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Universidade Federal Fluminense Faculdade de Educação
NÚCLEO DE ESTUDOS SOBRE TRABALHO E EDUCAÇÃO – NEDDATE
Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação
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R 454 Revista eletrônica TrabalhoNecessário [recurso eletrônico] / Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense. Ano
15, n. 27 (mai/ago-2017). Niterói: NEDDATE, 2017. [On-line].
Quadrimestral. Editorial.
Modo de acesso: revistatrabalhonecessario@gmail.com ISSN 1808-799x
1. Educação. 2. Trabalho. I. Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação. II. Universidade Federal Fluminense.
Faculdade de Educação. III. Título: Revista Eletrônica TrabalhoNecessário.
CDD 370
Catalogação da Fonte: Biblioteca Central do Gragoatá
Seres humanos são, ao mesmo tempo, absolutamente necessários e totalmente supérfluos para o capital (Mészáros)
A chegada do mês de outubro nos trouxe uma grande perda. Não está mais entre nós o colaborador direto do filósofo húngaro György Lukács, o grande intelectual István Mészáros. Sua obra constituiu e sempre constituirá uma referência fundamental de formação para aqueles que se situam no campo da luta contra a lógica destrutiva que preside o mundo contemporâneo. Nela, esse ex-operário húngaro evidencia, com clareza, que não há soluções parciais para os problemas do nosso tempo. A reflexão sólida, original e radicalmente crítica em relação a tantas mistificações atuais constitui, sem dúvida, uma das maiores contribuições do pensamento contemporâneo à humanidade, nos últimos setenta anos.
Mészáros nos exorta, como destacam Ruy Braga e Ricardo Antunes, a tomar como horizonte da luta ao espectro da destruição do sistema do capital, a premissa de que “qualquer tentativa de superar esse sistema de metabolismo social que se restrinja à esfera institucional e parlamentar está fadada à derrota. Só um vasto movimento de massas, radical e extraparlamentar, pode ser capaz de destruir o sistema de domínio social do capital e sua lógica destrutiva” (Braga e Antunes, 2017).
Dedicando a ele, assim, uma singela homenagem e em continuidade à contribuição que pretende oferecer a seus leitores para o enfretamento do desafio e do fardo desse tempo histórico, a Revista Trabalho Necessário, publicação eletrônica do Núcleo de Estudos, Documentação e Dados Sobre Trabalho e Educação – NEDDATE, da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense – UFF, chega ao seu vigésimo sétimo número. Na foto de capa, trazemos imagens de manuscritos de György Lukács, mestre de nosso homenageado, até pouco tempo disponíveis no Arquivo György Lukács, recentemente fechado na Hungria.
A primeira contribuição à Trabalho Necessário é a do Prof. Catedrático da Universidade de Lisboa, José Barata-Moura. Trata-se da reprodução de sua
¹ DOI: https://doi.org/10.22409/tn.15i27.p9663
TrabalhoNecessario – www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 15, Nº 27/2017
conferência de abertura do III Intercrítica, Traços do Pensar Filosófico, proferida em agosto de 2015 na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UFTPr). Nela foram apresentadas fecundas reflexões acerca do pensar enquanto ocupação do filósofo além de serem abordados aspectos da construção e das dimensões do pensar filosófico.
A seguir, a autora Iael de Souza, nos oferece importantes elementos para a reflexão acerca da problemática da diversidade cultural, tomando como principal referência o pensamento de Lukács. Ao abordar em A Ontologia da Diversidade Humana (Abortada) a Ideologia da Diversidade Cultural a importante distinção entre diversidade humana e diversidade cultural, o trabalho sublinha que “o irracionalismo pós-moderno avança e ameaça de contágio todo o universo da produção científica, desontologizando o real e o próprio ser social, desterrando a historicidade dos fatos e fenômenos sociais, a causalidade, a teleologia e as mediações inelimináveis entre as instâncias que perfazem a totalidade social (universal, particular e singular)”.
A temática da ontologia, tão cara aos filósofos acima referidos continua a ser base de reflexão, agora no artigo Bases Ontológicas da Saúde das Mulheres Negras, de Diego de Oliveira Souza e Roberta Dayanne de Oliveira Santos. A análise, pouco comum e fundamental, da saúde das mulheres negras a partir de uma perspectiva ontológica, evidencia que a “saúde é determinada socialmente, o que confere eminência às questões ‘racial’ e da mulher, porém sem autonomia absoluta ante a esfera econômica”. No artigo, os autores evidenciam que “Enfrentar as formas particulares de desigualdade social se mostra importante para a esfera da saúde e, sobretudo, para a construção dos caminhos de emancipação do ‘gênero humano’.
Com perspectiva analítica convergente com as demais contribuições, o artigo de Amanda Chayane de Oliveira Veiga e Fernando de Araújo Bizerra se apresenta particularmente pertinente quando a Reforma Trabalhista está prestes a entrar em vigor. Em Exploração, Controle e Hierarquia: o trabalho feminino da produção rígida ao toyotismo, os autores analisam a “exploração, o controle e a hierarquia a que o trabalho feminino esteve submetido durante a produção rígida e, após, no contexto do toyotismo que tende a ampliar e diversificar os mecanismos de exploração da força de trabalho, afetando
diretamente os processos, as relações e as condições de trabalho em cada região e país de forma específica”.
O artigo A Exploração do Trabalho no Pós-Fordismo: a realidade do call Center, de autoria de Paolo Caputo e traduzido por Giuseppina de Grazia, nos permite refletir acerca de uma dramática expressão atual de precarização do trabalho que atinge, em especial, as mulheres da classe trabalhadora. Analisando “a morfologia e as características do trabalho no call center e, mais genericamente, o chamado trabalho imaterial”, o autor fundamenta-se em Marx para abordar a “especificidade da natureza humana”, bem como o “conceito de força de trabalho” que constituem “’armas’ teóricas que abrem caminho para uma releitura crítica das formas de exploração no capitalismo contemporâneo” para “lançar luz sobre as condições de alienação sistemática do trabalho cognitivo na atualidade”.
A autora Andréa Vilella Mafra da Silva trata no artigo Organismos Internacionais: os discursos cepalinos e o fetiche tecnológico “das práticas discursivas da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), no campo das políticas educacionais”. Sua abordagem recupera a historicidade do fetiche da tecnologia, evidenciando que “o discurso da CEPAL pode ser considerado tanto como uma espécie de receituário quanto justificativa para divulgar avaliações e diagnósticos sobre os resultados das reformas educacionais implementadas na América Latina e Caribe”.
Encerramos este número com a contribuição de Marcio Gomes da Silva, repleta de atualidade. Em Trabalho, Educação e Produção do Conhecimento: notas conceituais sobre os fundamentos da(s) Pedagogia(s) Agroecológica(s), o autor refle sobre as formas de produção do conhecimento agroecológico, indicando “os fundamentos da pedagogia agroecológica”. Para tanto, toma em “consideração diferentes tempos/espaços de aprendizagens, seja no âmbito dos movimentos sociais, seja no âmbito das escolas do campo” e relaciona “os interstícios entre a agricultura camponesa e agroecologia, partindo do pressuposto de que na agricultura camponesa, o trabalho camponês se configura enquanto um princípio educativo, sob o qual se edificam processos de aprendizagens acerca da produção do conhecimento agroecológico”.
Com grande satisfação compartilhamos, então, o conjunto de trabalhos que integram este número da Revista Trabalho Necessário. Devemos, entretanto, assinalar que razões de ordem técnica não permitiram que o material anteriormente selecionado para compor a seção Memória e Documentos fosse incluído neste número, o que lamentamos. Informamos, entretanto, que essa será retomada no próximo número. Concluímos agradecendo imensamente aos autores e a todos que divulgam nossa Revista por diferentes meios. Não menos importante é assinalar que a Trabalho Necessário aguarda as colaborações para seus próximos números o que, como poderá ser constatado na chamada para novas contribuições, passa a abrigar, a partir de 2018, também a proposta de Dossiês. Gratas a todos, desejamos aos nossos leitores uma excelente leitura.
As Editoras.
BRAGA, Rui e Antunes, Ricardo. Istivan Mészáros e sua ardorosa defesa da humanidade. Cult digital, 02 de outubro de 2017. Disponível em https://revistacult.uol.com.br/home/istvan-meszaros-e-sua-ardorosa- defesa-da-humanidade/; acesso em 06 de outubro de 2017
MÉSZÁROS, István. Para além do capital. São Paulo, Boitempo Editorial, 2002. p. 802.
Publicado em: 5 de dezembro de 2017
José Barata-Moura3
Agradeço ao Professor Doutor Domingos Leite Lima Filho, e à Universidade Tecnológica Federal do Paraná, a amizade no acolhimento em Curitiba, e a honra de um convite para esta palestra.
Escolhi, como tema para hoje, uma pequena meditação sobre o pensar filosófico.
Funciona, para mim, como uma ocasião mais de reencontro com uma companhia antiga.
O meu contacto com a filosofia – num cara-a-cara quotidiano – ultrapassou já as fronteiras do primeiro meio século.
Aprendi muito. Ainda sei pouco. Duvido que tenha ensinado grande coisa – não obstante, profissionalmente, esse ser o meu ofício. Prossigo – sem fingimento do prazer – nas minhas buscas.
Desiludam-se, porém.
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.15i27.p9632
2 Conferência de abertura do III Intercrítica, proferida em agosto de 2015, na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UFTPr). Texto conforme enviado pelo autor.
3 Universidade de Lisboa.
Não esperem desta fala nem um panegírico encantado da dama bem- amada, nem umas cachoeiras de sabença para lavagem dos porões e deslumbramento das gentes, nem uma revelação bombástica dos «segredos» do negócio, nem um relato divertido de anedotas e episódios da vida de um andarilho caixeiro-viajante.
Procurarei tão-só dar-vos conta de umas coisas que me foram acontecendo ao pensar. Que, para mim, têm valor de uso. Mas que, só na circulação da troca com a vossa experiência pensada, poderão realizar algum benefício em efectivo.
Aliás, «conferência» é – numa dupla vertente – um partilhado acto de conferir.
Como entrega de um pensado que, pensando, se expressa.
E como con-fronto crítico de aquilo que vai sendo escutado com as vivências re-flectidas que, em cada um dos auditores sedimentadas, se revolvem.
Uma con-ferência é um abandono em desafio à relação.
Costumam comparar-se os discursos à espada de Carlos Magno. Que era, ao que consta: chata, e comprida.
No que toca ao comprimento, talvez consiga abreviar; mas da chateza, vocês não ficarão livres.
Comecemos, então.
Haverá umas almas devotas que se inclinam para o culto da santa em recinto fechado. Não comungo destas predilecções pela clausura. Mesmo quando o claustro tem canteiros floridos, e arejo na ventilação.
O pensar não é uma coutada exclusiva. Com acesso reservado. Aonde somente aos sócios do «Clube da Filosofia», e com a quotização em ordem, está permitido o recreio nessas actividades.
Nos tempos de Marx, «a batida sagrada» (die heilige Hetzjagd) estava dirigida contra «o espectro do comunismo» (das Gespenst des Kommunismus)3.
Mas outros calejados dialécticos fizeram da «caçada» um uso mais metafórico.
Nicolau de Cusa, por exemplo, chamou aos filósofos «caçadores da sabedoria» (venatores sapientiae)4, num como desenvolvimento, aliás, das velhas alusões de Platão a uma «caça» () do «saber fundamentado» ()5, mediante a procura do «verdadeiro» () e a pergunta por
«aquilo que é» ( )6.
No entanto, o matagal para as expedições cinegéticas do pensamento é campina aberta.
O porte de arma requer perícia, e algum treino; mas não carece de licença. E os praticantes regulares da função excedem largamente o rol dos que têm ficha arquivada nos cadastros do grémio.
Na diferença das porções do ser que se interrogam, da maneira e das incidências no interrogar:
Os cientistas pensam. Os poetas pensam. O engenheiro pensa. Os artistas pensam. O homem comum pensa. As crianças… pensam.
Não obstante, ocorre que é própria dos filósofos uma ocupação com o
pensar.
3 «Ronda um espectro pela Europa – o espectro do comunismo. Todos os poderes da velha Europa se coligaram numa batida sagrada contra este espectro: o Papa e o Tsar, Metternich e Guizot, radicais franceses e polícias alemães.» -- «Ein Gespenst geht um in Europa – das Gespenst des Kommunismus. Alle Mächte des alten Europa haben sich zu einer heiligen Hetzjagd gegen dies Gespenst verbündet, der Papst und der Zar, Metternich und Guizot, französische Radikale und deutsche Polizisten.», Karl MARX -- Friedrich ENGELS, Manifest der Kommunistischen Partei (1848); Marx-Engels Werke, ed. IML (doravante: MEW), Berlin, Dietz Verlag, 1974, vol. 4, p. 461.
4 «Os filósofos, contudo, não são senão caçadores da sabedoria, que cada um a seu modo investiga, à luz da lógica que lhe é conata.» -- «Nihil enim sunt philosophi nisi venatores sapientiae, quam quisque in lumine logicae sibi conatae suo modo investigat.», NICOLAU DE CUSA, De Venatione Sapientiae (1463), I, n. 5; Philosophisch-theologische Werke, ed. Karl Bormann, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2002, vol. 4, p. 10.
5 Cf. PLATÃO, Político, 264 a.
6 Cf. PLATÃO, Fédon, 66 bc.
Para além de existirem, porventura, traços característicos do modo
filosófico de se embrenhar pelo pensamento.
Os quais – por certo, e documentadamente – se vêm a plasmar numa multidão de doutrinas, disparam por sendeiros metodológicos diversos, reflectem imagens distintas do mundo e da vida, aportam a balcões de perspectiva e a posicionamentos existenciais diferenciados.
O que acarreta, na aparência, compreensíveis distúrbios. E as queixas são antigas.
Desde o batido argumento cepticista de que, perante a «diafonia» () ou a discrepância das opinações, o melhor é suspender o juízo (a famosa )7, até à observação irónica de Descartes – recolhida, aliás, de Cícero --, segundo a qual não se pode imaginar uma coisa que, por mais disparatada ou mais incrível, não tenha sido dita já por algum dos filósofos8.
No entanto, a perturbação profunda, a meu ver, transparece de outro
canto.
Quando deparamos com esporádicas situações de desgraça em que
diplomados – profissionais da Filosofia com certidão carimbada, e títulos vários
– multiplicam, por vezes em ambiente escolar, os sintomas de não possuirem um vislumbre sequer do que seja propriamente a experiência do pensar.
Seguramente que se podem expôr em calhamaços, e despejar nas aulas, catervas de opiniões dos filósofos mais ilustres.
E, apesar de tudo, podemos ficar pelo pórtico, sem verdadeiramente
entrar.
7 Cf. SEXTO EMPÍRICO, Hipotiposes pirrónicas, I, n. 165.
8 «Não se poderia imaginar nada de tão estranho, e de tão pouco crível, que não tenha sido dito por algum dos filósofos» -- «On ne saurait rien imaginer de si étrange et de si peu croyable, qu’il n’ait été dit par quelqu’un des philosophes», René DESCARTES, Discours de la Méthode, pour bien conduire sa raison et chercher la vérité dans les sciences (1637), II; Oeuvres, ed. Charles Adam e Paul Tannery, reimpr. Paris, Librairie Philosophique Jean Vrin, 1996, vol. VI, p.
16. A propósito da pitagórica dietética, em que a ingestão de favas era objecto de interdito, a fim de não perturbar a boa qualidade dos sonhos, Cícero comenta: «Mas ignoro de que modo nada de tão absurdo possa ser dito que não tenha sido dito [já] por algum dos filósofos.» --
«Sed nescio quo modo nihil tam absurde dici potest quod non dicatur ab aliquo philosophorum.», Marcus Tullius CICERO, De divinatione, I, LVIII, n. 119.
Somos capazes de descrever, com minúcia, o que «lá» está. E até de um modo correcto. Mas nós não pensamos lá.
Somos capazes de enunciar sentidos à «matéria». Mas, para nós, é um madeiro que não faz sentido.
Conhecemos os filosofemas. Mas não investimos pelo filosofar. Terrível exigência a deste nosso mester:
Sem exercício efectivo do pensar, não há filosofia. Haverá umas movimentações de vultos pelo palco, uma lenga-lenga de ruídos que parecem som; mas falta a festa.
Pensando, estamos juntos de nós mesmos. No aconchego da nossa
«casinha».
É o momento subjectivo da «vivência» do pensar.
Um território «endógeno» ao qual Ortega y Gasset tantas vezes aludiu. Mesmo se para o converter em moldura (idealista) de um «mundo» (representado) de que nos incumbiria o resgate da perdição no anonimato:
«Eu sou eu e a minha circunstância, e se não a salvo a ela não me salvo
eu.»9.
O momento subjectivo do pensar afeiçoa-nos – até na cartesiana dúvida
– a uma presença com-partida da intimidade.
Todavia – mesmo no dilacerado das cisões, e no indecidido das hesitações – nós pensamos o real.
Assentados, mas não sentados, na deveniência concreta do ser – que habitamos, e onde vamos sendo. Numa acidentada, mas constante, dialogia com ele. No horizonte prático de um viver que se prolonga.
Pensamos no real.
Mas, acaso, o mais importante é que pensamos de dentro do real, e a partir dele.
9 «Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo.», José ORTEGA Y GASSET, Meditaciones del Quijote (1914), Lector…; ed. Julián Marías, Madrid, Ediciones Cátedra, 19843, p. 77.
Pensamos de dentro do real, quando o descrevemos em conto, e o medimos com a régua. Quando intentamos compreendê-lo. Quando procuramos orientação no mundo – inclusivamente, no nosso mundo dos afectos (que não é só um quartito esconso na cave monadológica: sem janelas10, e com pouco ar).
Pensamos ainda de dentro do real, quando nos enganamos. Quando distorcemos. Quando mentimos. Quando soltamos as rédeas no galope à imaginação. Quando trans-gredimos a positividade rigidificada do existente, assestando o rumo a outras andanças e a figuras transformadas do ser.
Continuamos a pensar o real, e de dentro do real, mesmo quando – num enredo de aflições – pretendemos converter a cogitação num sofisticado aparelho de fuga para os subúrbios desempestados de uma «realidade» pestilenta.
O nosso pensar está efectivamente montado sobre um viver.
Caberia evocar aqui uma bela e ajustada expressão de Marx. Musicalmente soa muito bem no alemão, mas vale a pena meditar nela, não apenas pelos seus atributos estéticos:
10 A expressão é de Leibniz. E, a partir dela (e do património que condensa), muitas outras peregrinações ao íntimo foram tentadas. Segundo a metafísica leibniziana, «as Mónadas não têm de todo janelas» (les Monades n’ont point de fenêtres), porque «cada Mónada é um espelho vivo, ou dotado de acção interna, representativo do universo, segundo o ponto de vista dela, e tão regulado quanto o próprio universo» -- «chaque Monade est un miroir vivant, ou doué d’action interne, representatif de l’univers, suivant son point de veue, et aussi reglé que l’univers luy même». Cf. Gottfried Wilhelm LEIBNIZ, Monadologie (1712-1714), 7, e Principes de la Nature et de la Grace, fondés en raison (1712-1714), 3; Die philosophischen Schriften, ed. Carl Immanuel Gerhardt (doravante: PS), reprod. Hildesheim, Georg Olms Verlagsbuchhandlung, 1965, vol. 6, respectivamente, pp. 607 e 599. Como fundamento e instância reguladora deste harmonismo, emerge uma criativa actuosidade teogénica. Porque
«Deus é tudo em todos» (Dieu est tout en tous), «somente Deus faz a ligação ou a comunicação das substâncias, e é por ele que os fenómenos de uns se encontram e se acordam com os de outros, e que, por consequência, há realidade nas nossas percepções» --
«Dieu seul fait la liaison ou la communication des substances, et c’est par luy que les phenomenes des uns se rencontrent et s’accordent avec ceux d’ autres, et par consequent qu’il y a de la realité dans nos perceptions». Cf. LEIBNIZ, Discours de Métaphysique (1686), § 32; PS, vol. 4, respectivamente, pp. 457 e 458. A via da harmonização monadológica na constituição transcendental intersubjectiva do mundo objectivo teve também outras derivas, e cultores. Cf., por exemplo, Edmund HUSSERL, Cartesianische Meditationen. Eine Einleitung in die Phänomenologie (1929), § 49; Gesammelte Werke (Husserliana), ed. Hermann Leo Van Breda, Den Haag, Martinus Nijhoff, 19732, vol. I, pp. 137-138.
«A consciência» (das Bewußtsein) é «o ser consciente» (das bewußte Sein), e «o ser dos humanos» (das Sein der Menschen) é o seu «processo [efectivamente] real de vida» (wirklicher Lebensprozeß)11.
Acresce que, no plano ontológico, o ser não se reduz ao momento imediato de cada existência isolada.
A historicidade empapa – de movimento, de mudança, de transformação
– o corpo mesmo de aquilo que (tantas vezes, para o fixar) chamamos o real.
Ao contrário do que com frequência se supõe: identidade não é mesmidade.
A identidade é sempre uma unidade em processo, que entrelaça e reconfigura a mediação do «mesmo» e do «outro».
Por outra parte, o pensar – no seu modo, modelação, e modulações – não é de todo estranho à qualidade, ao espessor, à densidade, do nosso viver.
O pensar requer e mobiliza uma protagonização.
Kant converteu o assumir desta atitude em emblema daquele programa de Luzes (Aufklärung)12 – procuradas, e acendidas – que há-de alicerçar-se num exercício da autonomia:
«Pensar por si» (Selbstdenken).
Pondo a uso a razão. Submetendo tudo ao tribunal de uma dilucidação crítica reflexiva. Desinibindo uma criatividade própria. Soltando-se das tutelas que do «Alto» comandam, e das andadeiras que do lado pastoreiam, uma
«menoridade» acomodada, tolhida, heterónoma. Para abrir o passo à liberdade de se dar um destino.
O comentário de Hegel é contundente.
11 Cf. MARX-ENGELS, Die deutsche Ideologie. Kritik der neuesten deutschen Philosophie in ihren Repräsentanten Feuerbach, B. Bauer und Stirner, und des deutschen Sozialismus in seinen verschiedenen Propheten (1845-1846), I, A; MEW, vol. 3, p. 26.
12 Cf. Immanuel KANT, Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung? (1784); Gesammelte Schriften, ed. Königlich Preussische Akademie der Wissenschaften (doravante: AK.), Berlin, Georg Reimer, 19232, vol. VIII, pp. 53-61.
Pela defenestração seca dos aguados fantasismos românticos que no dito de Kant julgavam encontrar peanha para as entronizações flamantes do meramente «subjectivo»:
«”Omeu pensar próprio” é propriamente um pleonasmo. Cada um tem que pensar por si [mesmo]; ninguém pode pensar pelo outro.»13.
Há, sem dúvida, um momento subjectivo. Imprescindível na activação do pensar. Sem a comparência do qual, ele seria nulo.
Todavia, este requisito interno, necessário, não é condição suficiente. Porque nos deixa encapsulados numa «redoma», num reduto isolado e abstracto, ao qual falta a concreção das determinações e dos seus desenvolvimentos.
O pensamento pode ser acto solitário, mas nunca pensamos sozinhos. Tal como o ser, o pensar apenas se dá no marco da relacionalidade.
Pensamos em relação com o mundo. Pensamos desde, e na respiração de, uma cultura. Pensamos e vivemos sempre em comunidade – mesmo quando dela estamos fisicamente apartados, ou quando apetecemos apartar- nos do seu convívio directo.
O nosso singularismo, a nossa individualidade – aspectos que não são para votar ao menosprezo – somente ganham efectiva estação no incontornável contorno de uma trama complexa e lábil de relacionamentos.
O próprio Kant – à maneira do seu idealismo transcendental, um pensador profundo da realidade – não deixou, aliás de conferir o devido destaque a esta vertente.
Ouvimos, com frequência, dizer que ninguém nos pode retirar «a liberdade de pensar» (die Freiheit zu denken). Mas logo Kant se apressa a contrapôr:
«Quanto haveríamos nós de pensar, e com que correcção [Richtigkeit], se não pensássemos de algum modo [gleichsam] em comunidade com outros
13 «”Mein eigenes Denken” ist eigentlich ein Pleonasmus. Jeder muß für sich denken; es kann keiner für den anderen denken.», Georg Wilhelm Friedrich HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, Einleitung, B, 2, a; Theorie Werkausgabe, red. Eva Moldenhauer e Karl Markus Michel (doravante: TW), Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1971, vol. 18, p. 80.
[in Gemeinschaft mit andern], com os quais partilhamos os nossos pensamentos, e que partilham os deles connosco?»14.
E, apesar das incompreensões no que a Hegel diz respeito, seria de não esquecer aqui um celebrado aforismo de Feuerbach:
«A verdadeira dialéctica não é nenhum monólogo [kein Monolog] do pensador solitário consigo mesmo; ela é um diálogo [ein Dialog] entre Eu e Tu.»15.
No patamar intersubjectivo da descoberta conjunta, e da feitura, do mundo e da vida, esta observação de Feuerbach tem, pela certa o seu fundamento. Não obstante, é indispensável não perder também de vista todas as demais dialécticas (subjacentes, e adjacentes) que, conferindo arcaboiço aos tabuleiros da comunicação, e modelando-lhe o viso determinado dos conteúdos, enterram o seu raizame na materialidade – histórica e humanamente mediada – do ser.
Seria, de resto, um interessante assunto mais para a reflexão filosófica.
Tendo por fundo esta paisagem ontológica, vale, então, perguntar:
Que traços característicos, muito genéricos, poderíamos nós discernir no pensar filosófico?
Vou cingir-me a uns quantos apontamentos.
Esqueléticos na ossatura, e telegráficos no percutir da tecla.
A crítica. Um rastilho muito palrado, mas que nem sempre serve de mecha ao detonar das meditações.
Criticar não é dizer-mal; é procurar ver bem.
14 «Wie viel und mit welcher Richtigkeit würden wir wohl denken, wenn wir nicht gleichsam in Gemeinschaft mit andern, denen wir unsere und die uns ihre Gedanken mitteilen, dächten!», KANT, Was heißt: sich im Denken orientieren? (1786); Ak., vol. VIII, p. 144.
15 «Die wahre Dialektik ist kein Monolog des einsamen Denkers mit sich selbst, sie ist ein Dialog zwischen Ich und Du.», Ludwig FEUERBACH, Grundsätze der Philosophie der Zukunft (1843),
§ 64; Gesammelte Werke, ed. Werner Schuffenhauer, Berlin, Akademie-Verlag, 19822, vol. 9, p. 339.
Tão-pouco criticar é contrapôr, de um modo abstracto e mecanista, enunciações que entre si se excluem. Uns ficam com a moral, outros com o subsistente, e o impasse prepara, não raro, uma saída elegante para o salão dos cepticismos.
O assunto em causa é outro.
A crítica é um exame: um fazer passar pelos «crivos» da racionalidade, e do discernimento, tudo aquilo que imediatamente se nos apresenta – ou nos é na bandeja oferecido – como uma «datidade» inquestionável.
Por isso o pensar filosófico aponta também a uma demanda de
fundamentação.
Não, como entono cadenciado de uma ladaínha de «motivos» justificantes.
Não, com o sorrateiro propósito de erigir solenemente «A Filosofia» em pedra angular inamovível de todo o edifício da ciência universal.
Mas, como porfiada linha de uma busca dos supostos que suportam e estruturam – inclusivamente, na sua dinâmica – tudo aquilo por cuja inteligibilidade importa que se pergunte.
E, para isso, há que cuidar de um estabelecimento correcto dos problemas.
A labuta do pensamento não visa simplesmente as respostas que, em prémio, hão-de obter-se.
Precisa de madrugar.
Começa mais cedo. Pela elaboração dos questionários.
As «soluções» não caem do céu. De paraquedas. Numa revoada de luz.
Ou no piar de um passarinho.
As vias resolutivas engendram-se, surgem, e transpiram, de dentro de uma problemática, que lhes define um horizonte.
Confirma-se que os filósofos parecem ter predilecção pelo accionamento de uma estranha maquineta que dá pelo nome sugestivo de «complicómetro».
Mas não é porque eles estejam possuídos por uma indebelável mania congénita de ensarilhar os lotes.
O sarilho está metido no próprio enredamento das coisas.
E para desenvencilhar a trama é preciso trazê-la à mastigação do pensamento.
Sem um ensaio de penetração inteligente na contraditoriedade complexa do real – nas suas distintas camadas, articulações, e movimentos – permanecemos apenas pela água rala de um presumível «conhecimento», circunscrito à representação dos «factos» momentâneos (mesmo quando fidedigna).
À míngua de remédio, ficamos sem remedeio encravados no lamaçal torço da imediatez existenciada.
Por isso, ao pensar filosófico igualmente incumbe empreender uma sondagem, e o desbravamento, do leque de possíveis – sobretudo, das possibilidades reais – que cada existência com-porta, e que ao adiante de si, pro-jecta.
Não, para fazer carreira no ramo a que se dedicam as conceituadas indústrias da vidência profética.
Não, para que a filosofia se reconverta num cosmopolita aeroporto espiritual de voos intercontinentais com aterragem feliz prometida nos impossíveis da «utopia» (que deseja tanto mais «os fins», quanto menos tem na conta os meios, e nem trabuca para os pôr de pé).
Não, para desembocar na confecção magnífica de um «dever-ser» moral (que deixa intacta a materialidade do ser, satisfeito por lhe sobrepôr uma generosa ordem normativa de sonhos).
Mas, para intentar compreender – e, no limite: transformar (o que não acontece sem a energia de um outro trabalho) – as realidades no seu devir. As quais, na estadia do presente, não só transportam carregos do passado nas cafurnas, como aproam a um por vir em carência de materialização.
Esbocei por alto – olhando para baixo – alguns rasgos, que rasgam.
No seu conjunto, e por trajectórias diversas, todos estes traços permitem explicar que a filosofia – sem dúvida que nem sempre, mas já desde a sua primeira aparição na Grécia antiga como instituto cultural – tenha podido apresentar-se, umas vezes, como perigosa ameaça ao império indisputado das representações hegemónicas, e, amiúde, como um luminoso marcador de incomodidades generalizadas.
Tudo por causa do trato que dispensa àquele indispensado interrogar molesto, que muita gente despede, mas de que ela não tem maneira de se despedir.
Na verdade da sua realidade, a filosofia -- por vocação -- é uma pro- vocação. Ao tirocínio do pensar.
Radical, no sentido que já Marx apontava, porque se alimenta de um descenso à raiz das coisas16.
Para -- na dialéctica materialidade dos seus processos -- as surpreender, abrir, e sopesar:
Criticamente. Fundamentadamente. Problematizadamente. Juntando sal na perspectiva. Trazendo sol à prospectiva.
Repete-se – pelo menos, desde Platão17 e Aristóteles18 -- que a filosofia principia com «o admirar-se» ( ).
Isso é certo. Se o entendermos bem, sobremaneira, no movimento que introduz.
Admirar-se não é infusão prolongada dos assombros da pasmaceira do basbaque. Com alguma agitação periférica, na quietude de um estupor conservado.
A estranheza, a perplexidade, a discrepância, que pressentimos – apanhadas na órbita do pensar – levam a que nos demos conta de que algo de
«esquisito» se passa, pelo qual é preciso inquirir.
E é deste enfaixado feixe de perguntas em incoação, e em equacionamento, que arranca a estrada em que se palmilha o caminho de tornar as coisas inteligíveis.
A inteligibilidade não vem de repente. Tem curvas, contracurvas, e recurvos. Em rigor, ela somente se alcança mediante um «dar razão» (
16 «Ser radical é agarrar a coisa na raiz.» -- «Radikal sein ist die Sache an der Wurzel fassen.», MARX, Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie. Einleitung (1844); Marx-Engels Gesamtausgabe, ed. Günter Heyden e Anatoli Jegorow (MEGA2), Berlin, Dietz Verlag, 1982, vol. I/2, p. 177.
17 Cf. PLATÃO, Teeteto, 155 d.
18 Cf. ARISTÓTELES, Metafísica, A, 2, 982 b 12-13.
)19. Necessita de que se venham a estabelecer determinadas
conexões fundamentais.
É nesta onda, aliás, que, para Platão, o «filósofo» () é também o «filólogo» (): alguém que parte em busca da «razão» () de «aquilo que é» ( )20.
Todavia, na fidelidade ao preenchimento da sua missão vital, o pensar não pode ensimesmar-se nas delícias cogitativas do umbigo e das suas cercanias.
Nem perfazer-se em parálise do agir.
Nem esfarrapar-se num alibi pomposo para a renúncia ao nosso artesanato de viventes.
Marx trazia carradas de razão na caixa aberta da camioneta quando – castigando obediências filosóficas do seu tempo, e todas quantas, alhures no espaço e no tempo, de achaques aparentados enfermem – descarrega:
«Os filósofos têm apenas interpretado [interpretieren] o mundo de diversas maneiras [verschieden]; trate-se de o transformar [verändern].»21.
Porém, ao arrepio de algumas hermenêuticas precipitadas – vulgares na praça, e vulgarizadas em compêndio -- por onde acaso deambula algum remorso serôdio à cata de desobriga, entendo que esta sentença não configura um indiscriminado e peremptório decreto de expulsão a aplicar ao pensar filosófico sem mais tardanças.
Pelo contrário. Na dança, há contradança.
Um dos resultados principais das Teses sobre Feuerbach, a meu ver, consiste, precisamente, em – pelo aclaramento crítico da origem dos desmandos perpetrados, e pela instalação consistente num materialismo novo
– recolocar a filosofia no seu posto: que é também uma trincheira de combates. Não é fatal que a filosofia tenha que ir desaguar num oceano de consagração apoteótica (e espiritualmente assistida) das dominações vigentes
19 Cf. PLATÃO , República, VII, 534 b.
20 Cf. PLATÃO, República, IX, 582 e.
21 «Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert, es kömmt drauf an, sie zu
verändern.», MARX, Thesen über Feuerbach (1845), 11; MEW, vol. 3, p. 7.
em cada episódio. Como fatal não é também que a ordem instalada – um sistema organizado de desordens, aliás – seja, por desígnio superior da Providência, inelutável.
No horizonte (e no miolo) de uma crítica que praticamente transforma, não perde funcionalidade (e dinâmica) o desempenho necessário de uma crítica teórica. Ou seja: o esforço racional por «conceber» (begreifen) a realidade – nas suas contradições (as flagrantes, e as atabafadas), e no seu processo de desenvolvimento (que abre o passo à realização de possibilidades novas, materialmente fundadas).
A metafísica – submetida ao império daquele ressequido primado da identidade abstracta que lhe enclausura o intervalo, e tolhe a movimentação – não logra triunfar das antinomias: opõe a «teoria» à «prática», e a «prática» à
«teoria».
A dialéctica, porém, pensa o concreto enlace de ambas. Porque constitui a bacia vascularizada por onde irrompe, na história dos humanos, o pulsar mesmo do ser.
O apregoado poder das ideias possui um limite material. Altera outras ideias. Por si, não transforma o mundo (a não ser nas algazarras do pregão).
E, na fronteira porosa destes tristes infortúnios, convém que não se esqueça: uma prática cega é o correlato confrangedor de uma teoria autista.
Na sua indeclinável premência, o desafio é, pois, outro: Compreender, para transformar; transformar, compreendendo.
De ordinário, passa despercebido. Mas, na realidade, é de ontologia política que Lénine está a falar, quando, castigando a tentação oportunista em que certos activismos atarantados se estatelam, adverte: «Sem teoria revolucionária não pode haver também movimento revolucionário.»22.
Começámos o périplo da faladura pelas cumeadas rarefeitas do pensar filosófico. E acabamos por vir parar às «planices» do quotidiano chão.
22 Vladímir Ilitch LÉNINE, Que fazer? Problemas candentes do nosso movimento (1902), I, d; Obras Escolhidas em Três Tomos, Lisboa – Moscovo, Edições Avante – Edições Progresso, 1977, vol. I, pp. 96-97.
Talvez, porque o pensar, sem os frumentos da vida, é um eixo ao rodopelo pela imensidão do vazio.
E porque o pensamento, apesar de tudo, constitui uma ferramenta com préstimo, nas carpintarias do nosso viver.
Faz falta pensar.
Até porque o desencorajamento a essa exercitação nos vem de mansinho soprado de não poucos quadrantes: É uma maçada, e só traz complicações…
Num mundo, onde simulacros e aparências nos são diariamente servidos como a ementa que esgota o deslavado das realidades sem encorpadura, urge ter «a coragem da verdade» (der Mut der Wahrheit) -- que, como Hegel sublinhava aos alunos, é «a condição primeira» (die erste Bedingung) que o estudo filosófico exige23.
O temor reverencial pela «Verdade» que soletrada se repete – sem que mereça as canseiras e distúrbios de uma investigação – poderá ser treinado em cantos e descantes de madrassa.
Mas a filosofia não é propriamente uma guitarrada para madraços assustadiços.
Partir em demanda do verdadeiro é uma autêntica expedição de esclarecimento pensante.
Supõe um mergulho na materialidade dialéctica do ser. No seu enrugamento. Nas suas relações retorsas. Naquele encaixado surdir das contradições que a polarizam. Para surpreender a unidade concreta que ela forma, sem desperdiçar a multiplicidade (com estrutura) de que ela se tece e entretece.
Trata-se de um endereço inexaurível, a cuja porta o pensar filosófico sempre acaba por ir bater.
São estes trajectos que Heraclito nos retrata, quando cuida de destacar:
23 Cf. HEGEL, Konzept der Rede beim Antritt des philosophischen Lehramtes an der Universität Berlin. Einleitung zur Enzyklopädie-Vorlesung (1818); TW, vol. 10, p. 404.
24 Cf. HERACLITO, Fragmento B 10; Die Fragmente der Vorsokratiker, ed. Hermann Diels e Walther Kranz, Berlin, Weidmannsche Verlagsbuchhandlung, 19568, vol. I, p. 153.
«A partir de todas as coisas, [o] uno» ( ), «e, a partir do uno, todas as coisas» ( )24.
E, no que diz respeito ao tabuleiro complementar – em que as fainas se rebatem sobre quem as leva a cabo --, invocaria também, à saída, uma cutilada famosa.
Nesta formulação, provém de Henri Bergson. Sendo recomendável, no entanto, fornecer-lhe um sortimento (ontológico, e prático) acentuadamente distinto da mobília (idealista) peculiar que o autor lhe havia encomendado. Reza assim:
«É preciso agir como homem de pensamento, e pensar como homem de acção.»25.
A frase é lapidária no sonante da soada. Mas não nos dispensa dos transpirados suores da lapidação trabalhada.
O viver, tal como o pensar – que nós apanhamos sempre na marcha, com a composição em andamento --, des-equilibram ao feituro. São um permanente a-fazer do por fazer.
Sentir-me-ia gratificado se as minhas palavras desta tarde – pobres, a despeito das exuberâncias do verbo – houvessem, de alguma maneira, contribuído para o reforço de uma sensibilização ao grato empreender destas aventuras de descobrimento.
Muito obrigado, pela permanência paciente da vossa escuta.
Lisboa, Julho de 2015.
Recebido em: 08 de outubro de 2017 Aprovado em: 26 de outubro de 2017 Publicado em: 5 de dezembro de 2017
25 «Il faut agir en homme de pensée et penser en homme d’action», Henri BERGSON, L’Académie Française vue de New York par un de ses membres (1935); Écrits et Paroles, ed. Rose-Marie Mossé-Bastide, Paris, Presses Universitaires de France, 1959, vol. III, p. 613.
IDEOLOGIA DA DIVERSIDADE CULTURAL¹
Iael de Souza2
Resumo: Demonstrar a diferença substancial entre diversidade humana e diversidade cultural se faz essencial e imprescindível atualmente, ainda mais quando o irracionalismo pós-moderno avança e ameaça de contágio todo o universo da produção científica, desontologizando o real e o próprio ser social, desterrando a historicidade dos fatos e fenômenos sociais, a causalidade, a teleologia e as mediações inelimináveis entre as instâncias que perfazem a totalidade social (universal, particular e singular). Afirmar e repor a necessidade de contra-hegemonia, pensando crítica, científica e historicamente a realidade em seu movimento processual dialético, se faz uma tarefa premente a fim de fortalecer o projeto político-social de “revolução política com alma social” em prol da emancipação humana.
Um novo modismo penetra e se alastra pela produção científico- acadêmica: a onda culturalista. Linguagem, discurso e cultura, e a ênfase na diferença, tornam-se o mote daqueles que se intitulam pós-modernistas, e todos
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.15i27.p9633
2 Professora da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Dpto de Educação. Mestre em Ciências Sociais pela UNESP – Marília. Doutoranda do curso de Educação da UNICAMP – SP. E-mail: iaeldeo@gmail.com.
aqueles que se contrapõem são, de antemão, taxados de totalitários, dogmáticos, inflexíveis, deterministas e economicistas.
É necessário reconstituir – ainda que sumariamente, devido à limitação de espaço para esse artigo – a historicidade dos fatos, a fim de que possamos compreender o contexto histórico-social que propicia o surgimento da pós- modernidade e dos pós-modernos e porque são tão incisivos e peremptórios no ataque às metanarrativas, à categoria de totalidade social, ao humanismo, ao projeto de emancipação humana e demais categorias, conceitos (classe social, por exemplo) e projetos universalistas. Essa será uma de nossas tarefas.
Essa contextualização propiciará as bases para a compreensão da análise e reflexão que nos propomos desenvolver, pois possibilitará a distinção substancial entre diversidade humana e diversidade cultural, uma vez que a primeira remete ao processo de ontologização do ser social e sua complexificação sociabilizatória mediante o desenvolvimento das forças produtivas, da base técnico-material da produção e das condições materiais e espirituais de existência e reprodução social, então abortado e degradado pelo capital, como será demonstrado. Já a segunda, corresponde à “diversidade possível” dentro das limitadas condições histórico-sociais impostas pelas relações sociais e de produção capitalistas, pautadas na propriedade privada, na desigualdade social (de condições de desenvolvimento e realização humana) e na exploração do homem pelo homem, legitimada pela relação contratual, de mercado, legalizada pelo Estado de Direito.
Também procuraremos demonstrar como ocorre o processo de desontologização do real, da história e do ser social, então substituído pelo processo de ideologização cultural, contribuindo para o aprisionamento das consciências, que se reificam através do artificialismo das relações sociais mercantilizadas, tornando cada vez mais difícil a superação do estranhamento e da alienação humanas.
Esperamos, assim, contribuir para fortalecer a perspectiva do trabalho contra o capital, ou seja, a contra-hegemonia, num momento onde, como bem frisou Eric Hobsbawm, o capital se vinga do trabalho (política-econômica neoliberal). Mais do que em qualquer outro momento e época da história, principalmente quando proclamam o “fim da história”, a “morte do sujeito”, o “fim das ideologias”, do “universalismo”, etc., o momento e época atual exigem que
recoloquemos, reafirmemos e defendamos, de modo fundamentado e historicamente, a “revolução política com alma social”, como ressalvava Marx, e confrontemos, lúcida e racionalmente, os intelectuais orgânicos do capital.
Se, diante das evidências da insuprimível atividade sensível dos homens, o conhecimento verdadeiro é pensado como inexistente, isto é uma abstração elaborada de um ponto de vista absurdo, correspondente ao egoísmo. E o que é egoísmo, se não o indivíduo posto em isolamento, produto de uma dada época histórica, cuja lógica específica da individuação consiste em separar e contrapor os indivíduos, já em si fragmentados? Negar ou fazer abstração da realidade e do conhecimento pode ser e, de fato, tem sido a componente ideal e a justificativa conformista – alienação e estranhamento do homem, perda e contraposição do homem a si mesmo, identificados à natureza humana – da índole ferina da individuação produzida por uma sociabilidade cuja negação do homem é, em essência, sua única forma de o entificar. (CHASIN, 1995, p. 403)
A sentença de Chasin em epígrafe descreve a essência do significado da pós-modernidade, que tem como marco a II Guerra Mundial e a extensão do Estado de Bem-Estar social – a experiência norte-americana keynesiana – para a maioria dos países europeus, alimentando a necessária acumulação capitalista que, ao atingir o auge do seu patamar, nas décadas de 50 e 60 do século XX, culminaria com uma crise estrutural do capital sem precedentes, impondo, como saída, sua reestruturação metabólica a partir da década de 1970, que se consolida e hegemoniza globalmente nas décadas de 1980 e 1990, acarretando o processo de concentração e centralização do capital e a fusão do capital comercial, industrial e financeiro.
A prosperidade e desenvolvimento econômico-social das décadas de 50 e 60 do século XX na América do Norte e Europa provocaram uma euforia e a impressão de que o progresso – na verdade um surto de progresso – seria ad infinitum e que a humanidade havia chegado, afinal, ao “fim da história”, ou seja, ao último e mais elevado estágio possível do desenvolvimento humano, materializado através da inimaginável potência e virtualidades alcançadas pelas forças produtivas – base técnico-material da produção, inovações e invenções técnico/tecnológicas/científicas. O melhor dos mundos possíveis parecia ter,
enfim, se concretizado, apesar de muitas imperfeições e problemas sociais não terem sido equacionados, muito pelo contrário, foram agudizados, exigindo algum tipo de enfrentamento. De qualquer forma, a modernidade chegava ao fim – “fim da história”, “fim das ideologias”, “fim das metanarrativas”, dos “essencialismos”, “universalismos” e seus projetos emancipatórios, que passaram a ser entendidos como quimeras, ilusões, enfim, “coisas de criança”. Entrava-se numa nova era: a da pós-modernidade.
Mas, afinal, o que foi a modernidade? Será que foi, era ou ainda é? Esse conceito engloba um longo processo e contexto histórico-social que compreende a crise de um modo de vida e o surgimento de um outro, a passagem do modo de produção feudal ao modo de produção capitalista, um processo revolucionário freado, interrompido, não levado às últimas consequências, degenerado em relação ao seu projeto político-social inicial de igualdade (de condições materiais e espirituais, ou seja, condições pressupostas, públicas – universais – para o desenvolvimento das individualidades – indivíduo, singularidade –, promovendo a diversidade, a multifacetariedade e enriquecimento humanos, comprovando a determinação reflexiva entre o social e o individual) para todos os homens. Portanto, abortado, frustrando a maioria da humanidade e beneficiando uma minoria, que privatiza a riqueza socialmente produzida, faz da exploração do homem pelo homem sua razão de ser e condição de enriquecer, fundamenta e legaliza, pelo Estado de Direito (racionalização e burocracia), a propriedade privada e a desigualdade social, legitimando-as ideologicamente através da máxima de uma natureza humana egoística, competitiva, individualista.
Sendo assim, devemos nos perguntar: qual é a visão de mundo (ideologia, em sentido amplo, como veremos mais adiante) que embasa o surgimento e estruturação do modo de vida capitalista (o mundo moderno, a modernidade)? Por que, a princípio, foi acreditada, sentida e vivida como revolucionária? Onde reside sua força, sua capacidade de persuasão e unificação das diferentes lutas empreendidas pelos diversos segmentos sociais (totalizar e unificar, conectando e mediando, as divergentes forças sociais)?
As respostas estão sintetizadas em conceitos (que são a síntese dialética de um período histórico-social) que os pós-modernos e pós-estruturalistas – dentre os mais renomados pensadores atuais (após o niilismo de Nietzsche e o nazismo de Heidegger): Michel Foucault, Jean-François Lyotard, Jacques Derrida,
Jacques Lacan –, combatem e negam, como: classe social, progresso, racionalidade, teleologia, humanismo, totalidade, unidade, dentre outros. Façamos os devidos esclarecimentos.
A transição do modo de produção feudal ao modo de produção capitalista – até então embrionário e, por isso mesmo, sem contornos definidos que lhe qualificariam as tendências de desenvolvimento, o que possibilitou, num primeiro momento e por algumas décadas do processo revolucionário desencadeado, reunir e unir interesses e necessidades, em essência, antagônicos – resgatou e se reapropriou, readequando, de uma concepção de mundo cosmogônica e ontológica: a antiguidade clássica, cujas preocupações fundamentais giram em torno de descobrir a essência do ser das coisas, não apenas a explicação aparente dos fenômenos e fatos, mas seus fundamentos, levando à construção de uma visão de mundo integrado, demonstrando as causas primeiras e o encadeamento de causas e suas interdeterminações, mediações e determinações reflexivas entre o multiverso e o universo, entre singularidade, particularidade e universalidade do ser das coisas.
É assim que a Renascença e o Iluminismo colocam a racionalidade humana, o antropocentrismo, no centro, e abre-se uma época de revoluções, tanto no âmbito científico, filosófico, quanto social, cultural, político e econômico. A razão potencializa a atualização das capacidades humanas, possibilitando o progresso e desenvolvimento da humanidade, o domínio da natureza pelo homem, que deixa de submeter-se a ela e servi-la, passando a dela se servir ao submetê-la e dobrá-la por sua engenhosidade criativa, racional e científica. É assim que a racionalidade funda o humanismo que, segundo Kenan Malik (1999), é constituído, em seu âmago, por duas “crenças definidoras”:
Em primeiro lugar, os humanistas sustentam que os seres humanos, mesmo sendo partes integrantes da natureza e sujeitos as suas leis, ainda assim têm nela um status fundamental devido à sua capacidade sem igual, originada na razão e sociabilidade humanas, de superar as restrições que lhes são impostas por esta natureza. Em segundo, eles acreditam na unidade da humanidade, sustentando que todos os seres humanos possuem alguma coisa em comum, algo que é frequentemente chamado de ‘natureza humana’. (MALIK, 1999, p. 133)
Portanto, a racionalidade e o humanismo aparecem, no momento inicial do processo revolucionário, como forças integradoras, capazes de tecer a unidade na diversidade de interesses e necessidades em si antagônicos, pois só em determinado momento desse processo e período revolucionário ficará evidenciado que os interesses e necessidades do capital são irreconciliáveis e irremediáveis aos interesses do trabalho, que, por sua vez, é o único capaz de reunir e unir todas as lutas anti-opressão, anti-exploração, anti-discriminação, anti- igualdade, anti-colonização, anti-imperialistas existentes, porque a única perspectiva que corresponde, de fato, aos interesses e necessidades do gênero humano.
Contudo, concomitantemente também se torna sua fraqueza, principalmente no decorrer do século XIX, quando a essa racionalidade é imputada uma teleologia, ou seja, que o progresso e o desenvolvimento são inerentes à evolução histórica, como se a história e a razão tivessem um projeto em si mesmas, servindo-se dos homens como instrumentos/meios para a realização de seu fim. Tal concepção ideocultural serve aos propósitos do capital e de suas personas, os capitalistas, já que assim justificam o mundo existente como o melhor e único mundo possível, de modo que a humanidade teria chegado ao seu estágio máximo, o teto da história, isto é, ao “fim da história”.
Daí os pós-modernistas e pós-estruturalistas extrairão seu argumento anti- humanista, anti-história, pois o século XX é entendido por eles como a consubstancialização maturada de todo aquele processo revolucionário (Renascença, Iluminismo, Revolução Industrial, Revoluções Burguesas, Colonização, Lutas nacionalistas/anti-imperialistas, até chegar à “Globalização”), que acarretou as duas grandes guerras mundiais, sendo que a II Guerra foi o divisor de águas, gerando o produto máximo de toda uma era: o horror, o caos, a barbárie, a desumanização, o estilhaçamento e fragmentação do social, a frustração da promessa de felicidade, igualdade, solidariedade e coletividade humanas.
Aparentam, assim, serem os novos críticos de um mundo que chegou a sua estação final. Entretanto, como podem ser verdadeiramente críticos se desterram a condição de criticidade do pensamento que é, justamente, a historicidade e objetividade dos fatos e fenômenos sociais? Antes de adentrarmos nesse aspecto, é importante destacarmos algumas questões referentes à
teleologia e ao essencialismo, pois são fundamentais para compreendermos a historicidade e objetividade de todas as coisas e, principalmente, do ser social.
Primeiro, a teleologia é inerente à atividade humana, ao ser social, e não à história, pois somente ele é capaz de prévia-ideação e de colocar em ação as causalidades, por poder, justamente, conhecê-las e, assim, manipulá-las para responder e satisfazer suas necessidades, ainda que não seja capaz de ter um controle e um conhecimento absoluto sobre todas as coisas, entreabrindo as margens para a atuação das casualidades, que jogam um papel especial no desenvolvimento humano, desafiando-o a encontrar novas respostas e soluções a problemas oriundos da satisfação das primeiras necessidades, como demonstra Vaisman (1989) ao explicitar algumas das reflexões teórico-práticas centrais da Ontologia do Ser Social, de Lukács.
Embora os pós-modernistas e pós-estruturalistas vejam no marxismo a estirpe mais particularmente virulenta de todos os “essencialismos”, como destaca Wood (1999, p. 12 e 13), procurando, por isso, destruí-lo, desacreditando-o como um pensamento e práxis científica-política-filosófica séria, isso apenas demonstra a parcialidade e estreiteza da compreensão por eles construída, até porque a afirmação de Marx de que os homens fazem a história, mas não segundo sua vontade e sim sob condições e circunstâncias que dela independem, não significa, de maneira alguma, que seja impossível buscar conhecer e compreender a causalidade das mesmas, e isto porque, como também lembra Marx nas Teses sobre Feurbach, não podemos esquecer que embora sejam os homens “produto das circunstâncias e da educação e de que, portanto, homens modificados são produto de circunstâncias diferentes e de educação modificada, (...) as circunstâncias são modificadas precisamente pelos homens” (MARX, s/d,
p. 208. Itálico nosso).
Em outras palavras, as circunstâncias e condições foram produzidas por alguma das gerações humanas em algum momento/período histórico determinado, sendo assim, é possível descobrir suas causas, analisar e avaliar como os homens agiram e reagiram a elas e assim, pelo conhecimento extraído desse desenvolvimento humano acumulado (patrimônio histórico-cultural), tomar a decisão mais adequada e apropriada para lidar com o(s) problema(s) presente(s), demonstrando que o que é comum aos homens e os une, a sua essência humana, “não é algo abstrato, interior a cada indivíduo isolado. É, em
sua realidade, o conjunto das relações sociais” (MARX, s/d, p. 209), ou seja, não é razoável “pressupor um indivíduo humano abstrato, isolado”, pois se assim fosse, “nele a essência humana só pode(ria) ser concebida como ‘espécie’, como generalidade interna, muda, que se limita a unir naturalmente os muitos indivíduos” (MARX, s/d, p. 209).
Portanto, a essência humana é historicamente determinada, “pertence, na realidade, a uma forma determinada de sociedade. Todos os mistérios que desviam a teoria para o misticismo encontram sua solução racional na prática humana e na compreensão desta prática” (MARX, s/d, p. 209 e 210. Itálico nosso). O ser social é um produto de si mesmo e de sua própria atividade na história, o que Lukcás denominou de “humanismo histórico”. A única coisa que há de natural no ser social é seu corpo biofísico, elo inquebrantável que estabelece a relação dialética inexorável entre social e natural, entre a esfera orgânica e inorgânica da natureza que promovem a condição para o salto qualitativo que dá origem ao ser social e ao mundo humano.
No intuito de reiterar as afirmações tecidas sobre a questão do “essencialismo”, cedemos espaço a Foster (1999, p. 204. Os colchetes são nossos):
(...) abandonar inteiramente a teoria e a explicação histórica para evitar ‘essencialismo’ e ‘fundacionismo’ é como jogar fora o bebê para manter limpa a água do banho. O próprio Marx forneceu [outra leitura] que se opunha ativamente à teoria (até mesmo à teoria ‘marxista’) que se arrogava o caráter de ‘supra-histórica’. Nas Teses sobre Feurbach, apresentou o que continua a ser a mais exaustiva crítica ao que chamou de concepção ‘essencialista’ dos seres humanos e da natureza. Na verdade, o materialismo histórico já há muito se entrega a uma autocrítica, precisamente para expulsar todos os tipos de ‘essencialismos’, ‘positivismos’ e ‘estruturalismos’ que se intrometeram na filosofia da própria práxis – uma autocrítica que levou às percepções de teóricos como Gramsci, Sartre, Thompson e Raymond Williams. Esses pensadores distanciaram-se do ‘marxismo oficial’ positivista que nasceu da Segunda Internacional [1916] e, mais tarde, transformou-se em uma caricatura de si mesmo com o stalinismo. Ainda assim, permaneceram fiéis à crítica ao capitalismo e aos seus compromissos com as lutas dos oprimidos.
Na verdade, muitas das críticas dos pós-estruturalistas e pós-modernistas dirigem-se não ao pensamento e à filosofia da práxis de Marx e Engels, mas sim ao marxismo caricatural de alguns adeptos e seguidores (Kautsky é um bom
exemplo), repleto de tergiversações, mal-entendidos, bem como deturpações, simplificações e descontextualizações, algo percebido pelo próprio Engels em carta escrita a Bloch (ENGELS, s/d, p. 284-286).
Após essas breves, mas imprescindíveis ponderações, retomemos a questão da historicidade e objetividade dos fatos e fenômenos, algo que é negado pelos pós-modernistas e pós-estruturalistas, terminando por minar qualquer base racional para seus argumentos, resultando numa visão aparentemente crítica, quando, na verdade, é essencialmente não-crítica. Justifiquemos.
O primeiro aspecto a ressaltar é que a compreensão dos fatos e fenômenos sociais impõe a necessidade de buscar a causa (ou encadeamento de causas que invariavelmente têm um momento predominante, em última instância) que os fundamenta. Essa é a base da racionalidade humana. Ao negar justamente esse princípio racional, a causalidade, os pós-modernistas e pós- estruturalistas tornam-se irracionais e essa irracionalidade alcança o extremo ao se desprenderem da história, que nada mais é do que a objetivação da ação humana (subjetividade objetivada), através de suas atividades socioprodutivas, em determinado contexto espaço-temporal (histórico).
Wood (1999, p. 14 e 15) tece considerações interessantes sobre esses aspectos. Vejamos:
a despeito de sua insistência em diferenças e especificidades que marcam épocas, a despeito de sua reivindicação de terem denunciado a historicidade de todos os valores e conhecimentos (ou precisamente devida a sua insistência na ‘diferença’ e na natureza fragmentada da realidade e do conhecimento humano), eles são impressionantemente insensíveis à história. (...) Estruturas e causas foram substituídas por fragmentos e contingências. Não há um sistema social (como, por exemplo, o sistema capitalista), com unidade sistêmica e ‘leis dinâmicas’ próprias; há apenas muitos e diferentes tipos de poder, opressão, identidade e ‘discurso’. Temos que rejeitar não só as antigas ‘histórias grandiosas’, tal como os conceitos de progresso do Iluminismo, mas também a noção de processo histórico e causalidade inteligíveis – e com elas, evidentemente, qualquer ideia de ‘escrever a história’. Não há processos estruturados acessíveis ao conhecimento humano (ou, temos que supor, à ação humana); há somente diferenças anárquicas, separadas e inexplicáveis. Pela primeira vez, temos o que parece ser uma contradição em termos, uma teoria de mudança de época baseada em uma negação da história.
Se não há causas, os fatos e fenômenos são isolados, assim como os indivíduos, verdadeiras mônadas, que apenas se associam em situações, circunstâncias e condições específicas para atingir seus objetivos individuais, também específicos, egoísticos. A associação dura enquanto se fizer necessário para a obtenção do que se deseja. Sendo assim, não há possibilidade de construir as conexões causais, as determinações reflexivas entre os fatos e fenômenos, pois a realidade é fragmentária e cada fragmento se esgota em si mesmo, de modo que podemos, tão somente, traduzi-los pela linguagem e construir discursos. Numa realidade estilhaçada, as ações devem ser pulverizadas, locais, daí a micropolítica e os micropoderes. Como conclui Wood (1999, p. 15),
Uma vez que não há sistemas ou história suscetíveis à análise causal, não podemos chegar à origem dos muitos poderes que nos oprimem. Nem tampouco, certamente, aspirar a algum tipo de oposição unificada, de emancipação humana geral, ou mesmo a uma contestação geral do capitalismo, como os socialistas costumavam acreditar; o máximo que podemos esperar é um bom número de resistências particulares e separadas.
Em suma, não há continuidade na descontinuidade, ou seja, na mudança, pois isso afirmaria a existência de uma estrutura, de uma totalidade social, em outras palavras, “aspectos comuns ou ligações comuns entre elementos heterogêneos e diversificados” (MALIK, 1999, p 124). Assim, os pós- estruturalistas e pós-modernistas negam “quaisquer padrões ou processos unificadores entre os fragmentos diversificadores e em constante mudança que constituem a sociedade”. (MALIK, 1999, p. 125)
O antiessencialismo e antitotalidade do pensamento pós-moderno e pós- estrutural tem como característica marcante a indeterminação, encontrando “o sentido de formas sociais não em relações, mas em diferenças”. (MALIK, 1999, p.
125) E o que dizer acerca da objetividade? Para os pós-estruturalistas e pós- modernistas ela é impensável, pois trata-se de explicações naturalistas, positivistas dos fatos e fenômenos sociais, procurando quantificá-los, buscando suas causas, suas permanências, o que é entendido por eles como um contra- senso, uma tentativa de naturalizar as diferenças que, justamente por representarem a diversidade, são anti-padrões, anti-sistemas.
Malik (1999, p. 126. O negrito é nosso) faz uma observação muito pertinente a esse respeito, dizendo que
na pressa de liquidar de uma vez por todas com as teorias naturalistas (leia-se positivistas), o discurso pós-estruturalista (...) se levanta não apenas contra explicações naturalistas da sociedade, mas também contra quaisquer explicações causais – ou, pelo menos, contra qualquer explicação que conceda prioridade a certas causas em detrimento de outras. Toda e qualquer ideia de determinação – mesmo no sentido não- reducionista, tendo a ver com o que E. P. Thompson chama frequentemente de ‘a lógica do processo’, ou o que Raymond Williams (em Marxism and Literature [1978]) descreve como ‘um processo complexo e inter-relacionado de limites e pressões’ – é considerada como essencialista e, portanto, ilegítima.
A negação da objetividade é, para os pós-modernistas e pós- estruturalistas, a afirmação da pluralidade do mundo, da realidade. Aqui, mais uma vez, denota-se a irracionalidade dos pós-modernos, pois como enfatiza Malik (CARR apud MALIK, 1999, p.130) através de citação de E. H. Carr:
Não se segue que, porque uma montanha parece assumir formas diferentes quando vista de ângulos diferentes, ela não tem objetivamente forma alguma ou tem uma infinidade de formas. Não se segue que, porque a interpretação desempenha um papel necessário na apuração dos fatos da história, e porque nenhuma interpretação é inteiramente objetiva, uma interpretação é tão boa como qualquer outra, e que os fatos da história não são acessíveis à interpretação objetiva.
Devemos partir do seguinte princípio: o mundo social, humano é um produto da transformação do mundo natural pelo ser social (surgido do salto qualitativo da esfera orgânica e inorgânica), e o mundo natural tem existência anterior ao mundo social, tendo, também, sua ontologia – como demonstram os gregos –, ou seja, o ser de todas as coisas tem base material, objetiva e é justamente essa materialidade e objetividade que permitiu ao ser social compreender a lógica imanente do ser das coisas, podendo manipulá-las e servir- se delas, isto é, ir se apropriando e aproximando da forma mais adequada possível do real e da processualidade da realidade, construindo, assim, sua autodeterminação e autonomia relativa (porque sempre haverá uma dependência ineliminável do homem em relação à natureza, sua matéria-prima em todos os
âmbitos, a começar pelo seu corpo biofísico) através da criação e produção do mundo social e da sua própria história.
Logo, a realidade existe, é objetiva e também cognoscível. Como bem frisou Lênin (1982, p. 103. O destaque em itálico é nosso):
a dialética materialista de Marx e de Engels contém certamente o relativismo, mas não se reduz a ele, isto é, reconhece a relatividade de todos os nossos conhecimentos, não no sentido da negação da verdade objetiva, mas no sentido da condicionalidade histórica dos limites da aproximação dos nossos conhecimentos em relação a esta verdade.
O fato de não conseguirmos conhecer tudo não nos impede de construir as múltiplas relações e determinações entre os fatos e fenômenos observados, ou seja, a totalidade social, rejeitada e denunciada pelos pós-modernistas e pós- estruturalistas como sinônimo de totalitarismo. Porém, como alerta Malik (1999), “ao louvar a indeterminação e combater a ideia de totalidade, tudo isso em nome do antiessencialismo, abala sua própria capacidade de explicar historicamente fatos sociais”, além do agravo de que “os fatos são arrancados de seu contexto vivo e compreendidos apenas em isolamento.” (MALIK, 1999, p. 130 e 131)
A objetividade é a relação interativa existente entre diferentes seres efetivos. Com isso queremos dizer que “todo existente é objetivo e, portanto, faz parte de um complexo concreto e está em relações diversas e sempre determinadas e, portanto, históricas com outros entes”. (DELLA FONTE, 2011, p.
31) De modo que, “a noção de objetividade implica a totalidade e a história. (...) a objetividade remete para a existência de objetos antepostos e na condição de inter-relacionamento” (DELLA FONTE, 2011, p. 31). A partir daí depreende-se que “todo objeto é, por sua essência, processualidade. Ser é totalidade, ser é historicidade. Cada elemento ganha existência a partir da totalidade de relações nas quais está mergulhado e que lhe constituem”. (DELLA FONTE, 2011, p. 31)
A base da objetividade é a construção de relações, de mediações, de tessituras, algo que é negado pelos pós-modernos, como vimos. São elas que nos permitem uma aproximação a mais adequada e razoável possível da processualidade do real para uma ação o mais consciente e consequente possível. Decorre daí a maior ou menor eficácia das ações políticas e de todas as
demais formas de intervenção sobre o social. Como assevera Della Fonte (2011, p. 32),
cada conhecimento tem sua peculiaridade, mas, ao mesmo tempo, tangencia e dialoga com outros modos de conhecer, em um processo de aproximação infinita com a realidade; processo infinito, nem por isso impossível de ocorrer. Desse modo, o conhecimento objetivo orienta-se pela perspectiva da totalidade, apreende e expressa, em um esforço aproximativo, as processualidades históricas que tecem o real.
Vemos, portanto, porque os pós-modernistas e pós-estruturalistas só aparentemente são críticos, uma vez que, como demonstrado, a condição essencial para a construção de análises críticas é rechaçada. Como denuncia Foster, “ao minar o próprio conceito de história – em qualquer sentido significativo, além do mero ‘contar histórias’ – esses teóricos roubaram a análise crítica do que sempre foi seu instrumento mais indispensável”. (FOSTER, 1999, p.
203) Arrematando essa sentença, utiliza as palavras de E. P. Thompson para demonstrar o perigo dessas ideias a-históricas ou anti-históricas, pois com elas perde-se de vista “não ‘a razão na história’ em algum sentido abstrato, mas sim ‘as razões do poder e as razões do dinheiro’”. (FOSTER, 1999, p. 203)
Dr. Reilly: Posso reconciliá-la com a condição humana, / a condição a que alguns, que foram tão longe quanto você, / conseguiram voltar. Eles podem lembrar-se / da visão que tiveram, mas deixam de se lamentar, / mantêm-se pela rotina comum, / aprendem a evitar as esperanças excessivas, / tornam-se tolerantes consigo mesmos e com os outros, / o que existe para dar e aceitar. Não se impacientam; / estão contentes com a manhã que separa / e com a noite que une, / dispostos à conversa casual ante a lareira; / duas pessoas que sabem que não se compreendem, / criando filhos que não compreendem, / e que nunca os compreenderão.
Célia: É isso o melhor da vida?
Reilly: É uma vida boa. (ELLIOT apud MÉSZÁROS, 1988, p. 231)
Vimos, de modo breve e condensado, um pouco do contexto histórico- social que contribuiu para o surgimento da pós-modernidade e do pós-
estruturalismo, bem como suas principais detrações às características positivas do humanismo e da modernidade e às categorias e ideias que ambos engendram. Como observa Malik (1999, p. 141 e 142. O grifo é nosso),
ocorreu na intelligentsia radical uma ‘decepção geral com o curso da história recente, com a estratégia de partidos políticos que reivindicavam a herança de Marx e, principalmente, com o próprio proletariado. As classes que Engels havia louvado como as herdeiras da filosofia clássica não haviam conseguido agir conforme se esperava’. Alguns fatos ocorridos no pós-guerra consolidaram essas opiniões: a experiência do fracasso da revolta dos estudantes em maio de 1968; o colapso dos partidos stalinista e social-democrata na década de 1980; e o fim dos movimentos de libertação no Terceiro Mundo reforçaram a convicção de que a transformação social era uma quimera. (...) Para os teóricos do pós-guerra, o abismo entre crença e realidade poderia ser transposto não pela transformação da realidade, mas pela renúncia a tais crenças. Sem esperança na mudança social, pensadores pós-estruturalistas e pós-modernistas afirmaram, em vez disso, que igualdade e humanidade não tinham sentido e que a diferença e a diversidade deveriam ser a meta.
É assim que começamos a compreender os nexos causais e as circunstâncias objetivas que erigem a diferença e a diversidade cultural como solução explicativa para a maioria dos problemas contemporâneos – de raça, de sexo, de gênero, étnico, etc. –, ocorridos, na maioria das vezes, segundo seus defensores, pela falta de respeito ou negligência a elas. Também é aqui que principia a diferença substancial obliterada entre a ontologia da diversidade humana (abortada) e a ideologia da diversidade cultural.
Iniciemos esclarecendo o que significa ontologia da diversidade humana e porque encontra-se abortada. Por ontologia entendemos o tornar-se homem do homem, a autoconstrução histórico-social do ser social, que corresponde a um fazer-se acumulativo, um processo em constante devir, que proporciona a criação do indivíduo enquanto gênero humano através da práxis social unificadora/interdeterminada, que interliga todos os indivíduos sociais, colocando- os em relação, direta e indireta, através de complexas mediações e múltiplas determinações, evidenciadas somente por intermédio da análise concreta do processo concreto, porque em momentos e lugares diferentes, a mesma atividade pode assumir sentidos muito diferentes.
O problema é que na organização social capitalista e devido à própria lógica perversa dessa relação social (capital), pautada na reprodução das desigualdades sociais fundada na propriedade privada dos bens e meios de produção, no trabalho assalariado, na divisão entre trabalho manual e intelectual, na sociedade de classes e no Estado capitalista, à maioria dos homens é impedido e inviabilizado o acesso ao desenvolvimento e benefícios trazidos pelo desenvolvimento das forças produtivas e pelo processo de complexificação da vida social2, de modo que não são capazes de comungar da própria humanidade, que lhes é negada, obstaculizando seu processo de hominização e humanização, desfrutando de tudo aquilo produzido pelo gênero humano, material e espiritualmente falando.
É assim que a ontologia da diversidade humana, da riqueza social criada pelas atividades socioprodutivas e complexificação da vida social pela possibilidade objetivamente posta de desenvolvimento multilateral dos indivíduos sociais e suas potencialidades e capacidades humanas, é abortada. A produção da riqueza é, de fato, social, mas sua apropriação e usufruto são privados. Ao invés de uma apropriação, na plenitude possível e universal, da criatividade e engenhosidade humanas – o que potencializaria o desenvolvimento e objetivação de outras individualidades, contribuindo para sua realização e enriquecendo o patrimônio histórico-cultural de toda a humanidade, porque seria de livre acesso ao gênero humano –, temos, na sociabilidade do capital, um processo de desentificação do ser social, impedido de se sentir, fazer e realizar enquanto gênero humano, sendo incentivado, pela lógica do desenvolvimento desigual e combinado capitalista, a adotar, naturalizar e internalizar as máximas que retroalimentam tal lógica, ou seja, a competição, a concorrência, o individualismo e o egoísmo, que passam a ser acreditados como características inerentes à natureza humana, mais uma vez obliterando que a natureza humana é histórica, portanto, processual e concretamente construída pelo modo como o ser social organiza e articula as relações sociais e de produção ao longo de sua autoconstrução humana.
Por fim, na contramão do caráter crescentemente genérico da vida de cada um de nós, portanto, do fato de que estamos cada vez mais conectados e
2 Para uma melhor compreensão sobre a relação indivíduo/gênero sugerimos o livro de Sérgio Lessa A Ontologia de Lukács, capítulo V, “A Categoria da Reprodução Social”.
dependentes uns dos outros e de que a vida de todos está presente na vida de cada um, está o isolacionismo estabelecido pela lógica das relações sociais e de produção capitalista, na sensação e no sentir-se só no meio da multidão, como diria Drumond, tornando os indivíduos sociais em mônadas assoladas pelo estado de angústia e solidão. Mészáros (1988), citando um poema de Elliot, aponta justamente esse sentimento de solidão como mediação potencial para transcender positivamente o atual estado de fetichização e alienação humanas, promovendo o reencontro dos indivíduos consigo mesmos e com sua humanidade genérica. Conforme as palavras da personagem Célia:
O que aconteceu me tornou consciente / de que sempre estive só. De que se está sempre só. / ... não que eu queira estar só, / mas todos estão sós – ou me parecem estar. / Fazem barulho, e acham que estão conversando; / Fazem caretas, e acham que estão se compreendendo mutuamente. / E eu tenho certeza de que não estão. (ELLIOT apud MÉSZÁROS, 1988, p. 230-231)
A personagem é capacitada de perceber o esquema da alienação, de cair em si e compreender que as relações humanas são estabelecidas e mantidas através não das pessoas humanas, mas sim pela mediação dos objetos e produtos da criação e atividade produtiva humana; uma relação entre coisas, onde os indivíduos figuram como meio para efetivar a troca e garantir a circulação das mercadorias, bem como a reprodução do sistema metabólico do capital e da sua acumulação ad infinitum.
Por isso, como nos alerta Lessa (2004, p. 5),
o isolamento do sofrimento de cada um é condição necessária para que tal sofrimento seja suportado cotidianamente como algo inevitável e, neste caso muito diretamente, tal isolamento cumpre uma função na manutenção da reprodução social regida pelo capital. Este isolamento solitário (...) é uma das características mais marcantes dos indivíduos que são formados neste mundo ‘globalizado’.
Após esse sumário esclarecimento, começamos a compreender porque a solidariedade de classe, a coletividade e a própria humanidade estão desacreditadas, afinal, num mundo cada vez mais hedonista, individualista, competitivo, concorrencial, fragmentado e particularizado em diferenças e
localismos, o que é estimulado é o isolamento e não a articulação totalizadora e mediata, produzida histórica e objetivamente pelos homens. Logo,
as ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios da produção material dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da produção espiritual. As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias. (MARX; ENGELS, 2007, p. 47)
A “expressão ideal das relações materiais dominantes” corresponde à expressão ideológica dessas mesmas relações. De modo que a realidade é ideologizada, servindo aos propósitos de uma determinada classe, e não aos de outra, influenciando na escolha entre alternativas postas aos indivíduos sociais, ao mesmo tempo que cria a ilusão de possibilidade de liberdade de escolha e de liberdade individual, pois, na verdade, sua objetivação pressupõe o que lhe é negado e imanente: a criação de condições públicas, isto é, postas igualmente para todos, a fim de que cada um possa suprir as necessidades de sua individualidade. O público é o pressuposto para a realização da individualidade humana singular. Algo, hoje, completamente inviável, ainda mais quando a tendência hegemônica é a de privatização dos espaços da vida social.
É nesse horizonte que a ontologia da diversidade humana é substituída pela ideologia da diversidade cultural, que tem como lema a valorização da diferença. Há, indubitavelmente, uma perda substantiva de significado e de referenciais em termos de critérios parametradores às ações humanas, dado que os indivíduos sociais não mais conseguem enxergar as mediações ontologicamente (histórico-sociais) existentes entre eles e o gênero humano, e suas escolhas voltam-se a atender a satisfação de seus desejos e pulsões individuais, que redundam no mais completo individualismo e monismo que contribuem para o crescente isolamento entre si. De modo que
a solidão é, nestas circunstâncias, quase um pré-requisito para a elevação afetiva e pessoal do indivíduo para além da banalização cotidiana. A fragmentação está instalada no próprio seio das
individualidades: sua identidade se afirma privadamente, na reclusão, no isolamento; sua vida coletiva, aquelas relações que conectam a pessoa ao gênero humano, não servem de mediação para a expressão do que cada um de nós é enquanto pessoa humana. (LESSA, 2004, p. 7)
As ideias, de uma perspectiva ontológica e lukacsiana, são uma determinação reflexiva das contradições da vida social e das condições materiais de existência e de reprodução social, portanto, não se trata da busca pelo conhecimento falso ou verdadeiro, de afirmar que uma ideia é falsa ou verdadeira, como é o caso da perspectiva gnoseológica/epistemológica, mas sim de verificar como, objetivamente, elas plenificam de sentido a vida humana, ou seja, como uma ideia se torna ideologia.
Por isso Marx dizia que “não se julga o que um indivíduo é a partir do julgamento que ele se faz de si mesmo” (1978, p. 130), e as ideologias, portanto, são engendradas dessas contradições e condições, resultando numa determinada visão de mundo, que orienta o modo como os indivíduos se relacionam com ele e entre si, jogando um papel essencial na escolha entre alternativas porque, ainda que essas escolhas sejam limitadas e delimitadas pela condição de classe desses mesmos indivíduos, pela forma como se inserem e pelo lugar que ocupam nas relações sociais e de produção capitalistas, ainda assim, justificam e dão sentido ao modo como vivem suas vidas, e esta é a função social da ideologia, num sentido amplo, como explicita Vaisman (1989, p. 399-421) ao expor o pensamento de Lukács, pois
do ponto de vista ontológico, ideologia e existência social (em qualquer nível de desenvolvimento) são realidades inseparáveis. Ou seja, onde quer se manifeste o ser social há problemas a resolver e respostas que visam a soluções destes; é precisamente nesse processo que o fenômeno ideológico é gerado e tem seu campo de operações. (VAISMAN, 1989, p. 419)
Já o sentido restrito da ideologia corresponde à sociabilidade fundada e organizada através da propriedade privada, do capital, do trabalho assalariado, que gera a sociedade de classes e da luta de classes e, portanto, uma ideologia de classe, de como a classe capitalista e a classe trabalhadora leem e atuam no mundo, justificando seu ser, agir, sentir, pensar, fazer, interagir. Assim, explicitando a caracterização da ideologia no seu sentido restrito, conforme a perspectiva lukacsiana, Vaisman (1989, p. 419 e 420) esclarece que,
na medida em que o conflito social passa a fazer parte da realidade dos homens, apresentando-se como problemática vital, a ideologia volta-se à resolução dos problemas agora transpassados por este conflito básico, ou seja, a ideologia passa a se manifestar como um instrumento ideal através do qual os homens e as classes se engajam nas lutas sociais, em diversos planos e níveis. (...) Na acepção restrita de ideologia, portanto, ideologia é instrumento de conscientização e de luta social que caracteriza pelo menos aquelas (sociedades) da pré-história da humanidade, ou seja, aquelas sociedades divididas em classes sociais antagônicas, que por meio da ideologia conscientizam e enfrentam conflitos derivados de seus interesses contrapostos.
É assim que podemos entender porque a ideia da diversidade cultural, da valorização da diferença, dos particularismos e das ações locais em detrimento do macrossocial ganham cada vez mais terreno, mais corações e mentes, contribuindo para o processo de desontologização do real, da história e do ser social, fortalecendo a ideologia dos intelectuais orgânicos do capital, como os pós- modernistas e pós-estruturalistas (ainda que se intitulem críticos) e suas explicações pontuais, discursivas e anti-causais, como demonstrado. Como assevera Wood (1999, p. 19 e 20),
Para membros da esquerda, e em especial para a geração mais jovem de intelectuais e estudantes, a maior atração do pós- modernismo é sua aparente abertura, em contraste com os alegados ‘fechamentos’ de um sistema ‘totalizante’ como o marxismo. Essa alegação de abertura, no entanto, é na maior parte falsa. O problema não é apenas que o pós-modernismo represente um tipo ineficaz de pluralismo que abala suas próprias fundações. Nem é simplesmente um ecletismo acrítico mas inócuo. Há em jogo algo mais sério. A ‘abertura’ dos conhecimentos fragmentários do pós-modernismo e sua ênfase na ‘diferença’ são compradas ao preço de fechamentos muito mais fundamentais. O pós-modernismo é, a sua maneira negativa, um sistema inexoravelmente ‘totalizante’, que impede uma gama mais vasta de pensamento crítico e de política libertadora – e seus fechamentos são finais e decisivos. Seus pressupostos epistemológicos tornam-se inacessíveis à crítica, tão imune quanto o mais rígido tipo de dogma (como criticar um conjunto de ideias que, a priori, exclui o próprio emprego do argumento ‘racional’?). E impede – não apenas ao rejeitar dogmaticamente, mas também por tornar impossível – uma compreensão sistemática de nosso momento histórico, uma crítica geral ao capitalismo e, praticamente, a toda e qualquer ação política eficaz.
Vemos, portanto, o quanto a ideologia da diversidade cultural – como suas variações: pluralismo cultural, multiculturalismo – dos pós-modernistas e pós- estruturalistas serve ao processo de conciliação e resignação com a atual condição de alienação humana, sendo muitíssimo eficaz em impedir a unificação e articulação das lutas dos diferentes movimentos e segmentos sociais, particularizando-as, fragmentando-as, pulverizando-as e isolando-as, neutralizando sua força política-social, obliterando e desterrando a base de sua unidade, que é a condição material e existencial desses indivíduos, ou seja, sua condição de classe, uma luta, essencialmente, de alma social. A fim de garantir o controle sobre o social e suas ações, fazendo a manutenção da paz e da ordem, não há melhor arma do que ideologias persuasivas, com reconhecimento científico para enfraquecer as possíveis vozes resistentes da contra-hegemonia, desfocando do problema central e de suas contradições: as relações sociais e de produção capitalistas e a luta de classes.
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Recebido em: 21 de agosto de 2017 Aprovado em: 26 de outubro de 2017 Publicado em: 5 de dezembro de 2017
Diego de Oliveira Souza2 Roberta Dayanne de Oliveira Santos3
O debate sobre as questões “racial”3 e da mulher tem avançado nos últimos anos, gerando tensões no interior da cultura predominante. Tais avanços são, decerto, importantes, pois têm se dado no campo da cultura, da educação, das relações subjetivas entre os sujeitos, do direito etc., possibilitando melhorias
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.15i27.p9634
2 Doutor em Serviço Social pela Uerj. Mestre em Serviço Social pela Ufal. Especialista em Saúde do Trabalhador pela Fatec Internacional. Graduado em Enfermagem pela Ufal. Professor Adjunto e Enfermagem. E-mail: enfufaldiego@hotmail.com. Endereço: Av. Nossa Senhora de Fátima, n. 145, Bairro Alto do Cruzeiro, CEP: 57313-040, Arapiraca/AL.
3 Mestranda em Antropologia Social pela Ufal. Graduada em Enfermagem pela Ufal. E-mail:
4 Ao longo do texto argumentaremos contra o uso do termo “racial”.
parciais na vida das mulheres negras, embora muito se tenha ainda de avançar nos campos mencionados.
Apesar disso, a nosso ver, por vezes, o debate (seja político-social, seja científico) tem se afastado ou até mistificado as bases materiais (de cunho ontológico) das questões, fazendo-nos perder de vista a articulação que existe entre elas e a exploração da classe trabalhadora (desconsiderando o processo de produção/reprodução do capital). Isso tem implicação direta nas estratégias de enfrentamento dos problemas sociais que se desdobram das questões ora em foco, como, por exemplo, contra o “racismo” ou a “desigualdade de gênero”, uma vez que deixa intactas suas raízes, limitando-se a corrigir seus efeitos.
Com isso, ainda se mantém um cenário de desigualdades que assume formas particulares (mais graves e mais complexas) nesses grupos sociais: negros e mulheres. Tal condição está explicitada em indicadores sociais. Por exemplo, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea (2014, p. 15, grifos da obra), no Brasil, “os negros possuem nível de renda per capita familiar menor que os brancos, sendo mais numerosos nas faixas de rendimento com menos de 0,5 salário-mínimo de renda mensal per capita familiar”. Além disso, em geral, as famílias “chefiadas” por negros(as) ocupam um maior número de moradias classificadas como inadequadas4 do que aquelas chefiadas por brancos(as). Isso fica demonstrado ao se analisar a distribuição de moradias no ambiente urbano metropolitano, onde 77,1% das moradias da população branca são classificadas como adequadas, contra apenas 60,9% das habitações de famílias negras (IPEA, 2014).
A escolaridade é outro fator relevante: “considerando a população com mais de 15 anos, em 2012, 23% da população branca tinha menos de quatro anos de estudo; entre os negros, este percentual atingiu 32,3%” (IPEA, 2014, p. 19). Já quando observamos a composição das famílias (e, nesse caso, considerando a simbiose entre questão “racial” e de “gênero”), observa-se que
4 A moradia classificada como adequada é aquela que consiste em “construção de alvenaria ou madeira tratada, com telhas ou lajes; acesso à água potável com canalização, coleta de esgoto e lixo; máximo de duas pessoas por dormitório com banheiro no domicílio; e acesso à telefonia e eletricidade”. Aquelas que não atendem a todos esses requisitos, são tidas como inadequadas (IPEA, 2014, p. 17).
existem mais famílias formadas apenas por mulher e filhos entre a população negra, sendo o percentual de 17,6%, contra 14,8% entre os brancos (IPEA, 2014). Ao se comparar homens e mulheres em geral, constata-se que elas ainda trabalham mais e recebem menos. Consoante revelam Atal, Ñopo e Winder (2009), as mulheres brasileiras trabalham cerca de cinco horas a mais que os homens e recebem aproximadamente 30% menos. Ademais, considerando a população acima de 25 anos, vê-se que 6,7% dos homens ocupavam cargos de chefia ou direção, contra apenas 4,7% das mulheres. Esses dados revelam que, ainda hoje, existem disparidades entre homens e mulheres, o que implica maiores
dificuldades sociais para estas.
Obviamente, a situação social da mulher negra corrobora os péssimos indicadores sociais acima mencionados. Sua condição de saúde é exemplar da atuação sinérgica entre os vários elementos sociais que compõem seu panorama atual. A título de exemplo, segundo a Coordenação Nacional de Hipertensão e Diabetes, em 2009, cerca de 27% das mulheres brasileiras tinham hipertensão arterial sistêmica (HAS), enquanto entre homens a taxa era de 21%. Quando observada a taxa apenas entre as mulheres negras, o indicador é ainda mais grave, porquanto negras tenham quatro vezes mais HAS do que as mulheres brancas (SILVA NASCIMENTO; SARDINHA; PEREIRA, 2012). Para Santos
(2008), mulheres negras ainda são mais acometidas por diabetes e, entre a população negra geral, predominam problemas como anemia falciforme, desnutrição, tuberculose e morbimortalidade por causas externas (violência).
Fica clara a relação entre as problemáticas sociais enfrentadas por essas mulheres e sua saúde. Trata-se de um panorama construído histórico- socialmente, assumindo significativa complexidade quando comparado a outros grupos sociais. Diante disso, nosso objetivo consiste em realizar uma análise ontológica da saúde das mulheres negras, buscando resgatar as determinações preponderantes (materiais) desse processo social. Para tanto, nossa investigação apreende três importantes mediações de análise: a determinação social da saúde em geral, a questão “racial” e a questão da mulher, articuladas em um plano de fundo comum.
Para tanto, cabe fazer uma ressalva do ponto de vista teórico- metodológico: a análise desenvolvida neste artigo orienta-se pela perspectiva histórico-ontológica, de cariz marxiano. Portanto, nem se guia pela especulação metafísica das ontologias antigas e medievais, nas quais a essência dos processos sociais era tida como predeterminada e, por isso, imutável; nem se limita à fugacidade dos epifenômenos, supervalorizando a dimensão subjetiva das relações sociais. A ontologia marxiana, tão bem explicitada por Lukács (2012; 2013), ancora-se na relação dialética entre aparência e essência, com determinações recíprocas, reconhecendo, sobretudo, que a própria essência é radicalmente histórica, ainda que possua elementos de maior continuidade que a esfera fenomênica. Assim, o problema da essência se resolve na própria dinamicidade das relações sociais, quando as esferas subjetiva e objetiva se entrelaçam, com determinação predominante desta sobre aquela.
Destarte, realiza-se aqui uma decomposição analítico-abstrata do objeto de estudo, no sentido de explicitar as bases materiais de cada uma das mediações há pouco mencionadas, para depois reconstruí-lo, a fim de demonstrar, em linhas gerais, as raízes da questão da saúde das mulheres negras. Convém esclarecer que os dados e o percurso histórico da realidade brasileira foram tomados como particularidades de análise, permitindo o desencadear da discussão. Com isso, espera-se contribuir para o que debate se amplie, numa direção que articule suas diversas dimensões, sem perder de vista suas determinações mais profundas.
O entendimento sobre a natureza do processo saúde-doença perpassou várias perspectivas na história. Na verdade, a saúde só passa a ser entendida como processo mais recentemente (décadas de 1960, 1970 e 1980), quando da aproximação entre Ciências da Saúde e as tendências mais dialéticas das Ciências Sociais. Antes disso, compreendia-se a saúde como fenômeno sobrenatural (Idade Antiga e Medieval), apenas na sua dimensão biológica (modelo biomédico vigente a partir da modernidade) ou, mesmo após as
contribuições da Organização Mundial da Saúde (OMS) e seu novo conceito de saúde, sem perceber a dinamicidade inerente à saúde5.
A partir das contribuições do Movimento Operário Italiano (décadas de 1960 e 1970), inicia-se o estabelecimento das correlações entre adoecimento e a forma de trabalho determinada pelo modo de produção capitalista. Macaccaro (1980) enfatiza a imprescindibilidade da luta de classes para os enfrentamentos dos problemas de saúde. Concomitantemente, mas com maior ênfase, nos fins da década de 1970 e na de 1980, a Medicina Social latino-americana traz contribuições decisivas para consolidar a perspectiva da saúde como processo social.
Representante desse campo, Laurell (1982, p. 16) esclarece que:
Em termos muito gerais, o processo saúde-doença é determinado pelo modo como o homem se apropria da natureza em um dado momento, apropriação que se realiza por meio de processo de trabalho baseado em determinado desenvolvimento das forças produtivas e relações sociais de produção.
Com efeito, avança-se no sentido de que a saúde, enquanto processo social, possui o trabalho como determinação essencial (embora não a única), conferindo-lhe a natureza eminentemente social, apesar de se expressar biologicamente. Sobre isso, Rezende (1989, p. 87) assinala que “saúde é uma postura humana ativa e dialética frente às permanentes situações conflituosas geradas pelos antagonismos entre o homem e o meio”, considerando que essa relação (seja entre o ser humano e o meio, seja entre os próprios seres humanos) se dá no campo social, cujo trabalho é o ponto de partida.
Diante disso, conforme já indicado em outros textos (SOUZA; SILVA; SILVA, 2013; SOUZA; MELO; VASCONCELLOS, 2015; SOUZA, 2016a; SOUZA,
2016b), o processo saúde-doença só pode ser explicado mediante a
5 Consoante lembra Souza (2016b), para a OMS, a saúde não é apenas a ausência de doença, mas o completo bem-estar físico, psíquico e social. Tal conceito é tautológico, pois apenas diz que saúde é igual a bem-estar, sem especificar o que isso seria. Além disso, é uma perspectiva absolutista, manifestada no uso do adjetivo “completo”. Com isso, anula-se a dinamicidade do processo saúde-doença, caindo na mesma dicotomia da concepção biomédica (ou sem tem bem- estar ou se tem mal-estar – não há processo).
indissociabilidade entre o biológico (natural) e o social – caráter que é originário da própria natureza do “ser social”. Assim, é preciso
[…] apreender a saúde numa perspectiva da totalidade, considerando-se […] a dimensão social da saúde sem ignorar a importância de sua base biológica, de caráter insuprimível, assim como sua dimensão singular/individual, ainda que a predominância ontológica seja coletiva/social. Tal conclusão não é fruto da epistemologia, mas uma determinação que emerge da natureza ontológica do ser social, porquanto, conforme Lukács (2013) revelou, o homem ascende à condição de ser social, mas nunca abandona, em absoluto, a condição de ser natural. (SOUZA, 2016b, p. 344).
Assim como o “ser social” não prescinde, em sua estrutura geral, da esfera biológica, todas as suas formas particulares, como no caso da saúde, mantêm essa condição geral. Conforme apontam Tambellini e Câmara (1998, p. 51),
[…] a visão de saúde construída a partir da Saúde Coletiva é bastante ampla, levando em conta dimensões biológicas, sociais, psíquicas e ecológicas, trabalhando e articulando as faces individual e coletiva que correspondem respectivamente à doença vivida pelo doente e ao processo saúde-doença. Portanto, procura-se olhar a saúde, enquanto questão, a partir de uma Medicina Social que vai entender este processo pensando a produção e distribuição de agravos à saúde em suas várias formas, dimensões e conteúdos presentes na sociedade.
Essa é a premissa básica que dá origem ao campo da Saúde Coletiva, com bases na Medicina Social latino-americana. A determinação social da saúde é seu mote teórico, abrindo o horizonte para intervenções na saúde com caráter coletivo, por meio das políticas sociais e pela atuação dos movimentos sociais e outras instâncias da sociedade civil.
Apesar disso, a área da Saúde Coletiva não se desenvolve de forma homogênea, afastando-se continuamente do seu mote teórico originário, ainda que sob um discurso tergiversador. Em especial, isso ocorre a partir da teoria dos Determinantes Sociais da Saúde (DSS), que ganha força na década de 1990. Conforme aponta Nogueira (2009), essa perspectiva reconhece que a saúde possui uma dimensão social, mas fragmenta essa dimensão em diversos fatores (determinantes) que pouco dialogam entre si, substituindo a noção de
determinação (ou seja, de processo) pela de determinantes (fatores, fragmentos). Sobre isso, Souza, Silva e Silva (2013, p. 54) são enfáticos:
Assim, no nosso modo de ver, a determinação é essencialmente econômica, pois os supostos DSS consistem em condições sociais com raízes materiais precisas, que apenas vão adquirindo novas formas de acordo com o momento histórico vivido pelo sistema do capital, mas que não deixam de compor uma questão una. Todavia, não desconsideremos todas as mediações existentes entre a totalidade social e a singularidade da categoria saúde, dentro do “complexo de complexos”, tal qual define Lukács (1981). Do contrário estaríamos fadados a uma determinação linear e mecânica.
Nessa perspectiva, pode-se perceber que existem formas diferentes de a saúde se expressar a partir das particularidades sociais que os indivíduos e as coletividades experimentam. A determinação social da saúde revela-se um processo com unidade, embora heterogêneo, e suas variadas maneiras de se manifestar só podem fazer sentido no interior de uma totalidade social fundada pelo trabalho. Sua essência reside em ser produzida e reproduzida, a todo momento, na processualidade histórica do “ser social”, enquanto sujeito que transforma o mundo e, ao mesmo tempo, se transforma.
Devido a esse caráter dinâmico, devem-se observar as mediações particulares que incidem sobre a saúde-doença de cada classe, estrato de classe ou grupo social, sem perder de vista a totalidade. Por esse prisma é que se avança no entendimento da saúde das mulheres negras, no sentido de não se restringir a procurar suas determinações na genética, na biologia em geral, mas nas processualidades sociais em que estão imersas. Nesse bojo, destacam-se as questões “raciais” e da mulher (debatida, sobremodo, a partir do que se convencionou chamar de “relações de gênero”). É sobre elas que se discute a seguir.
O “racismo” tem se revelado, ao longo dos séculos, como um problema social crônico, seja nos períodos históricos nos quais ele é aceito como algo natural, seja naqueles em que sofre maiores questionamentos por alguns segmentos sociais, como ocorre nos últimos anos. Faz-se pertinente, portanto, apreender o “racismo” como categoria teórica a ser debatida, o que implica considerar o conceito de “raça” como particularidade do “ser social”6.
A discussão sobre “raça” tem início no ano de 1684, com uma publicação antropológica do médico francês François Bernier, intitulada Nova divisão da terra pelas diferentes espécies ou raças que a habitam. Mais tarde, em 1758, o sueco Carolus Linnaeus, tido como o “pai da taxonomia moderna”, funda o conceito das quatro “raças”, baseando-se na origem geográfica do indivíduo e na cor da pele, a saber: Americanus (Homo sapiens americanus: vermelho, mau temperamento e subjugável); Asiaticus (Homo sapiens asiáticos: amarelo, melancólico e ganancioso); Africanus (Homo sapiens afer: preto, impassível e preguiçoso) e Europeus (branco, sério e forte). Essa diferenciação adquire maior expressão a partir da publicação do Ensaio sobre as desigualdades das raças humanas, de Arthur de Gobineau, entre 1835 e 1855, na qual se argumentava que essa desigualdade seria um produto histórico da dinâmica inerente às “raças” (SANTOS et al., 2010).
Em outra perspectiva, segundo Santos et al. (2010), as diferenças genéticas entre as supostas “raças” são consideradas pouco relevantes. O autor anota que, atualmente, sabe-se que o genoma humano é composto de 25 mil genes. As diferenças mais aparentes (cor da pele, textura dos cabelos, formato do nariz) são determinadas por um grupo insignificante de genes. Por exemplo, as diferenças entre um negro africano e um branco nórdico compreendem apenas 0,005% do genoma humano.
Há um amplo consenso entre antropólogos e geneticistas humanos de que, do ponto de vista biológico, “raças” humanas não existem. Para Guimarães (2006), “raça” é um conceito que não corresponde a nenhuma realidade natural.
6 Aqui, tomamos a concepção de “ser social” em Lukács (2013) como um patamar “superior” do “ser”, engendrado no salto ontológico possibilitado pelo trabalho. O humano, ao trabalhar (ao transformar a natureza), se complexifica, ascendendo ao patamar de “ser social” e, portanto, afastando-se continuamente das barreiras naturais.
Trata-se de um conceito que denota tão somente uma forma de classificação social, baseada numa atitude negativa em relação a certos grupos sociais.
Diante do exposto, admitir que a “raça negra” existe seria concordar com o estudo de Linnaeus e afastar-se das descobertas atuais da ciência, já que “raça” é um termo de conotação social pejorativa. Em contrapartida, o termo etnia refere- se a um conjunto de expressões culturais comuns de um povo. Portanto, pensar uma etnia negra é pensar um grupo de pessoas que se identificam e são identificadas com o acúmulo de experiências daquilo que tem sido vivido, nesse caso, pelos homens e mulheres negras. É, dessa forma, pensar e compartilhar com os próximos uma origem em comum, uma história, valores, práticas e representações (SILVA; SOARES, 2011).
Além disso, convém destacar a concepção lukacsiana de “gênero humano”, porquanto dela se depreende uma noção de totalidade do “ser social” sem as segmentações construídas pelas ideologias favoráveis às desigualdades sociais. A concepção de “gênero humano” se opõe à de “raça”, como produto da consubstanciação do “ser social” no salto ontológico dado a partir do trabalho (SILVA, 2012). O termo “gênero humano” prevê um sentido de igualdade entre os humanos, uma vez que a raça humana se constitui como uma unidade de heterogêneos.
Como já mencionado, o “racismo” se arrasta ao longo dos séculos como um problema ora explícito e inaceitável, ora abafado e maquiado. Na época do sistema colonial, ele era explícito e bem-aceito como uma integração natural da vida e da sociedade. Os homens e mulheres negros, na verdade, não eram vistos como humanidade, mas pelo viés da animalidade ou, apenas, como meros instrumentos de trabalho utilizados ao bel-prazer dos senhores das terras nas sociedades pré-capitalistas (MARX, 1988).
O processo de acumulação primitiva do capital teve participação decisiva na exploração da força de trabalha dos negros escravos (sobretudo nas colônias que abasteciam o circuito mercantil de suas metrópoles), fazendo-se valer da premissa da inferioridade natural desta etnia. Segundo Marx (1988), esse escravismo colonial impulsionou o comércio e a indústria burgueses, tendo, como
uma das particularidades, um processo de “divisão racial” da sociedade acoplado à divisão de classes.
Na verdade, os paradigmas e valores sociais racistas não possuem outro objetivo a não ser defender os interesses daqueles que são privilegiados com a diferenciação das “raças”, favorecendo, portanto, a reprodução da estrutura social cindida em classes sociais. Tal condição era explícita nas sociedades pré- capitalistas, sendo refuncionalizada e expandida no capitalismo.
Na segunda metade do século XIX, especialmente depois da proibição do tráfico de escravos, na primeira década de 1800, dá-se gradualmente a abolição da escravatura em vários países, chegando ao Brasil em 1888. Os negros são transformados em trabalhadores livres. Porém, esta liberdade, antes comprometida pelo sistema escravocrata, agora estava restrita pela “cultura racial” (a serviço da economia burguesa) vigente no século XIX. Assim, o estatuto de pureza do sangue limitava o acesso de determinados grupos sociais (como ciganos, indígenas, negros e mulatos) a cargos públicos, eclesiásticos e irmandades religiosas, bem como proibia a titulação de barão e conde para tais grupos (ALBUQUERQUE, 2006).
Fernandes (2008) aborda a questão da integração do negro na sociedade de classes e desvela a sua funcionalidade à constituição do capitalismo brasileiro. A tese de Fernandes sobre a “ordem competitiva” brasileira é bem conhecida: revela como o capitalismo nacional vai se constituindo sem o rompimento abrupto com a arcaica estrutura social, tendo uma direção imposta pelo capital internacional. Tal condição implica a dependência econômica, assim como a formação de uma burguesia e de uma classe trabalhadora peculiares, no interior do que o autor chamou de “circuito fechado”, uma vez que se mantém a rígida estrutura social anterior.
Nesse processo, a antiga aristocracia rural vai compor, em grande medida, a nova classe dominante: a burguesia brasileira mantém os antigos privilégios que possuía, sem ter um caráter revolucionário, tal qual aquele presente na burguesia internacional em países de capitalismo clássico. Por outro lado, a classe trabalhadora vai ser composta de modo bastante heterogêneo, com a presença de diversos grupos sociais, alguns recém-chegados e outros remanescentes.
Fernandes (2008) caracteriza essa heterogeneidade identificando os dois principais grupos: “integrados” e “condenados”.
Entre os “integrados” estão aqueles absorvidos pela recente “ordem competitiva” brasileira, principalmente a força de trabalho imigrante submetida a uma relação de trabalho assalariado. Apesar de este grupo também sofrer com a exploração e a superexploração típicas do capitalismo dependente, é o grupo dos “condenados” aquele imerso nas piores mazelas sociais, uma vez que engloba os que são rejeitados pelo mercado de trabalho ou, no máximo, absorvidos de forma precarizada (FERNANDES, 2008). A partir desta condição, começam a ser reveladas a origem e a funcionalidade da marginalização da população negra no (e para o) capitalismo brasileiro.
O fato de o Brasil não passar por um processo revolucionário clássico possibilitou a perpetuação de diversos elementos pertencentes ao Brasil não capitalista, o que Fernandes (2008) chama de “conjugação arcaico-moderna”. Tais elementos tanto dizem respeito aos privilégios estamentais das antigas- novas classes dominantes, quanto às restrições postas aos diversos grupos sociais. Desta forma, alguns elementos basilares do Brasil colônia vão persistir, sendo redefinidos no Brasil capitalista. É o que acontece com a “questão racial”, transmutada de trabalho escravo para processo de “condenação”, marginalização e lumpenização dos negros.
Enquanto base do Brasil colônia, o trabalho escravo carregava a concepção de que a “raça negra” seria inferior e, portanto, merecedora da escravização. Com a abolição da escravatura e outras transformações que possibilitaram a constituição do capitalismo brasileiro, o trabalho escravo deu espaço ao trabalho assalariado. Todavia, a concepção de inferioridade da etnia negra persistiu de modo a diferenciar a posição que os negros deveriam ocupar na “ordem competitiva”, restringindo seu acesso ao assalariamento. A população negra, então, passa a compor uma fileira de desempregados imersa no pauperismo absoluto, na zona urbana das grandes cidades brasileiras ou, então, submetida aos empregos precários, alguns até sob a forma de trabalho pré- capitalista, na zona rural (FERNANDES, 2008).
Essa condição estabelece o cenário adequado para o capitalismo subdesenvolvido e rapinante. O grande contingente de “condenados” (em grande medida, negros) viabiliza a extração da mais-valia extraordinária (IANNI, 1981), seja diretamente, pela superexploração de sua força de trabalho, seja exercendo o papel de exército industrial de reserva, o que resulta no rebaixamento dos salários e das condições de trabalho daqueles trabalhadores “integrados”.
Por tais razões, o “racismo”, já marcante no Brasil colônia, ao ser redefinido e incorporado pelo capital, passa a ser bastante funcional ao se constituir num dos pilares da estratificação da classe trabalhadora e da garantia dos antigos privilégios da classe dominante. O “racismo” comparece, deste modo, tal um mecanismo de defesa dos interesses econômicos, políticos e ideológicos da classe dominante, além de ser um elemento indispensável para a forma peculiar de acumulação de capital no Brasil.
Segundo Albuquerque (2006), neste mesmo processo se encontra a gênese das periferias, dos quilombos, das péssimas condições de salário, dos cortiços, e uma concepção sanitária racista que transforma os negros em “classe perigosa” para a saúde. Todavia, como requer respostas sociais, na década de 1970 surgem processos de mobilização da etnia negra preocupada com a marginalização e a discriminação que enfrentava, reivindicando direitos sociais e transformações culturais.
Nessa época, surge também o conceito de “democracia racial”, veementemente atacado pelos integrantes do movimento negro originário, pois tal conceito difunde a ideia de que o negro poderia chegar a se comportar como o branco e gradativamente ser incorporado às elites. A redução do “antirracismo” ao “antirracialismo” e sua utilização para negar os fatos de discriminação e as “desigualdades raciais” crescentes no país acabaram por formar uma “ideologia racista”, ou seja, uma justificativa da ordem discriminatória e das “desigualdades raciais” realmente existentes. Em outras palavras, não se mirava a integração/valorização da etnia negra na sociedade, mas seu ajustamento aos parâmetros definidos pela elite branca (burguesa) (GUIMARÃES, 2006).
Mais recentemente, houve até concessões no sentido de incorporar os negros ao mercado de trabalho, o que, na verdade, apenas fez com que o
“racismo” assumisse uma nova faceta, configurando-se no que, hoje, é chamado de “racismo institucional”. Essa forma de “racismo” diz respeito à administração desigual dos melhores postos de trabalho e salários entre os estratos da classe trabalhadora. O “racismo institucional” explicita-se nos salários mais baixos que a população negra recebe, nas relações humanas, no ambiente de trabalho, na dificuldade de acesso à educação superior e à educação básica, e nos serviços de saúde.
Trata-se de um problema enraizado na cultura brasileira e reflete a face rudimentar do nosso capitalismo e, mais do que isso, manifesta a contradição de um país que se diz democrático do ponto de vista étnico e/ou cultural. Na verdade, o Brasil tenta corrigir suas questões através da criação de políticas afirmativas, como é o caso das políticas públicas de saúde e educação, que se destinam a corrigir uma história de desigualdades e desvantagens sofridas por um grupo étnico em face de um Estado nacional que o discriminou (LÓPEZ, 2012). Contudo, a base material de acumulação do capitalismo dependente permanece intocada, sustentando a desigualdade de classe, que, por sua vez, encontra diversos canais particulares para se expressar, mediante a dominação de “raça”.
Assim, toda a produção de riquezas, com a exploração e a dominação que lhe são peculiares no capitalismo, está associada às relações de poder, a exemplo da dominação “racial” (étnica). No caso da mulher negra, além da subordinação da cor, tem-se a construção de uma ideia de inferioridade ligada ao “gênero feminino”, na qual a masculinidade oprime a feminilidade, amplificando a problemática. Sobre esta questão mais específica, trata-se a seguir.
A opressão que as mulheres vêm sofrendo está diretamente associada a um entendimento que assegura a superioridade do homem sobre a mulher, apenas por ser homem, o que implica a constituição de um esquema de dominação-exploração (SAFFIOTI, 2010).
Desta situação desfavorável historicamente estabelecida para as mulheres, surgem as discussões no campo de “gênero”. Desse modo, o conceito de “gênero” surge da tentativa de compreender como a subordinação é reproduzida e a dominação masculina é sustentada em suas múltiplas manifestações, buscando incorporar as dimensões subjetiva e simbólica de poder, para além das fronteiras materiais e das conformações biológicas (ARAÚJO, 2010).
O conceito de “gênero” constitui um marco dos estudos sobre a “questão da mulher”, com forte contribuição do movimento feminista. Visa elucidar que as atividades, comportamentos e potencialidades tipicamente masculinas e femininas são, na verdade, criadas e repassadas socialmente entre gerações.
No interior da tradição marxista, busca-se compreender o conceito de “gênero” a partir das relações sociais de produção, o que implica aceitar que a realidade determina a subjetividade, e não o contrário (LUKÁCS, 2012). Isso significa dizer que aqueles aspectos que causam prejuízos ao desenvolvimento humano da mulher possuem uma raiz econômica. Frisa-se que, com essa afirmação, não se está a excluir as relações subjetivas entre as pessoas, nem a importante determinação da esfera cultural nesse processo; apenas se enfatiza que existe uma determinação predominante que é de caráter econômico e que, portanto, delimita o campo no interior do qual a “desigualdade de gênero” se desenvolve (CASTRO, 2010).
Desse modo, objetiva-se refletir sobre como os aspectos da subordinação sofrida pelo “gênero feminino” têm afetado direta ou indiretamente a saúde da mulher. Para isto é necessário compreender como o homem e a mulher se constituem como sujeitos sociais. O marxismo vem dando contribuições decisivas para o alcance desse objetivo.
Uma dessas contribuições está no desvelamento da origem e da função social da família monogâmica7, dentro da qual se desenvolve a opressão sofrida pelas mulheres. Nesse quesito, cabe citar Engels (2010) em A origem da família, da propriedade e do Estado, que traz uma crítica ferrenha à família monogâmica
7 Referência à família em geral do tipo capitalista; a família monogâmica apenas representa a forma predominante.
como o núcleo celular do sistema capitalista, responsável por proteger e perpetuar a propriedade privada dos homens da classe dominante.
Sobre isso, Moraes (2000, p. 1) destaca que,
No tocante à '‘questão da mulher’', a perspectiva marxista assume uma dimensão de crítica radical ao pensamento conservador. Em A origem da família, da propriedade privada e do Estado, a condição social da mulher ganha um relevo especial, pois a instauração da propriedade privada e a subordinação das mulheres aos homens são dois fatos simultâneos, marco inicial das lutas de classes.
Assim, Engels (2010) demonstra que, através da separação da sociedade em famílias monogâmicas8, ocorrem a consubstanciação e a diferenciação da função social do homem e da mulher e, portanto, estabelece-se a opressão daquele sobre esta. Ao resgatar o processo histórico, esse autor descreve a vida nas comunidades primitivas, quando há um intenso convívio coletivo devido à inexistência da propriedade privada. Com o aparecimento do excedente econômico, das classes sociais e da propriedade privada, a sociedade passa a ser organizada de modo diferente, baseada na separação em pequenos grupos reunidos ao redor da propriedade privada: a família. Esta instituição social passa por diversas formas históricas, com vários sistemas de parentesco, até atingir a forma atualmente predominante: a família monogâmica.
Engels (2010, p. 86-7) assevera que
Essa foi a origem da monogamia, tal como pudemos observá-la no povo mais culto e desenvolvido da Antiguidade [os gregos]. De modo algum foi fruto do amor sexual individual, com o qual nada tinha em comum, já que os casamentos, antes como agora, permaneceram casamentos de conveniência. Foi a primeira forma de família que não se baseava em condições naturais, mas econômicas, e concretamente no triunfo da propriedade privada sobre a propriedade comum primitiva, originada espontaneamente. Os gregos proclamavam abertamente que os únicos objetivos da monogamia eram a preponderância do homem na família e a procriação de filhos que só pudessem ser seus para herdar dele.
8 Não se trata de uma crítica à identificação entre as pessoas baseada nos laços consanguíneos, mas de uma crítica ao isolamento das pessoas em pequenos grupos, a fim de fazer prevalecer os interesse privados sobre os coletivos, tendo como base disto a propriedade privada.
Por conseguinte, o isolamento do ser humano nesse pequeno grupo de caráter burguês tem determinações econômicas; trata-se de uma exigência posta pela dinâmica da propriedade privada. Assim, o homem, possuidor dos meios de produção, necessitava (e necessita) proteger a sua propriedade contra o resto da sociedade, garantindo a herança de seus sucessores. Conforme argumenta Lessa (2012), a união de um homem com uma mulher (que passa a ser “sua”) ocorre devido à necessidade da legitimidade social dos seus descendentes, rebaixando a mulher à posição de subordinação, isolada (muito mais do que o homem) da vida coletiva, o que a coloca numa condição desfavorável, restrita à organização da vida doméstica e à criação dos filhos (sucessores). Logo,
A monogamia não aparece na história, portanto, absolutamente, como uma reconciliação entre o homem e a mulher e, menos ainda, como a forma mais elevada de matrimônio. Ao contrário, ela surge sob a forma de escravidão de um sexo pelo outro, como proclamação de um conflito entre os sexos, ignorados, até então, na pré-história. (ENGELS, 2010, p. 87).
Cabe esclarecer que isso não quer dizer que o amor sexual individual entre um casal não possa existir, mas que esse encontra suas possibilidades restringidas (por vezes, suprimidas) diante da função primordial do casamento monogâmico na sociedade de classes. Não obstante, a família monogâmica “é a forma celular da sociedade civilizada, na qual já podemos estudar a natureza das contradições e dos antagonismos que atingem seu pleno desenvolvimento nessa sociedade” (ENGELS, 2010, p. 87).
Instituem-se as condições ideais para o homem exercer seu poder sobre a mulher e os filhos ao longo da história. Isso implica um grande entrave ao desenvolvimento humano da mulher e das crianças. O fato de a contemporaneidade revelar enormes variações da forma clássica da família monogâmica corresponde, tão somente, à crise pela qual passa o próprio capital. Com a sua crise estrutural, o sistema do capital presencia a reprodução desta crise no interior de suas instituições, inclusive na família.
No entanto, apesar da crise, a família, onde ela ainda resiste numa forma aproximada aos moldes clássicos descritos por Engels, continua a ser a unidade
celular econômica que legitima e perpetua a propriedade privada; e a mulher, mesmo que sob a ilusão dos avanços no campo do mercado e das conquistas jurídico-políticas, permanece sendo oprimida pelo homem a partir de formas ainda mais sofisticadas, permitindo que elas sejam mais uma fonte de extração de mais- valia, ao se converterem em força de trabalho massiva.
Sobre isso, diz Lessa (2012, p. 79):
Na primeira década do século 21, pela primeira vez, a maioria das famílias estadunidenses não é mais a família burguesa típica: o marido como provedor, a esposa e as crianças – com a prostituição como apêndice. Variações da organização familiar vão se tornando cada vez mais frequentes: casais homossexuais, famílias em que a esposa é provedora e, bem atrás nas estatísticas, famílias compostas somente pelo pai e pelos filhos. Uma quantidade crescente de casais – hétero ou homossexuais – opta por não ter filhos. E, desde pelo menos a Segunda Grande Guerra, mas possivelmente antes, a família vai deixando de ser a unidade econômica decisiva até mesmo na agricultura, um processo que tem seu fundamento na concentração de capitais inerente ao modo de produção capitalista.
Apesar disto, o autor alerta:
Independentemente de serem homens ou mulheres os responsáveis pelas tarefas domésticas, tais responsáveis continuam sendo portadores de possibilidades limitadas, rebaixadas, de crescimento das suas pessoas (as alienações). E, por isso, nem a maternidade nem a paternidade, nem a condição de filhos, podem ser mediações para o pleno desenvolvimento dos indivíduos – independentemente de como as mulheres adentram ou saem do mercado de trabalho e de uma maior ou menor equidade na divisão das tarefas domésticas e de criação dos filhos pelos membros da família (irmãos mais velhos, inclusive). Tais novidades quase imediatamente se convertem em renovados obstáculos ao desenvolvimento dos indivíduos: as relações intrafamiliares espontaneamente reproduzem e reforçam a concorrência e o individualismo, a cotidiana violência doméstica se mantém, continua o abuso sexual de crianças e adolescentes (principalmente por parentes!), intensifica-se a dupla jornada de trabalho por obra e graça da reestruturação produtiva (Hirata, 2002) – numa lista que poderia prosseguir por muito mais. (LESSA, 2012, p. 85).
Ou seja, o que está sendo colocado em xeque é uma forma de organizar a sociedade em pequenas unidades celulares que protegem e perpetuam a
propriedade privada, restringindo, assim, o pleno desenvolvimento humano. Historicamente, esse impedimento vem incidindo com maior intensidade sobre as mulheres. Tal condição faz parte do processo de desumanização em geral provocado pela lógica do capital e coloca a necessidade urgente de reação da humanidade contra tal lógica e suas particularidades, como, por exemplo, a “questão da mulher”.
Os múltiplos papéis desempenhados pela mulher, nos dias de hoje, representam a história das lutas pela emancipação, igualdade social, política, econômica, educacional etc. Entretanto, esse empreendimento, diversificado e incessante, encontra barreiras culturais fortemente internalizadas, barreiras que inviabilizam atribuir à participação feminina, tanto no mercado de trabalho quanto no ambiente doméstico, o devido valor e reconhecimento. Assim, apesar de todas as discussões e avanços, a mulher ainda é triplamente responsabilizada, pois é ela a principal cuidadora dos filhos, da casa e, muitas vezes, a única provedora do lar. Para o mundo feminino, trabalhar fora de casa consiste numa forma de emancipação; já para o sistema capitalista, é mais uma fonte de sobre trabalho.
De fato, tais questões deparam-se com a factível realidade do argumento da naturalidade para explicar a “questão da mulher” (negra), o que justificaria, por si só, todo o contexto de desigualdade que as rodeia, porquanto sejam tidas como um “tipo” de ser humano inferior, menos qualificado. Daí acreditar-se que o conceito de “gênero” por si só (a partir da matriz teórica que se originou) não abrange a realidade estrutural de opressão que o sistema econômico do Brasil acaba por produzir. Tais estudos, em sua maioria, bem-intencionados e partícipes da luta contra o patriarcalismo, tendem a elevar o “gênero” a um patamar que anula as determinações fundantes das desigualdades capitalistas, empreendendo um debate que confere caráter autônomo a tal questão, como se ela se originasse e se encerrasse em si mesma (SOUZA; SILVA; PEREIRA, 2013)
Isso, em alguma medida, ocorre mesmo entre aqueles que tentam discutir essa questão a partir da perspectiva materialista histórico-dialética, mas deixam escapar a concepção de “gênero humano”. Em vez disso, seria mais coerente entender a “questão da mulher” pelo prisma do processo de particularização do “ser social” (em geral) em “ser feminino” e “ser masculino”, com elementos
mutantes ao longo da história, mas compondo um único (porém, heterogêneo) “gênero” (humano) (SOUZA; SILVA; PEREIRA, 2013).
Com efeito, a subordinação imposta à mulher negra é dupla em seu caráter social, visto que tal subordinação se dá pelo fato de ser mulher e, novamente, por ser negra, mas é una em seu caráter econômico, tendo em vista o fio condutor material que une as várias formas de desigualdade sociais no capitalismo. Diante de tudo isso, entender a gênese do “ser social” e as determinações que, no capitalismo, levam-no a se consubstanciar com mediações que parecem fragmentar o “gênero humano”, é imprescindível para a real equalização das problemáticas sociais, possibilitando seu enfrentamento desde suas raízes. Portanto, a questão da saúde se revela como uma expressão do caráter destrutivo do capital ante o “gênero humano”. Entender este último como totalidade é fundamental para que se apreendam as efetivas bases do processo saúde-doença.
A saúde das mulheres negras não pode ser explicada apenas pelos fatores genéticos, naturais, biológicos. Tal perspectiva é extremamente limitada, deixando escapar a processualidade histórico-social por trás de tal questão. Esse viés – de biologização da saúde –, em última instância, é o mesmo que sustenta as concepções “racistas” e “machistas” que definem os negros(as) e as mulheres em geral como seres humanos naturalmente inferiores.
Em uma perspectiva contrária, constata-se que existe um processo de determinação social, com preponderância material, nas bases da questão da saúde das mulheres negras. Demonstra-se que a saúde se constitui como particularidade do ser social e, por isso, é determinada, sobretudo, pelo trabalho. No capitalismo, há uma sociedade desigual e problemática porque fundada por uma forma de trabalho de mesmo caráter.
A desigualdade de classes, constituída na esfera econômica, revela-se central para explicar a questão da saúde. Porém, ela por si só não é suficiente.
Deve-se direcionar, também, considerável atenção para as particularidades de cada processo social particular, pois se percebe que, no caso aqui estudado, as questões “racial” e da mulher são mediações com elementos ímpares.
A questão “racial” constitui um importante elemento para naturalizar a exploração econômica de grupos sociais tidos como inferiores, desde as sociedades pré-capitalistas. No capitalismo, de forma amplificada, essa questão permite criar um sistema de estratificação da classe trabalhadora, funcional à reprodução do capital associada a certos privilégios culturais das velhas-novas classes dominantes, a exemplo do que ocorre no Brasil. A questão da mulher, por sua vez, tem suas origens no seio da família monogâmica constituída ao redor da propriedade privada e, por conseguinte, determina a posição dominante dos homens sobre ela.
Assim, conclui-se que as peculiaridades presentes nessas questões não garantem a autonomia absoluta delas em relação à esfera econômica burguesa. Ao contrário, há uma determinação recíproca e funcional ao sistema de exploração/dominação do capital. O entrelaçamento de tais elementos sobre um mesmo plano de fundo atua de forma sinérgica sobre a saúde das mulheres negras, expressa nos indicadores negativamente diferenciados aqui já apresentados. Por fim, lutar contra as formas particulares de desigualdade social é imperativo para a construção de uma luta geral contra o capital e pela emancipação do “gênero humano”.
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Recebido em: 12 de junho de 2017 Aprovado em: 26 de agosto de 2017 Publicado em: 5 de dezembro de 2017
Amanda Chayane de Oliveira Veiga2 Fernando de Araújo Bizerra3
Um olhar atento sobre a realidade demonstra, sem lugar a dúvidas, que o conjunto dos trabalhadores – ou seja, todos/as aqueles/as que não possuem os meios de produção e são condicionados/as a vender sua força de trabalho em troca de um salário necessário para garantir, ainda que minimamente, sua sobrevivência – experimentam em seu cotidiano, embora com diferenças
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.15i27.p9635
Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal de Alagoas – UFAL/Campus Arapiraca- Unidade Educacional de Palmeira dos Índios. E-mail: <amandachayane92@hotmail.com>.
Assistente Social, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Professor Assistente do Curso de Serviço Social da UFAL – Campus Arapiraca/Unidade Educacional de Palmeira dos Índios. Membro do Grupo de Pesquisa sobre Reprodução Social (FSSO/UFAL). E-mail: <nando_epial@hotmail.com>.
consideráveis, os efeitos perversos do trabalho realizado sob o domínio do capital nos últimos séculos: exploração, controle e hierarquias.
Intitulado "As mulheres no mercado de trabalho: medir os progressos e identificar os desafios", o relatório emitido em 2010 pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) evidencia que, passada mais de uma década da Quarta Conferência Mundial sobre as Mulheres3, a exploração e a precarização das atividades por elas realizadas tem se aprofundado. Não obstante a entrada em massa das mulheres nas estatísticas relacionadas ao emprego durante o século XX e no alvorecer do século XXI, a igualdade de condições no mercado de trabalho não é uma realidade objetiva, considerando-se, pois, a existência da divisão sexual que permeia as relações trabalhistas em todos os continentes.
Recentemente, um novo documento elaborado pelo mesmo órgão mostra que ao longo de sua vida profissional as mulheres continuam a enfrentar, quer nos países de rendimento elevado, quer naqueles de baixo rendimento, enormes obstáculos na caminhada para encontrar e manter empregos decentes. A despeito de alguns indicadores positivos documentarem a presença das mulheres no mercado de trabalho, permanecem intactas as segregações setorial e profissional que redesenham as disparidades de gênero. Não é de se estranhar que as mulheres estejam representadas nas ocupações num número limitado de setores e profissões. “Mulheres no trabalho: tendências 2016” reúne dados de 178 países pesquisados que permitem o seguinte diagnóstico: as desigualdades entre homens e mulheres persistem em um amplo espectro do mercado de trabalho global no tocante às oportunidades, ao tratamento e/ou aos resultados.
Contrapondo-se às vulgatas que afirmam que as mulheres já alçaram um patamar de igualdade social com os homens no mercado de trabalho, este artigo objetiva expor algumas expressões do trabalho feminino4 durante a vigência do
3 Tal Conferência visou adotar uma plataforma ousada para uma ação global que promovesse a igualdade de gênero e a autonomia das mulheres.
4 Nos marcos do modo de produção capitalista a mulher não apenas participa do processo
produtivo. Além de está inserida em locais de trabalho que dizem respeito à produção, a mulher desenvolve outras atividades - na maioria dos casos não remuneradas - que são imprescindíveis para a sociedade ao se situarem no âmbito da reprodução. Quanto a isso, destaca Saffioti (1987,
p. 9) que “a responsabilidade última pela casa e pelos filhos é imputada ao elemento feminino. Torna-se, pois, clara a atribuição, por parte da sociedade, do espaço doméstico a mulher. Trabalhando em troca de um salário ou não, na fábrica, no escritório, na escola, no comércio, ou a domicílio, como é caso de muitas mulheres que costuram, fazem crochê, tricô, doces e salgados,
binômio taylorista-fordista e, seguidamente, do toyotismo. É certo que em momento algum houve pretensão de se fazer uma análise exaustiva. É certo também que nosso esforço de pesquisa não foi capaz de abarcar senão uma pequena (mas, relevante) porção da miríade de estudos que evidenciam o universo multifacetado das mulheres trabalhadoras atingidas pela divisão sexual do trabalho que controla, oprime, subalterniza, explora e as discrimina pelo seu sexo e pela classe social a qual elas pertencem.
Vale ressaltar que os estudos acerca da divisão sexual do trabalho dão mostras que ela tem sido interpretada por distintas visões. Em uma delas, considera-se que as desigualdades entre as tarefas realizadas por homens e as destinadas às mulheres remetem, em última instância, à “natureza feminina” que faz aquelas serem estereotipadas como mais dóceis, pacientes, cuidadosas e menos combativas. Não se explica por que a exploração se exerce mais fortemente sobre as mulheres e quando se tenta dar alguma explicação para a sua ausência em determinados postos de trabalho ocupados excepcionalmente por homens, justifica-se: “ela é bem menos equipada no mercado do emprego; entenda-se menos formada, mas também menos disponível objetivamente” devido os encargos familiares “e subjetivamente (por causa do investimento das mulheres no ‘extratrabalho’, isto é, na família)” (KERGOAT, 1989, p. 90).
De outro ângulo, e é este que orientou o processo investigativo que resulta nesse estudo, as desigualdades resultantes da divisão sexual do trabalho “não têm a ver com um mais ou menos, mas devem ser relacionadas, não a modulações, mas a diferenças, contradições entre os dois sexos, a relações sociais, em suma” (KERGOAT, 1989, p. 93, grifos da autora). A divisão (hierárquica e desigual) das atividades que competem ao homem e à mulher não ocorre, como será demonstrado na sequência, “naturalmente”. Desnaturalizar essa realidade numa sociedade como a nossa é uma tarefa tão desafiadora quanto necessária.
a mulher é socialmente responsável pela manutenção da ordem na residência e pela criação e educação dos filhos. Assim, por maiores que sejam as diferenças de renda encontradas no seio do contingente feminino, permanece esta identidade básica entre todas as mulheres”. Pelos limites da análise aqui presente, não tematizaremos esse aspecto. Isso, contudo, não significa que desconsideramos sua existência. Para uma discussão aprofundada sobre o trabalho feminino na esfera da reprodução, Cf. Saffioti (1987) e Nogueira (2010).
O taylorismo foi criado em finais do século XIX por Frederick Winslow Taylor, um jovem estadunidense de família rica que abandonou os estudos para trabalhar como operário em uma metalúrgica. Através dessa vivência, ele notou que a capacidade produtiva de um trabalhador de experiência média era sempre maior que a sua produção na empresa. Estava cônscio que os operários podiam produzir mais do que o já alcançado e que a troca constante de ferramentas acabava por diminuir a produtividade. Taylor, a partir dos Princípios de administração científica, consolidou esforços no sentido de aplicar os métodos da ciência às questões relacionadas ao trabalho nas empresas que se expandiam.
Taylor (2008) define que o objetivo da administração “deve ser o de assegurar o máximo de prosperidade ao patrão e, ao mesmo tempo, o máximo de prosperidade ao empregado”. O aumento da produção representaria “prosperidade” para os principais sujeitos do processo: empregado e empregador. A administração científica pressupõe que ambos têm os mesmos interesses: “de que a prosperidade do empregador não pode existir se não for acompanhada da prosperidade do empregado, e vice-versa”. Sendo assim, é preciso “dar ao trabalhador o que ele mais deseja - altos salários – e ao empregador também o que ele realmente almeja – baixo custo de produção” (TAYLOR, 2008, p. 24). Percebe-se que Taylor desconsidera radicalmente a existência dos antagonismos que permeiam a relação-capital. Não há como, nos marcos do sistema capitalista, capitalistas e trabalhadores comungarem do mesmo interesse. A posição ocupada por cada um desses sujeitos no processo produtivo define seus objetivos particulares e impede que haja uma coexistência pacífica entre ambos. Em profunda oposição aos trabalhadores, os capitalistas buscam, a qualquer custo, perenizar as condições que lhes garantem a exploração da força de trabalho. Por essas razões, nada mais insustentável, do ponto de vista da dinâmica concreta do capitalismo, que a afirmação de interesses comuns entre capital e trabalho.
Pensando em como evitar o desperdício de tempo nas fábricas, Taylor (2008, p. 26) defende que “o trabalho da empresa [deve ser] realizado com o
menor gasto de esforço humano, combinado com o menor gasto das matérias- primas, com a menor inversão de capital em instalações de máquinas, em edifícios, etc.”. Com isso, extrair-se-ia ao máximo a habilidade de produzir do operário, de forma que tempo algum do processo de produção fosse inutilizado. Era preciso aumentar a capacidade produtiva do trabalho e baixar o preço de custo, o que geraria uma produtividade mais lucrativa para os capitalistas. Era preciso aperfeiçoar os métodos de racionalização da produção para se executar em ritmo mais rápido e com maior eficiência os tipos mais elevados de trabalho.
A aplicação dos métodos científicos ao processo de trabalho visava a economia de tempo e o acréscimo de rendimento do trabalho obtido “pela eliminação de movimentos desnecessários e [pela] substituição de movimentos lentos e ineficientes por movimentos rápidos em todos os ofícios” (TAYLOR, 2008, p. 33). No contexto histórico em que o referido teórico propõe o controle dos tempos e dos movimentos já havia nas fábricas uma divisão (hierárquica) do trabalho baseada na separação entre os que administravam e os que produziam. Porém, ele acreditava que mesmo já dividido o sistema de produção podia ser ainda mais fragmentado, já que o acúmulo de tarefas dentro de cada uma dessas funções impossibilitava o seu cumprimento com a rapidez e precisão necessárias. Para o estadunidense, não era recomendado confiar na “iniciativa” dos trabalhadores. Há, no seu entendimento, uma tendência de os trabalhadores
fazerem “cera”, isto é, utilizar métodos que diminuem suas possibilidades de produção, o que acarreta, sempre, prejuízo para os capitalistas.
Intentando atacar as estratégias dos trabalhadores contra a disciplina de trabalho imposta, Taylor (2008, p. 27) constata que a eliminação do hábito de fazer “cera” “adviria, em média, aumento de cerca do dobro da produção de cada homem e de cada máquina”. Buscou-se, então, remover a “cera” e o “trabalho retardado”, fazendo com que os trabalhadores operassem suas atividades do melhor modo e mais rapidamente possível para que decresça o custo da produção e amplie significativamente a produção da mais-valia. Como suporte, eles receberam a “cooperação” da gerência científica no que diz respeito ao disciplinamento.
As estratégias produtivas passariam a ser aplicadas pela gerência, aprimorando aquelas que possibilitam a realização do trabalho em conformidade com as “leis científicas” que demarcam a melhor divisão de responsabilidades: dadas as condições estruturais de hierarquia estabelecidas na fábrica, a direção e os setores de chefia cuidam do planejamento e da organização produtiva; o trabalhador, privado das suas funções de controle, apenas operacionaliza o que a administração orquestra. Fica notório que o taylorismo põe a necessidade de um tipo de homem para planejar e outro tipo, diferente, para executar o trabalho.
O trabalho passa a ser comandado pela gerência que cristaliza as tarefas de organizar, planejar, supervisionar e controlar a produção de forma a favorecer a obtenção de lucros por parte do capital. Consequentemente, o capitalista aprende a tirar vantagens desse aspecto da força de trabalho humana e a quebrar a unidade do processo de trabalho, este agora sendo realizado em distintos lugares e por trabalhadores distintos. Estudiosos como Braverman (1981) e Filho e Gurgel (2016) muito bem constatam que o trabalhador, no processo de trabalho, não combina mais as atividades entre mão e cérebro ao passo em que se reduzem os trabalhadores ocupados diretamente com a produção, despojam-se as funções mentais que consomem tempo e se atribui a outrem tais funções.
Para garantir o controle absoluto da empresa sobre os trabalhadores, a gerência precisaria subordinar o trabalhador às formas rigorosas em que o trabalho deveria ser executado. Os trabalhadores acabam por perder o controle sobre os instrumentos de produção, o trabalho e o modo e ritmo da execução. É tão assim que “este controle pertence agora aqueles que podem ‘arcar’ com o estudo dele a fim de conhecê-lo melhor do que os próprios trabalhadores conhecem sua atividade viva” (BRAVERMAN, 1981, p.106). Com efeito,
Tanto a fim de assegurar o controle pela gerência como baratear o trabalhador, concepção e execução devem tornar-se esferas separadas do trabalho, e para esse fim o estudo dos processos do trabalho devem reservar-se a gerência e obstado aos trabalhadores, a quem seus resultados são comunicados apenas sob a forma de funções simplificadas, orientadas por instruções simplificadas o que e seu dever seguir sem pensar e sem compreender os raciocínios técnicos ou dados subjacentes (BRAVERMAN, 1981, p.107).
O fordismo, por sua vez, foi desenvolvido por Henry Ford que desde sua juventude demonstrava interesse pela mecânica e por motores automotivos. Ford construiu sua primeira fábrica de carros em 1896 e, após anos de pesquisas, recebeu reconhecimento público por seu trabalho; construiu a planta do que se tonaria a maior fabricante mundial de veículos automotores: a Ford Motor Company. Havia no pensamento de Ford uma diferença significativa (entretanto, complementar) em relação a Taylor: “era a sua visão, seu reconhecimento explícito de que produção de massa significava consumo de massa” (HARVEY, 2010, p. 122), pois apenas esse tipo de produção diminuiria os custos operacionais da produção e o preço em que o carro seria comercializado.
Ford busca estabelecer um novo sistema de reprodução da força de trabalho consoante à política de gerência e controle do trabalho tayloriana. Ao aplicar este novo sistema, introduzindo oito horas de trabalho e um ordenado de U$ 5 como recompensa aos trabalhadores, Ford manteve disciplinados os trabalhadores e também possibilitou a eles “renda e tempo de lazer suficientes para que consumissem os produtos produzidos [...] que as corporações estavam por fabricar em quantidades cada vez maiores” (HARVEY, 2010, p. 122).
O fordismo consiste numa organização produtiva rígida, interiorizada5 e uniformizada que suscitou a racionalização das operações, eliminando o desperdício de tempo no espaço fabril e aumentando o ritmo a exploração do trabalho. Uma de suas principais características é o parcelamento das tarefas. Ao invés de produzir um veículo inteiro, um operário realiza apenas um número limitado de gestos, sempre os mesmos, durante sua jornada de trabalho. À medida que o fordismo fragmenta o trabalho em suas partes mais essenciais, decompõem-se, em seu grau máximo, as tarefas realizadas por cada trabalhador de forma parcelada. Limita sua atividade a movimentos repetitivos cuja somatória resultava na produção do veículo completo. Através do parcelamento, o trabalhador não precisaria mais ser um artesão especializado em mecânica.
Em sintonia com o referido parcelamento que resulta na desqualificação do operário, tem-se a criação estratégica da linha de montagem cuja função é interligar os diversos trabalhos realizados separadamente. Na fábrica,
5 A produção fordista desenvolve-se internamente na fábrica, “recorrendo-se apenas de maneira secundária ao fornecimento externo, ao setor de autopeças” (ANTUNES, 2009, p. 39).
Uma esteira rolante desfila, permitindo aos operários, colocados um ao lado do outro, realizar as operações que lhes cabem. Além de ligar os trabalhos individuais sucessivos, a linha fixa uma cadência regular de trabalho, controlável pela direção da empresa. Permite uma produção fluida, limitando ao máximo os estoques entre operações (GOUNET, 1999, p. 19).
Ao alinhar seu pensamento ao de Taylor, Ford desenvolve a linha de produção em série que, na sinótica formulação de Pinto (2010, p. 35 e 36), pode ser assim descrita:
A colocação do objeto de trabalho num mecanismo automático que percorresse todas as fases produtivas, sucessivamente, desde a primeira transformação da matéria-prima bruta até o estágio final (como o acabamento do produto, por exemplo). Ao longo dessa linha, as diversas atividades de trabalho aplicadas à transformação das matérias-primas ou insumos foram distribuídas entre vários operários fixos em seus postos, após terem sido suas intervenções subdivididas em tarefas cujo grau de complexidade foi elevado ao extremo da simplicidade.
Na fábrica fordista, “no lugar dos homens responsáveis pelo deslocamento dos materiais e objetos de trabalho, máquinas automáticas passaram a se encarregar por tal, suprindo [parcialmente] o trabalho humano” (PINTO, 2010, p. 37). Com a linha de montagem, os objetos se deslocavam ao longo da esteira rolante sem a ajuda direta do trabalhador. Ao homem restava apenas seguir o ritmo de trabalho das máquinas, num processo contínuo de repetição de movimentos. Observa-se, deste modo, que o objetivo da linha de montagem é tornar o ato de produzir simplificado, onde qualquer pessoa possa executar as operações sem que precise ter a menor experiência, tornando-se, assim, a força humana uma extensão da maquinaria que baliza a cadência da produção.
O sistema Ford ainda se comporia pela produção em massa dos produtos, o que requereu muitos consumidores para comprar as mercadorias. Para a rigidez da produção era também imprescindível a padronização das peças, produzindo grandes quantidades de produtos com pouquíssimos graus de diferenciação, duradouros - porque “desejaríamos produzir artigos de duração ilimitada e jamais fazermos mudanças inúteis que ponham fora de moda os nossos carros
vendidos” (FORD, 1964, p. 110) - e a preços baixos, uma vez que “toda vez que, sem prejuízo da qualidade, se diminui o preço de um carro, cresce o número de compradores” (FORD, 1964, p. 119). Esse processo dotava o capital de maior intensidade na extração do sobretrabalho a partir de uma produção homogeneizada e enormemente verticalizada, controlada de cima a baixo. Permitia a intensificação do trabalho humano desenvolvido em limites cada vez mais estreitos de tempo e possibilitava elevadíssimas taxas de lucratividade ao sistema do capital naquele contexto particular da monopolização capitalista.
De modo a garantir a produção em larga escala e minar o poder de resistência dos trabalhadores que se contrapunham ao que estava sendo imposto no âmbito da fábrica, Ford propôs um aumento dos salários. Alerta Gounet (1999,
p. 20, grifos nossos) que “para receber seus 5 dólares, o trabalhador deve dar provas de boa conduta, ou seja: não ser uma mulher, não beber, destinar seu dinheiro à família [...]”. Evidencia-se, assim, a presença de valores conservadores que se afirmam na discriminação do trabalho feminino no contexto da produção fordista. Isso resulta, a nosso ver, da própria cultura enraizada na sociedade capitalista que supõe uma minúcia nas atividades desempenhadas pela mulher devido aos seus anseios, expectativas e certas habilidades em contraposição a uma “superioridade” nas executadas pelo homem.
Hirata, em Nova divisão sexual do trabalho?, traz alguns apontamentos sobre a presença da mulher nas fábricas sendo submetidas ao regime rígido de produção. Ao analisar as diversas expressões da exploração do trabalho feminino, através de estudos comparativos feitos em países de distintos continentes – França, Brasil e Japão -, as narrativas oferecidas pela autora aludem que as indústrias de trabalho contínuo empregam predominantemente homens no processo produtivo; já as fábricas que parcelam as tarefas, utilizavam um maior contingente de mulheres do que de homens em seu quadro funcional. Em suas palavras: “o trabalho sob forte pressão do tempo, ligado a uma organização do trabalho baseada em princípios tayloristas, é efetuado, sobretudo, por jovens operárias” (HIRATA, 2002, p. 30).
O trabalho executado pelas mulheres nas fábricas fordistas seguia uma padronização, fragmentação e estava a todo instante controlado
cronologicamente de modo a evitar o desperdício na produção, o que nem sempre acontecia com o trabalho dos homens. Em cada país por ela pesquisado, a produção e o trabalho exercido pelas mulheres ocorriam de forma peculiar, correspondendo à realidade nacional; porém, não obstante as diferenças e variações geocontinentais identificáveis, sobre as condições de trabalho a que as mulheres eram submetidas de forma geral, Hirata (2002, p. 30) revela que “robôs industriais ou cadeia de montagem clássica com tecnologias diferentes podem corresponder a condições de trabalho sempre muito penosas... quando se trata de mulheres operárias”.
No Japão, a título de exemplo, a proposta taylorista se valeu do aprendizado das jovens operárias que desde muito cedo são disciplinadas para a submissão familiar e laborativa. Associou-se à sua habilidade manual e à sua atenção minuciosa adquiridas na família. As fábricas japonesas estrategicamente
[...] oferecem, às suas operárias, cursos semanais de todas as artes domésticas, entre as quais a arte do arranjo de flores (ikebana); esse trabalho analítico, minucioso, de desestruturação- reestruturação das flores e das folhas de acordo com uma ordem rigidamente estabelecida parece ser uma preparação para o trabalho operário, uma introdução aos gestos dissociados, às tarefas fragmentadas requeridas pela organização científica do trabalho (HIRATA, 2002, p. 31, grifo da autora).
Embora o taylorismo-fordismo se baseasse no controle coercitivo do tempo de vida e de trabalho do operário na fábrica, tal coerção se direcionava, de fato, muito mais às mulheres. As mulheres tinham seu tempo rigidamente controlado dentro do espaço fabril desde o momento de produzir até à satisfação de necessidades básicas e o descano. Basta apenas considerar, lembra Hirata (2002, p. 33), que o sistema de dormitórios de jovens operárias “tornou possível um movimento de racionalização em que o conjunto da jornada era considerado o tempo de sono, a toalete, o ato de vestir, o trabalho na fábrica”, bem como “o ato de se pentear, o de defecar, o banho, as aulas e o lazer estritamente medidos”.
Em relação aos homens, o padrão produtivo rígido não exercia tamanho controle. Sobre esta notável diferença, Hirata (2002, p. 31, grifos da autora) aponta suas reais razões na seguinte passagem:
A determinação exata da quantidade de tempo jamais pode ser tão coercitiva e autoritária para os homens: eles não foram educados desde a infância para obedecer, aceitar e se submeter; as técnicas tayloristas, longe de serem neutras, utilizam e reforçam a divisão sexual existente tanto dentro da empresa quanto na sociedade. Os métodos tayloristas, quando extorquem o rendimento da mão-de-obra feminina, beneficiam-se do aprendizado das jovens relativo à [...] qualidades adquiridas em primeiro lugar na família, mas, em seguida, cultivadas nas próprias fábricas japonesas que oferecem, às suas operárias, cursos semanais de todas as artes domésticas.
Pode-se argumentar, e não sem razão, que a presença das mulheres no âmbito da produção rígida foi acompanhada por condições de trabalho desiguais. Remuneração inferior, controle hierárquico e intensidade de trabalho muito maiores foram reservadas às mulheres. Ora, as atividades que requeriam mais qualificação eram executadas por homens; por outro lado, e em contraste, as mulheres eram incumbidas daquelas que os empregadores acreditavam ser absolutamente compatíveis com as exercidas no espaço doméstico.
As funções de controle e gerência na produção rígida eram exercidas predominantemente pelos homens. Hirata (2002, p. 41) mostra, à luz das realidades por ela investigadas, que “as reuniões podem ser uma oportunidade de repressão direta das mulheres pela hierarquia masculina e servem, sobretudo, para controlar a qualidade de seu trabalho e a obediência aos procedimentos e às regras de produção”. As mulheres não tinham autorização para participar de reuniões e nem recebiam chamados para opinar quanto às mudanças que deveriam ser feitas na empresa; sendo esses espaços, por regra, masculinizados. Em tudo isso vem à tona que a rigidez no âmbito da produção suscitou (e reafirmou em todos os níveis) uma nítida divisão sexual do trabalho: em geral, aos homens eram reservadas principalmente as atividades de controle, com direito a alguns privilégios; e às mulheres, as atividades simples e repetitivas do processo de produção.
Após um longo período de crescimento econômico possibilitado pela produção rígida, já por nós caracterizada, em meados de 1970 eclodem
claramente os sinais de esgotamento do padrão taylorista-fordista, não possibilitando as condições que lograram êxito à expansão do capital. Não é à toa que desde essa década, até os dias de hoje, desencadeia-se um cenário crítico irreversível cujo movimento é característico por ser “um continuum depressivo”. Uma crise “cumulativa, endêmica, mais ou menos permanente e crônica, com a perspectiva última de uma crise estrutural” (MÉSZÁROS, 2002, p. 697).
Atingindo todos os ramos da produção e não se restringindo apenas a algumas regiões geográficas específicas, a crise estrutural do capital acomete todos os países capitalistas, sejam periféricos ou centrais, desenvolvidos ou em desenvolvimento. Em sua extensão de espaço e tempo, impacta significativamente o sistema social vigente e todas as dimensões da vida humana (economia, política, arte, ciência, valores, educação, relações pessoais e familiares). E porque isso? Porque, advoga o autor,
Em termos simples e gerais, uma crise estrutural afeta a totalidade de um complexo social em todas as relações com suas partes constituintes ou subcomplexos, como também a outros complexos aos quais é articulada. Diferentemente, uma crise não estrutural afeta apenas algumas partes do complexo em questão, e assim, não importa o grau de severidade em relação às partes afetadas, não pode pôr em risco a sobrevivência contínua da estrutura global (MÉSZÁROS, 2002, p. 796-797, grifo do autor).
Muito embora se tenha a instalação de uma crise destas proporções isso não impede que o capital continue exercendo dominação sobre o conjunto da humanidade. Visando à maximização dos lucros, o capital se vê compelido a encontrar alternativas para o quadro crítico e longevo em que é absorvido no sentido de reordenar tanto a produção e as formas de acumulação quanto o controle da sociedade. Presencia-se uma ofensiva que atinge a dinâmica do trabalho e a reprodução dos trabalhadores em todos os níveis. Não por acaso, mas em decorrência desse processo, é notável o insuficiente atendimento das necessidades sociais de maior parte da população, os elevados índices de pauperização, a precarização das relações de trabalho, a intensificação da exploração e o agravamento do desemprego.
Por não mais suprir as necessidades do capital, o padrão rígido precisou ser substituído6 por um novo padrão centrado na flexibilidade que responde no
6 Uma ressalva importante para se evitar conclusões errôneas: a emersão dum novo padrão não rompe, por completo, com os preceitos do padrão anterior. Por isso, “[...] o fordismo não foi superado para que as técnicas do modelo de gestão japonês sejam introduzidas; as duas formas convivem, em determinadas experiências, de forma complementar e, até mesmo, desigual. Há nesse sentido, contradições reveladoras de que a absorção de um novo modo de organização do
âmbito econômico às novas exigências. Deflagrou-se, no enfrentamento ao contexto recessivo, um conjunto de transformações na produção por meio da constituição do avanço tecnológico – microeletrônica, informática e automação -, das formas de acumulação flexíveis advindas do toyotismo, das formas de gestão organizacional, do downsizing e do desmonte de direitos trabalhistas outrora conquistados por meio de muitas lutas históricas e seculares.
Consolidado no Japão, nos anos pós-guerra, o toyotismo foi idealizado por Toyoda Sakichi, Toyoda Kiichirõ e Taiichi Ohno para responder às necessidades econômicas daquele país. Em seguida, ocidentalizou-se e se espraiou da Itália aos Estados Unidos, do Japão ao Brasil, tornando-se o modelo de produção predominante nas companhias que enfrentavam o desafio da diversificação.
Se é certo que este novo padrão também busca obter produtividade e lucro, não deixa de ser verídico o fato de que ele se distingue do que lhe antecedeu. O padrão de produção em massa era, como demonstramos, totalmente contrário a mudanças dada a sua rigidez. Já o toyotismo, funcionando generalizadamente numa etapa histórica de crise da economia mundial, adapta- se bem às condições de diversificação impostas pela dinâmica produtiva. De milhões de mercadorias idênticas, experimenta-se a rota inversa: uma produção que atende a demandas individualizadas, evitando a queda da taxa de lucro tão temida pelos capitalistas. Em sua totalidade, a produção é sempre diversificada – variações de modelos, tamanhos, estilos e serviços - e conduzida diretamente pela demanda, realizando-se em pequena escala e com estoque mínimo.
No toyotismo, tem-se a eliminação absoluta dos desperdícios provenientes da superprodução desmedida e da produção de produtos defeituosos; o melhor aproveitamento do tempo através do princípio do just in time (apenas-a-tempo) que nada mais é senão a possibilidade de “adquirir os produtos na hora e na quantidade necessárias” (OHNO, 1987, p. 131); a instalação do sistema de kanban - placa de comando que avisa quando é necessário repor peças; a flexibilização do trabalho e a polivalência do trabalhador. Sob o signo da flexibilização, a produção requer que o trabalhador antes responsável apenas por uma atividade deixe de ser monofuncional e passe a operar com celeridade o
trabalho não implica, necessariamente, negar as bases da produção que o antecede” (SOUZA, 2011, p. 92).
máximo de funções possíveis. Consolida-se a empresa enxuta (lean production) que mesmo dispondo de um menor contingente de trabalhadores alcança maiores índices de produtividade mediante os métodos de superexploração.
Com as mudanças introduzidas pelo toyotismo, presencia-se uma maior intensificação da exploração do trabalho porquanto o trabalhador desempenha várias funções ao mesmo tempo, senão será demitido de seu posto de trabalho. O trabalhador, defrontando-se com condições aviltantes de trabalho, subsiste apenas para produzir aquilo que o sistema lhe impõe. Proliferam-se, ademais, trabalhos precários, terceirizados, informais (comumente identificados como “autônomos”) e temporários que afetam a vida dos sujeitos neles envolvidos.
Ainda que as novas formas de acumulação de capital afetem toda a classe trabalhadora, as mulheres são, em determinados ramos, as mais atingidas. Os efeitos perversos, desiguais e excludentes do processo de reestruturação produtiva, com a flexibilidade do trabalho, repercutem de forma particular sobre as mulheres. Homens e mulheres estão inseridos de modo distinto no universo produtivo e, sendo assim, vivenciam as mudanças com disparidades.
O toyotismo na França e no Japão, para darmos enfoque específico a duas realidades de outras possíveis, é baseado numa divisão sexual e “setorial”:
Na França, há uma nítida divisão do trabalho entre o setor de preparação (processo), com mão-de-obra exclusivamente masculina, e o setor de embalagem, em que a população é mista. No Japão, algumas operárias polivalentes tinham acesso às salas de controle do setor de preparação e nele podiam trabalhar, mas essa mobilidade entre setores estava longe de ser generalizada. As operárias estavam maciçamente confinadas nas salas de embalagem, onde todos os chefes de equipe e os operários da manutenção eram homens (HIRATA, 2002, p. 95).
Nesses países, as mulheres são, desde cedo,
Recrutadas somente para as chamadas profissões femininas (não-qualificadas e com baixos salários) do setor secundário e [...] de serviços, a seleção é feita conforme a atitude, as maneiras, o comportamento: observação das regras de etiqueta, proibição de calças compridas, proibição de fumar durante o trabalho, submissão e obediência (HIRATA, 2002, p. 136, grifo da autora).
Diante do trabalho em tempo parcial, dos empregos precários e da posição desfavorecida, assiste-se à bipolarização dos empregos femininos que tem acirrado as desigualdades sociais entre os homens e as mulheres e entre as próprias mulheres. De um lado, tem-se “um polo constituído por mulheres executivas de profissões intelectuais superiores, categorias que se feminizam (médicas, advogadas, juízas, arquitetas, jornalistas, professoras universitárias, pesquisadoras, assalariadas do ramo da publicidade e da arte, etc.)”. Do outro, estão “mulheres que se mantêm nas ocupações tradicionalmente femininas: funcionárias públicas, da saúde, da educação, dos serviços aos particulares, auxiliares de enfermagem, enfermeiras, professoras primárias” e “profissionais do home care – que atendem pessoas idosas, doentes, crianças, e que fazem o trabalho doméstico como empregadas, faxineiras, etc.” (HIRATA, 2009, p. 30).
O aumento quantitativo de mulheres nos postos de trabalho não foi - e essa é uma das contradições do processo de flexibilização da produção - acompanhado pela melhoria qualitativa das condições sob as quais se labuta. Ao invés disso, o que se tem é, seja na Ásia, na Europa ou na América Latina, precarização e vulnerabilidade crescentes. Os empregos são instáveis, precários, mal remunerados e pouco valorizados socialmente. Outrossim, no padrão produtivo em voga persistem indícios de segregação vertical nas fábricas e empresas expressos na conhecida dificuldade de ascensão profissional a postos de direção e/ou à chefia que são, por vezes, nulas para as mulheres, sem falar da limitação ou inexistência de direitos atinentes.
No que se refere ao trabalho precário que atinge majoritariamente o trabalho feminino, esse fenômeno é agravado devido às migrações internacionais de mulheres que, sem pertences e sem pertencimento, quando empregadas tornam-se faxineiras, domésticas, babás, assistentes maternais, dentre outras profissionais. Na França, elucida a autora,
[...] as imigrantes são ligeiramente mais numerosas do que os homens, ao passo que estes eram majoritários até 1999 [...]. Essas mulheres encontram-se com frequência em situação precária, pois raramente têm contratos que garantam todos os direitos sociais. Esta precariedade pode ser associada à hipótese da “corveabilidade” [...], que articula relação social de sexo à relação de classe e à relação de serviço e atualiza a ideia de uma relação de servidão estreitamente integrada à relação de serviço
em certas circunstâncias e para certas categorias de mão-de-obra (HIRATA, 2009, p. 31).
Nos território japonês, Hirata e Zarifian (1991, p. 179) diagnosticaram que o trabalho profissional das mulheres é estruturado de uma forma radicalmente diferente do dos homens. E se se considerar a partir da faixa etária dos 20 aos 25 anos, a taxa de atividade das mulheres cai brutalmente. Chega a declinar a um nível aproximado de 45% e se eleva novamente a cerca de 65% para a faixa de idade dos 40 aos 55 anos.
Como consequência dessa realidade,
[...] as mulheres jovens que, teoricamente, poderiam ter acesso ao sistema de emprego vitalício, estando empregadas como assalariadas estáveis em grandes empresas, são, de fato, precocemente rejeitadas quando estão em idade de ter filhos e forçadas, social e materialmente, a dedicar-se exclusivamente à atividade doméstica. Uma vez terminada a criação dos filhos, para uma parte dentre elas, o retorno a uma atividade assalariada as exclui do sistema dominante de emprego e torna-as, de fato, uma das reservas privilegiadas da constituição de mão-de-obra precária, especialmente as assalariadas em regime parcial (HIRATA e ZARIFIAN, 1991, p. 180).
A lógica flexibilizadora impulsiona uma gigante terceirização do trabalho. Partes do processo para execução de um produto podem ser realizadas em ambientes externos às fábricas, reeditando, desde o final dos nos 1980, o trabalho domiciliar7. Neste, “as mudanças se traduzem em jornadas de trabalho mais longas, que se estendem, às vezes, pela noite e aos finais de semana e feriados; em locais de trabalho improvisados”; também “na ausência de proteção social8; na diminuição do poder de reivindicação e de negociação; [e] na superexploração do trabalho da mulher” (TAVARES, 2004, p. 171).
O trabalho feminino pode ser notado também no Sistema de Vendas Diretas (SVD) que é travestido como sendo uma atividade que possibilita “autonomia” para quem a desenvolve. Devido a sua dinâmica, a adesão ao SVD acontece associada à flexibilização do trabalho. Por não ter formas definidas de
7 O relatório da OIT (2016) retrata que, só no ano de 2015, 586 milhões de mulheres no mundo estavam trabalhando por conta própria ou trabalhando para uma unidade domiciliar.
8 O levantamento realizado pela OIT revela que “quase 40 por cento das mulheres no trabalho remunerado não contribuem para nenhum sistema de proteção social. Esta proporção atinge 63,2 por cento de mulheres na África subsaariana e 74,2 por cento na Ásia Meridional, onde o emprego informal é a forma dominante de emprego. Na Ásia Meridional, por exemplo, o emprego informal representa mais de 80 por cento do emprego não-agrícola. O emprego informal é, em três de seis regiões, a maior fonte de emprego não-agrícola para mulheres, mais do que para os homens (África subsaariana, América Latina e Caraíbas e Ásia Meridional). Neste contexto, o diferencial entre homens e mulheres no emprego informal pode atingir os 13 pontos percentuais, como é o caso da África subsaariana” (OIT, 2016, p. 5).
trabalho, ele se adéqua à potencialidade da informalidade e às atividades precárias e de baixa remuneração. Tal sistema tem aglutinado milhares de
[...] mulheres que arcam com riscos de estocagem e inadimplência, podem assumir a jornada dupla-concomitante de um trabalho que se realiza imbricado em outras atividades, ao mesmo tempo que são consumidoras assíduas dos produtos. Fica claro também que só terão alguma remuneração significativa mulheres que tornem esta sua ocupação principal ou a conciliem intensamente com outras ocupações. Para as que transitam mais nebulosamente entre o ser vendedora e o vender para consumir, o que fica para a análise é uma dúvida, senão uma hipótese, de que no fim das contas estejam pagando para trabalhar (ABÍLIO, 2014, p. 83-84).
O SVD “pode, então, assumir diferentes faces: a do complemento da renda familiar; a de uma ocupação alternativa ante a rotatividade do mercado de trabalho e a de um trabalho que não ponha em jogo o papel familiar feminino tradicionalmente estabelecido” (ABÍLIO, 2014, p. 90). Por seu intermédio, a mulher passa a experienciar atividades que não lhes propicia qualquer tipo de garantia trabalhista, mas tão-só o complemento dos rendimentos caseiros. Tem- se a inserção “oportuna” de mulheres que são precocemente expulsas do mercado formal de trabalho. E, no quadro mencionado, o SVD serve para ludibriar as trabalhadoras ao difundir a ideologia de que a mulher trabalha “sem trabalhar”.
Ao analisar “o make up do trabalho” no Brasil, a autora indaga-se sobre onde está o controle das revendedoras e chega à conclusão de que a produção nas fábricas de cosméticos que funcionam sob a lógica do SVD acontece
[...] pautada por um trabalho sem formas nem regulações definidas, e de dimensões gigantescas. Mas a ausência de formas não significa ausência de controle; significa que o controle se adapta à informalidade e opera de modos menos reconhecíveis. As promotoras de vendas têm um papel fundamental: trabalhando com metas e bonificações, o desempenho delas, assim como a remuneração, está plenamente vinculado à produtividade. Elas coordenam seus setores, instruem sobre os novos produtos, dão “dicas” de vendas, sorteiam produtos e criam suas próprias estratégias de motivação das vendedoras nas reuniões (ABÍLIO, 2014, p. 145).
Paralela a essas realidades, que nos parecem de extrema pertinência para delinear algumas expressões do objeto aqui em estudo, outra nos é oferecida por
Holzmann (2000). Os estudos da autora voltados para o entendimento da estrutura ocupacional por sexo indicam que os comportamentos culturalmente entendidos como sendo típicos da mulher - a saber: paciência, perspicácia, fidelidade, maior aceitação de trabalhos tediosos e resistência à monotonia, que “resultam em maior docilidade à dominação do capital” - garantem uma superexploração da força de trabalho feminina traduzida na concentração das mulheres em níveis inferiores quanto à qualificação, à valorização das tarefas e à remuneração, e uma subordinação à autoridade masculina no trabalho.
Enquanto os homens se distribuem em todos os ramos da atividade industrial e nas ocupações do setor de serviços, as mulheres, vítimas duma hierarquia horizontalmente imposta, se concentram em algumas poucas categorias ocupacionais, em determinadas especialidades.
Nas sociedades industrializadas, a mão-de-obra feminina se concentra nas indústrias de alimentos, têxteis, de confecção e de calçados e, mais recentemente, na eletrônica. No setor terciário, as mulheres estão ocupadas, predominantemente, no comércio, nos escritórios e nos serviços profissionais de educação, saúde e bem-estar. Estudos de categorias profissionais ou que tomam como objeto um determinado local de trabalho (fábrica, banco, estabelecimento comercial) revelam uma outra forma de segregação, vertical [...], que atua sobre a mão-de-obra feminina, pela qual ela se concentra nos níveis mais baixos da hierarquia técnica, funcional e salarial na estrutura das empresas ou nas categorias ocupacionais (HOLZMANN, 2000, p. 261).
E complementa a autora:
[...] em especial na indústria, as tarefas reservadas às mulheres são, via de regra, as consideradas mais leves, mais simples e inegavelmente, as mais repetitivas e mais monótonas, que requerem mais paciência e execução mais minuciosa, porque, explícita ou tacitamente, elas são entendidas como mais adequadas às aptidões consideradas inerentes à mão-de-obra feminina. Sistematicamente, essas tarefas são também consideradas não qualificadas (HOLZMANN, 2000, p. 261 - 262).
No campo de prestação de serviços, uma área que se destaca no emprego da força de trabalho feminina é o setor da Tecnologia da Informação (TI) que, na década de 80 do século passado, apresentou-se enquanto uma possibilidade de criar condições de maior igualdade para homens e mulheres no mercado de
trabalho bem como “melhores” oportunidades de remuneração e promoção para aquelas. No universo da TI, as mulheres se inserem em diversos espaços, entre eles registra-se com grande visibilidade o setor de teleatendimento, conhecido também como telemarketing ou, ainda, call center.
As atividades desenvolvidas pelas trabalhadoras nas empresas de call center podem ser assim caracterizadas:
É um desdobramento das atividades de telefonista. Em geral, essa atividade consiste em fornecer informações aos usuários, sendo utilizada constantemente uma única ferramenta, a voz, através do computador e do fone de ouvido. A rotina das teleoperadoras é exaustiva e pesada. As ações são repetitivas e submetidas a um rigoroso controle por parte da empresa, o que pode gerar, muitas vezes, problemas de ordem física e psicológica (NOGUEIRA, 2008, p. 75).
O trabalho realizado pelas teleoperadoras nas empresas podem trazer sérios riscos à vida das mulheres, pois, além da superexploração na realização de atividades repetitivas, na maioria das vezes o call center possui uma dinâmica de produção baseada no domínio do tempo, o que consequentemente faz com que as trabalhadoras tenham poucas pausas e horas de descanso. Os fatores de risco mais comuns diante das jornadas rotineiras são: ritmo alucinante de trabalho; ausência de pausas para recuperar o organismo; metas de produtividade desgastantes (tempo médio de atendimento - TMA); movimentos recorrentes; pressão constante de supervisores com controle rígido do trabalho; insalubridade; inadequação do mobiliário e dos equipamentos; e postura estática.
Atreladas a isso, desenvolvem-se várias lesões musculares que vão alterando evolutivamente os tendões, as articulações e os músculos, manifestando-se, de início, como dor e podendo chegar, em casos avançados, à incapacidade funcional. Desenvolvem-se, ainda, doenças auditivas provocadas pelo ruído do fone de ouvido e aquelas relacionadas à voz, instrumento fundamental da teleoperadora, diagnosticadas como nódulos vocais. No que toca à saúde mental, é comum a incidência do estress, da neurastenia, da fadiga, da neurose profissional e duma série de transtornos que acometem o bem-estar.
Tomando como lócus de estudo a agroindústria brasileira, Nogueira (2011) revela como ocorre a organização familiar e a divisão sexual do trabalho no espaço rural. Em um exame caucionado na tradição marxista, sustenta a autora:
Na família dos pequenos produtores rurais, esta divisão “é permeada também pela tradicional e cultural dominação masculina”, só que de forma mais intensa que na maioria das famílias urbanas, resultando em “uma desigualdade” mais acentuada, “tanto nas relações de trabalho quanto nas relações” familiares. A divisão sexual do trabalho nas pequenas propriedades familiares rurais apoia-se, em grande medida, na dominação presente na hierarquia familiar, como por exemplo, as relações de herança e propriedade, os arranjos matrimoniais, etc. (NOGUEIRA, 2011, p. 191).
No seio da organização familiar observa-se uma divisão sexual do trabalho baseada na hierarquização onde o homem tem o papel preponderante de responsabilidade pela manutenção do lar: comanda e define o tipo de atividades a serem desempenhadas na propriedade, o trabalho a ser realizado pelos membros, o comando financeiro dos recursos, a decisão de novos investimentos. A despeito do trabalho das mulheres, este fica restrito quase que exclusivamente ao espaço reprodutivo: cuidar da casa, cozinhar, educar os filhos, cultivar as hortas e os jardins, lidar com pequenas criações de gado, aves e suínos.
Mesmo com as lutas encabeçadas pelas mulheres, as atividades laborativas que estas exercem no meio rural tiveram poucas modificações ao longo do tempo; e isto se deve, em grande parte, à cultura patriarcal que atinge as mulheres nos espaços urbanos, como também remeta-se ao segmento rural.
Essas são, em resumo, algumas expressões do trabalho feminino no contexto da flexibilidade do trabalho decorrente do movimento de reestruturação do capital instaurado em resposta à crise por ele experimentada.
Diante do que foi exposto, e com base nas referências estudadas, pôde-se identificar que as desigualdades provenientes da divisão sexual do trabalho afetam um contingente significativo de mulheres em várias regiões do mundo. Apresentaram-se, no trato histórico dessa questão, as condições objetivas sob as
quais ocorre o controle e a exploração da força de trabalho feminina durante a produção rígida e, em seguida, no contexto da flexibilidade toyotista.
Ao resgatarmos as características do padrão produtivo taylorista-fordista, verificamos que a exploração da força de trabalho feminina ocorreu mediante a submissão da mulher a um regime rígido de produção. Verificamos também que suas atividades eram realizadas sob forte pressão de tempo, resultando num trabalho rotineiro, padronizado e fragmentado. Nesse padrão, os homens usufruíam de privilégios que eram negados às mulheres. Estas, além de serem duramente controladas, eram proibidas de opinar em assuntos referentes à produção e participar das reuniões que ocorriam dentro da fábrica fordista.
Particularmente em relação ao trabalho feminino no contexto do toyotismo - padrão baseado na flexibilização da produção e na exigência de um trabalhador capaz de exercer várias funções ao mesmo tempo -, deu-se ênfase à constatação de que ocorre a intensificação do ritmo de trabalho e a precarização das condições em que se executam as tarefas. Muito embora as mudanças advindas com a produção flexível tenham incidências sobre a vida da classe trabalhadora em sua totalidade, argumentamos (e, mais: demonstramos) que as mulheres são, em muitos casos, as mais atingidas. Diante da flexibilização do trabalho, os homens se distribuem em todos os ramos da atividade industrial e no setor de serviços; as mulheres, em particular, se concentram nas empresas ou, na maioria das vezes, em categorias ocupacionais terceirizadas e informais, onde são destinadas atividades precárias, monótonas e mal remuneradas que devem ser associadas àquelas desenvolvidas no espaço doméstico, o que tem configurado as expressões contemporâneas da exploração do trabalho feminino.
Uma das tendências observadas a partir do toyotismo é a expansão do emprego de mulheres em variadas áreas. Entende-se que, embora isso possa representar, em alguma medida, avanços para as mulheres e tenha trazido mudanças para suas vidas, tal expansão, ao estar trelada às exigências do capital, apresenta, como face do mesmo processo, contradições. O que se pode notar é que ela se dá principalmente nos espaços aqui ilustrados. E mais: as atividades domésticas continuam prioritariamente sendo exercidas por mulheres que acabam assumindo uma jornada de trabalho intensiva, extensiva e
intermitente, como sugere as anotações feitas por Ávila (2011), redundando na forte justificação do lar como um espaço feminino.
Nessas palavras finais, duas questões importantes devem ser postas:
a exploração das atividades destinadas à mulher é determinada, em ritmo e grau, pela dinâmica que a produção assume numa determinada quadra histórica e, o que é mais fundamental, a maior participação da mulher no mercado de trabalho não significa que ela seja uma usurpadora do trabalho masculino, mas, assim como os homens, elas são condicionadas a vender sua força de trabalho para ter acesso a um salário. Inexistem indícios de que a presença da mulher na produção regida pelo capital se dá para usurpar o espaço antes ocupado de modo exclusivo por homens. Há, isto sim, como procuramos evidenciar, a necessidade de se incorporar a mulher nos diversos postos de trabalho para desvalorizar, subordinar e explorar sua capacidade laborativa.
a presença massiva da mulher no mercado de trabalho, mormente na transição do século XX para o século XXI, não configura a sua plena emancipação; ao contrário do que é propalado, ela tem sido adequada às necessidades de expansão do capital num contexto de crise mundial que põe em xeque sua continuidade como sistema social dominante. E, quanto a isso, queremos fechar estas reflexões afirmando que só se pode vislumbrar a emancipação feminina consoante à emancipação do trabalho. Não há como a mulher ser emancipada do controle, da exploração e das hierarquias que a produção capitalista impõe para os trabalhadores, mesmo que haja, diante das (importantes e legítimas) lutas feministas seculares, o reconhecimento e o atendimento de algumas das suas reivindicações trabalhistas.
De tudo isso se apreende que a superação das problemáticas que envolvem a classe trabalhadora, incluindo-se aí a exploração da força de trabalho feminina enquanto expressão concreta das contradições e antagonismos presentes na ordem social vigente, só será possível com a instauração de outra forma de sociabilidade livre e radicalmente emancipada do domínio do capital. Caso se queira avançar nesse intento, torna-se imprescindível a luta contínua e cotidiana contra as amarras que aprisionam nos últimos séculos o trabalho aos grilhões capitalistas. Essa é uma tarefa inadiável que está posta na ordem do dia.
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Recebido em: 12 de janeiro de 2017 Aprovado em: 26 de outubro de 2017 Publicado em: 5 de dezembro de 2017
Paolo Caputo3 Giuseppina de Grazia4
Antes de entrarmos na análise das especificidades que caracterizam a subsunção do trabalho linguístico e cognitivo-relacional dos operadores de call center (e, mais amplamente, de grande parte do chamado trabalho intelectual na fase atual do desenvolvimento do capital), faz-se necessário explicitar alguns conceitos chave que orientam nossa análise. Em particular, é preciso definir preliminarmente o que entendemos pelo conceito de força produtiva (tanto física como mental) e, para fazê-lo, partiremos da definição marxiana de força de trabalho.
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.15i27.p9636
2 In CAPUTO, Paolo (org.) Call Center. La morte delle parole – Sfruttamento, alienazione e conflito. Milano, Ed. The Writer, 2013.
3 Professor da UNICAL (Universidade da Calabria, Itália), no Depto. de Ciências Políticas e Sociais.
4 Tradução: Giuseppina De Grazia, doutora em Sociologia (USP), ex-professora da UFF no Depto.de Serviço Social.
Para Marx, a força de trabalho (ou capacidade de trabalho) é constituída pelo conjunto de habilidades, atividades físicas e mentais presentes na corporalidade (na carne e no sangue do homem4), na personalidade viva de um homem e que ele transforma em ato, isto é, coloca em ação a cada vez que produz “coisas” úteis, valores de uso de qualquer espécie5. Substancialmente, o conceito de força de trabalho nos remete às intrínsecas capacidades, faculdades, potencialidades produtivas, intelectuais e linguístico-comunicativas, próprias da espécie humana6 e que, portanto, distinguem o animal humano daqueles não humanos.
Referindo-se à atividade humana, Marx afirma que a atividade livre e consciente é precisamente o que caracteriza o ser humano:
[...] A atividade vital consciente distingue o homem imediatamente da atividade vital animal. [...] É verdade que também o animal produz. Constrói para si um ninho, habitações, como a abelha, o castor, a formiga, etc. No entanto, produz apenas aquilo de que necessita imediatamente para si ou sua cria; produz em modo unilateral, enquanto o homem produz em modo universal; o animal produz apenas sob o domínio da carência física imediata, enquanto o homem produz mesmo livre da carência física, e só produz verdadeiramente quando se sente livre em relação a ela [...]. Precisamente por isso, na transformação do mundo objetivo é que o homem se confirma, em primeiro lugar e efetivamente, como ser genérico. Esta produção é a sua vida genérica operativa, como ser pertencente a uma ‘espécie’. (MARX, 2004, p. 74-75).
Para a antropologia filosófica, tudo isso é determinado pelo fato de que o homem, diferentemente dos outros animais, é dotado apenas de pulsões indefinidas e imprecisas, faculdades genéricas (GHELEN, 1990), ao contrário dos instintos especializados dos animais, os quais, organizando um determinado modo de viver, articulando um específico modo de ser, garantem a sobrevivência das espécies animais. Graças ao seu específico aparato instintivo, os animais não agem: limitam-se a re-agir aos estímulos ambientais correlacionados aos seus instintos. Ao contrário, o animal humano, “ [...] privado de uma sólida base
4 MARX, 1977, p.33.
5 O trabalho é, portanto, a força de trabalho em ação.
6 Como observa Vygotskij (1987), no animal humano, e somente nele, temos uma unidade de percepção, linguagem e ação. Em outras palavras, a linguagem e a atividade prática, a utilização de instrumentos e sinais, a cultura e a técnica constituem parte de uma mesma e complexa função psíquica.
instintiva, é obrigado a agir para sobreviver, a construir-se um mundo para suprir a falta de um ambiente já pronto para ele.” (GALIMBERTI, 2008, p.161).
Marx ainda sustenta que os homens, diferentemente dos animais, possuem uma história justamente porque, devido à sua constituição física e biológica, devem produzir a própria vida e devem fazê-lo de uma forma determinada:
A primeira ação histórica é, portanto, a criação dos meios para suprir estas necessidades (a começar pelas carências físicas indispensáveis à pura e simples sobrevivência da vida humana) ou seja, a produção da própria vida material. E esta é precisamente uma ação histórica, condição fundamental de toda história [...]. Um segundo ponto é que a primeira necessidade satisfeita, a ação de satisfazê-la e o instrumento já descoberto para essa realização, levam a novas necessidades [...]. (CIMATTI, 2000, p.18-19).
A capacidade de antecipação, a ideação, o planejamento, a liberdade de movimento e de ação, em uma palavra: a história como sucessão de auto criações tem como raiz, em última instância, a constituição biológico-orgânica do ser humano, e no agir técnico sua forma de expressão.7 Nesse sentido, o ser humano, ao contrário dos outros animais, produzindo o próprio ambiente (cultura)8, tem uma história. Sublinhamos que, neste contexto, com o termo produção não nos referimos, obviamente, ao indivíduo singular, mas à produção social (à produção socialmente determinada pelos indivíduos)9:
A produção por indivíduos isolados, fora da sociedade - fato raro que pode ocorrer muito bem quando um civilizado, que possui dinamicamente em si mesmo as forças da sociedade, se extravia acidentalmente num meio selvagem - é algo tão insensato como o desenvolvimento da linguagem na ausência dos indivíduos que vivem e falam juntos. (MARX, 1968, p.5).
Efetivamente, como evidenciado pela antropologia, o ser humano é literalmente um ser, um animal social e, enquanto tal, sua necessidade primária é
7 “(...) a qual nos diz que o homem é corpo/cérebro genericamente aberto ao mundo, potencialmente apto e exposto à relação com o outro”. (PEZZANO, 2012, p.4).
8 A cultura é, portanto, a “segunda natureza” do ser humano e “o mundo da cultura é o mundo humano” (GEHLEN, 1990, p. 64).
9 Na produção os homens não atuam só sobre a natureza mas também uns sobre os outros. Produzem apenas atuando conjuntamente de um modo determinado e trocando as suas atividades umas pelas outras. Para produzirem entram em determinadas ligações e relações uns com os outros, e só no seio destas ligações e relações sociais se efetua a sua ação sobre a natureza, se efetua a produção. (MARX 1977, p.47).
interagir com outras pessoas. (DOUGLAS, 1994). A reciprocidade constitui o princípio fundamental para assegurar a própria sobrevivência10. Em síntese, tanto a atividade humana produtiva como a atividade mental não constituem processos solitários, solipsistas. São atividades sociais vivenciadas com os outros e feitas para serem comunicadas, partilhadas e desenvolvidas junto aos outros.
O ser humano produz o próprio ambiente, o próprio contexto vital, a própria existência (podemos impropriamente dizer que esta é a sua natureza), e só pode fazer tudo isso a partir da e na “natureza”, do contexto vital no qual está inserido, “[...] que representa para ele o mundo externo sensível, a matéria sobre a qual e com a qual realiza seu trabalho, sobre a qual e com a qual seu trabalho se desenvolve, da qual e por meio da qual produz”. (Pezzano, 2012).
O homem produz e reproduz as condições na base da própria existência através de um processo de objetivação, de explicitação, de exteriorização das próprias necessidades sob muitas formas, tanto materiais como simbólicas (técnica e linguagem, instrumentos e símbolos, produção e cultura).11
A linguagem permite ao nosso cérebro (que do ponto de vista anatômico e genético apresenta-se de forma muito similar ao de tantos outros animais) adquirir a capacidade – ao término de um processo de desenvolvimento que se inicia na infância – de dar vida a uma mente com desempenho completamente diferente do gênero que caracteriza os outros animais. Em resumo, a mente humana fundamenta-se num princípio diverso daquele que constitui a mente dos animais não humanos: o pensamento humano é um pensamento “verbal” enquanto o dos outros animais é um pensamento perceptivo12, e por essa razão, a principal característica do raciocínio humano provém da versatilidade e da criatividade:
10 De resto, também a atividade mental humana, assim como a produção (a técnica) não é algo solitário, nem existe sem ajuda, mesmo quando ocorre “no interior da cabeça”: “Somos a única espécie que absorve toda forma significativa de ensinamento. A vida mental é vivida com os outros, é feita para ser comunicada e se desenvolve com a ajuda de códigos culturais, tradições e semelhantes.” (BRUNER, 2001, p.9).
11 Referindo-se ao desenvolvimento humano e, em particular, ao papel desenvolvido pela utilização de instrumentos e símbolos no desenvolvimento da criança, também Vygotskij (1987, p.42) evidencia que a unidade dialética entre a inteligência prática (utilização de instrumentos) e o uso de sinais (a linguagem, em particular) constitui a própria essência do complexo comportamento humano.
12 A diferença entre o animal humano e aquele não humano é, portanto, o fato de que o primeiro pensa em termos linguísticos, ou seja, literalmente pensa em palavras, enquanto o segundo somente pode pensar em termos perceptivos, isto é, a partir daquilo que vê, e não do que lhe é dito. Assim como também não poderia dizer internamente a si mesmo aquilo que vê. A diferença, portanto, está na forma diferente de utilização de suas linguagens naturais: para o primeiro, ela
A característica principal da inteligência humana é a sua flexibilidade, o que pressupõe a possibilidade de assentar os processos cognitivos, inclusive aqueles existentes apenas na imaginação [...] sobre o potencial criativo das línguas humanas. Flexibilidade que, por sua vez, significa essencialmente capacidade de gerar hipóteses para depois submetê-las ao filtro seletivo da prova dos fatos. (CIMATTI, 2002, p.196).
É necessário salientar que o animal humano não possui mais imaginação que um chipanzé ou um cão porque é mais inteligente do que esses animais,
e sim porque – graças à sua mente organizada linguisticamente – é capaz de superar os vínculos que a percepção impõe ao seu pensamento. O que se pode fazer com um determinado objeto depende, além de sua potencialidade corpórea de base (um golfinho não poderá fazer muita coisa com uma chave de fenda, apesar de ser um mamífero muito inteligente), da capacidade mental de associação com outros objetos e situações. Mas esta capacidade não depende tanto do objeto em si (embora seja difícil utilizar uma serra elétrica para cortar uma verruga), nem da imaginação, quanto da possibilidade cognitiva de isolar o objeto em questão da rede vinculante de associações na qual habitualmente está inserido. Somente depois de tê-lo isolado e individualizado como entidade independente, é possível colocá-lo em relação com outros objetos e outros contextos perceptivos. Em nossa mente, e na de nosso ancestral hominídeo, o principal instrumento para realizar essa articulação e separação é dado pela linguagem. (CIMATTI, 2000, p.132-133).
No caso do animal não humano, entretanto, seus instintos especializados saturam o conjunto das possibilidades que um determinado organismo pode alcançar,
[...] instintos que, no caso dos animais não humanos, [...] restringem o espaço das possibilidades, porque vinculam estreitamente o animal, através do qual se manifestam, ao seu ambiente mais imediato. O instinto da linguagem, ao contrário, é o instinto do possível, da abertura, da fantasia, se assim se deseja. Um instinto que se desenvolve naquela infância prolongada que é a vida do ser humano como capacidade discursiva, como autoconsciência, como inesgotável abundância de possibilidades em relação à realidade. (CIMATTI, 2002, p.209).
serve não só para se comunicar mas também, e sobretudo, para pensar; para os não humanos, essencialmente para comunicar. (CIMATTI, 2000, P. 129).
Vygotskij nos lembra que, no momento em que as crianças aprendem a utilizar de modo eficaz a função de programar sua linguagem, seu campo cognitivo muda radicalmente13:
E ainda:
Ao contrário do macaco [...] que é ‘escravo de seu próprio campo visual’, as crianças adquirem uma independência no enfrentamento de tudo o que concretamente as circunda; elas cessam de agir no espaço imediato e evidente [...]. Uma visão do futuro torna-se parte integrante do seu modo de aproximar-se do que as rodeia. (VYGOTSKIJ, 1987, p.49).
[...] As crianças resolvem os problemas práticos com a ajuda seja da linguagem, seja dos olhos e mãos. Esta unidade de percepção, linguagem e ação, que ao final produz a interiorização do campo visível, constitui tema central para qualquer análise da origem de formas de comportamento unicamente humanas [...]. É decisivamente importante que a linguagem não só facilite a efetiva manipulação dos objetos à criança, mas também o controle sobre seu próprio comportamento. Portanto, com a ajuda da linguagem, a criança, ao contrário do macaco, adquire a capacidade de ser tanto o sujeito, como também o objeto de seu próprio comportamento. (Idem, p.45-46).
Em suma, para o ser humano, o produto cresce com o instrumento e, na sua gênese como no seu uso cotidiano, o pensamento sem a linguagem resulta ser tão inconcebível como seria o raciocínio matemático desenvolvido sem o suporte de um adequado simbolismo matemático. “Portanto, desenvolvimento da linguagem e desenvolvimento do pensamento correm paralelamente.” (PETRACCHI, 1995, p.55).
Como observa Leroi-Gourhan – segundo o qual a linguagem constitui o instrumento de libertação em relação à experiência vivida, da mesma forma que o instrumento é o meio de libertação dos vínculos genéticos – existe uma estreita interdependência entre gesto e palavra, técnica e linguagem, objetivação instrumental e simbólica:
13 O comportamento mais importante na utilização de sinais por parte das crianças é de longe a linguagem humana. Através dela as crianças se libertam de muitas das coerções presentes em seu ambiente. Elas se preparam para as atividades futuras; planejam, ordenam e controlam seu comportamento como o das outras pessoas. A linguagem é também um excelente exemplo de utilização de sinais, a qual, uma vez interiorizada, torna-se parte intensa e profunda dos processos psíquicos superiores; a linguagem atua para organizar, unificar e integrar muitos aspectos heterogêneos do comportamento das crianças, como a percepção, a memória e a resolução de problemas. (VYGOTSKIJ, 1987, p.183-184).
[...] o homem fabrica utensílios concretos e símbolos, e tanto uns como os outros nascem de um mesmo processo, ou melhor, recorrem, no cérebro, ao mesmo equipamento básico. Isto nos leva a pensar não apenas que a linguagem é tão típica do homem quanto os utensílios, mas também que ambos são a expressão da mesma faculdade do homem. (LEROI-GOURHAN, 1977, p.267).
O que foi tratado até aqui implica também em afirmar que a mente humana não poderia existir sem a cultura14, ou seja, sem um sistema simbólico compartilhado pelos membros de uma comunidade cultural através do qual a realidade pode ser representada:
[...] a cultura plasma a mente, nos fornece o conjunto dos utensílios mediante os quais construímos não só nosso mundo, mas também a concepção que temos de nós mesmos e de nossas capacidades. [...] O conhecimento e a comunicação, por sua própria natureza, são profundamente interdependentes, diria mesmo praticamente inseparáveis. De fato, mesmo que possa parecer que o indivíduo atue por conta própria na sua busca de significados, não pode fazê-lo, assim como ninguém conseguiria fazê-lo, sem o auxílio dos sistemas simbólicos da própria cultura. É a cultura que nos fornece os instrumentos para organizar e compreender o nosso mundo em formas comunicáveis. A característica que distingue a evolução humana está vinculada à particular evolução da mente, a qual se desenvolveu de modo tal a consentir aos seres humanos a utilização dos instrumentos da cultura. Sem estes instrumentos, simbólicos ou materiais, o homem não seria um “macaco mudo”, mas só uma vazia abstração. (BRUNER, 2001, p.17).
Podemos concluir com Vygotskij (1987) que as qualidades únicas de nossa espécie estão baseadas sobre as dimensões sociais da vida humana, criadas historicamente e elaboradas culturalmente, dimensões que se fundam a partir da utilização de sinais e de instrumentos, ausentes na organização social dos animais não humanos. Sistemas de instrumentos e de sinais construídos pela sociedade ao longo do curso da história da humanidade e que se transformam junto com as diversas formas assumidas pela sociedade e o nível de seu desenvolvimento cultural. A utilização de instrumentos e sinais, a capacidade de manipulação e a linguagem entre os homens andam de mãos dadas e implicam algumas propriedades importantes em comum: ambas comportam a atividade mediata. Agnes Heller escreve que “no processo de objetivação do homem os
14 “Como gostam de dizer alguns antropólogos, a cultura é uma caixinha de apetrechos contendo as técnicas e procedimentos para compreender e administrar o mundo.” (BRUNER, 2001, p.111).
sentidos humanos são exteriorizados e é a relação humana objetivada, já presente, que desenvolve em cada ser humano, tanto quanto possível, os sentidos e as necessidades humanas. (HELLER, 1977, P.44). Ou ainda, como afirma Berthoud, a característica própria da condição humana de estar no mundo reside na progressiva separação de uma parte sempre maior de si mesmo que se exterioriza em objetos materiais e simbólicos15:
Há, portanto, sempre - mesmo que seja possível perceber de forma aproximativa diversos graus de exteriorização – uma objetivação material e social na relação entre o homem e o mundo. O EU, no seu papel de ser social, expõe de alguma forma no exterior de si mesmo uma parte de seu interior. Dessa forma funções e saberes são exteriorizados. (BERTHOUD, 1994, p.55).
Do que foi analisado até aqui, a definição marxiana de força de trabalho de imediato e obrigatoriamente nos reconduz às características biológicas específicas do ser humano, do ser em potencial, as quais se expressam precisamente naquelas que são as potencialidades físicas e intelectuais próprias de nossa espécie. Força de trabalho significa faculdade de produzir, potência bruta, genérica e indeterminada:
Nela não está prescrito um ou outro tipo particular de atos laborativos, e sim atos de qualquer espécie: tanto a fabricação de uma porteira, quanto a colheita de peras; tanto a conversa de um telefonista das chat-lines, quanto a correção de textos[...]. Falando de força de trabalho, nos referimos explicitamente a todo tipo de faculdade: competência linguística, memória, capacidade de movimento, etc. (VIRNO, 2001, p.53).
Eis, portanto, o que vende o trabalhador no momento em que se apresenta no mercado de trabalho para oferecer a própria “mercadoria”: na sociedade capitalista, observa Marx, o trabalhador assalariado vende, troca a própria força de trabalho - ou seja, as próprias faculdades produtivas, a própria possibilidade de produzir, a atividade criadora de valor – por um valor predeterminado (um salário)
15 [...] ação é também uma objetivação do pensamento, isto é, representa a solução generalizante, dada pelo sujeito, a um problema relacionado com o objeto. Nesse sentido podemos também afirmar que os instrumentos de trabalho e seus usos são objetivações do pensamento humano como a linguagem. (HELLER, 2012, p.246).
e, além disso, a troca acontece independentemente do resultado de sua atividade16. (MARX, 1968).
Dito isso, a primeira consideração a fazer é que a categoria marxiana de força de trabalho somente hoje atinge sua máxima concretude, assumindo sua real e plena validade nas condições históricas atuais. Efetivamente, até o período fordista, ou seja até 30 anos atrás, o capital utilizava e explorava quase que exclusivamente as capacidades físicas, materiais, basicamente o corpo da força de trabalho. Hoje, entretanto, além das capacidades físicas, são transformadas em valor também as potencialidades intelectuais, mentais, linguísticas e relacionais, isto é, a totalidade das faculdades humanas.
Segundo a teoria econômica do capitalismo cognitivo (CILLARIO, 1996; VERCELLONE, 2006 e 2012), na passagem do fordismo ao pós-fordismo, o trabalho assalariado não mais se caracterizaria pela mera execução de tarefas, e sim pela reflexividade. Ou seja, qualquer trabalhador assalariado (do operário, ao escriturário ou engenheiro informático) teria a incumbência de desenvolver uma função ideativa (direcionada a refletir sobre os diversos procedimentos organizativos a serem utilizados para aumentar a produtividade do trabalho17. Em suma, a participação reflexiva do trabalho tem por base a capacidade de elaboração de novos métodos organizativos e esquemas relacionais que permitem ao capital aumentar a produtividade do trabalho. Obviamente a reflexibilidade não é uma livre escolha, e sim imposta coercitivamente pelas empresas. Dessa forma, o capital não explora mais somente a força física do operário, mas também sua capacidade de pensar e formular melhorias na produção, suas capacidades reflexivas e intelectuais.
Ora, ao repensar o conceito de força de trabalho em Marx, nos rendemos conta de que, na realidade, a exploração das capacidades cognitivas dos trabalhadores não significa propriamente algo tão inovador dentro da natureza do processo de valorização do capital18. Pelo contrário, o fato de que atualmente,
16 A relação capitalista de produção está fundada precisamente sobre a diferença entre o valor de troca da força de trabalho e o trabalho efetivamente realizado.
17 “A maior transformação que, a partir da crise do fordismo, sinaliza o declínio do capitalismo industrial, encontra-se justamente na revalorização da dimensão cognitiva e intelectual do trabalho”(VERCELLONE, 2012).
18 Procopio escreve o seguinte: “Apresentar a exploração da contribuição intelectual dos operários na produção como uma novidade desta fase particular do capitalismo, é um grande contrassenso que tem servido exclusivamente para considerar a teoria do valor-trabalho superada, sem fornecer, porém, nenhuma demonstração científica a esse tipo de declaração. No regime
além das capacidades físicas, sejam diretamente exigidas dos trabalhadores, e de uma forma substancialmente generalizada, também suas potencialidades intelectuais (linguísticas, cognitivas, relacionais), significa somente a plena efetivação da categoria marxiana de força de trabalho.
De qualquer forma, a passagem da subsunção formal à subsunção real do trabalho ao capital subjugou primeiro a atividade produtiva prática, o trabalho físico, manual (por ser um objeto passível de mensuração relativamente mais simples) e, sucessivamente, o trabalho cognitivo, intelectual, relacional, linguístico. Efetivamente, no pós-fordismo a subsunção real consegue atingir, além do corpo, também a mente da força de trabalho.
Lembremos que, com o termo subsunção formal do trabalho ao capital, Marx entende que o capital submete a si, isto é, à lógica de sua própria reprodução (criação de mais valia e lucro), um modo de trabalhar já desenvolvido pelos seres humanos muito antes do surgimento do capitalismo e independente dele. O que o capital faz é submeter o trabalho às suas próprias finalidades apenas formalmente, ou seja, sem mudar o conteúdo da ação laborativa. O conceito de subsunção real, no entanto, designa a constituição de um processo produtivo especificamente capitalista e se concretiza no momento em que o capital faz emergir.
um modo de produção específico, e não apenas tecnologicamente, que transforma totalmente a natureza real do processo de trabalho e as suas condições reais: o modo capitalista de produção. [...]. Na subordinação real do capital aparecem no processo de trabalho todas as transformações que anteriormente analisáramos. Desenvolvem-se as forças produtivas sociais do trabalho e, graças ao trabalho em larga escala, chega- se à aplicação da ciência e da maquinaria à produção imediata. (MARX, 1969, p.68-69). [Ed.bras: MARX, O Capital, Cap.VI
Inédito, Ed.Moraes, 1985, p.104-105].
Em todo caso é preciso deixar claro que subsunção formal e subsunção real do trabalho ao capital não são dois momentos de um processo unidirecional e
capitalista o valor de troca das mercadorias é determinado pela quantidade de trabalho socialmente contido, e todas as oscilações desse valor decorrem apenas da variação da quantidade de trabalho despendida. Declarar essa teoria superada apenas porque nos dias atuais o capital consegue explorar também a capacidade reflexiva do trabalho operário é simplesmente uma afirmação que não demonstra absolutamente nada quanto ao suposto fim da teoria do valor- trabalho.” PROCÓPIO, 1999).
temporalmente orientado. Na realidade, eles convivem e se entrelaçam em diferentes proporções segundo o contexto histórico, social e cultural.
Na chamada fase posfordista é possível observar uma extensão e uma intensificação do processo de subordinação real do trabalho ao capital: os trabalhadores passam a ser expropriados não somente de seu próprio trabalho, do próprio saber prático, das ferramentas (que orientam sobretudo a atividade material concreta), mas também dos seus próprios conhecimentos, do próprio saber (que o capital tende a objetivar em ações e conhecimentos formalizados e processados de modo que possam ser quantificados, medidos, objetivados e reificados).
[...] O trabalhador intelectual encontra hoje um saber já formado, cujo conteúdo está dissociado de sua experiência e conhecimentos anteriores. Não pode mais indagar a respeito do processo de construção desse saber [...]. O procedimento matemático que transforma a coisa em pensamento e o pensamento em coisa agora se contrapõe a ele irremediavelmente como um instrumento universal para a construção de conhecimentos; como condição objetiva material da produção; como uma máquina capitalista que tornou obsoleto e não confiável o cérebro humano. A experiência anterior do trabalhador não pode mais, de nenhuma forma, nem guiar, nem controlar os algoritmos19 que transcendem seu mundo sensível, vindos “não se sabe de onde, nem de quem, tendo como base princípios dos quais desconhece a origem”. Por esse motivo o pensamento reificado condena o trabalho mental à menoridade, ao dogmatismo que não é apenas, como antes, uma afecção do espírito, mas tornou-se condição material à qual não é possível subtrair-se. (MODUGNO, 2010).
A mercantilização da atividade produtiva, de sua capacidade humana produtiva, sofre, portanto, um processo de sucessivo aprofundamento que termina por envolver – além da criação de objetos, instrumentos e produtos - também a produção de símbolos, sentidos e significados, características que, como sublinhamos anteriormente, distinguem o ser humano dos outros animais.20 Com
19 Isto é, receitas prontas detalhando minuciosamente os procedimentos necessários para a resolução das tarefas. (N.T.)
20 Para Marx, no modo de produção capitalista, o trabalhador é uma pessoa desumanizada, que age mecânica e repetitivamente; que é dominado e que deve favorecer a inexorável valorização do capital. A capacidade de resposta ativa e planejada, a criatividade e a flexibilidade, a capacidade de ação própria do animal humano é reduzida e virada de cabeça para baixo, transformada numa “reatividade” passiva e irrefletida. Dessa forma, não só as necessidades humanas se enfraquecem, mas definitivamente também aquelas que temos em comum com os outros animais (MARX, 2004): alienação / estranhamento significa, assim, desumanização. Em
efeito, é possível argumentar como Heller, que a linguagem faz plenamente parte do conjunto da atividade produtiva do ser humano.21
A linguagem também faz parte do trabalho: nem mesmo o trabalho mais primitivo pode ser efetuado sem informações linguísticas, comandos, sem os vários tipos de comunicação linguística. É bem conhecida a história bíblica, segundo a qual, a torre de Babel não pode ser concluída porque Deus confundiu a linguagem dos construtores. Sem a mediação linguística o trabalho não podia ser desenvolvido [...]. Além disso, uma das funções da linguagem consiste em orientar a utilização dos meios (instrumentos, objetos) no plano mental, facilitando o exercício de seu emprego. (HELLER, 2012, p.243-244).
Marx observa que o processo de produção assume uma forma tanto mais adequada ao capital quanto mais o trabalho perde suas características particulares, artesanais; quanto mais ele assume a forma de uma atividade genérica, indiferente a cada forma particular. Em poucas palavras, quanto mais o trabalhador se torna alienado em relação ao conteúdo do próprio trabalho:
Portanto, o desenvolvimento pleno do capital só acontece – ou o capital só terá posto o modo de produção que lhe corresponde – quando o meio de trabalho é determinado como capital fixo não só formalmente, mas quando tiver sido abolido em sua forma imediata, e o capital fixo se defrontar com o trabalho como máquina no interior do processo de produção; quando o processo de produção em seu conjunto, entretanto, não aparece como processo subsumido à habilidade imediata do trabalhador, mas como aplicação tecnológica da ciência. Por isso, a tendência do capital é conferir à produção um caráter científico, e o trabalho direto é rebaixado a um simples momento desse processo. (MARX, 1968 II, p.393) [Ed.bras: MARX, 2011. Elementos
fundamentais para a crítica da economia política (Grundrisse). São Paulo : Boitempo ; Rio de Janeiro : Ed. UFRJ, 2011, p. 933].
A crescente aplicação tecnológica da ciência (como produto do desenvolvimento social e da produtividade em geral) ao processo de produção imediato constitui precisamente um dos aspectos mais relevantes da subsunção real do trabalho ao capital. O próprio desenvolvimento científico, isto é, as forças produtivas gerais do cérebro social apresentam-se, em relação ao trabalho,
outras palavras significa que a essência humana (o que caracteriza o ser humano enquanto espécie e o distingue em relação aos outros animais) é afetada e colocada em perigo, exposta ao risco de ser violentamente negada e irremediavelmente perdida.
21 A linguagem guia o pensamento nas outras formas de objetivação da atividade humana. Diferentemente dos animais, no homem o desenvolvimento das habilidades manuais e da linguagem ocorrem simultaneamente, tanto é que a linguagem torna-se o princípio guia também de todas as atividades manuais.
absorvido e incorporado diretamente no capital.22 Assim como o desenvolvimento da ciência social, da produtividade da sociedade e o progresso geral apresentam- se como desenvolvimento do capital e, enquanto tais, se contrapõem materialmente ao trabalho, como ciência alheia, como capital: “[...] a produtividade do capital se desenvolve com este progresso geral que o capital gratuitamente se apropria”. (MARX, 1968 II, p.393).
Atualmente, mesmo no caso dos chamados trabalhadores do conhecimento
[...] as ‘máquinas informáticas’ desempenham a mesma função das máquinas da grande fábrica: são um instrumento que a empresa utiliza para a produção de valor. Efetivamente, os trabalhadores da economia do conhecimento correspondem apenas em mínima parte àquela imagem de ‘super técnicos’ criativos, aptos à produção contínua de novas ideias que frequentemente lhes é atribuída. Na realidade atuam principalmente como apêndices das novas máquinas informáticas, e executam um trabalho repetitivo e regulado por normas precisas. (CODELUPPI, 208, P.27).
Portanto, o próprio fato de que o conhecimento, no posfordismo, tenha se tornado a principal fonte de produção da riqueza, não seria absolutamente uma novidade:
Acredito que meus amigos do capitalismo cognitivo se enganem ao considerar o ‘conhecimento’ como a fonte da valorização e exploração. Não é uma novidade o fato de que a ciência, a habilidade, as inovações tecnológicas e organizativas representem as forças produtivas – Marx já o havia afirmado na metade do século XIX; mas a alegada economia do conhecimento não representa a totalidade das relações de classe que a teoria do capitalismo cognitivo lhe atribui. Esta não é mais do que um dispositivo, um tipo de atividade, uma articulação das relações de poder que dá suporte a uma multiplicidade de outras atividades e outras relações de poder, sobre as quais não exerce nenhuma hegemonia. (LAZZARATO, 2012, p.65).
A própria revolução digital, escreve Formenti (2011), como todas as revoluções tecnológicas, de um lado permitiria ao capitalismo submeter atividades antes não situadas sob o domínio da mercantilização. Por outro lado, favoreceria inclusive o nascimento de novos espaços de autonomia social, embora destinados em seguida a serem absorvidos no processo de valorização do capital. Basicamente, o autor sustenta que os novos mecanismos de produção de valor que se fizeram presentes com a new economy levaram a um substancial
22 E sua aplicação como ciência no processo de produção imediato apresenta-se separada, distinta da capacidade e do saber do trabalhador individual.
processo de taylorização do trabalho cognitivo (um taylorismo digital direcionado a submeter o trabalho vivo ao domínio das máquinas, software e algoritmos), a um tipo de regressão do trabalho de ideação, criativo, rechaçando as visões utópicas dos anos 1990 em relação à construção de uma classe criativa e às perspectivas de libertação abertas pela web.
Ao contrário, as tecnologias eletrônico-informáticas, mais que favorecer a libertação da atividade produtiva do domínio do capital, constituiriam a base para excepcionais incrementos de produtividade, particularmente no trabalho “criativo” (em relação ao qual, os softwares, freando a dinâmica de alteração da demanda de trabalho intelectual em direção a atividades mais elevadas, tenderiam a substituir e tornar obsoleto o trabalho humano nas atividades de planejamento, gestão e controle).
Em síntese, é possível afirmar que, na fase atual, através das tecnologias digitais é possível determinar um novo desenvolvimento no processo de subsunção real do trabalho ao capital. Hoje o verdadeiro agente do processo laborativo global não é absolutamente representado pelo trabalhador individual, e sim por uma força de trabalho cada vez mais articulada socialmente, de forma que os próprios trabalhadores do conhecimento, os trabalhadores intelectuais, estão hoje já englobados no interior do trabalhador produtivo global, nas diversas forças de trabalho cooperantes que estruturam a totalidade da máquina produtiva, portanto, diretamente explorados pelo capital e submetidos ao seu processo de produção e valorização.
Ocupemo-nos agora em compreender como ocorre o processo de subsunção real do trabalho no interior de um processo produtivo que nos últimos anos tem registrado uma considerável dinamicidade ocupacional: o call center, ou melhor, os contact center.23
23 Nos anos 1990 os call centers se transformaram progressivamente em contact center: o contact center acrescenta à utilização do telefone novos meios tecnológicos de comunicação, tais como fax, e-mail, sms e web, oferecendo assim novos serviços que ultrapassam os “limites do fone de ouvido” e constituem um verdadeiro e próprio centro de contato [relacionamento] entre a empresa e o mundo exterior.
Alguns autores (BUTERA, DONATI e CESARIA, 1997; RULLANI, 2004ª e
2004b) concentram-se principalmente naqueles aspectos inovadores dos call centers, os quais, segundo esta interpretação deveriam ser considerados como verdadeiras “organizações do conhecimento” (knowledge-based organization)24. Isto porque os operadores, desenvolvendo um trabalho de natureza sobretudo comunicativa, exerceriam complexas atividades baseadas em conhecimentos relativamente amplos, e estão inseridos no interior de um processo de aprendizagem contínua (contribuindo, por sua vez, a gerar novos conhecimentos). Em contraposição, outros estudiosos (SOPRANI e CREA, 2005) tendem a equiparar o trabalho nos call centers aos tradicionais métodos organizativos e gerenciais da fábrica teylorista-fordista: flexibilidade de horários, ritmo de trabalho extremamente intenso, tarefas excessivamente parcelizadas e monótonas. De
modo que
[...] até mesmo nos casos em que, aparentemente, o trabalho dos operadores segue um modelo do tipo “problem solving” (resolução de problemas), suas atribuições, e, portanto, as competências exigidas são relativamente modestas [...]. De fato fica evidente que o método “problem solving” fica limitado ao fato de que os operadores, na maior parte dos casos, encontram a solução dos problemas dos clientes através de uma simples consulta aos softwares disponibilizados pelas empresas. Os softwares são periodicamente atualizados de acordo com as perguntas mais frequentes colocadas pelos mesmos funcionários operadores que atendem os telefonemas dos clientes. (IRES, 2002, p.25).
No que concerne à nossa análise, em primeiro lugar é possível concordar com a interpretação segundo a qual a principal capacidade explorada nos call centers é a capacidade linguística, comunicativa, cognitivo-relacional dos trabalhadores. Efetivamente os operadores do tele atendimento devem possuir uma adequada bagagem formativa, o que significa, em poucas palavras, que devem possuir um certo grau de estudo, enquanto as capacidades linguísticas e relacionais se desenvolvem através da experiência (que se adquire no âmbito laborativo, mas, sobretudo, extra laborativo) e do processo educativo. Trata-se, todavia, de habilidades medianas, comuns, genéricas, aprendidas “naturalmente”,
24 BUTERA F.; DONATI E.; CESARIA R. 1997. Os trabalhadores do Conhecimento. Ed. FAngeli, 1997.
vivendo e crescendo no interior do próprio contexto social ao qual pertence, e do qual, qualquer ser humano em geral está em condições de apropriar-se.
As empresas explorariam algumas competências básicas normalmente associadas à aquisição de um diploma de Ensino Médio (segundo ciclo25), com aperfeiçoamento nas áreas de linguística e informática), e algumas habilidades típicas da força de trabalho jovem (habilidade relacional e comunicativa) para atividades de comunicação com os clientes/usuários que requerem uma formação ágil, direcionada principalmente ao trabalho e que não requer investimentos na estabilidade da força de trabalho. (AVOLA e PALIDDA, 2013, p.2).
Do ponto de vista das características gerais do trabalho desenvolvido pelos operadores, é possível evidenciar que: 1) aos trabalhadores é exigida uma grande disponibilidade uma vez que as operações de tele atendimento ocorrem em ciclo contínuo, ou seja, são realizadas no decorrer das 24 horas diárias e nos sete dias da semana; 2) a atividade dos operadores é totalmente submissa à pressão do fluxo informático26 - ao término de uma chamada segue-se imediatamente uma outra, seja de forma automática (a intervalos de 0 a 20 segundos, conforme o tipo de operação), seja manualmente, depois de, no máximo, dois ou três toques; 3) a atividade dos trabalhadores é guiada pela rotinização da comunicação27, subordinada a rígidos scripts28 e aos modelos de execução formatados pelos softwares, além de estritamente controlados pelos supervisores: a vigilância constante e capilar de tudo o que acontece no interior do local de trabalho desempenha um papel preciso, duradouro e funcional ao “bom adestramento”.29
25 O Ensino Médio na Itália é constituído por 2 clicos: I ciclo = Scuola Media (de 11 a 13/14 anos, duração 3 anos). Ensino Médio- II ciclo = Scuola Media Superiore ( de 14 anos a 18/19 anos, duração 5 anos) (N.Trad.).
26 Os softwares utilizados giram automaticamente as chamadas ao trabalhador livre mais próximo, de modo que os trabalhadores são submetidos passivamente à programação do trabalho.
27 Como declarado por quem se ocupa da formação dos operadores, o controle da própria atividade, o saber fazer bem o próprio trabalho se adquire com a prática e, portanto, com a repetição (Massei Luca, responsável pela formação dos operadores no Data Center).
28 Esquemas de gestão das ligações.
29 No que se refere à rotinização da comunicação e ao adestramento dos operadores, veja-se, por exemplo, o papel desenvolvido pelos simuladores de call center, os quais são direcionados a treinar os operadores de contact center a maximizar a capacidade de “concluir” a ação (seja tratando-se de venda ou assistência) através da “compreensão” do cliente e de suas necessidades expressas e latentes: “O simulador contém todas as técnicas de negociação típicas [...] para colocar à prova o operador em cada fase [...]. O simulador prevê a interação com quatro diferentes sujeitos, cada um delineado com base num perfil sociocultural, numa necessidade primária e a um latente e específico perfil psicológico. Para treinar não só a técnica mas também a capacidade de
As formas e as técnicas através das quais se realiza o controle são complexas e diversificadas: desde a supervisão hierárquica direta ao monitoramento eletrônico em tempo real (amplamente utilizado tanto para intensificar a produtividade, quanto para controlar os padrões de qualidade das conversas telefônicas), até à pressão do próprio grupo de trabalhadores (que se expressa através do trabalho em equipe).
Como observa Braga:
Em última instância, trata-se de um tipo de trabalho que testemunha como nenhum outro a taylorização do trabalho intelectual e do campo da relação de serviço: uma comunicação instrumental sob a coerção do fluxo informacional e prisioneira do script, tendente a transformar o tele operador numa espécie de autômato inquieto. Os objetivos são claros: multiplicar as operações e diminuir seus custos por meio da redução do estatuto da comunicação à condição de pura instrumentalidade. (BRAGA, 2007).
Embora existam diferenças até importantes, entre as diversas tipologias de call centers, o trabalho dos operadores é, em geral, uma atividade de rotina e submetida aos rígidos cânones do taylorismo (semelhante ao operário de linha de montagem de uma fábrica automobilística, um operador de tele atendimento é facilmente substituível), ao qual se acrescem novas modalidades de exploração e controle do trabalho típicas da lean production (produção enxuta): trabalho em equipe, participação ativa dos trabalhadores no processo produtivo, etc.
Concluindo, as tecnologias eletrônico-informáticas e os softwares utilizados no interior dos contact centers servem para subsumir, controlar e mensurar o trabalho cognitivo-relacional dos operadores. De modo que a subsunção real do trabalho intelectual ao capital, neste caso, se efetiva através dos vários softwares, scripts, da adequação e constante pressão do fluxo informático. Em poucas palavras, a expropriação do saber profissional e dos conhecimentos práticos do operador se concretiza através da criação de softwares e de procedimentos (implementados por meio da tecnologia e da ciência aplicadas à produção) que
adequar a própria forma de abordagem ao contexto específico.” Na prática, trata-se de um treinamento intensivo a respeito das técnicas de comunicação que devem permitir ao operador otimizar “sem riscos” a própria abordagem ao cliente. O objetivo final desse adestramento é, evidentemente, o de tornar “natural”, “instintivo”, espontâneo e mecânico o comportamento comunicativo instrumental imposto.
eliminam gradualmente o conteúdo comunicativo compreensível que caracteriza a relação de serviço. Desta forma, os conhecimentos se objetivam, se reificam, se autonomizam, se separam do trabalhador, contrapondo-se a ele como saber estranhado, como produto e meio de produção do capital: o produto do trabalho intelectual não é mais inseparável do produtor e do ato de produzir.
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Recebido em: 02 de abril de 2017 Aprovado em: 05 de outubro de 2017 Publicado em: 5 de dezembro de 2017
Andréa Villela Mafra da Silva2
O marco na história da criação dos organismos internacionais foi a Segunda Guerra Mundial, ocasião em que, especificamente, os Estados Unidos da América do Norte, prestou assistência aos países destruídos na Guerra. Por definição Organismos Internacionais são associações de no mínimo três Estados Nacionais denominados como países membros, que “não se limitam a desempenhar as tarefas próprias de simples agências de crédito”, mas exercem
1DOI: https://doi.org/10.22409/tn.15i27.p9637
2 Doutoranda no ProPEd/UERJ. Professora do Ensino Superior da FAETEC. E-mail: av.mafra@hotmail.com
“função político-estratégica fundamental nos processos de ajuste e reestruturação neoliberal” (GENTILI, 2001, p. 29).
A atuação desses organismos é basicamente fornecer empréstimos aos países periféricos2 e atuar no controle econômico, cultural e político estabelecendo o cumprimento de condicionalidades, que expressam as suas intervenções na definição das políticas dos países periféricos. Tomo o conceito de condicionalidade elaborado por Leher (1999) como o processo pelo qual os empréstimos financeiros concedidos pelos organismos internacionais estão condicionados à implementação de reformas na política macroeconômica e nas políticas setoriais à luz do projeto societário do capital.
Os programas dos organismos podem ser classificados em quatro segmentos: (1) Cooperação, tais como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e a Organização dos Estados Americanos (OEA); (2) Financiamento, como o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID); (3) Normativo, tais como Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT) e Organização Mundial para a Propriedade Intelectual (OMPI); e (4) Político como a Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) e a Organização dos Estados Americanos (OEA).
Os Organismos Internacionais, em suas prescrições nas políticas educacionais, evidenciam propostas feitas basicamente a partir de uma lógica econômica em que a relação custo-benefício norteia as prioridades de investimento no campo. Vários autores têm pensado criticamente as formas de atuação dos organismos internacionais (LEHER, 1999a, 1999b; BARRETO, 2009; BARRETO, LEHER, 2008; LIMA, 2001, 2003; SGUISSARDI, 2006; KRUPPA,
2000) e suas interferências na definição das políticas educacionais
A história da política educacional brasileira está marcada pelas ações dos organismos internacionais, particularmente, nas reformas educacionais realizadas
2 Para a teoria da dependência a caracterização dos países decorre da relação do capitalismo mundial de dependência entre países centrais e países periféricos. Países centrais, como centro da economia mundial. A expressão países periféricos se refere aos espaços onde o desenvolvimento da ciência, da técnica e da informação ocorre em menor escala. Fonte: BAPTISTA FILHO, Almir Cezar de Carvalho. Dinâmica, determinações e sistema mundial no desenvolvimento do capitalismo nos termos de Theotônio dos Santos: da Teoria da Dependência à Teoria dos Sistemas-mundo. Dissertação de Mestrado apresentada como ao Programa de Pós- Graduação em Economia da Universidade Federal de Uberlândia, 2009.
nos anos 1990. Expressões como “sociedade do conhecimento”, “economia baseada no conhecimento”, “democratização”, “aprendizagem ao longo da vida” ganharam representatividade nos discursos oficiais dos organismos internacionais. Fairclough (2006) afirma que o discurso da Economia Baseada no Conhecimento utilizado pelos organismos representa processos e tendências que, de alguma forma, contribuem para sustentar estratégias para sua propagação ao redor do mundo. Noutras palavras, na análise faircloughiana o processo de legitimação do discurso, como relações de dominação podem ser sustentadas pelo menos por três estratégias: a racionalização (através de um conjunto de relações sociais); a universalização (baseada na ideia de que se servem aos interesses de alguns indivíduos servem ao interesse do coletivo); e a narrativização (como estratégia de legitimação do discurso).
Com sede em Santiago do Chile, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) criada em 1948 pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas tem como objetivo coordenar e acompanhar as políticas direcionadas à promoção do desenvolvimento econômico dos países latino- americanos e reforçar as relações econômicas desses países entre si e com as demais nações do mundo. Suas propostas de caráter reformista, surgiram no contexto de uma economia mundial em crise, sobretudo com o colapso produtivo na Europa que se intensificou durante a Segunda Guerra Mundial.
Os dois principais documentos que servem de base ao pensamento cepalino são: (a) O desenvolvimento econômico da América Latina e alguns de seus problemas principais, publicado em 1949, de autoria de Raúl Prebisch3 (1901-1986), único economista latino-americano que se tornaria secretário-
3 Raúl Prebisch teve reconhecimento internacional com indicação ao primeiro Prêmio Nobel de Economia. Em 1982, Prebisch publicou a obra Cinco etapas de mi pensamiento sobre el desarrollo em que relata as etapas do desenvolvimento econômico. Ao estudar o pensamento de Raúl Prebisch, estamos tratando da realidade brasileira do “desenvolvimentismo” após a crise dos anos 1930, chegando até os problemas da dívida externa e da hiperinflação dos anos 1980. O Brasil foi um dos principais países que sofreram a influência das ideias de Prebisch. Fonte: < http://www.scielo.br/pdf/ecos/v16n1/a03v16n1.pdf> Acesso em 23 nov. 2016.
executivo da CEPAL, em meados da década de 1950; (b) Estudo econômico da América Latina-1949, datado de 1951. Os dois documentos são reconhecidos como a doutrina Prebisch-CEPAL.
Na década de 1970, a CEPAL foi criticada por inconsistências em sua concepção de subdesenvolvimento e pelo seu conjunto de políticas, que tinham como objetivo à superação do subdesenvolvimento e da pobreza, pela via da industrialização. As críticas endereçadas ao discurso cepalino parte de dois argumentos fundamentais. O primeiro argumento, se refere a análise estruturalista, característica do pensamento cepalino, que negligencia a influência da formação institucional dos países latino-americanos sobre seu desenvolvimento econômico considerando irreversível sua posição periférica no comércio internacional (NORTH, 1991). O segundo argumento, parte da noção de dependência, utilizada tanto por autores cepalinos quanto marxistas e outros vinculados ao estruturalismo. Trata-se de pressupor uma relação de dominação econômica e política imposta pelas economias centrais, e que, portanto, não tem origem em qualquer tipo de característica peculiar das economias periféricas (idem).
De modo geral, as formulações cepalinas apresentam a ideia da “incorporação e difusão do progresso técnico como fator fundamental para que a região desenvolva uma competitividade autêntica que lhe permita se inserir com êxito na economia mundial” (CEPAL, 1990, p. 10). Dessa perspectiva sustentada pela CEPAL a incorporação do progresso técnico advém de um conjunto de fatores como o fortalecimento da base empresarial, da infraestrutura tecnológica, da crescente abertura à economia internacional e, principalmente, da formação de recursos humanos que favoreçam o acesso e a geração de novos conhecimentos (idem).
No contexto dessas orientações, inscrevem-se as reformas educativas e a naturalização de um receituário único, que independe das condições objetivas dos países envolvidos. Mais especificamente, a Cepal defende o argumento de que há uma crise na Educação intensificada pela ausência de articulação com setores da vida social, política, econômica e cultural (CEPAL, 1990).
A despeito de não ser exatamente uma instituição preocupada com política educacional, as orientações cepalinas perpassam pelo entendimento de que a Educação é responsável pela elevação do patamar de competitividade
internacional entre os países frente às diversas transformações sucedidas na economia ao nível global (BIESLCHOWSKY, 2000). Assim, para a CEPAL “a reforma do sistema de produção e difusão do conhecimento constitui, pois, instrumento fundamental para enfrentar tanto os desafios internos – ligados à consolidação da cidadania – como externos – relativos à competitividade” (CEPAL, 1995, p.8).
Tenho entendido que o volume de documentos produzidos pela CEPAL pode ser considerado tanto como uma espécie de receituários quanto justificativas para divulgar avaliações e diagnósticos sobre os resultados das reformas educacionais implementadas na América Latina e Caribe. A lógica argumentativa que sustenta os documentos cepalinos produzem efeitos de verdade criados pelo discurso estatístico (Fairclough, 2001, p. 91), que por sua vez contribuem “para a constituição de todas as dimensões da estrutura social que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem” (idem).
Fairclough (2001, p. 105) demonstra que os significados e sentidos com que as palavras são empregadas “entram em disputas dentro de lutas mais amplas”, uma vez que, “as estruturações particulares das relações entre as palavras e das relações entre os sentidos de uma palavra são formas de hegemonia”. O conceito de hegemonia da teoria do discurso, tal como elaborada por Fairclough:
é liderança tanto quanto dominação nos domínios econômico, político, cultural e ideológico de uma sociedade. Hegemonia é poder sobre a sociedade como um todo de uma das classes economicamente definidas como fundamentais em aliança com outras forças sociais, mas nunca atingido senão parcial e temporariamente, como um ‘equilíbrio instável’. Hegemonia é a construção de alianças e a integração muito mais do que simplesmente a dominação de classes subalternas, mediante concessões ou meios ideológicos para ganhar seu consentimento (FAIRCLOUGH, 2001, p. 122).
Desse modo, os discursos hegemônicos reorganizam as relações sociais de um contexto sócio histórico específico. A recomendação central da publicação Invertir mejor para invertir más: Financiamiento y Gestión de la Educación en América Latina y el Caribe (2005) preparado pela Divisão de Desenvolvimento Social da CEPAL, em conjunto com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), apresenta como um dos objetivos a
abordagem dos principais desafios de financiamento e de gestão dos sistemas educacionais dos países no século XXI.
Na seção do documento que trata dos investimentos em Educação e do alcance de bons resultados das reformas educativas é destacado a necessidade de: (a) orientar a gestão institucional, a serviço da aprendizagem; (b) promover maior responsabilidade social pela Educação; (c) promover melhores condições de trabalho aos professores (CEPAL, 2005).
Os fóruns são veículos difusores das ideias cepalinas. O Fórum sobre os Benefícios da Digitalização da Educação na América Latina, ocorreu no Estado de São Paulo, no dia 19 de maio de 20164. O evento contou com a participação de representantes de organizações não-governamentais, representantes da indústria, legisladores, e outros membros do governo envolvidos em questões políticas relacionadas à tecnologia da informação, telecomunicações e finanças. Neste evento foram tomadas as primeiras resoluções sobre o papel da conectividade e tecnologia na educação e nos processos educativos. O objetivo é “melhorar e transformar a qualidade da educação na América Latina, proporcionar conectividade à internet em toda sala de aula e digitalizar a educação” (CEPAL, 2016).
Evento similar foi promovido pela CEPAL com o mesmo fio condutor - Programa de Conectividade do Século XXI - que analisou o papel das TIC na conectividade de banda larga das salas de aula, com o intuito de estabelecer um conjunto de metas voltadas para a educação digital. Os trechos, a seguir, retirados do programa indicam as TIC como solução e parte indispensável para os problemas educacionais:
As TICs (Information and communication technologies, Tecnologias de informação e comunicação) não são mais meras ferramentas práticas de interação. Elas evoluíram e se tornaram parte indispensável de tudo, de operações governamentais a processos de negócios e atividades individuais (CEPAL, 2015, p.
5) (grifo meu).
Em um mundo cada vez mais conectado, ficar abaixo da curva de adoção da tecnologia apresenta uma grande desvantagem. Essa relação é mais facilmente percebida no setor da educação. A educação abre portas e oferece oportunidades para sair da
4C.f.<http://www.segs.com.br/info-ti/17541-caf-cepal-e-cisco-juntam-esforcos-para-digitalizar-a-
educacao-na-america-latina.html> Acesso em 23 nov. 2016
pobreza. Com os recursos adequados, os alunos têm chance de melhorar sua formação, a vida pessoal e profissional. Ainda assim, à medida que as tecnologias educativas evoluem, apenas aqueles que podem acessá-las são beneficiados, aumentando a distância entre o progresso e a estagnação econômica (CEPAL, 2015, p. 5).
Para garantir que todos colham os benefícios das TICs, é necessário ampliar a disponibilidade e a adoção da banda larga, principalmente por meio de políticas que conectem escolas, todas as salas de aula e bibliotecas a serviços de internet de banda larga (CEPAL, 2015, p. 5).
O argumento que as TIC “evoluíram e se tornaram parte indispensável de tudo” (caracterizado como argumento principal do programa) envolve o desconhecimento as restrições da aplicação prática desse enunciado. A despeito, da ausência de condições objetivas de trabalho do professor, para o aproveitamento das TIC na Educação e também da falta de política de formação de professores direcionadas para o aproveitamento das tecnologias de informação e comunicação - o discurso dominante tem em seus princípios a ideia de que as TIC garantem avanço e mudança no processo de ensino e aprendizagem.
O que me parece fundamental pontuar que esses supostos estão também presentes em outro documento da CEPAL - Agenda digital para América Latina y el Caribe – publicado um ano antes, precisamente em 2015. Conforme sugere Fairclough (2001) é fundamental analisar pistas em diferentes textos para identificar a forma como os discursos são construídos e capazes de reestruturar as práticas sociais. Um dos mecanismos de construção simbólica nos eventos discursivos se refere a narrativização, isto é, a apropriação de outros textos como uma estratégia de legitimação do discurso em busca do processo de consenso (FAIRCLOUGH, 2003). Para ilustrar, cito o excerto do documento da CEPAL (2015) já referido, que assim como as outras publicações deste organismo insistem na ideia salvacionista das TIC:
A medida que las TIC, y en especial Internet, permean todos los ámbitos económicos y sociales, su relevancia en términos de innovación, crecimiento y desarrollo adquiere una nueva dimensión. Luego de más de una década de políticas sobre TIC, América Latina y el Caribe muestra avances en el establecimiento de marcos jurídicos, los niveles de cobertura de los servicios de telecomunicaciones (telefonía móvil e Internet, principalmente), la
implementación de programas en los ámbitos sociales (en especial, educación y salud) y el desarrollo del gobierno electrónico. No obstante, los países de la región continúan avanzando a velocidades distintas, con brechas dentro de ellos y entre ellos, así como diferencias frente a las economías más desarrolladas (CEPAL, 2015, p.02).
La propuesta de agenda digital para América Latina y el Caribe (eLAC2018) se plantea como misión desarrollar un ecosistema digital en América Latina y el Caribe que, mediante un proceso de integración y cooperación regional, fortalezca las políticas que impulsen una sociedad basada en el conocimiento, la inclusión y la equidad, la innovación y la sostenibilidad ambiental (CEPAL, 2015, p.03).
Incorporar o fortalecer el uso de las TIC en la educación y promover el desarrollo de programas que contemplen la capacitación de docentes, nuevos modelos pedagógicos, la generación, adaptación e intercambio de recursos educativos abiertos, la gestión de las instituciones de educación y evaluaciones educativas (CEPAL, 2015, p. 05).
Conforme tenho argumentado, emanam das posições cepalinas a ênfase na introdução das TIC nas práticas pedagógicas nas escolas como recursos que permitem experimentar processos de inovação curricular e o estabelecimento de ambientes de aprendizagem dinâmicos e eficazes. Leher (2010b) em sua crítica ao determinismo tecnológico das políticas educacionais, influenciadas pelos Organismos Internacionais, indaga: como é que a tecnologia pode ser sujeito se ela é a relação de produção, é a relação social?
A estes fatores, acrescento que os discursos cepalinos têm em seus princípios a tendência ao fetiche tecnológico. Essa ideia se materializa na tendência cepalina em frisar a promoção de políticas educacionais para o uso intensivo das TIC: “Impulsar la medición del acceso y uso de las TIC, a nivel nacional y regional, fortaleciendo los marcos institucionales necesarios para la articulación, monitoreo, medición y promoción de las políticas en materia digital” (CEPAL, 2015, p.06).
Norman Fairclough, linguista britânico, é professor Emérito da Universidade de Lancaster na Grã-Bretanha. Fairclough é reconhecido pela sua significativa
contribuição ao estabelecer um quadro metodológico que permite investigar a relação entre o discurso e a mudança social. A teoria de Fairclough se propõe a analisar o papel da linguagem e outros elementos semióticos, tais como imagens, na reprodução das práticas sociais e das ideologias.
Em sua obra intitulada Language and power, Fairclough faz uma das primeiras abordagens à análise crítica do discurso, focando “a linguagem na produção, manutenção e mudança das relações sociais de poder” (FAIRCLOUGH, 1989, p. 01). A Análise Crítica do Discurso se preocupa, especialmente, com as mudanças radicais na vida social contemporânea e com as práticas de produção de linguagem, dentro das quais a vida social é produzida, seja esta econômica, política ou cultural. Toda prática de produção de linguagem inclui os seguintes elementos: (a) a atividade produtiva; (b) os meios de produção;
(c) as relações sociais; (d) as identidades sociais; (e) os valores culturais; dentre outros (FAIRCLOUGH, 1989).
A linguagem enquanto discurso, pressupõe não só analisar textos e processos de produção e de interpretação, mas também analisar as relações entre estes (textos) e as condições das estruturas sociais. Nesse sentido, apoiada no arcabouço teórico-analítico da Análise Crítica do Discurso (FAIRCLOUGH, 2006), busco compreender as diferentes práticas discursivas associadas às mudanças da prática social.
Busco evidenciar os diferentes sentidos atribuídos às TIC nas políticas educacionais, com base na análise das dimensões semântica (ressignificações e relexicalizações que remetem à reconfiguração dos processos de formação e trabalho docente), sintática (as TIC como agentes das mudanças propostas nas formulações das políticas educacionais) e pragmática (a recorrência do discurso salvacionista das TIC) do corpus.
Na concepção da análise crítica do discurso, a linguagem deve ser empiricamente analisada a partir do seu contexto social. Isto significa que todos os discursos são históricos e sempre calcados em análises concretas e linguísticas do uso da linguagem em práticas sociais. Na linguística, a noção de discurso é utilizada como referência a amostras ampliadas de linguagem falada ou escrita. O texto é considerado como uma dimensão do discurso que pode representar, constituir, posicionar e construir os indivíduos de diversas maneiras, como sujeitos sociais.
Historicamente, os discursos se combinam ou se modificam em condições sociais produzindo um novo discurso. Em última análise, discurso se refere a diferentes tipos de linguagem utilizada em diferentes tipos de situações sociais, como o discurso de sala de aula, o discurso da mídia ou o discurso da ciência médica.
A escolha de Norman Fairclough no processo de análise do discurso das políticas justifica-se pela possibilidade de focalizar os pressupostos de senso comum e as estratégias retóricas - implícitas ou não - presentes nos textos. As práticas discursivas revelam tendências específicas, e algumas vezes contraditórias, na relação entre linguagem, discurso e poder (FAIRCLOUGH, 2001). Através da análise do discurso cepalino é possível compreender as concepções de Educação que sustentam as suas recomendações que, por sua vez, têm sido convertidas em práticas políticas.
Há várias definições do conceito de discurso elaboradas de diversas perspectivas teóricas. O conceito de discurso que utilizo é o mesmo adotado por Fairclough; no entanto, para conhecer outras descrições, transcrevo, a seguir, a definição de Teun Van Dijk, reconhecido por sua relevância nos trabalhos sobre racismo, imigração e mídia na Europa e na América Latina, dentro do campo da ACD:
Debería entenderse ‘discurso’ como uma forma de uso lingüístico y, de una forma más general, como un tipo de interacción social, condicionada por la cognición y socialmente contextualizada por los participantes, tomados como miembros sociales en situaciones sociales. El discurso, ya sea oral o escrito, se define, pues, como un evento comunicativo de un tipo especial, estrechamente relacionado con otras actividades comunicativas no verbales (tales como los gestos o el tratamiento de la imagen) y otras prácticas semióticas de significado, de significación y con los usos sociales de códigos simbólicos, como los de la comunicación visual (por ejemplo, los grá- ficos, la fotografía o el cine). Estas sucintas definiciones de discurso ya sugieren múltiples relaciones con la cognición y con la sociedad. Así, hoy se acepta comúnmente que más que decir que el discurso 'tiene' significados, hay que afirmar que los usuarios de las lenguas le 'asignan' significados. Estas asignaciones, tradicionalmente llamadas 'interpretaciones', son de naturaleza a la vez cognitiva y social (VAN DIJK, 1997, p. 68-69).
Diane Macdonell, citada por Fairclough (2001), em seu estudo althusseriano intitulado Theories of discourse an introduction afirma que “todos os
discursos são ideologicamente posicionados; nenhum é neutro "(MACDONELL, 1986, p.59). Para Fairclough5, o discurso ao mesmo tempo em que é moldado pela estrutura social também lhe é constitutivo. A análise faircloughiana aborda os conceitos de linguagem e de globalização a partir de quatro referências: (a) objetivista – que compreende a globalização como um fato objetivo, no qual o discurso tanto pode representar quanto pode se omitir dessa função; (b) retoricista – a forma como os discursos da globalização são utilizados sobre determinado assunto; (c) ideologicista – a maneira como os discursos da globalização podem contribuir para legitimar uma ordem estabelecida, a qual incorpora assimetricamente as relações de poder que ocorrem entre e dentro de diversos países; e, (d) construtivista social - o discurso com significantes efeitos causais no processo de construção social.
A abordagem faircloughiana considera discurso como forma de prática social ou a forma como as pessoas agem sobre o mundo e especialmente sobre os outros, como também um modo de representação. Para Fairclough (2001) a linguagem como prática social requer um modo de compreensão historicamente situado, dentro de uma construção social e constituído de identidades sociais, relações sociais e sistemas de conhecimento e crença.
Reporto-me, também, aos aspectos que levam Fairclough a pensar a linguagem mercadológica no contexto educacional. Nos termos do autor, “um aspecto da mudança discursiva com constituição metafórica da educação e de outros serviços como mercados é um elemento potente na transformação não apenas do discurso, mas também do pensamento e da prática nessas esferas” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 241).
Para Fairclough (2001), a análise do discurso deve focalizar “a variabilidade, a mudança e a luta: variabilidade entre as práticas e heterogeneidade entre elas como reflexo sincrônico de processos de mudança histórica que são moldados pela luta entre as forças sociais” (p. 58– 59).
Os efeitos do discurso estão relacionados às três funções da linguagem: identitária – “modos pelos quais as identidades sociais são estabelecidas no discurso”; relacional – “como as relações sociais entre os participantes do discurso são representadas e negociadas”; e ideacional – “modos pelos quais os
5 Op. Cit.
textos significam o mundo e seus processos, entidades e relações” (FAIRCLOUGH, 2001, p.92).
A abordagem de Fairclough (2001) implica em uma relação dialética entre o discurso e a estrutura social. Discurso como prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado (p.91). A teoria de Fairclough (2001) tem como objetivo desenvolver uma análise do discurso capaz de investigar a mudança na linguagem como um método de estudo das mudanças sociais e culturais. E, ainda, tem como objetivo contribuir para “o desenvolvimento de um modelo hegemônico da prática discursiva, especialmente em oposição ao modelo de código predominante” (p. 273).
Fairclough (2001) apresenta um modelo tridimensional de análise, cujos elementos se constituem de três níveis - os aspectos estruturais de textos, práticas discursivas e práticas sociais. Além disso, os textos produzem efeitos sobre as pessoas, e tais efeitos são determinados pela relação dialética entre texto e contexto social (idem). O ponto que destaco é que o uso intensivo das TIC tem se constituído, fundamentalmente, “como as grandes vias de ‘democratização’ das informações e do conhecimento em tempo real, representando interesses estratégicos para o capital” (LIMA, 2011, p.02).
Em um acesso6 a página do Repositório Digital da CEPAL para buscar as ocorrências de publicações que contenham a expressão “Educação e Tecnologia” encontro 3.4780 itens agrupados nas categorias livros, artigos, documentos de conferência e reuniões, publicações em periódicos, revistas e boletins. Na segunda tentativa, na mesma data de acesso, alterei o descritor da pesquisa para “Educação” e as ocorrências se limitaram a 994 itens agrupados nas mesmas categorias anteriormente descritas.
Em síntese, é preciso mencionar que nos documentos orientadores da CEPAL, a integração das TIC na Educação na América Latina e Caribe tem sido
6Fonte:<http://repositorio.cepal.org/discover?scope=%2F&query=tecnologia++e+educa%C3%A7%
C3%A3o&submit=Ir> Acesso no dia 14 jan. 2017.
realizada através de políticas educacionais, principalmente por meio de programas e projetos, que buscam “facilitar a inclusão social e a universalização dos direitos da cidadania” (CEPAL, 2010).
No entanto, no caso do Brasil, a formação docente tem sido, reconhecidamente, insatisfatória no que se refere à integração das TIC nos atos de currículo, o que inviabiliza avanços significativos em direção a uma efetiva utilização destas ferramentas como estratégias de ensino e aprendizagem.
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Recebido em: 31 de janeiro de 2017 Aprovado em: 08 de outubro de 2017 Publicado em: 5 de dezembro de 2017
Marcio Gomes da Silva2
O presente texto tem como objetivo refletir sobre a produção do conhecimento agroecológico e indicar, a partir dessa reflexão, os fundamentos
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.15i27.p9638
2 Professor do Departamento de Educação da Universidade Federal de Viçosa – UFV. marcio.gomes@ufv.br
da pedagogia agroecológica. A análise acerca da produção do conhecimento agroecológico será realizada levando em consideração diferentes tempos/espaços de aprendizagens, seja no âmbito dos movimentos sociais, seja no âmbito das escolas do campo.
Buscando fazer uma aproximação do tema “produção do conhecimento agroecológico” com o campo Trabalho e Educação, a espinha dorsal da análise será realizada por meio da categoria trabalho, no qual tentaremos relacionar os interstícios entre a agricultura camponesa2 e agroecologia, partindo do pressuposto que na agricultura camponesa, o trabalho camponês3 se configura enquanto um princípio educativo, sob o qual se edificam processos de aprendizagens acerca da produção do conhecimento agroecológico.
A categoria trabalho é polissêmica (FRIGOTTO, 2005), podendo indicar diferentes significados na sociedade capitalista, sendo o mais difundido a ideia de emprego. No entanto, lançaremos mão da categoria trabalho em uma perspectiva ontológica e histórica em que o trabalho é elemento fundante da formação humana, ou seja, do ser social. É a partir do trabalho que nos diferenciamos dos animais, pelo fato de projetarmos a ação, de forma consciente, na relação ser humano natureza, transformando-a por meio do trabalho e garantindo, assim, a nossa própria existência. Sendo assim, o trabalho além de garantir a reprodução biológica do homem também responde “(....) as necessidades de sua vida cultural, social, estética, simbólica, lúdica e afetiva.” (FRIGOTTO, 2005,p 2)
Essa perspectiva teórica se ancora em Marx, no qual o trabalho:
( ) é um processo de que participam o homem e a natureza,
processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercambio material com a
2 Agricultura camponesa “(. ) e o modo de fazer agricultura e de viver das famílias que, tendo acesso à terra e aos recursos naturais que ela suporta, resolvem seus problemas reprodutivos por meio da produção rural, desenvolvida de tal maneira que não se diferencia o universo dos que decidem sobre a alocação do trabalho dos que se apropriam do resultado dessa alocação”. (CARVALHO & COSTA, 2012, p, 26.) in: CALDART, et al 2012. Dicionário da Educação do Campo.
3 Por trabalho camponês estamos nos referindo a uma manifestação do trabalho na agricultura camponesa, que não se encontra alienado, mas com uma relação intima com o modo de vida que se estabelece a partir desse estilo de agricultura.
natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo – braços e pernas, cabeça e mãos -, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza (Marx, 2013, p 211).
A perspectiva ontológica ou ontocriativa, portanto, traz a concepção de trabalho enquanto um processo pelo qual nos tornamos humanos, em que o trabalho é responsável pela nossa formação enquanto ser humano. Na perspectiva ontológica, o trabalho é um princípio educativo e deriva “(.....) do fato de que todos os seres humanos são seres da natureza e, portanto, têm necessidades de alimentar-se, proteger-se das interpéries e criar seus meios de vida.” (FRIGOTTO, 2005, P 3)
A perspectiva ontológica, portanto, nos traz a dimensão da produção do conhecimento vinculada diretamente a produção e reprodução da existência humana, na qual os processos de aprendizagens se vinculavam diretamente as experiências engendradas no domínio da natureza pelo ser humano, ou seja, “(....) a essência do homem é o trabalho (SAVIANI, 2007, p 154), e este se desenvolve e se modifica ao longo do tempo, por isso um processo histórico e, ao mesmo tempo, um processo educativo. Esses são os fundamentos ontológicos e históricos da relação trabalho educação, históricos por ser produzido ao longo do tempo pela ação humana e ontológicos porque o que é gerado por essa ação humana é o que compõe o ser humano, que o forma enquanto ser social (SAVIANI, 2007).
E na sociedade capitalista, é possível falar em principio educativo do Trabalho? E ao referirmos em agricultura camponesa e agroecologia, que características são atribuídas ao trabalho desenvolvimento no campo e qual conhecimento é produzido a partir dele? Existem saberes produzidos a partir do trabalho camponês? Esses saberes, uma vez reconhecidos, dão suporte a uma pedagogia agroecológica?
O trabalho camponês carrega características específicas em relação a apropriação da terra, que traz traços e relações sociais que mantem atividades
como mutirão, manejo compartilhado de bens comuns, trabalho associado, que estabelecem processos formativos específicos na relação ser humano natureza. Pleog (2008), ao descrever as características da condição camponesa, nos traz traços dessa identidade entre Trabalho Educação. Apesar da agricultura camponesa também estar inserida na divisão internacional do trabalho, ainda existem e resistem modos de produção na agricultura camponesa que tem no trabalho camponês a mediação dos processos de ensino aprendizagem. Se desenvolve o trabalho assalariado no campo à medida que o capitalismo avança, mas ainda existe o trabalho que possui uma relação intima com os ciclos da natureza, com o conhecimento tradicional ancorado na cultura, no modo como as pessoas do campo vivem e reproduzem a sua existência. Esse tipo de trabalho, que chamamos aqui de trabalho camponês, imprimi uma forma de produção de conhecimento que se aproxima da perspectiva ontológica – na qual o trabalho é a essência da formação humana.
A modernização da agricultura no Brasil provocou mudanças envolvendo diferentes aspectos como relações de trabalho no campo; padrão tecnológico de produção agrícola; distribuição espacial da produção; formação dos complexos agroindustriais e inserção da agricultura no mercado internacional (ALENTEJANO, 2012).
Esse processo está diretamente relacionado com a industrialização do país, na qual a agricultura passa a desempenhar um papel estratégico de abastecimento de alimentos para os recém constituídos centros urbanos, ao mesmo tempo em que se consolida como transferência de mão de obra da zona rural para a zona urbana, no sentido de abastecer as indústrias; ou seja, a agricultura vista como subsidiária ao setor industrial (ALMEIDA, 1997).
Esse fenômeno ocorreu com intensidade na década de 1960, não só no Brasil, mas em toda América Latina por meio da implantação da chamada Revolução Verde, que se baseia o aumento da produtividade agrícola por meio do uso intensivo de insumos químicos, de variedades de sementes de alto rendimento modificadas geneticamente e por meio da irrigação e da mecanização (ALMEIDA, 1997). O processo de modernização da agricultura foi caracterizado por um padrão tecnológico baseado no binômio químico mineral- mecanização; crédito rural privilegiando grandes proprietários; consolidação de cadeias agroindustriais vinculadas à montante com a indústria químico- farmacêutica e de bens de capital; aumento da exportação.
Sua implementação se deu com a intervenção direta do Estado, na qual a atuação ocorreu no sentido de internacionalização da produção de maquinas e insumos para o setor agrícola, a criação de um sistema de pesquisa e extensão da difusão de técnicas de produção vinculadas diretamente ao setor industrial e as condições para o financiamento dos ‘pacotes tecnológicos’ (ALENTEJANO, 2012).
As consequências desse processo para a agricultura camponesa foram diversas. No âmbito das relações de trabalho houve um avanço do trabalho assalariado, em suas mais diversas manifestações, tais como trabalho temporário, sazonal, enfim, consequências da penetração do capitalismo nas relações produtivas no campo, submetendo a produção e o trabalho ao capital, o que resultou em uma subordinação da agricultura aos “Impérios Agroalimentares” (PLOEG, 2008).
Numa perspectiva histórica, o modelo de agricultura preconizado e difundido pela modernização da agricultura capitalista é muito recente. A apropriação e o domínio dos ecossistemas (e da agricultura) pelo ser humano podem ser datados. Ao se referir a agricultura, essa apropriação nos remete a
10 mil anos, data do registro do surgimento da agricultura na qual o ser humano desenvolveu a habilidade, ou melhor, o conhecimento que lhe permitiu aprender o domínio da domesticação dos animais e o cultivo das espécies de plantas utilizadas para alimentação. Nessa perspectiva de agricultura, a base produtiva se dava por meio de pequena escala, com um alto nível de
diversidade (biodiversidade) e produtividade ecológica. Nesse contexto, o trabalho é marcado por técnicas de manejo das paisagens que garantiam a reprodução da própria unidade produtiva. Para garantia da subsistência a partir do trabalho eram mobilizados um repertório de conhecimento ecológico localizado, coletivo e holístico acerca dos processos de produção, que se configuravam por estratégias de uso múltiplos dos recursos naturais e a aprendizagem se dava por meio do modo como se dava a organização da sociedade, ou seja, por meio do trabalho, coletivo, compartilhado juntamente com os meios de produção (TOLEDO & BARRERA BASSOLS, 2015).
Esse modo de apropriação do ecossistema, tradicional ou camponês foi modificado radicalmente a cerca de 200 anos, como expressão e resultado da revolução industrial e cientifica. Essa mudança para um modo agroindustrial não significou apenas o aumento da produção de excedente, mas diversos impactos sociais, econômicos, culturais e ecológicos. Tais impactos referem-se à expulsão de milhares de populações tradicionais, a concentração da posse da terra, a desigualdade econômica e a destruição das culturas e, com elas, todo um repertório de conhecimento utilizado na apropriação dos ecossistemas. De acordo com Toledo & Barrera Bassols (2015):
Tal mudança obedeceu a lógica de expansão do capitalismo em escala mundial, que exigia a integração das áreas rurais a economia de mercado, a substituição do trabalho pelo capital e o aumento da produtividade, visando abastecer não só uma crescente população urbana, mas também uma nova indústria em plena fase de ascensão. (TOLEDO & BARRERA BASSOLS,2015, p. 89)
Portanto, à medida que o capitalismo se efetiva e ‘integra’ a agricultura no processo de reprodução do capital, tanto as relações sociais de produção se modificam, quanto à estrutura do conhecimento mobilizado para manejo dos ecossistemas também se modifica. Esse conhecimento, ancorado nos saberes tradicionais, na cultura e na forma como se organizava o trabalho no manejo das paisagens se institucionaliza e se vincula diretamente a expansão do capitalismo no campo. De acordo com Toledo & Barrera Bassols (2015)
(....) as formas como os seres humanos têm conseguido se apropriar com sucesso dos recursos da natureza ao longo do tempo estão sujeitas a uma enorme pressão, exercida por diversos fatores e forças (....) trata-se de um conflito nodal entre as formas agroindustriais e as formas tradicionais de produção (TOLEDO & BARRERA BASSOLS, 2015, p. 34).
No caso do Brasil, essa institucionalização do conhecimento acerca da agricultura, que passa a ser tido como único conhecimento válido, está intimamente ligada ao surgimento das ciências agrárias, na década de 1920. Coelho (2014), ao descrever o surgimento das ciências agrarias apresenta duas etapas dessa institucionalização. A primeira definida como ciência experiência “(...) aproxima-se da vida cotidiana de quem trabalha no campo, da forma comum da produção agrícola ou pecuária” (COELHO, 2014, p.40). A etapa da ciência experiência, ainda se apropria, ou leva em consideração, um tipo de saber do camponês na estruturação dos seus resultados, que em certa medida ainda são compartilhados. A segunda, instituída a partir da década de 1950, período em que se intensifica a industrialização e a modernização da agricultura capitalista, é denominada de ciência experimento. Essa forma de se fazer pesquisa “(...) gera uma ciência que se faz em um ambiente artificialmente construído para controle de resultados (....) e viabiliza a transformação desse conhecimento em mercadoria” (COELHO, 2014, p.54). Portanto, tem-se por meio da institucionalização da produção de conhecimento a apropriação do capital não apenas dos meios de produção, mas da tecnologia gerada por esse modelo de agricultura.
Silveira (2011) ao analisar a subordinação das política educacionais aos desígnios da políticas de ciência, tecnologia e inovação, evidenciando que esta é parte integrante da dinâmica de internacionalização da economia/tecnologia, revela que, as transnacionais exercem papel fundamental, tanto na expansão das unidades produtivas, provocando concentração, centralização de capital e tecnologia, e estimulando a transferência de tecnologia, quanto na crescente intervenção do Estado para regular o intercâmbio, a circulação e o próprio processo de produção, bem como financiar e estruturar o arcabouço político-
jurídico dos processos de competição, centralização do capital e reorganização da base produtiva (p. 137).
Nesta perspectiva, continua Silveira (2011), a manifestação do fenômeno de internacionalização da tecnologia, em determinada região ou localidade, varia em função do mercado local, dos concorrentes e fornecedores, de vantagens fiscais oferecidas pelo governo local, da infra- estrutura técnico-científica oferecida por universidades, institutos de pesquisa, escolas técnicas e agrotécnicas e, ainda, da disponibilidade de mão-de-obra qualificada em todos os níveis de ensino.
Nesse sentido, se estabelece uma relação entre instituições de pesquisa, vinculadas diretamente a empresas produtoras de conhecimento e ao capital financeiro (por meio de créditos e financiamentos para implantação desse conhecimento na forma de pacotes tecnológicos). O conhecimento tradicional, acumulado por mais de 10 mil anos desde o surgimento da agricultura passa a ser tido como inválido, por não promover como resultado a produção de mercadoria. Ao mesmo tempo, cria-se uma estrutura de produção do conhecimento que possui outras bases, agora vinculada diretamente às empresas produtoras desse conhecimento que a produzem na lógica do capital. As bases anteriores passam a ser negadas. Ao que se refere à construção do conhecimento tradicional, ou o saber do camponês, Iturra, (1993) apud Toledo & Barrera Bassols (2015) afirma que:
(...) o saber do camponês é obtido através da relação heterogênea entre grupo doméstico e grupo de trabalho, seja em uma comunidade ou em instâncias superiores. O conhecimento sobre o sistema de trabalho, a epistemologia, é resultado dessa interação em que a lógica indutiva é aprendida na medida em que se vê fazer e se escuta, para depois poder dizer, explicar e devolver o conhecimento ao longo das relações de parentesco e vizinhança (TOLEDO & BARRERA BASSOLS, 2015, p. 93)
Ou seja, a expansão capitalista para o campo ao mesmo tempo que gera a apropriação do conhecimento pelo capital, na sua institucionalização e vínculo direto da produção de mercadorias, na forma de tecnologias e técnicas
de manejo, também gera modificações na estrutura do trabalho, que passa a ser assalariado, alienado e não se configura enquanto um processo de formação humana, mas como um mero processo de reprodução do capital. Entretanto, apesar desse processo hegemônico de produção do conhecimento, existem tempos/espaços em que “(....) as relações entre seres humanos e a natureza podem ganhar contornos diversos” (TIRIBA & SICHI, 2012, p 10). Sobre esses ‘contornos’ que trata a próxima seção.
Apesar da modernização da agricultura ter estabelecido um modelo de agricultura hegemônico em relação à agricultura camponesa, vinculado diretamente ao mercado capitalista, especializada, produtora de monocultura, mecanizada e estruturada em latifúndio, em que o trabalho passa a ser assalariado, ainda permanecem formas de agricultura baseadas em racionalidades que se utilizam de conhecimentos tradicionais, definida por Ploeg (2008), como agricultura camponesa. Esse tipo de agricultura, na visão do autor, está fundado principalmente em: a) uma base de recursos limitada, o que leva ao estabelecimento de diferentes estratégias por parte dos camponeses para se chegar a melhores resultados a partir dos recursos disponíveis; b) o trabalho é a centralidade em detrimento aos objetos do trabalho; c) os recursos e materiais são de posse dos que estão diretamente relacionados aos processos de trabalho; d) a produção é relativamente autônoma, pois permite não apenas a produção de mercadorias, mas a própria manutenção da unidade produtiva (PLOEG, 2008).
Por possuir essas características, principalmente em relação ao trabalho, o conhecimento produzido na agricultura camponesa permite estabelecer um vínculo entre Trabalho e Educação, no qual por meio da apropriação dos ecossistemas se produz um conhecimento onde se estabelece as bases científicas e empíricas para produção da agroecologia.
Adotamos o conceito de agroecologia como ciência, prática e movimento (Wezell et al., 2009). Como ciência, a agroecologia se caracteriza por ser multidisciplinar, aportando as bases do novo paradigma científico, que procura ser integrador, sistêmico. É a partir do diálogo entre cientistas e camponeses, na diversidade de conhecimentos e de técnicas desenvolvidas na agricultura camponesa que se desenvolveu a abordagem da agroecologia enquanto ciência (CALDART, 2016). Como prática, a agroecologia resgata e ressignifica práticas tradicionais de manejo dos agrossistemas com uso de recursos locais (recursos biológicos, naturais e também conhecimentos) que promovem autonomia (PLOEG, 2008). Como movimento, a agroecologia se vincula a luta pela construção da agricultura camponesa no século XXI na qual abarca a socialização da propriedade da terra (e a reforma agrária popular), a diversidade cultural dos povos do campo, e as diferentes formas de trabalho camponês (CALDART, 2016).
A partir dessa definição é possível identificar elementos relacionados diretamente à produção do conhecimento na agroecologia. Um primeiro aspecto se refere ao conhecimento tradicional. Não se trata de “transpor” conhecimentos tradicionais aos contextos atuais da agricultura, mas estabelecer uma reconexão com as formas tradicionais de se fazer agricultura, especificamente da agricultura camponesa, a partir do tipo de trabalho estabelecido na relação com os recursos locais, de forma que tanto o trabalho quanto o conhecimento sejam compartilhados. Isso implica em dois processos distintos: o primeiro refere-se ao compartilhamento comunitário, de práticas e técnicas de manejo ancoradas em saberes ecológicos fundados no modo de vida camponês.
O segundo refere-se às mediações estabelecidas por instituições de pesquisa e agências de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) que devem incorporar métodos participativos de construção do conhecimento, voltados para conhecimentos locais e, ao mesmo tempo, sistematizados em conhecimentos científicos.
O primeiro aspecto pode ser relacionado com o que Tiriba & SCHI (2011) denominam de cultura do trabalho, em que:
(.....) requer um entendimento das relações de produção em que se dão as diversas atividades de reprodução da vida social; e pressupõe a identificação dos elementos materiais (instrumentos, métodos, técnicas, etc) e simbólicos (atitudes, ideias, crenças, hábitos, representações, costumes) partilhados pelos grupos humanos – considerados em suas especificidades de classe, gênero, etnia, religiosidade e geração (TIRIBA & SICHI, 2011, p 8).
Partir do conhecimento local, significa levar em consideração ou, ter como mediação do processo de ensino aprendizagem (produção do conhecimento) a realidade vivida dos camponeses, ou seja, o trabalho camponês, a forma como o campesinato se reproduz social e economicamente. A produção de sentidos e significados que se dão a partir do trabalho camponês conforma a cultura do trabalho.
Analisando o processo histórico de constituição do “movimento agroecológico”4 no Brasil, Petersen & Almeida (2006), indicam como gênese do movimento os processos educativos estabelecidos pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)5, e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). De acordo com os autores, esses processos favoreceram discussões continuas nas comunidades sobre as dificuldades impostas pelas dinâmicas de transformações do campo. Na palavra dos autores:
4 A expressão “movimento agroecológico” tem sido utilizada com certa cautela tanto pelos pesquisadores que escrevem sobre o tema, como pelos ativistas engajados na defesa de uma agricultura de base ecológica. O caráter altamente descentralizado deste movimento, associado, ao que tudo indica, a uma percepção política de que a luta em defesa da agroecologia não deve substituir os movimentos sociais “tradicionais” (o sindicalismo de trabalhadores rurais, os movimentos de luta pela terra, os movimentos e organizações de mulheres), parecem contribuir para que atores e autores evitem, em muitas situações, esta designação. Compreende-se, no entanto, que do ponto de vista conceitual, as lutas em defesa de uma agricultura de base ecológica poderiam ser pensadas, pelo menos em certo sentido, como um movimento social, ou seja, como uma forma de ação coletiva, marcada por uma identidade compartilhada, oponentes claramente identificados e que mobiliza um conjunto extenso de redes informais. Percebe-se, ao mesmo tempo, que a Agroecologia mobiliza também uma série de dimensões que transcendem a esfera do político, relacionadas, ao que se poderia identificar, genericamente, como “práticas de vida alternativas”.
5 Essas experiências estão diretamente relacionadas às resoluções do Concílio Vaticano II, realizado em 1965, no qual a Igreja Católica assumiu uma posição de “opção pelos pobres”. Essa concepção de ação religiosa ficou conhecida como Teologia da Libertação, tornando-se responsável pelo engajamento dos agentes eclesiais e se propagando no campo (FAVARETO, 2006).
Esse exercício de vivencia e reflexão comunitária se dá fundamentado em um método dialético que prima por vincular as práticas concretas da vida cotidiana com a leitura crítica do evangelho. Por intermédio do método “ver, julgar e agir”, supera-se a dualidade fé-vida fundada na doutrina que reduz o ‘ser cristao’ ao domínio intelectual-moral das verdades reveladas e explicitadas pelo magistério eclesiástico (PETERSEN & ALMEIDA, 2006. P 13).
A dimensão simbólica (religiosidade) e cultural envolvida nas CEBs, ao nosso ver, tem um fundamento na cultura do trabalho. A associação das práticas cotidianas dos camponeses, a reflexão sobre a realidade ancoradas nos aspectos religiosos promoveu um processo de organização política frente as questões concretas que permeavam o campo na década de 1970, período de intensificação dos conflitos no campo. Ou seja, a forma de organização das CEBs gerou um processo de sociabilidade nas comunidades, promovendo ambientes favoráveis ao envolvimento dos camponeses na solução de questões imediatas (PETERSEN & ALMEIDA, 2006).
Já em relação ao segundo aspecto, qual seja o das mediações estabelecidas por instituições de pesquisa e agências de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER), houve um enfoque metodológico voltado para processos sociais locais, sob as quais se difundiram técnicas e métodos apropriados às situações especificas de inserção das famílias. Silva & Santos (2016), destacam que por meio de atuação de ONGs ambientalistas vinculadas a REDE PTA6, na década de 1980 e 1990, forjaram-se metodologias participativas que buscavam a construção e sistematização do conhecimento, baseados nas dinâmicas, experiências e culturas locais (SILVA & SANTOS, 2016).
Podemos destacar diferentes instrumentos/técnicas engendradas no Brasil, no âmbito dos movimentos sociais. Tais instrumentos referem-se a
6 O Projeto Tecnologias Alternativas (PTA) surgiu, originalmente, no início dos anos 1980, como um projeto ligado à Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional, organização não governamental fundada em 1961. Esta iniciativa tinha como objetivo pesquisar tecnologias alternativas e disponibilizá-las para os “pequenos produtores”. A partir de 1983, como resultado dos debates dos debates ocorridos no chamado “Encontro de Campinas”, do qual participaram organizações não governamentais de apoio e assessoria, representantes do movimento sindical, de órgãos públicos e entidades profissionais, o Projeto PTA passará a investir esforços na construção de uma rede de articulação tendo como foco o tema das tecnologias alternativas, processo este que irá se desdobrar na estruturação da Rede Tecnologias Alternativas (Rede TA)
diagnósticos participativos7, utilizados na década de 1970 e 1980 na promoção da agroecologia; o “campesino a campesino”8, que promoveu a partir da interação entre os saberes produzidos pelas experiências de manejo dos camponeses processos de transição agroecológica, especialmente em Cuba; e recentemente as caravanas agroecológicas9, que traz o enfoque territorial, principalmente a partir dos conflitos e de relações de poder que se estabelecem em diferentes territórios nos quais se encontram experiências diversas de agroecologia.
São diversas as técnicas e metodologias participativas desenvolvidas na produção desse conhecimento. Entretanto, o que nos interessa aqui é que, independente da técnica utilizada, é o seu fundamento, ou seja, a abordagem teórica que permite uma análise consistente da realidade. Nesse sentido, as metodologias estruturadas de intervenção social se ancoram em saberes produzidos a partir da experiência, ou como definido por (TIRIBA & SICHI, 2011), nos saberes do trabalho. Ao se referir aos saberes do trabalho associado, Fischer & Tiriba (2009), denominam que “(.....) são saberes produzidos pelos trabalhadores nos processos de trabalho que se caracterizam pela apropriação coletiva e democrática das decisões quanto a utilização dos excedentes e aos rumos da produção (FISCHER & TIRIBA, 2009, p 293).
Sendo assim, tem-se um vínculo estreito entre os processos locais de organização dos camponeses e do trabalho associado em termos de mutirão, manejo compartilhado dos recursos naturais, espaços de troca de conhecimentos promovidos e ancorados nas problemáticas locais. Ao mesmo tempo, tem-se também um tipo de trabalho associado vinculado a organizações cooperativas, na organização para o acesso a políticas públicas,
7 Os diagnósticos participativos podem ser definidos como um conjunto de métodos e técnicas que permite a população o reconhecimento da realidade bem como o planejamento das ações que irão incidir sobre a realidade.
8 Método muito difundido na América Latina, o Campesino a Campesino baseia-se na interação entre agricultores e agricultoras na solução de problemáticas relacionadas ao mano dos agroecossistemas (MACHIN SOSA, et al. 2012).
9 As caravanas agroecológicas foi uma técnica utilizada na preparação do III Encontro Nacional de Agroecologia, em 2014. A técnica traz a abordagem territorial como enfoque das experiências nos territórios, destacando questões como posse da terra; soberania alimentar, conflitos sócio ambientais, etc. a estrutura metodológica envolve elaboração e roteiro de observação, a partir de temas geradores visitas as experiências agroecológicas e avaliação coletiva das práticas e realidades visitadas. É um exercício descentralizado de analise coletiva dos territórios visando contrastar esses padrões opostos de desenvolvimento rural.
na construção social de mercados, na formação de lideranças, etc. (SILVA et al., 2014).
Essas iniciativas produzem saberes que são fundamentais para estruturação de processos formativos na agroecologia. Tiriba (2007) analisa que a produção associada produz uma determinada pedagogia. Nesse sentido, a partir dos “saberes do trabalho associado” é possível analisar a relação entre a produção de conhecimento no âmbito da experiência do trabalho associado como matriz formadora da agroecologia, estruturada e voltada para formação de camponeses.
É possível sintetizar a produção do conhecimento na agroecologia a partir dos seguintes aspectos: a) organização das ações a partir das questões colocadas pelos cotidianos das famílias; b) valorização das iniciativas locais das famílias e às formas de proximidade e trabalho coletivo visando otimizar o uso dos recursos locais voltados para busca de autonomia; c) o desenvolvimento de ações de forma a valorizar as relações pré-existentes nas comunidades (PETERSEN & ALMEIDA, 2006). Essa produção de conhecimento, portanto, tem como eixo central o trabalho, as experiências e saberes produtivos a partir do trabalho camponês em um campo que está em disputa.
Trazer para a discussão a escola do trabalho e a sua relação com as escolas do campo10 é fazer a relação entre o trabalho socialmente necessário como princípio básico da formação, em que o vínculo entre agricultura camponesa e agroecologia se coloca enquanto eixo central para a organização dos conteúdos escolares. De acordo com Caldart (2016), “(....) é preciso encontrar/construir com urgência e paciência caminhos firmes para um vínculo orgânico das escolas do campo com processos de trabalho e de luta que estão
10 A concepção de escola do campo nasce das contradições da luta social e das práticas de educação dos trabalhadores do campo, em que o acesso ao conhecimento e a garantia de escolarização dos sujeitos do campo são parte dessa luta (MOLINA, M.C.; SÁ, L.M., 2012).
construindo a agricultura camponesa agroecológica com parte da alternativa do trabalho à ordem do capital” (CALDART, 2016, P 2).
Nesse sentido, compreendemos que um dos fundamentos da pedagogia agroecológica são os fundamentos da escola do trabalho. Reconhecemos também que a escola não é o único espaço no qual o conhecimento agroecológico é produzido, no entanto, como nos alerta Saviani (2013) “(....) a escola existe, pois, para propiciar a aquisição dos instrumentos que possibilitam o acesso ao saber elaborado (ciência), bem como o próprio acesso aos rudimentos desse saber.” (SAVIANI, 2013, p, 14). Sendo assim, a escola do campo é um dos espaços de formação, na qual as bases científicas dos processos de manejo dos agroecossistemas, bem como de processos organizativos dos camponeses em processo de transição agroecológica, podem ser ensinados, com vínculo direto com a realidade agrária na qual estão inseridos.
Corroborando com a abordagem que o trabalhador tem o direito ao saber elaborado historicamente pela humanidade, bem como os seus fundamentos científicos de forma a gerar autonomia e superação das desigualdades, faz-se necessário uma relação estreita entre a escola do campo e a escola do trabalho e a relação da produção do conhecimento agroecológico a partir dessa aproximação.
A escola do trabalho tem dois grandes fundamentos, o primeiro se refere na relação da escola com a realidade, definida por Pistrak (2009) como atualidade. De acordo com Pistrak (2009) “A atualidade é tudo aquilo que na vida da sociedade do nosso período tem requisitos para crescer e desenvolver- se, que reúne ao redor da revolução social que está vencendo e irá servir para a construção da nova vida.” (PISTRAK, 2009, p 113.). Por meio da atualidade a escola penetra na realidade, tendo no trabalho socialmente necessário o princípio educativo e formativo, sob o qual se edificam métodos de estudos e as questões de formação, como forma de organização dos conteúdos, ou as bases científicas necessárias para formação de seres humanos autônomos, em que a escola assume como objetivo “(.....) não apenas conhecer a atualidade, mas dominá-la” (PISTRAK, 2009, p, 115).
O segundo fundamento trata da auto-organização dos estudantes. Para Pistrak (2009), auto-organização trata da participação ativa da criança na organização da escola, como um processo educativo, capaz de formar dirigentes com habilidades de, coletivamente, ter o domino da vida social e da produção. Por meio dos dois grandes pressupostos, qual seja a atualidade e a auto-organização dos estudantes, espera-se que a formação estabelecida seja capaz de desenvolver habilidades como a capacidade de trabalhar coletivamente, capacidade para criatividade organizativa e realização de tarefas de forma organizada (PISTRAK, 2009).
A essência desse processo formativo é o trabalho como mediação do processo de ensino aprendizagem, de acordo com Pistrak (2009, p 206):
O trabalho será o solo básico, no qual organicamente crescera todo o trabalho educativo-formativo da escola, como um todo único inseparável. Então, a própria questão sobre o que é o determinante no sistema de ensino: o trabalho ou o curso de disciplinas torna-se sem sentido, deixa de ser conteúdo (PISTRAK, 2009, p 206).
Mas como seria, nas escolas do campo, o vínculo do trabalho como princípio formativo no contexto da agricultura camponesa e a agroecologia? De acordo com Caldart (2016),
O vínculo das escolas com a agricultura camponesa e a agroecologia ajuda no alargamento da base formativa, exatamente por exigir que a educação se adentre ao âmago essencial da constituição do ser humano pelo trabalho, que é o desenvolvimento de suas forças produtivas pela relação metabólica entre o ser humano e a natureza, de que é parte. (CALDART, 2016, p 24)
Isso implica a inserção dos estudantes no trabalho da agricultura, a agroecologia ser considerada uma área de estudo, inserindo estudos sobre a natureza, sobre os aspectos técnicos e científicos que constituem a produção agrícola, sistemas alimentares nos quais a agricultura se insere (CALDART, 2016). Nesse aspecto, a escola do campo também deve contribuir para a formação de pessoas capazes de promover processos organizativos, seja no
movimento sindical, nos movimentos sociais do campo, ou mesmo em cooperativas e associações. Essa capacidade organizativa é fundamental na construção social de mercados, na mobilização dos trabalhadores por políticas públicas específicas voltadas para o campo, ou até mesmo na organização produtiva, na organização para o desenvolvimento de práticas adequadas e adaptadas as realidades especificas da agroecologia. Portanto, a partir da agricultura camponesa e agroecologia, é possível estabelecer, pela mediação do trabalho, os princípios científicos que dão base a agroecologia e a capacidade de mobilização e organização política e produtiva de organizações e movimentos sociais do campo.
Uma das formas de organização das escolas do campo no Brasil se dá por meio da Pedagogia da Alternância11. A Pedagogia da Alternância é uma perspectiva ainda em construção no campo da educação, especificamente quando nos referimos a educação do campo. Além dessa construção conceitual e teórica, ainda lhe é atribuída diferentes significados, configurando- a como uma concepção ou “noção” polissêmica. A perspectiva histórica da pedagogia da alternância nos remetem a diferentes formas de organização do trabalho pedagógico inserindo diferentes lentes teóricas as intencionalidades atribuídas a essa organização. Em uma abordagem histórica, é possível identificar na França o início dessa “modalidade” pedagógica que traz em sua concepção, principalmente, a possibilidade de articular o trabalho e a escola, ou o trabalho e a formação escolar.
No Brasil, essa experiência se concretiza pelas Escolas Famílias Agrícolas, e as Casas Familiares Rurais. A base dessa pedagogia está diretamente vinculada a formação técnica e as práticas agrícolas desenvolvidas no meio sócio familiar dos educandos. A centralidade do trabalho, por meio das alternâncias educativas, portanto, se dá muito pelo vínculo entre os conhecimentos escolares, sistematizados e os conhecimentos práticos, principalmente vinculado ao mundo do trabalho no campo.
11 Existem diferentes experiências engendradas no âmbito dos movimentos sociais do campo, especificamente o MST, de escolas itinerantes, de escolas fundadas na perspectiva da escola do trabalho e de organização dos conteúdos por meio de complexos de estudos. A própria organicidade do movimento se dá baseado nos preceitos da escola do trabalho.
Ribeiro (2009), analisando a relação trabalho e educação no movimento camponês, nos traz a contribuição sobre como a abordagem do trabalho como princípio educativo está presente na pedagogia da alternância, que procura fazer a relação direta da realidade dos educandos com a estruturação da matriz formativa dos processos educativos estabelecidos nessa formação, ou seja, no currículo. Sendo assim “(...) a pedagogia da alternância tem o trabalho como princípio educativo de uma formação humana integral ao articular dialeticamente o trabalho produtivo, praticado na agricultura, pecuária e pesca, ao ensino formal, efetuado na escola básica, profissional ou superior” (RIBEIRO, 2009, p. 125).
A relação estabelecida nos diferentes espaços/tempos de formação, por meio da pedagogia da alternância deve levar em consideração que os indivíduos “(...) já possuem conhecimento elaborados, experiências práticas e vivências que devem ser consideradas como ponto de partida (RIBEIRO, 2009,
p. 48). Rummert (2009), ao analisar os desafios teóricos e metodológicos da educação de jovens e adultos trabalhadores, sob a ótica do conceito de experiência, de Thompson, traz a reflexão sobre os riscos de, na tentativa de organização curricular que traga a experiência dos trabalhadores, se estabeleça processos educativos uniformes e padronizantes. Destaca a estruturação necessária de práticas educativas que promovam “(...) o alargamento os horizontes e a ampliação dos saberes da classe trabalhadora (....)” (RUMMERT, 2009, p 41) por meio de uma dialética necessária entre saberes e experiências.
A pedagogia da Alternância possui instrumentos que tem por objetivo vincular tempos/espaços de formação. De acordo com Ribeiro (2009) na alternância entre diferentes tempos/espaços “valorizam-se os saberes construídos nas práticas sociais, principalmente a experiência do trabalho (...)” (RIBEIRO, 2009, p. 125). Os instrumentos que tentam vincular a realidade dos educandos de forma a orientar as discussões previstas no currículo, temos a Colocação em Comum e o plano de Estudos. Esses dois instrumentos são articulados. A partir da colocação em comum, de acordo com Gimonet (2007), tem-se “(...) a passagens em transições de um lugar de vida a outro, de um tipo
de experiência a outro, de um campo de conhecimento a outro (...)” (GIMONET, 2007, p. 43). O pressuposto fundamental desses instrumentos é trazer elementos e saberes do trabalho para centralidade dos processos de ensino aprendizagem. Sendo assim, a elaboração do plano de estudos e a colocação em comum dos resultados dos trabalhos elaborados pelos estudantes é um elemento importante de organização dos conteúdos e das abordagens teóricas que serão desenvolvidas.
Tem-se, portanto, um vínculo intimo entre Escola do Trabalho e Escola do Campo. Os instrumentos utilizados na Escola Comuna, sistematizada por Pistrak (2009), principalmente ao que se refere a atualidade e a auto- organização dos estudantes, também está presente na pedagogia da alternância. Uma aproximação em termos de concepção, tendo em vista que seria necessária uma análise empírica do uso desses instrumentos, entre os planos de estudos utilizados na pedagogia da alternância e os complexos de estudos utilizados na escola do trabalho é possível. O trabalho como elemento central do processo de ensino aprendizagem e como articulador das bases científicas dos processos produtivos é uma aproximação possível.
Nesse sentido, a agricultura camponesa e a agroecologia, articulados com o trabalho camponês dão as bases para estruturação de processos educativos nas escolas do campo, tendo como objetivo maior a superação das contradições que compõe o campo brasileiro. A produção do conhecimento agroecológico, portanto, pode ser desenvolvida por meio das escolas do campo, tendo o trabalho como princípio educativo e formativo dos trabalhadores do campo.
O presente texto objetivou refletir sobre a produção do conhecimento agroecológico na busca de indicar os fundamentos da (s) pedagogia (s) agroecológica. Na relação entre trabalho, agricultura camponesa e agroecologia, é possível identificar por meio do processo histórico de
desenvolvimento de processos sociais voltados para a promoção da agroecologia, estabelecidos por movimentos sociais do campo, que existe um vínculo estreito entre processos locais de organização dos camponeses, dos saberes produzidos por meio da experiência, com as técnicas e metodologias participativas de intervenção social, estabelecidas no âmbito do “movimento agroecológico”.
Para além dos processos estabelecidos nos movimentos sociais, tem-se nas escolas do campo um processo de produção do conhecimento, ancorados nas experiências da escola do trabalho, em que o trabalho é o mediador do processo de produção do conhecimento. Nesse sentido, há uma aproximação entre escolas do campo e escola do trabalho, na forma de organização dos conteúdos e na abordagem teórica de produção do conhecimento, vinculado a realidade vivida dos camponeses.
Sendo assim, tanto no âmbito dos movimentos sociais, quanto no âmbito das escolas do campo, é possível identificar os fundamentos da escola do trabalho na construção da (s) pedagogia (as) agroecológica (s), em que a partir da agroecologia e da agricultura camponesa se constituiu as bases cientificas sistematizadas por meio dos saberes do trabalho e da experiência que estruturam a análise da realidade na produção do conhecimento agroecológico.
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Recebido em: 05 de julho de 2017 Aprovado em: 03 de outubro de 2017 Publicado em: 5 de dezembro de 2017