outras.

A ideia de Redes Solidárias se desenvolveu mais no campo teórico que nas práticas das experiências. Singer já assinalava o papel das Redes, (usando expressão gramsciana), no sentido de a Ecosol superar seu ‘momento econômico-corporativo” e dar um salto de qualidade para o’ momento superestrutural’ de criação de contra hegemonias, isso é, se tornar um ‘modo de produção hegemônico’.

Singer definiu claramente: “No caso do Brasil, isso ainda está longe de ser ocaso. Nosso meio ambiente é dominado pelo capitalismo. E, para que a Ecosol complete sua construção no Brasil, conclama pela construção de ramos que lhe são complementares, ou seja, cadeias produtivas e Redes solidárias”. (SINGER, 2005, p.19, destaque do entrevistado).

Nesse sentido, o Documento da CONAES temática “Educação e Autogestão” (2014), consolidou a proposta da educação na Ecosol na linha da autogestão e, sem dúvidas, como expressa um debate e uma construção coletiva dos agentes da Ecosol no Brasil, pode ser uma referência em termos de Nuestra América.

A experiencia da Rede CFES trouxe uma grande contribuição no campo da definição de instrumentos pedagógicos-metodológicos para a Ecosol (por exemplo, a ‘sistematização’, a ‘pedagogia da autogestão’, sobre as quais há uma extensa produção de material escrito e visual). Todavia, é a experiencia de alguns programas com base em ‘territorialidades’ e ‘agentes de desenvolvimento’, que estão na agenda do novo ciclo da EcoSol, iniciado com a vitória de Lula em outubro de 2022.

Já sobre os “Agentes de Desenvolvimento Solidário, em outra ocasião, assinalamos as ‘afinidades’ entre Singer e Orlando Falls Borda em torno do tema dos ‘agentes de desenvolvimento” (NASCIMENTO, 2018).

O principal ensaio de Singer (2022) sobre o tema dos “Agentes”, intitula-se” É possível levar o desenvolvimento solidário às comunidades pobres?”.

Retomando nosso ensaio de 2018, voltemos a Singer e sua ideia central: os agentes de desenvolvimento”. Segue afirmações de Singer que cito neste ensaio.

“O processo de desenvolvimento requer um relacionamento simbiótico entre comunidade e os profissionais que estamos denominando ‘agentes de desenvolvimento’. Estes representam bancos públicos, serviços públicos (como Sebrae ou Sescoop), agências de fomento da economia solidária, ligadas à Igreja, aos sindicatos ou às universidades ou então aos movimentos sociais.

A missão inicial dos agentes é levar à comunidade a consciência de que o desenvolvimento é possível pelo esforço conjunto da comunidade, amparado por crédito assistido e acompanhamento sistemático (incubação).

Singer define a pedagogia em questão: “Esta consciência é levada ao conjunto da comunidade, o que deve desencadear um processo educativo ou de educação política, econômica e financeira de todos os membros. Trata-se de capacitação adquirida no enfrentamento dos problemas reais, à medida que eles vão se colocando.

Sobre os coletivos populares, ele se manifesta: “No decorrer do processo, instituições vão surgindo por meio das quais a comunidade se organiza para promover o seu desenvolvimento: assembleias de cidadãos, comissões para diferentes tarefas, empresas individuais, familiares, cooperativas e associações de diferentes naturezas. O poder público local poderá se associar ao processo e se fazer representar, quando necessário, em comitês mistos públicos-privados.

Sobre a troca de saberes: “o relacionamento entre a comunidade e os agentes deve se tornar crescentemente igualitário, mediante a contínua troca de saberes. Nesta troca, os membros da comunidade recebem ensinamentos e os oferecem aos agentes, num processo de educação política mútua” (2018-186).

Estes agentes serão educados para essa tarefa. O ideal é que a preparação se faça em equipe ...também aqui a pedagogia da capacitação será possivelmente a mais adequada: treinamento teórico entremeado por idas à comunidade, onde a luta contra os problemas reais levantará novos temas a serem destrinchados depois, no estudo teórico.

Sobre as estruturas de formação: “Conviria criar um centro nacional de preparação de agente de desenvolvimento, em que os conhecimentos gerados pelas

experiências de desenvolvimento comunitário, nas diversas regiões do país, possam ser reunidos e sistematizados”.

Os métodos de promoção não podem ter a pretensão de oferecer um caminho único ou a ‘melhor prática’, pois cada comunidade é única em suas potencialidades.

Sobre a coordenação comunitária em REDES/Cadeias: “o pequeno tamanho da comunidade pobre e o seu relativo isolamento fragilizam suas possibilidades de se desenvolver por meio próprio (com apoio público).Um centro nacional de preparação de agentes de desenvolvimento poderia promover entrosamento das comunidades...uma federação de comunidades com a mesma especialização, seja ela agricultura ,artesanato, turismo ou o que for ,configura o que hoje se conhece como arranjo produtivo local(...).O centro nacional poderia colocar as comunidades com possibilidades de se federar, em contato e os agentes de desenvolvimento as assistiriam na construção de APLs (Arranjos Produtivos Locais)”.

Para Singer, a Internet facilitaria a articulação de comunidades com proximidade geográfica. “Comunidades com especializações complementarias – tecidos, confecções, produtora de rações e criadoras de animais etc.- teriam boas razões para se federar ...O centro nacional de preparação poderia criar espaço de negociação”.

Singer avança para ideia de criar uma sinergia que articule as atividades da União/Governo federal em um único centro com diversos Ministérios, garantindo a autonomia das comunidades, em nível municipal e estadual, seria iniciativa do poder local. Um grupo de trabalho interministerial seria responsável pelo apoio federal sistematizado e coordenado.

Enfim, com a vitória de Lula em 2022, a Economia Popular e Solidária (novo nome dado pela SENAES) traça uma proposta a partir de um balanço da experiencia do ciclo anterior dos governos petistas em uma nova conjuntura de governo Frente Ampla com minoria no congresso. As avaliações do período anterior mostram que a ausência de um trabalho de base, de organização popular, em torno das muitas políticas sociais (bolsa família, minha casa minha vida, luz para todos ,entre tantas outras),a partir das necessidades básicas das populações (alimentação, moradia, luz, transporte, saúde, violência, etc.), e o combate político-cultural ao novo ‘senso comum’ dito ‘bolsonarista’, de certa forma, associado às igrejas eletrônicas e as milícias ,todo esse conjunto criou uma nova conjuntura. Tudo isso, agravado no

período da PANDEMIA COVID 19, demanda uma nova estratégia no governo: a “transversalidade interministerial através da educação popular”.

Os diversos ministérios têm um comitê de educação popular, articulados com a Secretaria Geral da Presidência, com suas três (3) diretorias (orçamento participativo, educação popular e participação social). De início, destacam-se Saúde, Meio Ambiente, Trabalho-Ecosol e Cultura na construção de seus programas de “Agentes”.

No caso da SENAES, há a construção de um Programa de “Agentes Populares”, a partir de uma avaliação de projetos anteriores, como: Brasil Local, Redes Solidárias e da RECID, que existia na secretaria geral do governo Lula, (dirigida pelo atual secretário da SENAES, educador Gilberto Carvalho). É como se a experiencia, inicialmente do Talher no Fome Zero, fosse incorporada pelo Governo como estratégia de participação popular.

Sem dúvidas, a inspiração está nas ideias de Paul Singer sobre o papel dos agentes de desenvolvimento solidário, que abordamos acima.

Por fim, faço algumas reflexões sobre a contribuição do ex-vice-presidente da Bolívia, A. Garcia Linera.

Emir Sader, profundo conhecedor da América Latina, em sua obra pioneira sobre esse ciclo de experiencias, analisando “O Desafio Teórico da Esquerda- Latino-americana”, afirma que “Continente de revoluções e contrarrevoluções, a América Latina padece de pensamentos estratégicos que orientem processos políticos tão ricos e diversificados, à altura dos desafios que enfrenta (...) O continente não produziu a teoria de sua prática”. (SADER, 2009, p. 93, grifos do entrevistado)

Para Sader, “não contamos com grandes sínteses estratégicas que nos permitam usar balanços de cada uma dessas estratégias e um conjunto de reflexões que favoreçam a formulação de novas propostas” (SADER, 2009, p. 93). Assim, não ocorrem processos comuns de acumulação e, reflexão e síntese, não se passou da fase defensiva e de resistência à fase hegemônica, nem ao menos retomar os grandes temas de épocas passadas, como estratégia de poder, debate sobre o Estado. É a conclusão do sociólogo brasileiro. Sader, todavia, assinala uma exceção: As elaborações do grupo boliviano Comuna, são uma exceção: constituem o mais rico conjunto de textos que a esquerda latino-americana pode contar, um exemplo único em sua história pela capacidade de aliar trabalhos acadêmicos e

elaborações individuais de grande criatividade teórica, de autores como Álvaro Garcia Linera, Luis Tapia, Raúl Prada, entre outros (SADER, 2009, p. 100). A esse entre outras, firmamos o nome de Raquel Gutierrez Aguilar.

Devido a ampla obra de Linera, aqui, só podemos indicar nossos ensaios em “A Autogestão Comunal” (vols. 1 e 2) em que analisamos as contribuições fundamentais de A. Garcia Linera:- “A Comuna Aymara”; “A Forma Comuna na Potência Plebeia” e “Valor de uso e Valor de troca”.

Todavia, tentemos destacar o foco principal da contribuição de Linera, que em ensaio de 2016, tenta sistematizar o ciclo de lutas e governos progressistas na América Latina:

“Trata-se da emergência de inéditas formas de democratização/dissolução do Estado e da dissolução de poder econômico nos setores subalternos, que são capazes de criar modos de trabalho, de gestão e distribuição comunitários/universais da riqueza. Nesta capacidade de autodeterminação da própria sociedade, e não mais do Estado, se acha a chave que decidirá, no futuro, a possibilidade do passo dos pós neoliberalismo aos pós capitalismo”. (LINERA, 2016, p. 33).


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V.22, no 47, 2024 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799X


QUATRO DÉCADAS DO MST: REFORMA AGRÁRIA E EDUCAÇÃO1


Gaudêncio Frigotto2


Resumo

Este pequeno texto que registra os quarenta anos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) tem um duplo objetivo. Primeiro de mostrar de que ao longo destas quatro décadas a luta pela reforma agrária expressa uma continuidade da luta dos escravos pelo direito à terra, mas negada pela classe dominante da época. Em segundo lugar, junto à luta pela reforma agrária caminha a luta pela educação sendo os sujeitos do campo, com a sua cultura as experiências e as suas lutas o ponto de partida. O ponto de chegada uma formação humana por inteiro para uma sociedade sem dominação de classe.

Palavras-chaves: MST, Reforma Agrária, escravidão, educação, classe.


CUATRO DÉCADAS DEL MST: REFORMA AGRARIA Y EDUCACIÓN


Resumen

Este pequeño texto que registra los cuarenta años del Movimiento de los Trabajadores Sin Tierra

(MST) tiene un doble objetivo. En primer lugar, muestra que a lo largo de estas cuatro décadas la lucha por la reforma agraria expresa una continuidad de la lucha de los esclavos por el derecho a la tierra, pero negada por la clase dominante de la época. En segundo lugar, junto a la lucha por la reforma agraria va la lucha por la educación, siendo el punto de partida los sujetos del campo, con su cultura, sus experiencias y sus luchas. El punto de llegada es una formación humana completa para una sociedad sin dominación de clases.

Palabras clave: MST, Reforma Agraria, esclavitud, educación, clase.


FOUR DECADES OF THE MST: AGRARIAN REFORM AND EDUCATION


Abstract

This short text that records the forty years of the Landless Workers Movement (MST) has a double objective. Firstly, it shows that throughout these four decades the struggle for agrarian reform expresses a continuity of the slaves' struggle for the right to land, but denied by the ruling class of the time. Secondly, alongside the fight for agrarian reform goes the fight for education, with the subjects of the countryside, with their culture, experiences and their struggles being the starting point. The arrival point is a complete human formation for a society without class domination.

Keywords: MST, Agrarian Reform, slavery, education, class.


1 Artigo recebido em 26/01/2024. Aprovado pelos editores em 01/02/2024. Publicado em 22/02/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.61701.

2 Licenciado em Filosofia. Doutor em Ciências Humanas - Educação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo - Brasil. Professor Titular de Economia Política da Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói - Brasil. Ex-Coordenador do Programa de Pós-graduação em Educação da UFF. Professor no Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro - Brasil. Pesquisador do CNPq. Coordenador do Grupo These.

E-mail: gaudenciofrigotto02@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4535332644982596. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2023-5654.

Qualquer brasileiro que tenha um mínimo de responsabilidade, que tenha consciência da situação social real do nosso país, tem o dever de acompanhar e apoiar o trabalho e a luta do MST. (Sebastião Salgado).


Acompanho ativamente desde seu nascimento o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Um movimento que surge não somente pela negação histórica da Reforma Agrária, mas, além disto, como expressão da forma que o capitalismo canibal, como o define a filósofa americana Nancy Fraser3, avançou no campo a partir, sobretudo, da década de 1970. Um processo escandaloso de concentração de propriedade privada sob o manto da ditadura empresarial militar, deflagrada em 1964 e que se prolongou por 21 anos.

O MST, ao lutar pela Reforma Agrária Popular, reitera a luta dos escravos e de suas lideranças no processo da abolição da escravidão. Como observa Luiz Felipe Alencastro4, a oligarquia agrária somente concordou com a abolição formal da escravidão, mediante a negação da luta dos abolicionistas que queriam que os escravos não apenas fossem libertos, mas tivessem como indenização uma quantidade de terra para produzir sua sobrevivência. O fracasso da reforma agrária, observa Alencastro, teve seu início nesta negação.

O que é cínico é que, 136 anos depois, vindos não mais dos barões da escravidão, mas de seus sucedâneos, da expansão agrícola e concentração de propriedade das terras pelo agronegócio, os argumentos dos grandes proprietários de terras, do capital financeiro e industrial sejam os mesmos do escritor e político cearense Jose de Alencar. Percebendo as tendências abolicionistas nos quadros da Monarquia em 1871, advertia o que poderia ocorrer com a abolição:

Tolerado semelhante fanatismo do progresso, nenhum princípio social fica isente de ser ele atacado mortalmente ferido. A mesma monarquia, senhor, pode ser varrida para o canto entre o cisco das ideias estritas e obsoletas. A liberdade e a propriedade, essas duas fibras sociais, caíram desde já em desprezo ante os sonhos do comunismo. (ALENCAR apud DA SILVA, 2018, p. 75).


3Ver entrevista de Nancy Fraser para Martin Mosquera, na Jacobin Latinoamericana (https://www.jacobinlat.com). Disponível em: https://outraspalavras.net/feminismos/nancy-fraser-encara-o-capitalismo-canibal/; tradução de Vitor Costa, publicada em 25/02/2022. Acesso em: 22 de janeiro de 2024.

4 Ver entrevista do historiador Luiz Felipe Alencastro – Abolição da escravidão em 1888 foi votada pela elite evitando a reforma agrária. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-44091474. Acesso em: 22 de janeiro de 2024.

Nestes quarenta anos a luta, como destacou ao final da década de 1990 João Pedro Stédile, uma de suas mais importantes lideranças, o MST teve e tem que enfrentar três cercas: a do latifúndio, a da ignorância e a do capital. Desde sua fundação como movimento orgânico, bravamente avançou na ruptura das duas primeiras cercas. A terceira, a do capital, desde os debates da Reforma Agrária Popular o MST sinaliza que esta é uma questão a ser coletivamente enfrentada por todos os movimentos do campo e da cidade que queiram alimento saudável e futuro minimamente previsível.

O que se tem de Reforma Agrária nestes 40 anos é o rompimento das cercas do latifúndio improdutivo ou de terras públicas apropriadas indevidamente, forçando assentamentos. Isto à custa de muito sofrimento e de muitas perdas de seus lutadores. Quando os grandes proprietários e a mídia que os representa propalam que o agronegócio dá segurança alimentar, escondem duas realidades perversas em nossa sociedade: a fome endêmica de mais de trinta milhões de brasileiros e de outros 170 milhões com insuficiência alimentar; e, que uma reforma agrária como a maioria das nações civilizadas já fez, com pequenas e médias propriedades com assistência técnica com base na ciência da agroecologia, produziria a mesma quantidade ou mais, dando-nos soberania alimentar.

Mas, certamente, é no enfrentamento da cerca da ignorância que o MST é amplamente vitorioso e exemplar para o conjunto da sociedade. Nestas quatro décadas, o MST afirmou a tese da educação "do campo" e não para ou no campo. "Do campo" para superar uma dupla deformação: a de um ensino e processos formativos colonizadores e de uma educação que ignorava que os campesinos são sujeitos de cultura, de conhecimento e, portanto, o ponto de partida do processo pedagógico para uma formação por inteiro. Um processo, como afirma Roseli Caldart, educadora do MST em seu clássico livro Pedagogia do Movimento Sem Terra, que não começa na escola, mas na sociedade e retorna para a sociedade.

Esta é a perspectiva de educação, realçando os valores do coletivo, da solidariedade, do princípio do trabalho socialmente útil como tarefa de todos que se pautam nas escolas dos assentamentos. A construção da Escola Nacional Florestan Fernandes, referência mundial de formação de novas lideranças, tem este DNA. Desde o processo de construção, deu-se pelo trabalho coletivo e solidário de brigadas de jovens e adultos campesinos e se repete em todas as atividades formativas que lá se realizam.

Com a criação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) em 1998, e especialmente ao longo dos governos liderados pelo Partido dos Trabalhares (PT), deu novas perspectivas para os jovens do campo. A perspectiva da educação "do campo" penetrou os umbrais das universidades, especialmente as públicas, criando centenas de cursos de licenciatura do campo, alguns programas de pós-graduação com esta modalidade, formação de pesquisadores, etc. Um passo ainda mais importante foi a criação da Universidade Fronteira Sul, fruto da luta coletiva do MST e de outros movimentos sociais do campo. Em nenhum desses espaços o "céu é de brigadeiro". Pelo contrário, move-se no duro e cotidiano embate da luta de classe.

O fechamento do Pronera pelo governo de extrema direita de Jair Bolsonaro (PL) e a patética e desmoralizada CPI contra o MST são o reconhecimento de que o que se plantou e ampliou nestes 40 anos não vai ser interrompido. Mais que isto, o horizonte da Reforma Agrária Popular para o conjunto da sociedade brasileira tem como interpelação e exigência um projeto de educação sob a direção dos trabalhadores do campo e da cidade. Esta é a diretriz que nos lega o patrono do MST Florestan Fernandes.

O que a Constituição negou, o povo realizará. Mas ele não poderá fazê-lo sem uma consciência crítica e negadora do passado, combinada a uma consciência crítica e afirmadora do futuro. E essa consciência, nascida do trabalho produtivo e da luta política dos trabalhadores e dos excluídos, não depende da educação que obedeça apenas à fórmula abstrata da 'educação para um mundo em mudança', mas sim da educação como meio de autoemancipação coletiva dos oprimidos e de conquista do poder pelos trabalhadores" (FERNANDES, 2020, p.29).


Um viva aos 40 anos do MST e às bravas e bravos lutadores que dia a dia o sustentam e o ampliam.


Referências

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DA SILVA, J. M. Raízes do conservadorismo brasileiro. A abolição na imprensa e no imaginário social. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

FERNANDES, F. O desafio educacional. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2020

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Tese de Doutorado1


BRIÑEZ, Yamile Alvira2. Resistencias andinas y buen vivir frente al extractivismo minero durante las últimas décadas, una perspectiva decolonial: el caso de Quimsacocha-loma larga en Ecuador y conga en Perú 2022. 419f. Tesis (Doctorado en Ciencias Sociales) – Universidad Autónoma Metropolitana, Unidad Xochimilco, Ciudad de México.

Resumen extendido


Durante las últimas décadas en América Latina, la adopción del neoliberalismo, y el posneoliberalismo en la región andina sudamericana, favoreció las condiciones para que países como Perú y Ecuador se convirtieran en objeto de imposición e incremento significativo de megaproyectos de despojo basados en la extracción de minerales e hidrocarburos, entre otros bienes naturales y comunes, fomentados y avalados por organismos financieros internacionales, los gobiernos de países y las empresas transnacionales, bajo el argumento de promover el desarrollo y el progreso para estos. Sin embargo, estos megaproyectos afectan cada vez más la autonomía y los derechos de las comunidades campesinas e indígenas sobre sus territorios, poniendo en riesgo la existencia de sus diversas formas: modos de ser, sentir, pensar y reproducir la vida.

En esta investigación, resulta de interés académico, político y psicosocial el estudio y comprensión de las resistencias andinas y las prácticas colectivas con potencial político-transformador orientadas hacia un Otro vivir/Buen vivir, protagonizadas por comunidades campesinas, pueblos originarios y nacionalidades indígenas en la región andina, a partir de sus propios conocimientos, sabidurías y

1 Tese recebida em 17/01/2024. Aprovada pelos editores em 19/01/2024. Publicada em 22/02/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.61478

2 Doctora en Ciencias Sociales, Área de especialidad en Psicología Social de Grupos e Instituciones por la División de Ciencias Sociales y Humanidades de la Universidad Autónoma Metropolitana, Unidad Xochimilco, Ciudad de México - México. Docente de la Universidad Intercultural Indígena de Michoacán UIIM, México. E-mail: yalvirta4@gmail.com. ORCID: http://orcid.org/0009-0009-9308-9983.

subjetividades, ante la imposición y expansión global de megaproyectos que implican el despojo y la destrucción de los territorios a través de la explotación y mercantilización de los bienes naturales, de importancia sociocultural y económica para la supervivencia de las comunidades que se ven directamente afectadas por este tipo de conflictos.

El campo de estudio se delimitó mediante un continuo ejercicio de indaga-acción, problematización y previa revisión documental, que originó interrogantes en relación con: 1. El contexto histórico, político y social del despojo en la modalidad del extractivismo minero en la región andina; 2. La resistencia indígena y campesina ante este despojo; y 3. Las prácticas colectivas con potencial político transformador hacia un Otro Vivir/Buen Vivir. Sin embargo, esta investigación, responde a la pregunta de:

¿Cómo emergen diversas formas/modos, sentidos y significados de resistencias campesinas e indígenas frente al despojo y la destrucción de la Vida bajo la modalidad del extractivismo minero y cómo se configuran prácticas y propuestas con potencial político transformador orientadas hacia un Otro Vivir/Buen Vivir a partir de los casos estudiados y acompañados?

Para hacer factible la investigación, se propuso realizar un estudio de casos a partir del acompañamiento de dos luchas atravesadas por conflictos socioambientales ante el despojo extractivista de los territorios, asociado a la imposición de megaproyectos mineros como son: Conga, en Perú y Quimsacocha-Loma Grande, en Ecuador, ambos ubicados en la región andina poseedores de importantes cabeceras de cuenca3 y otras fuentes hídricas que garantizan la existencia de cientos de especies y comunidades campesinas e indígenas. Se trata de Los Andes, en la región de Cajamarca, al norte de Perú, y el Páramo de Kimsakocha, en la provincia de Azuay, al sur de Ecuador.

Así mismo, se propuso realizar un análisis de los casos, no necesariamente bajo un método comparativo, pues más que llegar a generalizaciones, la intención fue acompañar y estudiar la emergencia de diversos modos/formas, significados y sentidos


3 “La cabecera de cuenca hace referencia en particular a las partes más altas de las cuencas que reciben agua por neblina, lluvia, nieve, granizo y que además tienen el potencial de retener y acumular agua en forma de glaciares, nieve, humedales (bofedales) y agua subterránea” (Dourojeanni, octubre de 2017). En el Perú, el término de cabeceras de cuenca aparece de manera oficial en 2009, con la Ley Orgánica de Recursos Hídricos (Ley 29338), donde “El Estado reconoce como zonas ambientalmente vulnerables las cabeceras de cuenca donde se originan las aguas”.

que ha tenido la resistencia insurgente, en la lucha por la defensa del agua y vida en Cajamarca, Perú, y Azuay, Ecuador, como expresiones locales, en contextos específicos, ante una problemática socioambiental de dominación e impacto global como lo es, el despojo extractivista de los bienes comunes y colectivos de territorios ancestrales de comunidades campesinas originarias. Además, el nivel de profundidad alcanzado para cada caso fue sustancialmente diferente, de acuerdo con la disponibilidad de información que surgió en el trabajo desde el campo realizado durante 2014 y parte de 2015 en Cajamarca Perú y Azuay Ecuador.

Por lo tanto, los principales criterios establecidos para la selección de los casos fueron: 1. luchas campesinas e indígenas, emblemáticas y reconocidas a nivel nacional e internacional, durante las últimas décadas por su defensa del territorio ante la imposición de proyectos de extracción minera a gran escala, a fin de tener mayor accesibilidad a fuentes documentales 2. que implicara la amenaza de cabeceras de cuenca de vital importancia para la subsistencia de sus modos-formas de vida 3. que se tratara de países vecinos en la misma región andina sudamericana, para facilitar los tiempos y desplazamientos entre ambos 4. que evidenciaran procesos de resistencia protagonizados por comunidades campesinas e indígenas bajo una apuesta por la defensa del agua y la vida. 5. Preferiblemente en países de la región andina, definidos bajo estados y gobiernos diferentes: Estado-nación neoliberal para el caso de Perú, y Estado plurinacional de carácter progresista y posneoliberal en el caso de Ecuador (que, además, en 2008 reconoció constitucionalmente los derechos de la naturaleza y a la resistencia, además de adoptar el término de Buen Vivir/Sumak Kawsay). Sin embargo, las economías en ambos países han persistido en reproducir y favorecer modelos de desarrollo primario exportador, dependientes de la economía mundial capitalista, pero con marcadas diferencias en la distribución de la renta al interior de cada uno.

Inicialmente, la investigación se tenía prevista bajo una perspectiva decolonial4. Sin embargo, de acuerdo con las necesidades de comprensión y análisis del campo estudiado, se amplió el diálogo con algunos aportes del pensamiento crítico latinoamericano, el pensamiento andino y otros importantes referentes que han contribuido a indagar, pensar y accionar la realidad específica de América Latina, además de contribuir a marcos propios de interpretación teórico-práctica desde las condiciones y particularidades de la región estudiada.

El documento de tesis5 consta de cinco capítulos, que presentan un conjunto de reflexiones y análisis emanados en el contexto de las luchas por la defensa del agua y la vida, a partir del acercamiento epistémico-metodológico y acompañamiento desde el campo realizado durante el año 2014 y parte del 2015 en el marco de la investigación doctoral, que a su vez ha implicado un arduo proceso de revisión documental, análisis, sistematización y de permanente escritura y reescritura entre 2013 y 2022.

En el capítulo I, se intenta dar cuenta del proceso de construcción y elementos centrales que constituyen la propuesta epistémico-metodológica con un componente político-pedagógico, a la que denomino Investigación senti-accionada y reflexionada en vínculo y compromiso con la vida (ALVIRA-BRIÑEZ, 2019), pensada y accionada desde una postura crítica del quehacer como investigadora y psicóloga social latinoamericana, bajo una praxis política y académica comprometida con la apuesta de las diferentes comunidades campesinas originarias de la región andina de Perú y Ecuador, quienes decidieron luchar por la defensa del agua y la vida en sus territorios, ante la imposición


4 La opción de quitar la “s” fue una propuesta de Catherine Walsh para “marcar una distinción con el significado en castellano del ‘des’ y lo que puede ser entendido como un simple desarmar, deshacer o revertir de lo colonial. Es decir, a pesar de un momento colonial a uno no colonial, como que fuera posible que sus patrones y huellas desistan en existir. Con este juego lingüístico intento poner en evidencia que no existe un estado nulo de la colonialidad, sino posturas, posicionamientos, horizontes y proyectos de resistir, transgredir, intervenir, in-surgir, crear e incidir. Lo decolonial denota, entonces, un camino de lucha continuo en el cual se puede identificar, visibilizar y alentar ‘lugares’ de exterioridad y construcciones alter-(n)ativas” (2011, p. 2).

5 Cabe mencionar que el documento de tesis no da cuenta de toda la experiencia sentida, compartida y vivenciada en diálogo con sabidurías, pensares y sentires campesinos e indígenas de la región andina, ya que está rebasa cualquier pretensión de ser transmitida por escrito. La idea fue presentar un texto que cumplió con los requerimientos académicos y, por otro, dio cuenta de los aspectos centrales reflexionados sobre resistencias insurgentes en el transcurrir de las luchas. En algunos momentos esto es relatado de la forma como fluye el agua de las lagunas del Kimsakocha en Ecuador o en los Andes Cajamarquinos, tanto de forma superficial como subterráneamente, transitando por diferentes rumbos para alimentar otras iniciativas investigativas durante su recorrido.

de megaproyectos extractivos y depredadores, favorecidos por las políticas neoliberales del capitalismo global.

Esta propuesta, desde un primer momento, intenta distanciarse de la colonialidad de las metodologías propias de las ciencias sociales tradicionales hegemónicas, por lo que se orienta como una propuesta en clave decolonial6 y desde el campo de la psicología social latinoamericana. Para ello, se retomaron algunos de los aportes de la Investigación Acción Participativa (IAP), desarrollada por Orlando Fals Borda7 y otros autores desde hace más de cinco décadas. Así mismo, se alimenta de otros valiosos aportes y fuentes teóricas y epistémico-metodológicas como la experiencia del taller de historia oral andina THOA (RIVERA CUSICANQUI, 1990), la perspectiva sobre el Narrador desarrollada por Walter Benjamin (2008), entre otros aportes desarrollados en el texto pero, sobre todo, en diálogo y encuentro intercultural con pensadores y sabidurías andinas vinculadas a comunidades y pueblos originarios y campesinos que han hecho posible la praxis investigativa y que, a su vez, contribuyen a la comprensión y co-producción de saberes y conocimientos con potencial político-transformador de las condiciones de dominación histórica que, hoy más que nunca, amenazan con la destrucción de la Vida en todo el planeta.

Aunado a ello, la praxis investigativa durante el trabajo desde el campo emerge como una propuesta en permanente construcción, en coherencia con los debates y discusiones teóricas contempladas y las mismas necesidades del contexto. Sin embargo, cabe señalar que la propuesta cobró vida y sentido fundamentalmente, en Intercambio recíproco y vínculo con campesinos y campesinas indígenas de Cajamarca Perú y Azuay Ecuador donde se acompañó y estudio entre los años 2014 y 2015. Desde esta propuesta, la elección del campo también responde a la ubicación y posicionamiento ético-político de la investigadora ante el actual contexto histórico,

6 Esto, por supuesto, no fue fácil, teniendo en cuenta que la investigación también respondió a las dinámicas de una institución académica y a un ente financiador como el Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología (Conacyt), que establecen tiempos y criterios de evaluación, muchas veces a contramano de una perspectiva decolonial de la investigación.

7 Investigador y sociólogo colombiano, fundador de la primera Facultad de Sociología de América Latina en la Universidad Nacional de Colombia, Sede Bogotá; fue su primer decano, papel que asumió hasta 1966. Se constituyó, junto con su compañera de vida María Cristina Salazar, como uno de los fundadores y representantes más destacados de la Investigación Acción Participativa (IAP), método de investigación cualitativa que pretende no sólo conocer las necesidades sociales de una comunidad, sino también agrupar esfuerzos para transformar la realidad con base en las necesidades sociales.

geopolítico, social y económico, atravesado por la expansión del despojo extractivista en diversas modalidades, como fenómeno de raíces coloniales en América Latina, aunque manifiesto aún hoy, en diversos lugares del sur global. También se consideró la factibilidad de la investigación, teniendo en cuenta las distancias, desplazamientos, conocimientos, compromiso y relevancia académico-política.

En el capítulo II, se presenta un acercamiento al contexto histórico y geopolítico del despojo extractivista bajo la modalidad de la explotación minera en la región andina, específicamente para los casos de Perú y Ecuador, resaltando importantes procesos de rebelión, lucha y resistencias indígenas producidos paralelamente como respuesta ante el despojo. Esto facilita la comprensión de la conformación del actual patrón global capitalista (QUIJANO, 2000) y las diferentes estructuras de poder que lo mantienen y lo perpetúan. También se ubican algunos aspectos relevantes de carácter histórico y geopolítico que han favorecido el surgimiento, instauración, expansión y continuo despojo de los territorios, las sabidurías, los conocimientos y en general las formas/modos de vida campesinas e indígenas en el contexto andino latinoamericano (casos de Perú y Ecuador), bajo la modalidad del extractivismo minero, como fenómeno de raíces coloniales y parte del actual modelo económico y político capitalista global, cuya barbarie y depredación ha sabido reproducirse hasta nuestros días, tanto en su fase neoliberal, en el caso de Perú, como en su fase posneoliberal en el caso de Ecuador.

Por lo tanto, se destaca que, en medio de la dominación, la explotación y el conflicto que ha implicado el despojo en esta región (y aplica para América Latina) hacia la población históricamente racializada como indios y sus territorios, han acontecido diferentes rebeliones, luchas y resistencias indígena-campesinas. Por ejemplo, desde las promovidas por Túpac Amaru y Micaela bastidas en Perú, Túpac Katari y Bartolina Sisa en Bolivia, hasta las más recientes resistencias y luchas antiextractivistas de finales del siglo XX y lo que va del siglo XXI, como las de Cajamarca, Espinar, Tía María, Apurímac, entre otras en Perú, y las de Yasuní, Kimsakocha, Intag y Cordillera del Cóndor en Ecuador.

Asimismo, desde una perspectiva crítica de la geopolítica se presenta un breve análisis e interpretación de los principales factores que han favorecido el despojo y su

expansión bajo la modalidad del extractivismo minero durante las últimas décadas del siglo XX y XXI, a través de reformas de ajuste estructural tanto en el contexto neoliberal como posneoliberal (con sus particularidades), el aumento de los precios de los metales durante la primera década del siglo XXI, entre otros aspectos, que responden a las exigencias del patrón de acumulación global capitalista, fomentado por organismos económicos internacionales y adoptado fielmente por los mismos gobiernos de los países de la región, en alianza con compañías transnacionales y nacionales saqueadoras.

En el capítulo III, se abordan aspectos sobre el papel y accionar de las industrias extractivas, sus impactos (sociales, económicos y ambientales) en los territorios y su vínculo directo con la emergencia de conflictos socioambientales con comunidades, nacionalidades y pueblos indígenas y campesinos, que resisten ante el saqueo y la devastación de sus territorios, y a la permanente amenaza de extinción de sus modos/formas de vida, ante la imposición de megaproyectos mineros como son Conga en Perú y Quimsacocha-Loma Larga en Ecuador, los cuales se describen en detalle para tener claridad sobre el contexto en el que ocurren las resistencias y propuestas abordadas.

Es importante resaltar que la operación de las industrias extractivas se encuentra al servicio de la acumulación del capital, mediante la expansión del despojo extractivista. En este sentido, los casos estudiados en esta investigación son expresiones locales que evidencian la disputa por el agua, los territorios, los sentidos y las formas/modos de vida entre actores con diversos intereses económicos, políticos y sociales. Así, los conflictos socioambientales son generalmente presentados por los informes oficiales de cada país como casos aislados o que poco tiene que ver entre sí, pero haciendo un análisis crítico desde la geopolítica del desarrollo local (RODRÍGUEZ, C. 2015) sobre la magnitud y el alcance geográfico, político y económico a nivel nacional e internacional, se encuentra que los megaproyectos asociados en realidad están articulados a grandes planes continentales que implican la transformación física y del sentido sociocultural y económico de los territorios.

Las industrias extractivas (IE) son entendidas como “aquellas que se dedican a la producción de bienes mediante la extracción de recursos naturales renovables o no

renovables […] como actividad primaria, con escaso nivel de transformación, destinada principalmente a la exportación” (HUERTAS, 2011, p. 222). Las IE orientadas a la minería de gran escala, impuestas en los territorios de comunidades campesinas e indígenas sin duda alguna, han tenido una rápida expansión durante las últimas décadas8 en gran parte de la región andina y en el resto de América Latina.

Para el cumplimiento de sus objetivos, las industrias extractivas operan mediante diversas formas y estrategias9, cuyo principal aliado es el Estado a través de estructuras de poder político, jurídico y económico, de tal manera que los territorios y sus bienes comunes han sido entregados a las compañías transnacionales por parte de gobiernos tanto neoliberales como progresistas. Para ello, también cuentan con el respaldo y acompañamiento de medios masivos de comunicación y el uso de un lenguaje técnico y especializado dominante (aparentemente irrefutable bajo la perspectiva de la colonialidad del saber).

En el capítulo IV, se presenta un análisis, interpretación y reflexiones sobre la emergencia de diversos modos/formas, significados y sentidos que ha tenido la resistencia insurgente10 en los casos acompañados y estudiados, como expresiones locales en contextos específicos ante una problemática de dominación global como lo es, el despojo extractivista de los bienes comunes y colectivos de sus territorios. Dicho


8 En las últimas décadas la expansión acelerada de las industrias extractivas se ha dado debido “tanto a la liberalización del sector minero, a inversiones privadas desde los años noventa, como al aumento más reciente de la demanda internacional de los metales” (BRIDGE, 2004, citado por BUDDS E HINOJOSA, 2012, p. 45). Así mismo, “la globalización financiera y la desregulación del comercio han creado el espacio para la inserción de inversiones y empresas privadas sin restricción” (HUERTAS, 2011, p. 222).

9 “Las tácticas de acercamiento y de “relaciones comunitarias” son similares e incluyen la desinformación y el engaño en las primeras fases, hasta la represión y violencia en los momentos de mayor conflictividad, usando para ello la fuerza pública o fuerzas de seguridad privada… Un mismo grupo de profesionistas, firmas consultoras e investigadores ha sido encarado de establecer convenios comunitarios, proyectos engañosos, estudios maquillados de impacto social y ambiental” (SOUZA, 2011, p. 164).

10 Esta noción proviene del intelectual Kichwa y Líder Luís Macas, en conversación con Catherine Walsh en 2001 quien explica que: “La lucha de los pueblos indígenas es sobre la descolonización; es una lucha para confrontar el problema estructural de la “tara colonial”, la que significa resistir pero también insurgir, así contribuyendo a la construcción de condiciones y posibilidades (decoloniales) radicalmente distintas” (WALSH, 2012, p. 23). “Acá, la resistencia ofrece movimientos –acciones pedagógicas si se quiere– no sólo de defensa y reacción, sino también y de manera más importante, de ofensiva, insurgencia y (re)existencia circunscripta en/por una construcción continua, creación y mantenimiento de una forma ‘otra’, un ‘modo otro’, de estar en y con el mundo” (WALSH, 2014, p. 20). La decisión de asumir esta noción no es solamente porque coincide con las prácticas de resistencia insurgente vivenciadas durante el acercamiento epistémico-metodológico que corresponde a la investigación, sino que también se asume como postura ético-política de la investigadora por visibilizar las construcciones surgidas en las fisuras y quiebres donde se enuncian las comunidades con las que se ha llevado a cabo la investigación.

análisis e interpretación se realiza en diálogo con las experiencias, conocimientos y sabidurías de las comunidades y representantes que hicieron parte de esta investigación, sumado a algunas contribuciones del pensamiento crítico latinoamericano, la perspectiva des/decolonial y el pensamiento andino.

Es importante resaltar que en ambos casos los pueblos originarios y/o nacionalidades indígenas, comunidades y rondas campesinas originarias se oponen a la imposición de los megaproyectos mineros Conga en Perú y Kimsakocha-Loma Larga en Ecuador, en medio de un proceso de continua dominación/subordinación y resistencia/insurgencia, atravesada por diferentes estructuras de poder como se intenta evidenciar en este capítulo.

En el Capítulo V, se presenta una revisión teórica referente al Buen Vivir y se da cuenta de diversas prácticas y propuestas colectivas con potencial político transformador orientadas hacia Otro Vivir/Buen Vivir, recreadas en las comunidades campesinas y pueblos originarios con los que se investigó, muchos de ellos conscientes del vínculo y del fuerte arraigo con sus territorios pese a la usurpación, el despojo de los mismos y a la continua erosión de sus conocimientos, sabidurías y espiritualidades, a la cual han sido sometidos desde la llegada de los primeros europeos en el siglo XVI y hasta nuestros días, con la imposición del modelo extractivista constitutivo del patrón capitalista globalizado. Como se ha mencionado este modelo amenaza seriamente la existencia de la vida en el planeta, pero también ha hecho evidente formas y modos colectivos de Buen Vivir o un Vivir Andino (al margen y en las grietas del capitalismo y la modernidad) que conciben y proponen prácticas en vínculo con sus territorios hídricos, más allá de la ausencia estatal frente al sector agrícola y ganadero que caracteriza a países de la región andina como Perú y Ecuador.

Por lo tanto, no se pretende validar saberes con conceptos y categorías11 de otro conocimiento considerado superior; más bien se trata de evidenciar y afirmar prácticas y propuestas colectivas asociadas directamente con la crianza recíproca y el cuidado de la vida. Prácticas recreadas, ajustadas y algunas de ellas posibles gracias a las


11 De acuerdo con Mires, “las categorías que nos impone el sistema vigente nos impiden hacer planteamientos desde las prácticas de las poblaciones desoyendo las capacidades de quienes, con su propia vida, garantizan la vida de todos” (1996, p. 8).

Sabidurías Andinas para la Vida emanadas del relacionamiento, el diálogo, la memoria viva de sus territorios y el saber-hacer recíproco con la chakra12. Prácticas que, sin duda, cuestionan la lógica de la racionalidad instrumental que fundamenta el mito de desarrollo y progreso lineal presente hasta nuestros días.

Por cuestiones de análisis y presentación, este capítulo consta de tres partes. En la primera parte, se evidencian las históricas racionalidades en disputa por formas de percibir, comprender, dar sentido y vivir en los territorios bajo apuestas distantes entre sí, desde el punto de vista ético, político y económico. En una segunda parte, se hace una aproximación a la trayectoria y principales cuestionamientos al llamado Buen Vivir/Sumak Kawsay o Vivir Bien/Allin Kawsay de la región andina (más específicamente en Ecuador y Perú), desde un enfoque de actores que integra la visión el sector político-gubernamental, la perspectiva de académicos latinoamericanos críticos y los aportes de pensadores indígenas andinos a la conceptualización de este. La tercera y última parte, presenta un acercamiento a las prácticas y propuestas colectivas, cada vez más visibles e innegables en las que toma lugar el llamado Buen Vivir o lo que refiero como “Vivir Andino”, vivenciado por los mismos pueblos y comunidades campesinas e indígenas en su día a día a partir de los casos estudiados y acompañados.

Por último, se presentan algunas conclusiones, más no definitivas, para seguir indagando y accionando en vínculo con la vida. Estas incluyen los principales hallazgos, aprendizajes y enseñanzas generados durante el proceso de investigación respecto a los diversos modos/formas, significados y sentidos que han tenido las prácticas de resistencia en la lucha por la defensa del agua y la vida, a partir de los dos casos acompañados y estudiados en Cajamarca Perú y Azuay Ecuador.

En general el documento de tesis, precisa alejarse de la idea de reservorio de agua (laguna construida artificialmente) que identifica, captura, extrae y reduce a meras epistemologías un legado de sabidurías, conocimientos y experiencias del mundo campesino e indígena, en la lógica de las investigaciones científicas tradicionales,


12 Término quechua para referirse al lugar donde se cultivan y cría la biodiversidad de alimentos y animales que, para campesinos y campesinas de los andes, posee un significado sociocultural asociado a la vida bajo principios de relacionalidad, complementariedad y reciprocidad con la tierra.

propias de las ciencias sociales hegemónicas que aún asumen la “neutralidad” y “objetividad” como principios universales que todavía orientan muchas de las investigaciones académicas producidas en América Latina13.


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13 En este caso, se trata entonces de presentar un conjunto de reflexiones y análisis sentipensados a partir de relatos, historias, fragmentos, cantos, imágenes y escenas vivenciadas como parte de la experiencia desde el campo que se ha ido entrelazando en permanente disputa, contradicción, pero también en profundo vínculo y compromiso con la vida en la Jalca cajamarquina con mujeres y hombres, ojos de agua, lagunas, ríos, puquios, hojas de coca, fogones de cocina, formas y sabores de papas, plantas de aguaymantos, ocas y ollucos, atardeceres, paisajes y demás seres vivos que hacen y son parte de la chakra, con quienes se compartieron incesantes conversaciones, silencios, escuchas y miradas del mundo y, a través de los que surgieron múltiples desaprendizajes y reaprendizajes durante recorridos por sus territorios, movilizaciones, reuniones, bailes, descansos en la pampa, cantos y comielonas, sobre la historia y memoria de luchas por la posibilidad de continuar viviendo y resignificando modos otros de vida, en rechazo al despojo de los megaproyectos extractivos y en defensa del agua en los territorios, que no es otra que la defensa por la existencia del ciclo natural de la vida de cientos de especies entre ellos la nuestra.

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V.22, no 47, 2024 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799X


Tese de Doutorado1


HURTADO GÓMEZ, Lina María2. Geografías superpuestas: Conflictos territoriales y formación territorial en las fronteras internas colombianas. La Sierra de la Macarena 1948-2013. 2016. 477f. Tese (Doutorado em Geografia) – Universidade Federal Fluminense, Niterói.

Resumo expandido


La tesis aquí reseñada, funde la historia familiar en los Andes colombianos con la de trabajo como mediadora desde órganos gubernamentales y no gubernamentales en las Amazonias y Orinoquias, y el encuentro con la academia, que proporcionó herramientas teóricas y metodológicas para cualificar el análisis crítico de esas trayectorias. Realizada en el marco del programa de posgrado en Geografía de la Universidad Federal Fluminense (POSGEO-UFF), fue orientada por el geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves, coordinador del Laboratorio de Estudios en Movimientos Sociales y Territorialidades (LEMTO).

La investigación propone la formación territorial como teoría y método para analizar cómo las relaciones conflictivas entre diferentes territorialidades producen, forman y transforman el espacio geográfico y los sentidos de la existencia, a través de las relaciones sociales y de poder, en periodos de larga duración. Para esto se adoptan seis premisas teórico-metodológicas que orientan la discusión:

El espacio es una acumulación desigual de tiempos (SANTOS, 1977), es decir, que hay superposiciones temporales y espaciales, de territorialidades, escalas y de edades diferentes en un mismo espacio. Por tanto, los procesos de


1 Tese recebida em 18/01/2024. Aprovada pelos editores em 22/01/2024. Publicada em 22/02/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.61496

2 Doutora em Geografia pelo Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói - Brasil. Professora do Departamento de Ciências Ambientais e Agrárias (DCAA) da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Bahia - Brasil.

Email: linamariahurtado@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3376437393398352.

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0127-9459. Disponível em: https://app.uff.br/riuff/handle/1/29017.

territorialización que se han dado en diferentes momentos se van acumulando como capas, que pueden ser leídas en las formas actuales, en la formación territorial.

El espacio geográfico es una dimensión constitutiva de lo social, pues “[…] es formado por la relación que los diferentes seres establecen entre sí y su materialidad” (PORTO-GONÇALVES, 2003). Con ello se quiere contestar el privilegio dado al tiempo en el análisis de lo social, pues no existe sociedad a-geográfica, así como no existe espacio geográfico a-histórico (PORTO-GONÇALVES, 2003).

Territorio es un concepto ligado a múltiples poderes de dominación y apropiación material y simbólica (HAESBAERT, 2007), a múltiples sujetos envueltos. Por lo tanto, el Estado territorial sería una forma de territorialidad entre otras existentes, con diferentes objetivos de control social; así múltiples territorialidades, es decir, “estrategias humanas para controlar personas y cosas, a través del control de un área: el territorio” (SACK, 2011).

Estas territorialidades múltiples se superponen en un mismo espacio geográfico (AGNEW & OSLENDER, 2010), es decir que hay una intersección de fuentes de autoridad territorial, diferentes del Estado-Nación, y como consecuencia emergen conflictos que influencian la formación, transformación del espacio y de las territorialidades.

La territorialidad está compuesta por fijos y flujos, por enraizamiento y movilidad (BONNEMAISON, 2002; HAESBAERT, 2011). Por tanto, en el concepto de formación territorial, la palabra formación, imprime un sentido de movimiento, de cambio, de mudanza, y nos interpela a analizar las trayectorias de las diferentes territorialidades, los caminos que recorren, las relaciones que establecen y cómo se van transformando en esos itinerarios hasta tomar las formas actuales, incorporando cada uno de sus cambios. Así, no sólo se forman y transforman territorios, si no, las territorialidades.

Con fundamento en estos supuestos, la tesis realiza una propuesta teórica y metodológica para geografar la historia de la producción del espacio, que lleva a reconocer que el espacio guarda y revela los procesos históricos de larga duración que lo constituyen, que se manifiestan en sus formas actuales. Esta discusión es realizada en el primer capítulo, relacionando los conceptos de frontera, territorio, territorialidades, territorialización, formación territorial, resistencias y re-existencias; y

en dos artículos publicados en las revistas ANPEGE y Geographia de la UFF (HURTADO, 2021, HURTADO & PORTO-GONÇALVES, 2022).

En una segunda parte, se analiza la formación territorial en una frontera interna colombiana, La Macarena, localizada en el encuentro entre los Andes, la Amazonia y la Orinoquia. Una región de (des) encuentros entre seis territorialidades, cuyas geografías se superponen en el tiempo y en el espacio: las comunidades indígenas, las campesinas, el Estado, el capital, las guerrillas y los ejércitos de paramilitares. Se estudia la transformación de esas territorialidades en la disputa por la apropiación material y simbólica de ese espacio, así como las transformaciones espaciales que le suceden, con especial interés en los movimientos colono-campesinos.

La complejidad de la presencia del Estado es representada a partir del análisis de tres proyectos de ordenamiento territorial: el ambiental que primero fue de conservación, el de seguridad que también ha sido criminalizador, y el de desarrollo que inicialmente fue de progreso. Esos proyectos se forman y transforman, tienen continuidades y rupturas en los diferentes tiempos espaciales, pero siempre buscando la dominación del otro, indígena, colono-campesino, habitante urbano, en los cuales no reconoce fuentes de autoridad.

A esos procesos dominantes se contraponen, proyectos de ordenamiento territorial local, de las comunidades colono-campesinas que resisten, pero también re-existen y que se materializan en territorializaciones de refugio-resistencia, colonización dirigida pelos sindicatos agrarios, redes de zonas de reserva campesinas, organizaciones cívicas, agrarias, por la defensa derechos humanos, ambientalistas y agroecológicas. En síntesis, redes de vida que buscan formas otras de ser y estar en el espacio geográfico.

La FT de La Macarena se analiza en cinco tiempos espaciales (SANTOS, 1977; WALLERSTEIN, 1989). Considerando que espacio y tiempo son una sola categoría, pues para cada tiempo hay una correspondencia espacial. Y realiza un estudio geo-histórico de los conflictos, que da cuenta de la simultaneidad y superposición espaciotemporal de múltiples territorialidades, captando el movimiento en la formación territorios, el flujo, como sucesión, coexistencia y superposición, en un espacio concreto.

El primer tiempo espacial aborda la desterritorialización de las comunidades indígenas en los periodos de la conquista, la colonia y posteriormente los conflictos entre indígenas y hacendados. Reconoce que en la FT de la Macarena los pueblos indígenas tienen un papel principal, aunque por lo general han sido invisibilizados. Esta discusión se aborda en el capítulo 1, sección 1.1.2, “De zona de transición de ecosistemas y territorialidades a frontera interna.”

El segundo tiempo espacial, entre 1948 y 1974 (capítulo 2), es definido como de desterritorialización para la consolidación del binomio latifundio-agroindustria y reterritorialización campesina de refugio-resistencia y re-existencia. Se inscribe en el período conocido como La Violencia en Colombia (1930 y 1964) y continúa con la violencia insurgente y contrainsurgente (1964-1980).

Los proyectos de ordenamiento territorial con los cuales el Estado avanza para establecer el dominio en la región tomaron diversas formas, siempre inspiradas en los viejos imaginarios coloniales. De un lado la visión de progreso creó estereotipos sobre los campesinos como obstáculo para el progreso, pueblos atrasados y como amenaza al orden nacional por resistir a la violencia de manera organizada. Los campesinos fueron desterritorializados violentamente por el Estado y las elites agrarias, a través de grupos de justicia privada ilegal, o del abandono de los proyectos de colonización dirigida promovidos por el gobierno. El proyecto conservacionista tomó forma en el año 1948 con la creación de la Reserva Biológica de la Macarena, promoviendo áreas reservadas sin gente, con lo cual opuso la conservación al desarrollo de las culturas campesinas. Los campesinos fueron tratados como invasores, pues se consideraba que hacían una colonización voraz y rapaz, sin cuestionar las causas del avance sobre la frontera agraria.

Esas violencias físicas y simbólicas ejercidas por el Estado hacia los campesinos desencadenaron procesos de resistencia que se reflejaron en las columnas en marcha, las autodefensas campesinas y posteriormente en las guerrillas móviles, así como nuevas colonizaciones dirigidas no por el Estado, si no por los sindicatos agrarios y otras formas organizativas.

El tercer tiempo espacial entre 1975 y 1989, se denomina “Soberanía en disputa por el control territorial: movimientos colono-campesinos, estado, coca, guerrilla y paramilitarismo”. Inicia hacia mediados de los años setenta con la plantación de los cultivos de marihuana y después de coca, caracterizado por el

aumento del paramilitarismo y la ampliación del poder de las guerrillas. De forma paralela se dio una pérdida de las condiciones de producción-reproducción de la vida campesina debido al enraizamiento de la producción y transformación de la hoja de coca para la producción de pasta base de cocaína.

El Estado creó una división político-administrativa (municipios y departamentos) y reformó áreas protegidas, sustituyendo la Reserva Biológica de La Macarena por el Área de Manejo Especial (AMEM). Por otro, la guerrilla de las FARC ejerció un poder local y trazó otros límites, configurándose en un orden alternativo que disputa el control de esa área con el Estado. Finalmente, emerge el paramilitarismo aliado a las elites, con la pretensión de eliminar las bases sociales de la guerrilla, y de disputar las áreas con predominio de la economía de la coca. Por tanto, se concluye que la soberanía territorial está en disputa.

Lo procesos organizativos colono-campesinos se consolidan, a través de una colonización dirigida por los sindicatos agrarios, ocupan la Reserva Biológica y se registra un aumento de la protesta con el acompañamiento de un partido político organizado, la Unión Patriótica (UP), que posteriormente es criminalizado y exterminado por las elites y el gobierno nacional. Expresan el desacuerdo con las políticas de criminalización, desterritorialización y exclusión, buscando también nuevos espacios, no sólo de refugio, sino de negociación con el Estado. Entran en movimiento para rechazar el lugar al que históricamente estaban asignados dentro de las relaciones sociales y de poder.

El cuarto espacio-tiempo, entre 1990 y 2002, “Entre la guerra y la paz; la política como la continuación de la guerra por otros medios” (capítulo 4), tiene como marca la contradicción entre políticas estatales. De un lado el proyecto de desarrollo rural diseñó estrategias para el reconocimiento y protección de las territorialidades campesinas en zonas de frontera de colonización, a través de la conformación de las Zonas de Reserva Campesina (ZRC). De otro, el proyecto de seguridad/criminalizador declaró como áreas de orden público bajo la figura de estado sitio, los departamentos de los cuales emanó la propuesta de las ZRC. De forma paralela se inició la implementación de una política antidrogas que enmascaró una política contrainsurgente. En consecuencia, mientras el proyecto ambiental buscaba la protección y conservación de áreas protegidas, el proyecto criminalizador con la política de erradicación forzada de cultivos de coca fumigaba con glifosato las

zonas aledañas a las áreas protegidas, trayendo como resultado el avance de la colonización sobre las áreas de fragilidad ambiental, en las áreas protegidas del AMEM.

El quinto tiempo espacial llamado “Retomada del control territorial por parte del Estado” ocurre entre 2002-2013 (capítulo 5), en el cual se hace más intensa la violencia de Estado y de los grupos paramilitares, a través de la puesta en marcha del Plan Colombia, el Plan Patriota y el Plan de Consolidación Integral, lo cual generó un movimiento de desterritorialización de las fronteras agrarias hacia los centros urbanos. Se destacan también procesos de re-existencia de los grupos campesinos, con los objetivos de permanecer en el territorio y de re-inventar las territorialidades, que se reflejan en la lucha por los derechos humanos, por la constitución de las ZRC, así como la emergencia de procesos identitarios como campesinos ambientalistas y agroecologistas. Este tiempo espacial también estuvo atravesado en sus últimos años por un nuevo proceso de paz (2012-2016) entre la guerrilla de las FARC y el gobierno nacional.

Las discusiones de los capítulos dos a cinco han sido publicadas en un capítulo del libro Geografía e giro decolonial en 2017 y en dos artículos académicos en las revistas Mundo Amazónico de la Universidad Nacional de Colombia, Sede Amazonia y Novos Cadernos NAEA de la Universidad Federal de Pará (HURTADO, 2017, 2021, 2023).

Para finalizar, el sexto capítulo concluye, que los conflictos territoriales han ido transformando ese espacio geográfico donde el dominio territorial está en disputa. En el cual el Estado diseña representaciones del espacio y pone en marcha proyectos y políticas, pero en ese proceso encuentra resistencias y re-existencias de los espacios de vida, proyectos y redes de poderes locales.

Se destacan tres movimientos de la formación territorial en la Macarena. En primer lugar los de des-reterritorialización que continúan abiertos, y se han expresado de tres formas: (1) en los procesos de expulsión o desplazamiento forzado desde los Andes y el Caribe hacia la Macarena, convirtiéndose en territorio de refugio-resistencia; (2) en el desplazamiento forzado desde las zonas rurales y urbanas de la Macarena hacia los centros poblados, ciudades y otras fronteras agrarias, en un movimiento de contraflujo que da continuidad a los frentes de

expansión; (3) desterritorialización como confinamiento, pérdida de movilidad, tanto en su sentido físico, como en el simbólico-político.

Un segundo movimiento, de re-territorialización en re-existencia y resistencia de los pueblos que están en lucha y que han sido sistemáticamente desterritorializados, tanto en su sentido físico como epistémico. La geograficidad de los movimientos sociales de la Macarena se manifestó simultáneamente de tres formas: (1) reterritoralizaciones que emergen en medio de las relaciones conflictivas, como las organizaciones de autodefensa de la vida y el territorio, o las que buscan darles nuevos sentidos a las representaciones del espacio, como los cocaleros o las organizaciones campesinas ambientalistas. (2) Aquellas que buscan restablecer las condiciones para la producción y reproducción de la vida, a través de las diversas formas organizativas, destacando el papel del campesinado como productor de alimentos a través de la producción agroecológica. Finalmente, a partir de la politización de la materialidad concreta del espacio geográfico que ocupan, las características ambientales, o las regiones naturales, en fin, la naturaleza.

Un tercer movimiento de la FT, la superposición de geografías como expresión de los conflictos territoriales en la Macarena en los espacios-tiempos, mostrando su diversidad y complejidad, que se expresa por lo menos de tres formas. Primero, entre figuras legalmente reconocidas, que delimitan diferentes procesos de territorialización, que se influencian mutuamente en diferentes escalas, como, por ejemplo, entre figuras de conservación, de ordenamiento político administrativo, de territorialidades indígenas y campesinas. Todas ellas con delimitaciones, autoridades e instrumentos de planeación diferentes y, en muchos casos, contrapuestos. Segundo, sobre territorios que no están claramente delimitados, cuyas fronteras son porosas y móviles, territorialidades que se desenvuelven en la clandestinidad y que están en disputa, como las territorialidades de la guerrilla de las FARC y de los paramilitares. Finalmente, las diferentes facetas contradictorias y superpuestas de un proyecto de ordenamiento territorial, como el caso del proyecto de seguridad nacional, que contempló en diferentes tiempos espaciales la negociación de la paz con la guerrilla de las FARC, al tiempo que militarizó territorios y avanzó con procesos de pacificación violenta.

Finalmente, es importante resaltar que la investigación está comprometida con una geografía en movimiento. Es decir, que se preocupa en entender la

formación y transformación de las territorialidades y de los territorios en sus dimensiones escalar, temporal y espacial, como Milton Santos (1977) propuso a los geógrafos. De ahí se desprenden las tentativas de síntesis y clasificación de los movimientos de des-reterritorialización y de superposiciones simultáneas en los espacios-tiempos de las fronteras internas. La tesis también está comprometida con mudar las relaciones sociales y de poder, entrar en movimiento buscando horizontes de sentido en las resistencias y re-existencias de los pueblos que luchan.


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Dissertação de Mestrado1


SANDONATO, Diogo Loibel2. Políticas Ambientais e Conflitos Territoriais no Acre, Brasil: O Sistema Estadual de Incentivos a Serviços Ambientais (SISA). 2023. 354f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade Federal Fluminense, Niterói.

Resumo expandido


O Sistema Estadual de Incentivos a Serviços Ambientais (SISA), consolidado pela lei estadual nº 2.308 de 2010, é uma estratégia estadual de captação e aplicação de recursos na implementação de planos e programas do governo estadual que abrange o estado do Acre como um todo, reservas extrativistas, terras indígenas, assentamentos, unidades de conservação, propriedades particulares etc. Integra os serviços ambientais com o desenvolvimento de cadeias produtivas, como por exemplo, a cadeia da madeira, da castanha, da borracha, do peixe e até a do gado. Tem um complexo e diverso conjunto de agentes que participam do planejamento e implementação desse sistema no Acre (ACRE, 2010, 2012, 2013a).

Mas por que isso ocorre no Acre? Como esse sistema funciona e o dinheiro flui por ele? Como ele interage com áreas legalmente protegidas? Qual a relação do dinheiro captado pelos mecanismos de serviços ambientais e o desenvolvimento das cadeias produtivas? A partir dessas questões definimos os objetivos da dissertação: analisar as propostas e efeitos do planejamento, regulamentação e execução de


1 Dissertação recebida em 19/01/2024. Aprovada pelos editores em 29/01/2024. Publicada em 22/02/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.61505.

2 Doutor em Ciências Ambientais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Paulo - Brasil. Mestre em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói - Brasil, com dissertação orientada por Carlos Walter Porto-Gonçalves. Professor de biologia da rede pública estadual da Bahia. E-mail: mphsto@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2852459355299307.

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1433-041X.

políticas e projetos relacionados ao capitalismo verde no Acre, especialmente o SISA, e os potenciais conflitos territoriais gerados.

Para tal, como método de investigação, realizamos uma análise qualitativa com base nos pressupostos conceituais de conflito de Porto-Gonçalves (2013) e produção do espaço de Lefebvre (2006) entre outras ferramentas. Analisamos diversos documentos, o discurso e a prática dos principais agentes envolvidos na estabelecidas e a história dos conflitos com suas negociações, alianças, acomodações e rupturas políticas. Realizamos levantamento bibliográfico em fontes diversas como livros, artigos, periódicos jornalísticos, publicações das organizações e órgãos alvos da pesquisa, sítios com dados dos projetos, leis, decretos, acordos e, quando possível, bancos de dados de parte dos atores envolvidos. Também realizamos entrevistas semiestruturadas e acompanhamos reuniões.

No capítulo 1, focado no marco teórico-conceitual que subsidia a dissertação, demarcamos que o ponto de partida é concreto, mundano, terreno: é o conflito, a contradição em estado prático (PORTO-GONÇALVES, 2013). Famílias são impedidas de reproduzir suas condições de vida, de usufruir dos bens naturais presentes em seu território. Agora para usufruir desses bens, é preciso de um conhecimento técnico-científico e recursos financeiros para formular planos de manejo, conseguir concessões, obter assistência técnica. Acreditamos que a opção metodológica de privilegiar o conflito, como centro da análise ajuda a entender a complexidade do que se passa no Acre. Mas, não se trata de qualquer conflito, mas sim um conflito que envolve diferentes territorialidades, formas de se apropriar do espaço, conflito territorial, portanto.

Outro elemento fundamental é entender o atual momento do processo de acumulação e crise do capital e as formas pelas quais ele se expande, produz novos espaços. Para tal, com base em autores como Marx, Rosa Luxemburgo e outros mais recentes como Harvey e Bartra, relacionamos a crise do capital com acumulação primitiva/por espoliação e com os territórios ainda não completamente penetrados pelo capital, caso por exemplo das terras indígenas e reservas extrativistas, como ocorre no Acre, onde quase 50% da área do Estado é legalmente regulada como áreas protegidas (ACRE, 2013b).

Para entender os conflitos territoriais no Acre, é preciso identificar em que escala operam os principais agentes que estão definindo o que está sendo realizado lá e através de que formas, quem planeja a produção do espaço (espaço concebido). Quem define os mecanismos? Quem financia? Quais são as regras? Podemos entender que os acordos internacionais, frutos de grandes convenções e os mecanismos jurídicos e financeiros relacionados a economia verde, como o SISA no Acre, são parte do Neoliberalismo Ambiental (PORTO-GONÇALVES, 2006; LEFF, 2008), um sistema de normas que é operado principalmente por agentes que atuam em escala global (grandes ONGs ambientais, empresas, instituições multilaterais) aliados a gestores e classes proprietárias à escala nacional/regional/estadual/local e que são aplicadas em territórios como reservas extrativistas e terras indígenas através do que Milton chama de verticalidades (SANTOS, 2008).

No Acre, o saber dos seringueiros é desqualificado e sujeitos de fora, técnicos, biólogos, engenheiros é que passam a definir como manejar a floresta, como cortar a madeira, como extrair o mel etc. Isso demonstra uma relação de saber/poder em que apenas os que detêm recursos para produzir um determinado conhecimento, técnico-científico, são legitimados, e que passam a determinar o acesso a extração dos bens naturais dentro de “regras do jogo” que definem como “racional”. A perspectiva da “gestão racional”, com base no saber técnico-científico convencional, é fortemente etnocêntrica, marcado pela colonialidade do saber e do poder (PORTO-GONÇALVES, 2006).

No capítulo 2, abordamos o contexto presente no Acre que possibilitou que lá surgisse o SISA. No conflito, as posições e interesses dos diferentes agentes envolvidos ficam mais explícitos (PORTO-GONÇALVES, 2013), e com isso, fica claro que a questão ambiental não é consensual. Na verdade, temos um campo (BOURDIEU, 1996, 2001) com diferentes forças sociais que disputam, com graus diferentes de visibilidade e poder, as concepções do que seria o problema e as soluções para o meio ambiente.

Para entender como se dão essas disputas no interior do campo ambiental, outra reflexão pertinente é a de “confluência perversa” (DAGNINO, 2004) que ajuda analisar porque, por exemplo, no Acre, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)

financia a criação de unidades de conservação (SOUZA, 2009). Demandas e bandeiras de luta que antes eram do polo crítico ao desenvolvimento, passam, em parte, a serem também de um banco multilateral de desenvolvimento, o que demonstra a complexidade do campo. Ainda dentro da dinâmica de disputa das forças dentro do campo ambiental, podemos pensar na necessidade de legitimação do capital no seu novo momento de acumulação, e, portanto, a necessidade de um novo discurso que dialogue mais com as críticas, no nosso caso, ambientais, ao seu desenvolvimento, um novo espírito do capitalismo (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009). Essas ferramentas de análise nos ajudam a entender como se conformou a ideia de “desenvolvimento sustentável” e seu derivado mais recente, “economia verde”. Apesar da retórica em favor desses mecanismos, quando analisamos a dinâmica do mercado ao qual estão inseridos, os limites de superar problemas ambientais ficam evidentes. Para pagar o “custo da oportunidade” do não desmatando das florestas, precisa haver uma demanda pelos créditos de compensação e, por tanto, o crescimento das atividades que geram a necessidade de comprar esses créditos, atividades essas que geram um aumento da poluição e emissão de gases do efeito estufa (MORENO, 2011). Então, vemos um atrelamento da chamada “economia marrom” a “economia verde”, pois quanto maior for a atividade industrial e do agronegócio, maior é o valor dos “ativos ambientais”. (PACKER, 2012). Além disso, como o central é a redução de emissões, créditos podem ser gerados por projetos de recuperação de áreas degradadas com monocultivos florestais, o que não tem efetividade na recuperação de biodiversidade. (MORENO, 2011). O REDD/REDD+ é uma forma de integrar novas áreas ao mercado capitalista, principalmente terras públicas ou territórios de povos indígenas, quilombolas e camponeses, gerando um processo de mercantilização e de especulação desses territórios e, portanto, de tensões entre territorialidades (PORTO-GONÇALVES, 2006, 2012). Como muitas das áreas que estão sendo incorporadas, principalmente na Amazônia, têm dinâmicas de apropriação comunitária da terra, quase sempre consuetudinárias, não baseadas no nosso direito formal, distintas da lógica da propriedade privada e por tanto com regulação jurídica formalmente precária, são mais suscetíveis as pressões geradas pelos processos de privatização e mercantilização dos mecanismos de REDD e REDD+ (PORTO GONÇALVES, 2012). São áreas vulneráveis

a violação dos direitos humanos e ao consentimento livre, prévio e informado, entre outras, criando ou acirrando processos de conflito (MORENO, 2011). Além disso, os projetos de REDD limitam as práticas desses povos nos territórios, algo recorrente nas políticas ambientais no Brasil conforme afirma Porto-Gonçalves (2006) alertando que unidades de conservação estão sendo criadas sem a primazia do controle e gestão dos bens naturais pelas populações originárias, passando para ONGs e empresas a administração do “uso racional dos recursos naturais”.

Para entender como chegamos no SISA, um primeiro fator é identificar que o SISA é fruto de um histórico de políticas ambientais que podemos traçar desde o final da década de 80, das quais podemos destacar o Zoneamento Ecológico-Econômico, a Política de Valorização do Ativo Ambiental Florestal e Plano Estadual de Prevenção e Controle do Desmatamento do Acre – (PPCD/AC), que fornecem as bases e diretrizes para a formulação e aplicação do SISA (ACRE, 2013a). Essas políticas foram formuladas principalmente por um bloco amplo e contraditório (elite local, grandes ONGs ambientais, partidos políticos, corpo técnico de universidades, instituições multilaterais e parte do movimento seringueiro) que foi se formando desde então e que ganhou mais poder no Acre em 1999, quando passou a hegemonizar as ações do Estado.

Também é importante entender a influência das instituições multilaterais e dos grandes empréstimos internacionais e nacionais, feitos ao longo dos anos por essa frente ampla que assumiu o poder do Estado. Empréstimos esses que influenciaram o ordenamento territorial através da formulação do zoneamento ecológico-econômico do estado, que a princípio foi uma condição que o BID impôs para liberar um dos empréstimos (SOUZA, 2009). Também influenciaram na definição dos programas e políticas estaduais que tem relação com o projeto da frente que hegemoniza o poder no estado e com as políticas ambientais em curso. Dentre os agentes desse bloco de poder, é importante destacar o papel das grandes ONGs ambientais, internacionais, nacionais e regionais no processo de construção e manutenção da hegemonia e também da formulação das políticas ambientais no Acre.

No capítulo 3 descrevemos a arquitetura do SISA, um sistema jurisdicional monitorado institucionalmente, que criou estruturas, como IMC (Instituto de Mudanças

Climáticas) e CDSA (Companhia de Desenvolvimento de Serviços Ambientais), e tem participação de diversas secretarias de estado (ACRE, 2010), e muitos agentes envolvidos como já foi colocado. Ele foi pensado para promover o “desenvolvimento sustentável”, na qual a floresta é considerada provedora de “produtos e serviços ambientais” (ACRE, 2013a) e as ações devem ser pensadas para integrar essas áreas florestais com áreas já convertidas, por meio de um “uso eficiente do território e dos recursos naturais, promovendo assim a conciliação entre desenvolvimento econômico e conservação ambiental” (ACRE, 2012, p. 10). Abarca tanto as ações por dentro do Estado como também os projetos privados de REDD, entre outros projetos relacionados aos serviços ambientais. Além das reduções de emissões de CO2, através do Programa de Incentivo a Serviços Ambientais - Carbono (ISA Carbono), programas voltados para sociobiodiversidade, recursos hídricos, beleza cênica natural, regulação do clima, valorização do conhecimento tradicional ecossistêmico e conservação e melhoramento do solo também são contemplados (ACRE, 2010). Como já abordamos anteriormente baseado em Moreno (2012) e Packer (2012), a lógica de custo de oportunidade é perversa pois atrela a valorização da “floresta em pé” por mecanismos econômicos com a pressão e ameaça exercida sobre os considerados “ativos ambientais”, seguindo uma lógica de especulação financeira e uma possibilidade de extrair, por exemplo, uma renda de monopólio por esses “ativos”. Essa suposta transição para uma “nova economia”, seguindo essa lógica, não deve afetar as taxas de lucro, ou seja, deve ser tão rentável quanto uma atividade como a pecuária extensiva que consegue altas taxas de lucros baseada na não contabilização das assim consideradas “externalidades” como por exemplo legislação trabalhista e ambiental. A lógica é predominantemente financeira.

Passando de um projeto de pagamento por serviços ambientais com foco em áreas específicas para um sistema estadual de incentivos aos serviços ambientais, tivemos uma mudança de abordagem. Ele passa a ter um escopo ambicioso, agora abrange o estado do Acre por completo, inclusive as áreas geridas pelo governo federal, como unidades de conservação e assentamentos federais, como também as propriedades privadas além das terras indígenas (ANDERSON et. al., 2013). Além disso, diferente de uma abordagem de projeto, esse sistema jurisdicional é transversal

as políticas ambientais do Estado, intervêm na paisagem e cadeias produtivas e os benefícios provindo pela captação dos recursos do sistema são prioritariamente aplicados através de incentivos gerados por políticas públicas em vez de pagamentos diretos. Mas a forma de repartição de benefícios e promoção de políticas públicas é flexível e torna possível enquadrar como “provedores de serviços ambientais”, grandes latifundiários que passam a aumentar a taxa de cabeças de gado por hectare, passando a realizar uma “pecuária sustentável”, assim como empresas madeireiras que realizam manejo empresarial em áreas de florestas estaduais, pois estão promovendo o “manejo sustentável da floresta”.

A estrutura do SISA evidencia as estratégias refinadas de manutenção da hegemonia da frente no Acre, uma arquitetura débil de participação popular na formulação e aplicação das políticas no Estado, através de conselhos estaduais e construção de “salvaguardas socioambientais”. O SISA, por meio de toda sua flexibilidade e multiplicidade de arranjos, funciona como um “polvo” com muitos braços de atuação, seja estimulando a iniciativa privada com projetos, seja por dentro do aparato de estado, intervindo com seus “incentivos” por meio políticas públicas e demais ferramentas. O sistema funciona em diversas escalas, intervindo na paisagem e em cadeias produtivas.

Ainda no capítulo 3 abordamos a negociação de uma doação condicionada do banco alemão KfW, no chamado programa “REDD Early Movers” e como os recursos provindos desse banco foram alocados. Foi o primeiro grande recurso captado pelo SISA. O banco alemão transfere os recursos com base nas reduções de emissões relacionadas a desmatamento e degradação que já ocorreram em anos anteriores ou que estão acontecendo agora.

Com a análise da conjuntura acreana e a descrição das políticas e mecanismos realizados até aqui, no capítulo 4, abordamos os impactos e conflitos gerados a partir de dados empíricos e os investimentos realizados, principalmente do programa do REM KfW, em cada área ou cadeia produtiva. O SISA tem um avançado aparato de monitoramento e fiscalização das reduções de desmatamento que envolve diversas estruturas para dar conta de um dos principais objetivos declarados das políticas ambientais do Acre, reduzir o desmatamento. Porém, o foco do desmatamento é

colocado em cima principalmente dos assentamentos rurais e pouco se fala por exemplo da influência das propriedades privadas nas taxas de desmatamento. As análises realizadas (ACRE, 2013c; ANDERSON et. al., 2013; ALENCAR et. al., 2012) não expõe a diferença entre categorias fundiárias no que diz respeito a quantidade de pessoas que utilizam essas áreas na hora de considerar os principais responsáveis pelo desmatamento. Por conta disso, órgãos como IBAMA e ICMBio direcionam a maior parte dos esforços de suas ações repressoras nos agricultores familiares e extrativistas

Parte do dinheiro que chega através dos mecanismos de redução de emissões de carbono está sendo aplicado na pecuária extensiva beneficiando latifundiários. Isso se dá por conta do SISA permitir que os recursos captados sejam investidos em quem promove “fluxo”/desmatamento, por que isso pretensamente reduz a pressão sobre a floresta. Isso justifica, por exemplo, a destinação de 4,6 milhões de reais para o setor da pecuária associado ao subprograma de “Pecuária Sustentável”. Como a pecuária tem grande influência no desmatamento, por tanto promove “fluxo”, ela deve ser incentivada. A lógica que justifica esse tipo de estratégia é de que investindo no agronegócio, com um aumento na eficiência da alocação de cabeças de gado por hectare, reduziria a necessidade de abertura de novas áreas. Entretanto, o estudo que foi um dos subsídios para pensar o subprograma (ALENCAR et. al., 2012) aponta que, do ponto de vista econômico, a melhor estratégia é intensificar parte das áreas e abrir outras, ou seja, o mais provável é que o subprograma gere uma intensificação de parte das pastagens dos pecuaristas que utilizem o lucro líquido disso na abertura de novas áreas para lucrar ainda mais.

Outro elemento importante são os conflitos gerados por políticas voltadas para agricultores familiares, seringueiros, ribeirinhos e indígenas, relacionados com a repressão e a proibição da reprodução das condições de vida. A ação repressora do ICMBio, IBAMA entre outros na proibição do uso dos bens naturais e das práticas culturais e históricas, como o uso do fogo, intensificou conflitos territoriais no estado.

O estado do Acre elegeu algumas cadeias produtivas prioritárias. Isso se dá através de modelos de integração dos diversos agentes das cadeias produtivas, como por exemplo o modelo da “Parceria Público-privada-Comunitária” (PPPC), em que além do Estado, através das políticas e programas, isenções fiscais e financiamentos, temos

a iniciativa privada, através, por exemplo, de fundos de investimentos privados (FIPs) e a participação “comunitária”, através de cooperativas centrais e associações.

Nos arranjos PPPC temos vários pontos positivos para o capital privado. O fornecimento de matéria-prima por meio das cooperativas e associações deixa a cargo dessas todas as dificuldades da produção, inclusive contribuindo para processos de precarização do trabalho. O aporte financeiro inicial necessário para estruturação de toda a cadeia fica por conta do governo que, para tal, tem que cada vez mais se endividar com bancos nacionais e multilaterais. Participando desse tipo de parceria mista, o capital privado também consegue acessar benefícios de políticas públicas que são destinadas apenas para agricultura familiar, como por exemplo os mercados institucionais do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) (CEPAL; IPEA; GIZ, 2014). Esse modelo tem o exemplo mais claro, na cadeia do peixe. Com essa cadeia conseguimos ver a complexidade e inter-relações do SISA e os principais beneficiados pelo sistema. Ela envolve dinheiro provindo das reduções de emissões, através do programa REM do KfW, de latifundiários locais que investem na Peixes da Amazônia S.A., de um banco nacional de desenvolvimento, o BNDES, para construção de um grade complexo agroindustrial, de um fundo privado de investimentos, de uma empresa mista com participação do governo estadual e a integração das comunidades em escala refinada através de diversas associações e pequenas cooperativas organizadas em uma central de cooperativas.

Podemos observar a integração subordinada dos povos da floresta que são direcionados a fazer a piscicultura e ficam dependentes da assistência técnica dos órgãos do estado, além de ter que comprar ração e alevinos do complexo agroindustrial, para onde tem que vender a produção. A piscicultura não é uma prática histórica das comunidades, pelo menos as da região da RESEX Chico Mendes. As cooperativas já foram criadas a partir da demanda do arranjo e da empresa o que demonstra a artificialidade da participação comunitária no processo. O arranjo de PPPC que pode proporcionar participação de pequena parcela das ações das empresas criadas pelas associações e cooperativas através de uma cooperativa central gera uma aparência de empoderamento e participação ativa das comunidades.

Nesse capítulo também damos destaque para a cadeia da madeira, principalmente ao abordar os planos de manejo comunitário que tem grande importância nos conflitos territoriais no Acre. Seja o manejo empresarial ou “manejo comunitário” com arranjos de PPPC como descrevemos, a madeira é um dos principais bens explorados no Acre, sendo a principal atividade econômica de base florestal representando 80% da receita florestal (ALENCAR et. al., 2012). Mas, diferentemente do preconizado, o manejo florestal comunitário não propiciou um controle das famílias participantes sobre todo o processo, tendo estes se restringindo a algumas etapas. Além disso, nenhuma das experiências gerou rentabilidade econômica frente a outras práticas produtivas tradicionais, como roçados, criação de animais e extrativismo. Esses planos se constituem em mais uma forma de integração subordinada dos povos da floresta a cadeias produtivas de interesse do capital e mais um processo que aprofunda a perda de autonomia e soberania em seus territórios. A impossibilidade de domínio dos meios de produção por parte das famílias que participam desse tipo de projeto inicia-se já no inventário, realizado por empresas especializadas – passando pela extração – não mais com motosserra e carro-de-boi, mas sim com diferentes tratores de corte e arraste – pelo beneficiamento – que, como aponta Araújo (2011), fica restrito à grande indústria de caráter global – e comercialização. As comunidades participantes na maior parte das vezes, apenas cedem as áreas que quando inventariadas não podem ser utilizadas para outros fins. Pelas entrevistas que realizamos na RESEX Chico Mendes e PAE Equador, para as famílias, além do valor irrisório pago, ficam os impactos negativos nas áreas de floresta como a diminuição da caça, aumento de sub-bosque com cipós com espinhos que dificultam a coleta de castanha e extração de borracha entre outros

Os projetos de manejo florestal “comunitário” são uma forma refinada e perversa de espolio dos bens naturais, no caso a madeira, de territórios como unidades de conservação, assentamentos rurais e terras indígenas. As grandes madeireiras, com a mediação do estado, ONGs e pseudocooperativas conseguem extrair esses bens de uma forma aparentemente menos conflitiva, visto que o manejo é considerado “sustentável” e as comunidades na teoria são beneficiadas. Esse tipo de ação

representa bem o novo padrão de conflitividade no Acre em comparação com a década de 70 e 80 onde os conflitos se davam de forma mais explícita.

O que vimos nessa pesquisa no Acre são as diversas formas em que são produzidos novos espaços capitalistas. Todo o projeto de “desenvolvimento sustentável” do estado e a concepção do SISA são pautados numa visão de mercado, através de cálculos de custo de oportunidade. Se fosse diferente, esse projeto enfrentaria o agronegócio, principal vetor de desmatamento e não faria um programa para justamente beneficiar o mesmo. O que se tenta fazer é mercantilizar e precificar os bens da floresta para “valorizar também a floresta em pé” em uma lógica hegemonicamente de mercado.

Podemos observar um novo padrão de conflitividade no Acre em que os conflitos geralmente estão associados à soberania territorial dos povos e como esses projetos afetam a dinâmica de reprodução dos mesmos em seus territórios. Esse padrão é associado com as novas formas em que se articulam os momentos de produção do espaço com as formas atuais de acumulação capitalista.

De forma geral, vemos um processo articulado de expansão e penetração do capital no Acre em três movimentos articulados que geram o padrão conflitivo atual: i) por um lado, um movimento mais explícito em que os territórios são imobilizados, devido as políticas de redução de desmatamento e também exploração de bens como madeira, impedindo que os que ali habitam possam usufruir dos bens e realizar as práticas como a agricultura de coivara, necessários para reprodução das condições de vida. Aqui as populações são direcionadas a comprar bens necessários através de PSA, gerando uma maior penetração do capital em espaços antes não tão mediados por dinheiro; ii) por outro lado, um processo que é menos explícito, de integração dos que habitam os territórios, de forma subordinada, a cadeias produtivas prioritárias para o bloco hegemônico como por exemplo a cadeia da madeira e do peixe, gerando um processo de perda de autonomia; iii) o terceiro movimento, estimulado por recursos gerados pelo primeiro e segundo, gera uma modernização conservadora do agronegócio, marcadamente da pecuária extensiva.

Uma clara mudança de postura do antigo bloco no poder e o atual no que diz respeito a interação com os movimentos sociais, associações e sindicatos. Isso é

explicitado pela mudança nas características dos conflitos territoriais. Passam de explícita violência dos assassinatos e expulsões e da estratégia de maior enfrentamento dos movimentos sociais e sindicatos para conflitos territoriais mais velados que atacam os modos de vida nos territórios, mas, que ao mesmo tempo trazem políticas sociais e programas, que em parte são negociadas pelos movimentos sociais, associações e sindicatos. Quando falamos da imobilização de partes de territórios e a extração de bens que não geram benefícios para as comunidades que habitam esses espaços, como no caso do manejo florestal comunitário, estamos falando de um processo de acumulação por espoliação. Processo este que está articulado com outras formas de acumulação através do desenvolvimento das cadeias produtivas através das PPPC. Um movimento conjunto de espoliação e cerceamento dos direitos das populações junto aos seus territórios e uma integração subordinada dessas populações em cadeias produtivas através das políticas e programas sociais do Estado.

Consideramos que a questão central colocada por essa dissertação é o ataque a autonomia e bens dos territórios que são ainda fronteiras para a acumulação do capital. O capital em sua dinâmica de acumulação, se expande constantemente, lidando com suas próprias crises, e se apropria sempre de novos áreas produzindo novos espaços capitalistas. Os mecanismos do SISA que debatemos são mais uma forma de expansão do capital articulada e potencializando os outros processos de acumulação. Esse processo gera conflitos territoriais com o ataque aos modos e condições de reprodução da vida dos povos em seus territórios.


Referências


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Branco, 209 p., 2013b.


       . Avaliação do desmatamento no estado do Acre para os anos 2011 e 2012 com base na metodologia da UCEGEO. Instituto de Mudanças Climáticas e Regulação de Serviços Ambientais (IMC), Rio Branco, 44 p, 2013c.


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V.22, no 47, 2024 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799X


Memória e Documentos


PROF. HUGO ZEMELMAN: PARA RECUPERAR UMA VISÃO UTÓPICA1


Maria Ciavatta2


Acervo La Red CEPELA. Hugo Zemelman. Disponível em: https://www.redcepela.org/pensadores/hugo-zemelman/ - Acesso 17 de outubro de2023.


A seção Memória e Documentos reproduz, neste número de Trabalho Necessário, a entrevista “Recuperar uma visão utópica”, realizada nos anos 1990, com o Prof. Hugo Zemelman, importante intelectual latino-americano. É uma homenagem de reconhecimento à sua contribuição ao conhecimento e às ações de transformação das sociedades deste Continente.


1 Artigo recebido em 16/01/2024. Aprovado pelos editores: 29/01/2024. Publicado em 22/02/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.61456.

2 Doutora em Ciências Humanas (Educação), pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC- RJ), Rio de Janeiro - Brasil. Professora Titular de Trabalho e Educação na Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói - Brasil. E-mail: maria.ciavatta@gmail.com.

ORCID: https://orcid.org/0000.0001.5854.6063. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5368554854684382.

“Vou fazer a louvação, louvação, louvação do que deve ser louvado, ser louvado, ser louvado. Meu povo preste atenção, atenção, atenção, repare se estou errado, louvando o que bem merece, deixando o ruim de lado” (Gilberto Gil).


Assim compôs e cantou Gilberto Gil, em 1967, pouco antes do AI-5, em plenas trevas no Brasil do tempo da Ditadura (1964-1985), que iria se estender por vários países da América Latina. Em 1973, foi a vez do Chile com o Golpe Militar e a morte do líder socialista Salvador Allende. A diáspora de intelectuais e militantes políticos já tinha começado no Brasil, e o Prof. Hugo Zemelman vai estudar fora do país e se exila no México.

O Prof. Zemelman (1931-2013) merece ser louvado como uma fonte inesgotável de conhecimento, de generosidade, de agradável e culta convivência. Sociólogo e epistemólogo, dedicou-se aos estudos de direito, de sociologia rural e de educação. Radicou-se no México como professor da prestigiada Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM); no El Colegio de México, outra importante instituição de pesquisa e de pós-graduação; e na Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (FLACSO).

Realizou uma vasta carreira de conferências, publicações, de apoio a movimentos sociais. Em 2023 completaram-se dez anos de seu falecimento. Ao longo da década, foi objeto de vários estudos e de homenagens. Memória e Documentos da Revista Trabalho Necessário recupera a entrevista que a professora Célia Frazão Linhares e eu realizamos em 23 de setembro de 1993, quando ele veio estar conosco na Universidade Federal Fluminense (UFF). Como Professor Visitante do Programa de Pós-graduação em Educação, ele ministrou a disciplina “Os horizontes da razão e a produção do conhecimento” para o Curso de Mestrado em Educação. Na época, tramitava na UFF e na Capes, a proposta de criação do Doutorado em Educação.

Anos antes, aproximei-me dos textos do Prof. Zemelman no decorrer de meu Doutorado em Ciências Humanas – Educação. Eu buscava um encaminhamento teórico para passar da generalidade abstrata do pensamento educacional brasileiro à questão de como a relação educação e trabalho toma forma nos processos concretos das escolas que preparam para o trabalho, das escolas profissionais e técnicas.

Em uma viagem ao México, em 1988, a Profa. Guadelupe Bertussi da Universidad Pedagógica Nacional (UPN) me recomendou a leitura de um texto do

Prof. Zemelman “Problemas de explicación del comportamiento reproductivo (sobre las mediaciones)”. Diz ele na apresentação do tema: “Estamos conscientes de la dificultad de analizar el movimiento del pensamiento analítico desde las más amplias abstraciones, que caracterizan a los esquemas interpretativos, hasta el nivel de lo empírico” (ZEMELMAN, [1988] (?), p. 1). Era a resposta teórica ao meu problema de tese, que foi se ampliando com outros conceitos básicos do materialismo histórico. A questão da totalidade social é dominante em seus escritos (v. 1987, 1987a; 1992a; 1992b). A totalidade implica o conceito de mediação (1989 a), de historicidade (1992b), de sujeitos sociais (1989a; 1989b), de tempo e espaço (1983), de dialética e de contradição (1983).

Este “abre-te sésamo” ao meu trabalho de tese foi o início de uma longa aprendizagem. Muitas de suas obras foram publicadas pela editora de El Colegio de México e da UNAM. Outras têm o selo editorial da Universidad de las Naciones Unidas, da Siglo Veintiuno, da Anthropos, da Nueva Sociedad. Três questões estão sempre presentes em seus escritos: a América Latina, as questões políticas e epistemológicas do ponto de vista da sociedade e do ser humano. Seus autores de referência são marxistas e não marxistas, filósofos, sociólogos, historiadores, antropólogos, economistas, pensadores de muitas filiações teóricas e temáticas.

Talvez, uma síntese da reflexão ampliada que ele conduziu ao longo de suas obras, sejam alguns comentários do Centro de Estudios Sociológicos de El Colegio de México, na última capa de “Uso crítico de la teoría”(1987a) : “Este libro constituye una reflexión epistemológica en torno al concepto de razón crítica; busca transformarlo en el núcleo de una metodología dinámica que sea capaz de aprehender la realidad social, heterogênea y en constante movimiento”. Zemelman faz uma apropriação crítica do marxismo a partir da Introdução de 1857 e de outros autores como Galvano Della Volpe, Karel Kosik, Ernest Bloch e outros mais com quem ele dialogou: Henri Lefebvre, Gyorgy Lukács, Pablo Gonzales Casanova, Antonio Gramsci, Hans-Georg Gadamer, Thomas Khun.

Selecionamos algumas obras que evidenciam a epistemologia marcada pelo social e pela política na América Latina. Ainda no Chile, no período Allende (1970 a 1973) publicou “El migrante rural” (1971), “El campesinato: clase y conciencia de clase. Factores determinantes en el surgimiento de la conciencia de clase (1972).

Alguns de seus livros publicados nos anos 1980 são: “Notas sobre cultura y creación política " (1981); “Historia y política en el conocimiento” (1983); “Uso crítico

da teoria. En torno a las funciones de la totalidade” (1987a); “De la historia a la política. La experiencia de América Latina” (1989 a) “Conocimiento y sujetos Sociales” (1989 b); “Crítica epistemológica dos indicadores” (1989 c).

Dos anos 1990 podemos citar: “Los horizontes de la razón. I. Dialéctica y apropiación del presente” (1992 a); “Los horizontes de la razón. II. Historia y necesidad de la utopía” (1992 b); “Determinismos y alternativas en las ciencias sociales en América Latina (1995); “El conocimiento como desafío posible” (1996).

No século XXI, “Necesidad de conciencia” (2002); e nos últimos anos de vida: “Horizontes de la Razón III: Uso crítico de la teoría. El orden del movimiento (2011); Pensar y poder. Razonar y gramática del pensar histórico “ (2012); “Lecciones teórico-políticas de la Coyuntura en Chile (1970-1973)” (2013).

A entrevista com o Prof. Zemelman foi realizada em 1993, na Faculdade de Educação, e publicada em 2001 pela Revista Educação & Sociedade. É o documento reproduzido neste exercício de memória e de reconhecimento. Teve como questão principal, “conhecer seu pensamento diante dos problemas postos pelo presente e pelo futuro em um mundo altamente tecnologizado e socialmente em desestruturação” (p. 295). Tínhamos em mente “a onda de exclusão e os limites dos sonhos de liberdade” trazidos pelo neoliberalismo na economia, no Estado e na sociedade. Era o início da reestruturação produtiva, do Estado mínimo, do corte de recursos para as políticas sociais, das tentativas de desregulamentação das relações de trabalho e da educação subsumida à ideologia das necessidades do mercado.

Estávamos na transição entre o governo Collor de Mello (1990 a 1992) e o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1998-2002), que seria eleito em 1994 e implementaria a ideologia neoliberal com todos os seus percalços para a população.

Zemelman (2001) parte do presente e mira “um conhecimento que tenha o sentido de recuperação da dignidade humana” para vislumbrar um “futuro possível”, uma visão utópica em seu sentido de emancipação. Lembra a prisão das lógicas deterministas e mecânicas do conhecimento. Afirma que se há de colocar em discussão que o ser humano alcançou um “desenvolvimento civilizatório máximo” e uma “debilidade intrínseca” que, no limite, pode levá-lo à morte. Há uma “perda do instinto de conservação” que se associa “a seu próprio progresso técnico e intelectual”. O ser humano destrói a natureza e destrói a si mesmo. É necessário

abandonar antigas ilusões sobre o ser humano como construtor de si mesmo e levá-lo a pensar nas “condições de poder dignificar-se” (p. 296).

Outro argumento importante é a questão da liberdade entendida “como possibilidade de realização da pessoa”, o que é cada vez mais negado pela “sociedade moderna, burocratizada e complexa”. Nela o ser humano é submetido “à lógica inexorável que o controla, que advém dos avanços tecnológicos”, em que são mínimos os espaços para sua condição de ser pensante, em que se perde a visão de futuro (p. 297). E é preciso lembrar que esta é uma reflexão feita há trinta anos atrás, antes dos avanços atuais das plataformas das mídias sociais, das possibilidades e das ameaças da Inteligência Artificial.

Zemelman destaca duas dimensões fundamentais da tecnologia, há um discurso ideológico hegemônico de que a tecnologia vai melhorar as condições de vida dos seres humanos. Segundo, disfarça a alta concentração de riqueza. É um discurso unilateral, reducionista que apresenta o “progresso tecnológico” como algo positivo. E o que fazem os meios de comunicação buscando satisfazer os clientes, cuja expressão maior é promover o consumismo. Gera-se uma “cultura sem subjetividade, uma cultura sem conteúdo, apenas instrumental”. É um “mecanismo de alienação e também de criação de subalternidade”. Através de “certos tipos de avanço tecnológico (...) há uma crescente solidão da pessoa”. (297-298).

A utilização da tecnologia por certos grupos, faz o autor refletir sobre a ilusão fáustica do homem criador, do homem prometeico, pela quantidade de invenções, de meios para controlar. No entanto, o relega a espaços mínimos de resistência, “deixando o resto de seu espaço social nas mãos de máquinas ou de instrumentos”, em que a emancipação é de certos homens, controlados por certos grupos de homens. O sentido fáustico transforma-se em “uma maquinaria voraz, insaciável que come seus próprios procriadores” (p. 298-299).

O ser humano é o único ser da natureza que destrói seu próprio habitat, que vai além de seus condicionamentos biológicos. Com o elemento prometeico vem “o elemento do aprendiz de feiticeiro, porque vem a esperança de criar sempre um ambiente novo onde possa se reproduzir”. O que pode chegar “à ficção, se destrói a natureza, podemos reconstruir a vida no espaço”. O que não será, evidentemente, para a humanidade inteira, “será apenas para aqueles que controlarem a tecnologia suficiente para construir seu habitat no espaço” (p. 299-300).

No último tópico da entrevista, Zemelman volta à ideia de uma “visão utópica que, no fundo, são compromissos com certos valores de libertação que não sejam simplesmente a projeção do discurso tecnológico”. Neste ponto, a educação teria um papel importante que ele sintetiza na ideia de que “se a educação não ensinar as novas gerações a pensar no contexto histórico, além das teorias, não podemos esperar que a gente jovem não continue na lógica que, neste momento, aparece dominada pelo discurso tecnológico” (p. 300). Hoje, estas ideias se expressam exponencialmente em práticas econômicas, de comunicação e de educação, no exacerbado consumo de bens materiais e digitais. Resta-nos fazer a leitura do contexto histórico em que vivemos e buscar recursos das ações coletivas em defesa da natureza, incluindo os seres humanos.


Referências3


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ZEMELMAN, H. El migrante rural. Instituto de Capacitación e Investigación en Reforma Agraria, (ICIRA); Santiago de Chile, 1971. 153 p.

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ZEMELMAN, H. Los horizontes de la razón II - História y necesidad de utopia. México, DF; Barcelona: Anthropos, 1992 b.

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ZEMELMAN, H. Historia y política en el conocimiento. México: UNAM, 1983.


ZEMELMAN, H. La totalidad como perspectiva de descubrimiento. Revista Mexicana de Sociologia, México, marzo/abril 1987. Separata.


3 Estas referências não incluem todas as obras do Prof. Hugo Zemelman.

ZEMELMAN, H. Uso crítico de la teoria. En torno a las funciones de la mediación. México, UNU/El Colegio de México, 1987a.

ZEMELMAN, H. Conocimiento y sujetos sociales. Contribuición al estudio del presente. México, DF: El Colegio de México, 1987 b.

ZEMELMAN, H. Problemas de explicación del comportamento reprodutivo.

(Sobre las mediaciones). México, DF: El Colégio de México, [1888] (?). Mimeo.

ZEMELMAN, H. Crítica epistemológica de los indicadores. México, DF: El Colegio de México, 1989 c.

ZEMELMAN, H. Determinismos y alternativas en ciencias sociales en América Latina. México, DF: UNAM; Caracas: Edit. Nueva Sociedad, 1995.

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ZEMELMAN, H. El conocimiento como desafio posible. Coimahue: Editorial EDUCO; Universidade Nacional de Comahue, 1996.

ZEMELMAN, H. Necesidad de conciencia. Un modo de construir conocimiento. México, DF: Anthropos, 2002.

ZEMELMAN, H. Pensar y poder. Razonar y gramática del pensar histórico. Siglo XX1 e UNICACH, 2012.

ZEMELMAN, H. Lecciones teórico-políticas de la Coyuntura en Chile (1970-1973). Teuken Bidikay Vol. 4, n° 4, e-ISBN 2619-1822 Medellín, 2013.


RECUPERAR UNA VISIÓN UTÓPICA (ENTREVISTA COM O PROF. DR. HUGO ZEMELMAN)*


Célia Frazão Linhares** Maria Ciavatta Franco***


RESUMO: Esta entrevista foi concedida pelo Prof. Hugo Zemelman, em 23 de setembro de 1993, quando, na qualidade de Professor Visitante, ele ministrou a disciplina “Os horizontes da razão e a produção do conhe- cimento” no Curso de Mestrado em Educação da Universidade Federal Fluminense. A preocupação das entrevistadoras foi conhecer seu pensamento diante dos problemas postos pelo presente e pelo futuro de um mundo altamente tecnologizado e socialmente em deses-truturação.

__

Palavras-chave: Razão; Visão Utópica; Liberdade; Latino-americano; Futuro.


(E) Aquí en Brasil estamos extremamente preocupados con esa desigual- dad, con esa onda de exclusión que viene tornándose cada vez más intensa. Parece que los límites del sueño de libertad se escapan de nuestras mentes. Este fin de siglo que nos prometió tanto en términos de razón, de ciencia, de escuela, nos aproximamos del próximo siglo amenazados por la deses- peranza, por la apatía. En este cuadro general, ¿Cuál es tu posición en torno de estas cuestiones fudamentales para la humanidad?, ¿En qué


* Hugo Zemelman é sociólogo, professor pesquisador de tempo integral do Centro de Estudos Sociológicos de El Colegio de México; conferencista e professor visitante em várias universidades latino-americanas, autor de artigos e livros tais como Uso crítico de la teoria (El Colegio de México, 1987), De la história a la Política – La experiencia de América Latina (Siglo Veintuno, 1989); Los horizontes de la razón (Anthropos, 1992); Determinismos y alternativas en las ciencias sociales de América Latina (coord.) (Nueva Sociedad, 1995). A entrevista será apresen- tada com as inicias (E) para as entrevistadoras e (HZ) para as respostas do entrevistado.

** Doutora em Filosofia, professora titular de Políticas Públicas e docente do Programa de Pós- Graduação em Educação (Mestrado e Doutorado), da Universidade Federal Fluminense (Niterói, RJ). E-mail: clinhar@pontocom.com.br

*** Doutora em Ciências Humanas (Educação), professora titular de Trabalho e Educação e docente do Programa de Pós-Graduação em Educação (Mestrado e Doutorado) da Universidade Federal Fluminense. E-mail: ciavatta@alternex.com.br


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espacio se puede soñar el sueño de la libertad, de la solidaridad y de la organización de un nuevo mundo sin exclusión?, ¿Cómo soñar ese sueño?,

¿Es posible?

(HZ) Creo que lo importante de reconocer en este momento es precisa- mente que se ha perdido la capacidad de sonãr. Creo que recuperarla es una tarea ineludible, fundamental en el presente. En el ámbito estricto de quienes están preocupados en construir un conocimiento que tenga un sentido de recuperación de la dignidad humana no puede ser ajeno en ese esfuerzo la recuperación de un sentido fundamental del conoci- miento, como es el de vislumbrar un futuro posible. Pero para lograr esto se requiere recuperar lo que se ha perdido junto con el sueño, se ha perdido la capacidad de pensar utópicamente. Recuperar la utopía en este momento creo que es consustancial a la construcción de conocimiento y al pensar mismo, porque es la forma que el hombre tiene de ver su propia circunstancia distanciándose de ella, y al distanciarse no quedarse atrapado como en una cárcel. Hay mucho discurso que expressa este sentimiento de prisión. Un discurso que continúe atado a ciertas lógicas de pensar muy deterministas y muy mecánicas no ayuda, por mucho que profundice en el conocimiento de la realidad, a recuperar un sentido emancipatorio porque carece de utopía. Y si esta utopía en definitiva no está ausente, en todo caso es una utopía que no es diferente a aquella que se pretende imponer.

Yo creo que el problema que tu disenãs supone en el ser humano, como lo han señalado muchas personas, colocar en la discusión problemas dolorosos, pero fundamentales. El primero de los cuales es tomar concien- cia de que por diversas razones el hombre ha alcanzado hoy en día, en su máximo desarrollo civilizatorio, una debilidad intrínseca hasta el punto de que puede colocarse en el límite de su propia muerte. Creo que temas como el de la pérdida del instinto de conservación, son temas que se han discutido poco y que de alguna manera creo que habría que colocar en el plano de la discusión, sobre todo si queremos recuperar una esperanza de futuro. Y curiosamente, la pérdida de ese instinto de conservación por parte del hombre está muy fuertemente asociada a su propio progreso técnico e intelectual. Ahí hay como una contradicción autodestructiva: mientras más capacidad tiene el hombre de enfrentar su realidad, menos instinto de preservarse.

Las lógicas económicas que vemos en este momento dominando el escanario de los países latinoamericanos, creando esas desigualdades y esas marginalidades crecientes son una demostración de lo que les digo. Evidentemente eso define desafíos importantes. El desafío está en volver


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a repensar viejas ilusiones como es la de hombre constructor de su destino, la del hombre constructor de vida, el hombre que controla la adversidad. Creo que eso es algo que en este momento está en cuestionamiento, creo que la mayor capacidad del hombre, en lugar de colocarlo frente al mundo y frente a la naturaleza, en condiciones de poder dignificarse, reconoce mucho más su capacidad, no digo sólo destructiva de lo que lo rodea, como la naturaleza, sino también autodestructiva.

En ese contexto yo ubicaría algunos temas más puntuales de tu pregunta. Uno de ellos sería el tema de la libertad, pero la libertad no en un sentido metafísico, sino la libertad como la posibilidad de realización de la persona. Cuando constatamos que la sociedad moderna, burocrática y compleja, sometida a procesos que se han sostenido, que son espectacu- lares, reduce el espacio del ser humano cada vez más, donde el individuo es cada vez menos importante, donde incluso el concepto de persona pierde relevancia, cuando la persona humana, el ser humano, el individuo queda cada vez más sometido a una lógica inexorable que lo controla, que deviene de los avances tecnológicos. Estamos hablando de un individuo que está encontrando en algunos espacios mínimos la salvación mínima de su condición de ser pensante. Porque el resto de los espacios de la sociedad están cada vez más controlados por una máquina infernal que tiene una lógica que lo aplasta. Cuando hablamos de libertad, estoy tratando de vincular el concepto de libertad a un sentido último que tiene la construcción del conocimiento. Y ese sentido último, en mi opinión, está en la posibilidad de leer, de interpretar, y por lo tanto de poder relacionarse con la realidad que nos condiciona desde una exigencia de futuro.

Esa exigencia de futuro es una exigencia valórica, axiológica, supone una visión de futuro, pero hemos perdido la visión de futuro. No se trata tampoco de una escatología, se trata más bien de colocarse en la postura desde una visión de futuro que nos permita leer la realidad que nos está en este momento condicionando, dándole, por lo tanto, no sólo al conocimiento que construyamos, sino a la propia práctica del sujeto, un sentido que trascienda las circunstancias más inmediatas.

(E) ¿Te parece que hay una relación fuerte, entre este estrechamiento de la libertad y toda esta ideología, este mito que se hace alrededor de la tecno- logía? Es decir, el periodismo, la literatura, los trabajos de ficción, el cine, la televisión, dan cuenta de una imagen de la tecnología que nos aplasta. La máquina se viene contra el hombre, la máquina es más poderosa que el hombre, tiene la fuerza y la capacidad de decisión que nosotros no tenemos y que nos va conduciendo hacia el desastre total, hacia el


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caos. Y de tanto escuchar esta versión mitológica, como si la tecnología se pusiera por arriba nuestro y en contra nuestro y fuera más poderosa que nosotros, nos quedamos con una apatía que se ahonda. ¿Cómo reaccionar con libertad frente al mundo tecnológico?

(HZ) La falta de libertad es una de las causas de la apatía, es una de las causas de la desesperanza. Un hombre, un individuo que no encuentra espacio de realización porque no es libre ni siquiera para poder decidir muchas veces sobre lo que es su existencia cotidiana, carece de sentido para él la vida y por lo tanto una forma de expresión que es la indiferencia, la inercia y la apatía. Pero ahora veamos el problema de la tecnología. La tecnología admitiría muchas formas de abordaje, pero quisiera ahora señalar dos dimensiones fundamentales. Una es la de la tecnología como un elemento central de un discurso ideológico hegemónico. La tecnología aparece como siendo el instrumento a través del cual la humanidad mejo- rará sus condiciones de vida. Ese es el envoltorio con que de alguna manera se hace llegar el mensaje tecnológico a grandes masas humanas. Pero esa dimensión encubre otros aspectos, encubre el hecho de que detrás de la tecnología lo que ocurre es que se disfraza lo que sabemos, una alta concentración de la riqueza. Pero veamos el problema con más detalle.

Muchas veces cuando se dice “el progreso tecnológico”se da por entendido que tiene invariablemente un signo positivo porque el modo de enfrentarmos con el desarrollo tecnológico es excesivamente unilateral o deliberadamente reduccionista. Reducción que impone este discurso que se pretende legitimar precisamnete a través del mensaje tecnológico. Y es reducir el concepto mismo de vida al de condiciones de vida. Es frecuente escuchar, y en los medios de comunicación de masa esto es muy ostensible, cotidianamente, la oferta que se hace a millones de perso- nas de satisfactores, a través de los cuales se les comvence que mejorarán sus condiciones de vida. Se avanza tecnológicamente y el avance tecno- lógico se presenta como idéntico a la capacidad de satisfacer con mejor calidad, necesidades del hombre. Sin embargo, lo que se oculta, lo que está detrás son otras dimensiones del concepto de la vida normal, cotidia- na de la persona como es por ejemplo entender que la vida cotidiana, que la vida del individuo concreto, natural, se resuelve sólo en la dimensión de los satisfactores. Pero muchas veces los satisfactores expresan enajenación, muchas veces los satisfactores, por básicos que éstos sean, son mecanismos también de subalternidad. La gente termina organizando sus vidas y reduciendo el sentido de su vida al alcance de satisfactores. La máxima expresión de esto es el consumismo que se asocia muy directamente con el desarrollo tecnológico. Pero se dejan de lado cosas


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que son tan importantes como el problema de la capacidad del individuo de decidir sobre su propia vida o podríamos llamarla, la capacidad de vida que, de alguna manera, expresa, traduce un enriquecimiento de su propia subjetividad. La sociedad, de alguna manera, la sociedad más avanzada, y la no tan avanzada camina, como diría Rudolf Bahro en dire- cción a transformar al hombre en una hormiga pensante. Eso en el mejor de los casos, pero si subjetividad. La tecnología puede llevar, en la medida en que no tome en cuenta esta dimensión de la subjetividad del individuo y de la capacidad de vida y reducir todo esto simplemente a condiciones de vida a una cultura, aunque esto puede parecer paradojal, a una cultura sin subjetividad, a una cultura sin contenido, solamente con instru- mentos. En este contexto de tecnología avanzada, que es un mecanismo de enajenación y también de creación de subalternidad, la libertad a veces, identificándose con la subjetividad del individuo, por lo tanto, mientras más individuo aislado sea, es más libre y a la vez se entiende como una subjetividad más rica. Y ese constituye, sin duda, uno de los engaños porque la subjetividad no la va a encontrar el individuo en su propio estamento, puede vivirlo como individuo, pero no va a encontrar la mayor riqueza de su subjetividad, aislándose de sus relaciones con sus semejantes. Y lo que en este momento se está logrando, a través de ciertos tipos de avance tecnológico, es una creciente soledad de la persona.

(E) Me gustaría que te refirieras al asunto del periodismo, de la ficción?

(HZ) La ficción en general, admite juicios diversos, yo diría que la ficción en tanto sea anticipaciones de futuro, creo que puede ser una forma también de estar alerta de la realidad presente. Pero también hay otra ficción, la ficción por ejemplo del consumismo, la ficción de la publicidad, la ficción de la propaganda, esa no muestra un mundo mejor, muestra el mundo actual como el mejor. Entonces, distingamos, un autor de ficción, o un periodista que muestra escenarios futuros, o la propia ciencia social, que muestra escanarios futuros sí, por ficticios que sean, en la medida en que permiten ver a distancia lo que vivimos, pueden cumplir una función creativa de alerta. Pero hay otras ficciones, que son las ficciones de transformar la realidad actual en realidades, digamos, en realidades realizadas.

(E) Desde mi punto de vista, la ficción prepara la imagen de que la tecnología es muy poderosa y que el hombre no puede atraparla en su camino, y esto me parece peligroso.

(HZ) Bueno, quiero ver una idea, una idea que puede ser muy ambiciosa en relación a este tópico. Curiosamente la tecnología aparece en este momento como emancipada del hombre, como fuera de la circunstancia


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que es su propia creación. Esto significa precisamente que esa tecnología producto del hombre está siendo en este momento, utilizada por ciertos hombres para mantener a otros hombres en una situación de pasividad, en una situación de indiferencia o de marginalidad. Y aquí, es interesante discutir el concepto que mencionaba yo, el de lo fáustico. Tendríamos que estar viviendo en este momento el período fáustico, de las máximas conquistas, el hombre llega al espacio, el hombre conquista la naturaleza, domina la materia. Sin embargo, ¿eso es expresión de lo fáustico? Vuelve la impresión de la propia capacidad autodestructiva, porque la idea de lo fáustico, el hombre fáustico era el hombre creador, el hombre prometeico, de alguna manera, pero no estamos en presencia de un hombre prometeico, estamos en presencia de un hombre que ha logrado elaborar una cantidad de inventos, una cantidad de medios para controlar y lograr materializar ese sueño mínimo, pero sin embargo, en el fondo lo condiciona o lo relega a una condición mínima, desplazándose a microespecios, a esos espacios que yo estaba calificando de resistencias, dejando el resto de su espacio social en manos de máquinas o de instrumentos que no necesariamente están emancipados del hombre, sino que están emancipados de ciertos hombres y controlados por ciertos grupos de hombres. Entonces, en ese sentido lo fáustico, esa vieja aspiración se ha reducido a una especie de maquinaria voraz, insaciable, que se está comiendo a sus propios procreadores, a sus propios hijos, pero en beneficio siempre de ciertos grupos, no nos olvidemos de eso. Es decir, la tecnología no escapa al género humano, no escapa a los grupos humanos, utilizada por algunos, para mantener la marginación en aras del progreso de grandes mayorías.

(E) En relación a la pérdida del instinto de conservación, si en todas las épocas ha habido guerras y todo tipo de confrontaciones y de opresión, me pregunto si esta situación de que el hombre se destruye a partir de aquello que él mismo crea, no sería más bien la situación del aprendiz de hechicero que descubre algo, pero que no sabe todo el proceso y no consigue controlar el proceso. Esta cuestión de pérdida del instinto de conservación, ¿no sería tal vez una pérdida de todos los recursos que él tiene y no puede controlar?

(HZ) Puede ser esa una posibilidad de respuesta. Volviendo al viejo mito de Prometeo que robó el fuego a los dioses y que puede destruirlo. Pero yo creo que también habría que ver otras acepciones del problema de la pérdida del instinto. Manejemos una hipóteses, yo creo que el propio desarrollo de la racionalidad en el hombre ha entrado en contradicción con su condición de especie. Es decir, el hombre es la


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única especie que no requiere de un hábitat, que puede generar, crear hábitat, pero esto en un sentido positivo, porque así como puede crear hábitat y trasladarse de un hábitat a otro, también puede destruirlo. Y al destruir esos hábitat también se puede autodestruir. Es decir, aquí hay algo terrible, que naturalmente podría admitir mucha polémica, que es que el crecimiento de la propia inteligencia, en la medida en que crece en el contexto de relaciones sociales desiguales, donde se generan conflictos entre grupos, puede ejercer eventualmente las funciones de un verdadero mutante con respecto a la especie humana y eso no pasa con ninguna otra especie animal, donde rige su comportamiento en base a ciertos instintos, que por definición son preservativos, reproductivos. El hombre no tiene ese instinto, pero el hombre es capaz de modelar, moldear, construir y destruir. Por lo tanto, el lugar donde él pueda reproducirse no está claramente identificado, puede ser cualquiera, pero en ese espacio indiferenciado, como especie puede también destruirse. Ninguna especie destruye su medio ambiente, por definición, ni siquiera en conflicto con otras especies y el hombre es la única especie, precisa- mente por ese elemento terrible que es su superioridad y a la vez su debilidad, que es la inteligencia, que es en el fondo la capacidad de desprenderse de sus condicionamientos biológicos, de sus condiciona- mientos naturales, ese mutante que es la inteligencia y la razón hace que el hombre sea capaz de destruir su propio medio ambiente. ¿Por qué? Porque naturalmente, y aquí viene el elemento prometeico, el elemento del aprendiz de brujo, porque viene la esperanza de poder crear siempre un hábitat nuevo donde poder reproducirse. Esto puede llegar incluso hasta el punto de la ficción que estábamos discutiendo, en el sentido de decir, por último, si se destruye la naturaleza, podemos reconstruir la vida en el espacio. Pero evidentemente la reconstrucción de la vida en el espacio no será para la humanidad entera, será sólo para aquellos que controlen la tecnología suficiente para construir ese hábitat en el espacio. Esa lógica está presente de alguna manera. Es decir, el hecho solo de que el hombre se plantee esa hazaña en el fondo es expresión de su propia pérdida de identidad como especie, que está fuertemente asociada a su capacidad de crecer más allá de los condicionamientos naturales que lo definen como tal.

Estamos en presencia de un fenómeno, llamémoslo cultural, que, de seguir así, puede ser ampliamente destructivo. De ahí la importancia de la primera afirmación que yo hice, la capacidad del hombre de poder colocarse ante la exigencia de futuro, desde una visión de futuro definida en términos de valores para poder ver la realidad, reconecer los rumbos


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de la actual realidad y ver en esos rumbos la posibilidad de otras direc- ciones. Creo que éste es el desafío de la inteligencia bien utilizada en el presente. De otro modo, hay ya una inteligencia mecánica en beneficio de algunos grupos humanos, pero no de toda la humanidad. Podrán salvarse representantes de la especie humana, pero no la humanidad.

(E) Esto me parece muy importante puesto que la solución a la crisis se manifiesta en una la solución elitista y esa la razón por lo que me parece peligroso mirar y aceptar el mensaje del aprendiz de hechicero. La tecno- logía tiene una posibilidad limitada, pero de tanto oír esto la tecnología domina la vida moderna, está definida por todo. Puedo poner normas y decir qué hago, caer en el cinismo, no hay solución, el mundo no alcanza a luchar contra la tecnología y este es el final de la parada.

(HZ) Exactamente. Y por eso hay que superar la condición de aprendiz de brujo. En ese sentido, yo diría que hay que rescatar algunos elementos que en este momento son importantes. Y esto ya en el plano menos general. Si tratáramos de ver la posibilidad de respuesta en un plano más delimitado, yo diría que gran parte del problema que en este momento se nos presenta supone, entre otras cosas, recuperar una visión utópica, que en el fondo son compromisos con ciertos valores de liberación y que no sean simplemente la proyección del discurso tecnológico. Porque, tomemos conciencia, lo que en este mundo que vivimos, que es un mal- thusianismo, lo que en este momento se pretende imponer en aras de la razón y en aras del progreso tecnológico es un malthusianismo, y sabemos que eso significa el sacrificio de todos aquellos que no puedan sobrevivir por no ser privilegiados en este momento histórico. En ese plano yo creo que la educación tendría un plano importante que cumplir, que lo sintetizaría en una idea: si la educación no enseña a las nuevas genera- ciones a pensar el contexto histórico, a ubicarse en el contexto histórico, más allá de las teorías, no podemos esperar que esa gente jovem no haga sino continuar una lógica que en este momento aparece dominada precisamente por el discurso tecnológico. Si queremos que sean capaces de ser protagonistas de un contradiscurso que trate de definir otra direc- ción de desarrollo para la sociedad, evidentemente para lograrlo esa gente tiene que ser formada de determinada manera, hay que enseñar a pensar el momento y comprometerla con ciertas voluntades de acción que suponen la presencia de valores que permitan avanzar en un sentido de una mayor liberación del conjunto del género humano.


Recebido para publicação em dezembro de 2000.


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To recover an utopian view

(Interview with Prof. Dr. Hugo Zemelman)

ABSTRACT: This interview took place in september 23, 1993, when , as Visitor Professor, Hugo Zemelman gave lessons about “The reason’s horizons and the knowledge’s production” at the Master Course in Education of the Universidade Federal Fluminense. The interview aim was to know his thought in face of the problems presented by the present and the future of a high tech and sociallly disturbed world.

Key words: Rationality; Utopian view; Freedom; Latin America; Future.


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