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Fotografia : Sonia Rummert

Universidade Federal Fluminense Faculdade de Educação

NÚCLEO DE ESTUDOS SOBRE TRABALHO E EDUCAÇÃO – NEDDATE

Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação


REDAÇÃO

R. Professor Waldemar Freitas Reis, s/n°, bloco D, sala 525, Gragoatá - São Domingos, Niterói -

RJ, CEP 24210-201

revistatrabalhonecessario@gmail.com


EDITORES

Jaqueline Ventura Sonia Rummert


CONSELHO EDITORIAL

Celso Ferretti (UNISO) Gaudêncio Frigotto (UFF/UERJ) Maria Ciavatta (UFF)

Roberto Leher (UFRJ) Virgínia Fontes (UFF/EPJV-Fiocruz)


ASSISTENTE DE EDIÇÃO

Camila Azevedo Souza


EQUIPE EDITORIAL

Taynara Bastos Teodoro

Montagem da Capa: Taynara Teodoro | Foto da Capa: Sonia Rummert Indexado por / Indexed by

Portal de periódicos da CAPES

LATINDEX – Sistema Regional de Información en Linea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal

DIADORIM – Diretório de Políticas de Acesso Aberto das Revistas Científicas Brasileiras


Ficha Catalográfica

R 454 Revista eletrônica TrabalhoNecessário [recurso eletrônico] / Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense. Ano

15, n. 28 (set/dez-2017). Niterói: NEDDATE, 2017. [On-line].

Quadrimestral. Editorial.

Modo de acesso: revistatrabalhonecessario@gmail.com ISSN 1808-799x


1. Educação. 2. Trabalho. I. Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação. II. Universidade Federal Fluminense.

Faculdade de Educação. III. Título: Revista Eletrônica TrabalhoNecessário.


CDD 370

Catalogação da Fonte: Biblioteca Central do Gragoatá


EDITORIAL¹


Escrevemos este Editorial com duplo propósito. O primeiro é o de apresentar, como de praxe, os trabalhos que integram o presente número, tecendo sobre eles, breves comentários. Já o segundo reveste-se de caráter especial, uma vez que ao oferecer aos leitores o número 28 de Revista Eletrônica Trabalho Necessário, nos despedimos dos leitores.

Assumimos o trabalho de editoração da revista em 2013 e, nos primeiros anos, contamos com preciosas contribuições de outros colegas que não podemos deixar de aqui mencionar: Ronaldo Rosas Reis, André Feitosa, Luciana Requião e Maria Inês Bomfim. Esses companheiros de jornada, em momentos e circunstâncias diferentes, passaram a se dedicar a outros trabalhos necessários, mas deixaram a marca de suas fundamentais contribuições. A eles agradecemos sinceramente e debitamos, também, a trajetória exitosa da TN ao longo destes cinco anos.

Embora classificada pela CAPES como B3 na última avaliação, não podemos deixar de considerar o êxito de nosso periódico que até o final de dezembro de 2017 contabilizava mais de oitenta mil visitas, registradas desde setembro de 2015. Também consideramos importante sublinhar que, de 2013 a 2017, foram publicados noventa e dois artigos escritos por autores de todas as regiões do país e do exterior. Além dos artigos, foram publicados também ensaios e, quase ininterruptamente, a Seção Memória e Documentos. Nestes cinco anos, editamos treze números, sendo que a publicação semestral de 2013 e 2014 ampliou-se, a partir de 2015, para a periodicidade quadrimestral.

Cabe-nos, ainda, assinalar que todo este trabalho editorial só foi viável com a colaboração de colegas que, integrantes do Comitê Científico, tiveram a disponibilidade de analisar os trabalhos enviados, todos eles submetidos à avaliação duplo-cega. Àqueles que atenderam às solicitações feitas ao longo destes cinco anos, o nosso fraterno e sincero obrigada. Aos muitos companheiros de jornada - autores, pareceristas e integrantes do Comitê Científico e do Conselho Editorial – bem como aos nossos mais de oitenta mil leitores, apresentamos nosso reconhecimento sob a forma dessa muito

¹ DOI: https://doi.org/10.22409/tn.15i28.p9665


TrabalhoNecessario – www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 15, Nº 28/2017


sumária prestação de contas, passando, agora, a tratar do presente número da Trabalho Necessário.

O periódico tem início com o artigo “Sociedade do trabalho e a vida determinada pela identidade de gênero: por uma perspectiva materialista da condição socioeconômica da comunidade trans, de autoria de Eduardo Sá Barreto e Igor Lira. Nele, os autores apresentam “uma reinterpretação dos desafios socioeconômicos enfrentados pela comunidade transgênera”, valendo- se de contribuições do pensamento feminista. A argumentação se desenvolve em três dimensões complementares: “uma crítica à própria sociedade do trabalho; uma discussão quanto às possibilidades de realização das demandas da comunidade trans; e a demonstração da necessidade de que elas assumam caráter anticapitalista”. Não é demais assinalar que a opção por iniciar o presente número com este artigo decorre do fato de ser a primeira contribuição aprovada por nossos pareceristas acerca de tema de grande pertinência e atualidade, até então ausente deste periódico. Sua particularidade e interesse derivam, ainda, da interlocução estabelecida com autores polêmicos no que se refere à abordagem da centralidade da categoria trabalho. Colocá-lo, portanto, em primeiro plano representa uma forma de anunciar a importância de que novas contribuições similares venham se somar a esta em números futuros.

A seguir, William Kennedy do Amaral Souza e Lia Tiriba analisam “os nexos entre economia e cultura nos processos de produção da existência humana” no artigo “Nexos entre economia e cultura: contribuições do materialismo histórico e da antropologia marxista”. Trata-se de uma importante contribuição/desafio à necessária reflexão alargada acerca das diferentes dimensões do real, à luz do materialismo histórico dialético. Nesse sentido, deve ser ressaltada, também, a proposta de tencionar a importante contribuição da antropologia à luz do mesmo referencial teórico-metodológico.

No trabalho “As políticas públicas educacionais da ditadura empresarial- militar brasileira no bojo das disputas entre frações burguesas pelos rumos da educação”, Renata Azevedo Campos, retoma, com pertinência, o debate acerca da educação no período da ditadura civil-militar, abordando, especificamente as políticas educacionais à luz do modelo de desenvolvimento


então hegemônico, em seus diferentes aspectos das correlações de forças. A contribuição da autora avança ao evidenciar a existência de “dois projetos educacionais, correspondentes a duas frações da burguesia brasileira: da burguesia multinacional e associada, organizada no Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais e dos empresários de ensino, participantes dos Congressos Nacionais dos Estabelecimentos Particulares de Ensino”. Corroborando a tese de que o poder não é um bloco monolítico, o trabalho concorre para a reflexão sobre o período e sobre seus posteriores desdobramentos até a atualidade.

No quarto artigo, “A implementação do PRONATEC no IFPE”, o tenso e polêmico entrelaçamento dos Institutos Federais com o PRONATEC é analisado por André Luís Gonçalves Pereira. Fundamentado em análise documental e na “realização de entrevistas semiestruturadas junto a gestores, docentes e egressos do Programa”, o autor evidencia “os efeitos da oferta de cursos muitas vezes desconectados com a história de diferentes campi”. Do mesmo modo, ressalta “dificuldades relacionadas a uma estrutura deficiente” e a ausência de uma “concreta assistência estudantil”.

Em sequência, o artigo “A formação humana no Ensino Médio Integrado: o que dizem as pesquisas”, Crislaine Cassiano Drago analisa a produção acadêmica acerca do tema, disponível no “Repositório da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) entre os anos 2000 e 2015”. Fundamentada em seu detido trabalho de análise, a autora conclui que, efetivamente, o “Ensino Médio Integrado é marcado pela dualidade estrutural e que sua materialidade, embasada numa concepção de educação politécnica, ainda não se efetivou na sociedade brasileira”. Defende, entretanto, a tese de que apesar dos múltiplos entraves, o EMI constitui uma possibilidade de formação emancipatória da classe trabalhadora, contribuindo para o desenvolvimento de sua autonomia e participação cidadã na busca por uma sociedade “mais democrática”.

É de autoria de Elisabeth de Fátima da Silva Lopes e de Carmen Lucia Bezerra Machado o sexto artigo deste número da Trabalho Necessário: “Concepções teórico-práticas da formação inicial e continuada de preceptores e residentes do programa de residência multiprofissional em saúde de um hospital público da Região Sul”. Nele, as autoras, a partir de pesquisa


qualitativa, analisam as concepções de profissionais da área da saúde em um hospital público, constatando que as mesmas são pouco permeáveis a transformações tanto no que concerne às ações de caráter predominantemente formativo quanto àquelas mais diretamente voltadas para o trabalho de atendimento. Por outro lado, destacam também que “a residência tem estimulado os profissionais a repensarem práticas que expressem a realização do trabalho integrado em saúde”.

Finalizamos a apresentação dos artigos com o trabalho “A lógica do sistema capitalista e a práxis dos pescadores artesanais da Colônia Z-16 de Cametá/PA, de autoria de Raimundo Nonato Gaia Correa e Fred Junior Costa Alfaia. Os autores nos apresentam reflexões acerca de como as “determinações do sistema capitalista se expressam na práxis dos pescadores artesanais da Colônia de Z-16 de Cametá/PA”. Trabalhando com revisões bibliográficas e entrevistas semiestruturadas, os autores concluem que os pescadores artesanais, ao constatarem os negativos impactos gerados pela construção da Hidrelétrica de Tucuruí, desenvolvem uma práxis de reação e se organizam politicamente a partir da Colônia Z-16, embora, contraditoriamente, também afirmem interesses do sistema capitalista”.

Finalizamos este número com a seção Memória e Documentos, na qual as editoras trazem uma homenagem ao importante intelectual brasileiro Ciro Flamarion Cardoso, que nos deixou no mesmo ano em que assumimos a editoria. Na ocasião, no Editorial da Trabalho Necessário número 16, primeiro assinado por nós, então juntamente com Maria Inês Bonfim e Ronaldo Rosas Reis, registrávamos assim o impacto da perda: “O presente número da Revista Eletrônica Trabalho Necessário é dedicado à memória do professor Ciro Flamarion Cardoso, falecido em junho último, cuja rica e densa obra permanecerá viva entre nós”.

Durante este período, procuramos seguir, modestamente, um de seus ensinamentos transmitidos na vida cotidiana: acolher o novo sem se deixar levar pelos entusiasmos frágeis em relação aos modismos e aos arroubos novidadeiros e produtivistas. Esperamos ter conseguido.


Desejamos, aos colegas do NEDDATE Lia Tiriba, Maria Cristina Rodrigues e José Luiz Antunes sucesso na tarefa que agora assumem, com grande entusiasmo, como novos editores.

Que continuemos todos, cada um em seus espaços, realizando, cotidianamente, nosso trabalho necessário.

Editoras

Sonia Maria Rummert Jaqueline Ventura


Assistente de Edição Camila Azevedo Souza


Equipe Editorial

Taynara Bastos Teodoro


Publicado em: 31 de janeiro de 2018

SOCIEDADE DO TRABALHO E A VIDA DETERMINADA PELA

IDENTIDADE DE GÊNERO: por uma perspectiva materialista da condição socioeconômica da comunidade trans¹


Eduardo Sá Barreto2

Igor Lira3


Resumo:

O artigo propõe uma reinterpretação dos desafios socioeconômicos enfrentados pela comunidade transgênera. Para tal, explora-se os limites da categoria transgênero, partindo de insights do pensamento feminista. Em seguida, articula-se tal entendimento em uma reflexão acerca das implicações de encontrar-se excluído do mercado de trabalho. Disso, desdobram-se três frentes de argumentação: uma crítica à própria sociedade do trabalho; uma discussão quanto às possibilidades de realização das demandas da comunidade trans; e a demonstração da necessidade de que elas assumam caráter anticapitalista.


Palavras-chave: transgênero; trabalho; emancipação


Abstract:

The article proposes a reinterpretation of the socioeconomic challenges faced by the trans-gender community. For this, the limits of the trans-gender category are explored, starting from insights of the feminist thought. Next, this understanding is articulated in a reflection on the implications of being excluded from the labor market. From this, three fronts of argument unfold: a critique of the labor society itself; a discussion about the possibilities of realizing the demands of the trans-gender community; and the demonstration of the need for them to assume an anti-capitalist character.


Keywords: trans-gender; labor; emancipation



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1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.15i28.p9639

2 Professor Adjunto do Departamento de Economia da UFJF e pesquisador associado ao NIEP- Marx (UFF). Contato: eduardo.barreto@ufjf.edu.br

3 Bacharel em Economia pela UFJF. Contato: igorlira.jf@hotmail.com

Introdução


Não é preciso muito esforço para reconhecer que as pessoas transgêneras se deparam, em geral, com desafios de ordem socioeconômica que excedem em muito quaisquer dificuldades de foro íntimo que esses indivíduos possam vir a enfrentar por se identificar de forma não aderente ao que é admitido como normal. A forma como a comunidade trans se posiciona, de modo mais ou menos organizado, diante desses desafios é o objeto de nossa reflexão neste artigo.

Há, nesse posicionamento (que não é de todo homogêneo), uma série de aspirações difusas que, no entanto, podem ser resumidas no objetivo bastante abrangente de aceitação (assimilação, incorporação) social. Colocado nesses termos, trata-se, obviamente, de uma meta legítima. Sua legitimidade, contudo, não garante sua realização. Por isso, são as questões relacionadas às possibilidades de realização que serão aqui discutidas.

Para isso, é fecundo trabalhar com as seguintes mediações que, em nosso juízo, informam a maneira como as reivindicações são formuladas: a aceitação social como chave para um acesso mais amplo e qualitativamente melhor ao mercado de trabalho; e o acesso ampliado ao mercado de trabalho como chave para a autonomia individual e coletiva.

Dividimos o texto em quatro seções. Na primeira, exploramos a categoria transgênero, buscando delinear os limites mínimos dentro dos quais ela faz sentido. Com isso, pretendemos não apenas oferecer elementos capazes de habilitar o discurso e a prática da comunidade trans, mas também iluminar elementos que a fragilizam. Na segunda, debatemos a centralidade do trabalho na sociedade capitalista e as implicações de encontrar-se excluído do mercado de trabalho. Na terceira, direcionamos essa análise para construir o argumento de que não há esperança em superar tal exclusão (em qualquer grau significativo), a não ser superando a própria lógica do capital. A última seção conclui.

  1. Questões preliminares: pontes com o feminismo (possibilidades e limites)


    Embora o título desta seção declare uma pretensão em dialogar com “o feminismo”, é necessário reconhecer, de imediato, que “feminismo” é um campo significativamente heterogêneo e que, por isso, deve estar claro que não constitui objetivo do artigo contemplar todos (nem mesmo os principais) os matizes do pensamento feminista. A despeito desta limitação de partida, contudo, sustentamos que é possível mapear alguns elementos cruciais para a adequada compreensão de nossa temática. Cruciais não porque o pensamento feminista trate da condição da mulher na sociedade contemporânea, mas porque trata de uma condição de opressão determinada pelo gênero.

    Tampouco pretendemos alcançar uma elaboração mais adequada, precisa, correta da categoria gênero, tão importante neste debate. Butler (2007), Haraway (1991) e Beauvoir (1970) ilustram o quão controversa e pantanosa pode ser esta seara. Adota-se aqui, portanto, uma estratégia alternativa.

    Pretende-se, nesta seção preliminar, estabelecer os limites mínimos dentro dos quais a categoria gênero confere sentido à categoria transgênero.

    Segundo Haraway (1991, p. 133), o “paradigma da identidade de gênero foi uma versão funcionalista e essencializante do insight de Simone de Beauvoir, nos anos 1940, de que não se nasce mulher”. Comecemos então por Beauvoir, que além do enunciado acima, também afirma, por exemplo, que elas “são mulheres em virtude de sua estrutura fisiológica” e que a “divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana” (BEAUVOIR, 1970, pp. 12-3). Como conciliar essas ideias, aparentemente inconciliáveis? Basicamente, de duas formas: primeiro, demonstrando que a existência social possui uma base natural ineliminável, da qual se afasta à medida que se desenvolve e da qual não pode ser mecanicamente deduzida; segundo, que a despeito do caráter insuprimível da base natural, emergem no seio do ser social categorias puramente sociais, mas que nem por isso devem ser entendidas como fenômenos puramente subjetivos.

    Colocando a questão ainda em outros termos, podemos contornar muitas das dificuldades observadas nos debates clássicos se evitarmos sua

    frequente negligência com questões ontológicas e, mais especificamente, com a natureza própria do tecido social. Para tal, duas categorias são fundamentais: emergência e poderes emergentes.

    A primeira diz respeito à relação entre dois entes, digamos X e Y, de tal forma que Y surja de X, mas sem ser dedutível de X. O que temos aqui é a afirmação de que Y é irredutível a X; ou seja, a afirmação de que Y não pode ser conhecido, explicado, descrito apenas por meio de categorias deduzidas a partir de X. Basicamente, temos na categoria de emergência a chave para escapar de ontologias estruturalistas ou atomistas da sociedade. Mas deixemos a ideia menos abstrata.

    Lukács (2012) é um dos principais pensadores marxistas a tratar explicitamente de questões ontológicas. Segundo o autor, é possível afirmar que a vida, tal como a conhecemos, apresenta três níveis de ser: inorgânico, orgânico e social. O orgânico emerge do inorgânico, mas é irredutível a ele; o social emerge de ambos (que Lukács chama de ser natural), mas é irredutível a eles.

    O que significa o caráter irredutível, neste caso? Que embora cada um desses níveis de ser surja da emergência a partir de um outro, desenvolve categorias e causalidades próprias (que chamamos acima de poderes emergentes), que inexistem no outro. Contudo, é fundamental reconhecer que tais causalidades, embora próprias, nunca podem suprimir as causalidades/legalidades do plano que lhe deu origem, permanecendo sempre existencial e causalmente subordinadas a ele3.

    As implicações dessa ideia simples para o nosso tema são profundas. Já temos elementos para sustentar que não apenas o ser social emerge do ser natural, mas também que, à medida que se desenvolve, surgem categorias e legalidades que lhe são próprias (exclusivas). Mais que isso, estas surgem como resultado/síntese não-intencional de agires intencionais, como fruto de escolhas substantivas de indivíduos agindo socialmente (LAWSON, 1997). Essa conclusão poderia nos conduzir a uma sobrevalorização da subjetividade.


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    3 A ideia de subordinação pode parecer controversa, porém de forma alguma a usamos aqui em um sentido de determinação, o que ficará mais claro na sequência.

    A discussão a respeito da emergência, todavia, impede este equívoco, já que deixa claro que tal liberdade atua necessariamente em um espaço de possibilidades que antecede a escolha e o agir. Em outros termos, como todo agir intencional é agir em sociedade, as estruturas e legalidades próprias da sociedade (e também aquelas próprias do ser natural) sempre habilitam, limitam, constrangem, impedem, dificultam, facilitam etc. o agir.

    Analogamente, como pressupostos ontológicos do ser social, o ser inorgânico e o ser orgânico delimitam o espaço de possibilidades para o ser social e os indivíduos. Por mais que nossa espécie se distinga de todas as demais por sistematicamente trazer à realidade coisas não-naturais, trata-se sempre da efetivação de possibilidades previamente latentes neste espaço de possibilidades natural. Desde uma rústica mesa de madeira até o rastreamento via GPS e as viagens espaciais, nada disso existiria na ausência da intervenção humana. No entanto, nenhum desses exemplos envolvem a anulação, violação ou superação das legalidades naturais; envolvem simplesmente a sua adequada mobilização para a realização de finalidades postas.

    A partir desse raciocínio, temos um quadro mais rico para tratar da relação objetividade-subjetividade. Quando, por um lado, reconhecemos que o ser natural e o ser social impõem resistências ao agir intencional, escapamos da supervalorização da subjetividade, de um construtivismo de caráter voluntarista ou idealista. Quando, por outro, admitimos que emergência e subordinação não negam a existência de categorias tipicamente sociais, escapamos da supervalorização da objetividade, de um naturalismo de corte biológico ou químico.

    Não é por simples acaso que pretendemos rejeitar tais posições. Em primeiro lugar, suas variadas gradações povoam o debate no campo do pensamento feminista. Em segundo lugar, elas – na maioria das vezes inadvertidamente – inviabilizam ora qualquer concepção de um indivíduo trans, ora a legitimidade (ou o peso) de suas reivindicações. Tais posições nada mais são do que polos opostos de um mesmo conjunto de incompreensões a respeito de nossa existência como seres naturais/biológicos e como seres

    sociais.


    Em nosso juízo, a afirmação contundente de Beauvoir de que não se nasce mulher deve ser reinterpretada, especialmente para discutir a condição social da comunidade transgênera. A própria autora ilustra exaustivamente que embora as determinações sociais desempenhem um papel fundamental e central na conformação do gênero, há uma base natural que permanece ineliminável. E ainda que se possa falar de um desenvolvimento puramente social da categoria mulher ou gênero, seria inadequado daí concluir que o caráter social da categoria gênero pode ou deve ser entendido como puramente subjetivo. Não se deve entender puramente social como algo que é simplesmente fruto da livre construção subjetiva (individual ou coletiva) ou, pior, da imaginação. O mesmo insight pode ser encontrado no tratamento inicial de Marx (2013[1867]) da categoria valor, por exemplo. Ali, o autor explicitamente demonstra que o valor não possui qualquer existência física ou química, pois existe apenas no interior de relações sociais. Nem por isso deixa de ter existência objetiva, posto que rege e condiciona tais relações.

    Embora possa parecer à primeira vista, nossa insistência em tais nuances não é motivada por algum tipo de preciosismo academicista e diletante. Dissemos no início da seção que pretendíamos, neste momento inicial, explorar os limites da categoria transgênero.4 Daquilo que foi discutido até aqui, é possível afirmar que, para que a categoria transgênero seja dotada sentido, é necessário que gênero seja, por um lado, algo relativamente fluido, e, por outro, algo relativamente determinado pela corporalidade física. Vejamos porquê.

    Se gênero fosse algo completamente fluido (ou seja, perfeitamente sensível à subjetividade individual), por que reivindicar-se mulher ou homem? Há inúmeras respostas possíveis e cada indivíduo transgênero certamente terá a sua versão pessoal. Mas é crucial perceber que a ideia de fluidez completa do gênero também confere sentido a outras variedades de concepções e motivações: apenas para citar dois exemplos assombrosos, as ideias de “cura”

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    4 Esperamos também que fique claro que as concepções correntes mais frequentes se situam fora desses limites.

    pela educação ou de conformidade (digamos, cis normativa) imposta por lei. A noção de que gênero é algo completamente fluido carimba, talvez sem perceber, um selo de “escolha livre” sobre a condição transgênera, o que certamente abre um flanco considerável para que se creia ser possível impor alguma escolha específica, supostamente mais desejável ou aceitável, sobre o indivíduo.

    Para além desse tipo de preocupação (afinal de contas, uma ideia não necessariamente deixa de ser correta ou verdadeira apenas porque ela tem implicações perigosas ou indesejáveis), é possível mostrar que a fluidez completa simplesmente não existe. Basta reconhecer que o indivíduo trans com frequência se submete a intervenções cirúrgicas e tratamentos hormonais longos, agressivos e dolorosos com o intuito de adequar seu corpo à sua identidade de gênero. A corporalidade impõe resistência, portanto, à identidade.

    Se, alternativamente, o gênero fosse completamente determinado pela constituição corporal, inexistiria a possibilidade de divergência entre a existência física do indivíduo e sua identidade de gênero. Pode parecer que uma concepção como essa jamais circularia em ambientes em que pessoas se dedicam a refletir sobre a condição das pessoas transgêneras. Mas estendendo um pouco a ideia anterior para uma concepção de inescapabilidade do ser natural, percebemos que, curiosamente, este não é o caso. Com frequência, a identidade de gênero é entendida como determinada quimicamente (balanços hormonais etc.), inadvertidamente conferindo sentido a concepções que, por exemplo, viessem a defender a “cura” por meio de tratamentos hormonais.

    Temos então que, de um lado, o entendimento naturalista colapsa o ser social no ser natural, tomando as categorias homem e mulher como imediatamente dadas na natureza, como idênticas a macho e fêmea, esvaziando completamente de sentido a categoria trans. De outro, a versão mais extrema da concepção construtivista desvincula radicalmente a existência social da natural, ancorando gênero numa espécie de subjetividade coletiva moldada (de maneira mais ou menos intencional) a serviço de estruturas

    sociais opressoras. Mais importante, tais estruturas opressoras poderiam ser subvertidas exclusivamente neste mesmo plano, o da subjetividade (p.ex., se construído um entendimento correto, um enlightenment, suficientemente amplo). Como procuramos apontar, porém, o postulado de uma perfeita maleabilidade do tecido social pode tanto ser colocado a serviço de reivindicações da comunidade transgênera como a serviço de concepções cis normativas.


  2. Centralidade da identidade de gênero e o mundo do trabalho


    Ao contrário da maior parte da população, a comunidade trans tem, em geral, a totalidade de sua vida (sociabilidade) determinada por sua identidade de gênero. Reside aí um traço dramático da condição transgênera: a essas pessoas é frequentemente negado – em geral a priori, precisamente em virtude de serem pessoas trans – o acesso a oportunidades de trabalho e renda. As implicações mais diretamente reconhecíveis dessa exclusão são o ostracismo social e o recurso a atividades marginalizadas, como a prostituição. Por isso, é comum associar esses resultados às causas mais superficiais de tal exclusão: a transfobia, para usar um termo sintético e corrente. Formulado o diagnóstico nesses termos, dificilmente a solução poderia ser outra: superar a transfobia.

    A despeito de esse ser, em nosso juízo, um objetivo evidentemente desejável, pretendemos perseguir a questão um pouco mais além. Há, entre os fatos inegáveis da transfobia e do ostracismo das pessoas trans, uma cadeia mais complexa de mediações. Para encontrá-la, é fecundo retornar à discussão do fetichismo da mercadoria.

    Já no primeiro capítulo de O Capital, Marx demonstra como, na sociedade capitalista, os traços sociais da atividade humana reaparecem como qualidades objetivas do produto desta atividade. Primeiro, mostra como a dimensão comum entre as diversas formas de trabalho se exterioriza como atributo da mercadoria, assume a forma de “igual objetividade de valor dos produtos do trabalho”. Em seguida, como a medida do dispêndio de trabalho

    por meio de sua duração se exterioriza como medida daquele atributo, figurando como grandeza de valor da mercadoria. Finalmente, como a relação social entre os trabalhos se exterioriza na relação entre mercadorias, i.e. como a própria divisão social do trabalho se processa e se confirma a posteriori, por meio de relações sociais entre os produtos do trabalho.

    O uso do termo fetichismo por Marx simplesmente sintetiza esse triplo processo de exteriorização, distintivo do capitalismo. Distintivo desta sociedade porque os objetos de uso, produtos da atividade humana, assumem universalmente a forma mercadoria apenas quando são produto de trabalhos privados, mutuamente autônomos (realizados independentemente uns dos outros). Assim estruturado o trabalho social total, como soma tardia dos trabalhos privados, os produtores só travam efetivamente contato social entre seus trabalhos por meio da troca de mercadorias. Uma primeira implicação substantiva para o tema aqui tratado é que os traços sociais da atividade produtiva só aparecem no âmbito da troca. Em outros termos, os trabalhos privados só atuam de fato como elementos do trabalho social total por intermédio do mercado.

    Não pretendemos simplesmente reprisar o conhecido enunciado marxiano que aponta para as relações reificadas (coisificadas) entre pessoas e as sociais entre coisas. Há algo mais a se retirar deste raciocínio. De tudo o que foi dito, é possível afirmar que o acesso dos agentes da troca à riqueza social, às condições materiais de vida, é determinado pelo quanto de produtos alheios eles obtêm em troca por seu próprio, ou seja, em que proporções os produtos são trocados. Contudo, posto que tais proporções são determinadas pelo tempo de trabalho socialmente necessário (isto é, por condições sociais de produção nas quais o produtor individual desempenha apenas papel atomizado), variam constantemente, independente da vontade, previsão ou ação daqueles que realizam a troca. O movimento social dos produtos do trabalho constitui-se, portanto, como um movimento à margem dos produtores; um movimento sob cujo controle se encontram, e não o contrário.

    Além do próprio Marx, autores como Lukács (2013), Postone (2003) e

    Duayer & Medeiros (2008) já sublinharam em detalhe esta implicação profunda da natureza fetichista da sociedade capitalista. Para os propósitos deste trabalho, importa reforçar o seguinte ponto: apenas participam deste movimento estranhado os proprietários de mercadoria, uma vez que a mediação realmente incontornável entre indivíduo e riqueza social é efetivada pela troca. E aos que nada possuem a não ser sua própria força de trabalho, não resta outra alternativa senão vendê-la. Por isso, excluir todo um grupo de pessoas do mundo do trabalho implica excluí-las, em grande medida, da própria sociedade5. Por isso, as demandas por assimilação da comunidade trans no mercado de trabalho, que em parte animam a presente reflexão, são carregadas de uma urgência inegável.

    Muitos pensadores (marxistas ou não, conscientemente ou não) já intuíram esse traço de nossa sociedade. Todavia, este reconhecimento, não raro, compõe interpretações em muitos sentidos a-históricas, que projetam a centralidade do trabalho como categoria mediadora fundamental da existência social para a totalidade da experiência humana. No caso dos marxistas, isso é particularmente problemático quando se desdobra em uma crítica do capitalismo desde uma perspectiva do trabalho6. Em poucas palavras, uma crítica que se limita a rejeitar os “mecanismos de distribuição” de riqueza no capitalismo e seus efeitos deploráveis e injustos sobre a classe trabalhadora.

    Para que fique claro, o problema neste tipo de interpretação não é que tais efeitos não sejam de fato deploráveis e injustos. O problema é que se parte de uma equivocada desvinculação entre os ditos “mecanismos de distribuição” e a determinação do valor pelo tempo de trabalho socialmente necessário; determinação esta que se encontra na raiz da interpretação marxiana da especificidade histórica da sociedade capitalista e que Postone (2003) utiliza habilmente para demonstrar que apenas nesta quadra histórica o trabalho ocupa irremediavelmente o centro da vida em sociedade.7


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    5 “Somente a participação na esfera do trabalho dá acesso a uma existência pública e a um papel de sujeito” (JAPPE, 2013).

    6 Vale frisar que este não é o caso dos autores mencionados no parágrafo anterior.

    7 É importante deixar claro que rejeitar uma centralidade trans-histórica do trabalho não corresponde a rejeitar a prioridade ontológica do trabalho na existência social, tal como

    Tal desvinculação, por sua vez, além de ser míope em relação à dinâmica fetichista e estranhada produzida pela lógica própria do capital, frequentemente se converte em posturas defensoras (ou mesmo apologéticas) do mundo do trabalho. Posturas que, ao fim e ao cabo, almejam tão somente alçar a classe trabalhadora a uma posição mais privilegiada. No caso que aqui tratamos, tal tipo de posicionamento pode inclusive se converter em defesas apaixonas da incorporação irrestrita da comunidade transgênera a este mundo, da garantia do afamado “direito ao trabalho” 8. Seguindo Postone (2003, p. 369), porém, é possível indicar que


    a extensão dos princípios universalísticos da sociedade burguesa a segmentos mais amplos da população – isto é, a realização desses princípios – que foi, em parte, efetivada por movimentos da classe trabalhadora, assim como por aqueles elementos de movimentos das mulheres e movimentos de minorias que lutaram por direitos iguais, não deve ser entendida como um desenvolvimento que aponta para além da sociedade capitalista. Embora tais movimentos tenham democratizado enormemente a sociedade capitalista, a forma de universalidade que ajudaram a constituir é uma que […] permanece presa à forma-valor de mediação.


    Por ora, trabalhemos a conclusão mais direta desta passagem: a expressão/manifestação prática das aspirações aqui tratadas não possui natureza anticapitalista, por mais que tragam resultados que podem ser considerados como avanços. Talvez não pareça muito a título de conclusão, já que certamente não é pré-requisito de qualquer tipo de mobilização coletiva a presença de conteúdo revolucionário. Contudo, como deve ficar claro adiante, o exame rigoroso das possibilidades de realização dos anseios de assimilação naturalmente conduz à necessidade de demonstrar que a mobilização da comunidade transgênera deve assumir consciência e caráter anticapitalista, se realmente pretende ser emancipatória.


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    apontada por Lukács (2013).

    8 Artigo 23 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/. Acesso em 1 de abril de 2017.

  3. A luta emancipatória: assimilação ou ruptura?


    Em sua crítica à pulverização contemporânea das lutas sociais, Carcanholo e Baruco (2010) advertem que é preciso não desdobrar a correta identificação da ausência de traços revolucionários em uma completa rejeição do tipo de mobilização sob análise. As razões para isso podem também ser retiradas de nossa discussão anterior: a realidade social em que vivemos é de fato estruturada e organizada em torno do trabalho, e ser excluído do rol dos “empregáveis” é ter negadas as condições mais básicas de sobrevivência nesta sociedade. É fundamental, portanto, que a crítica às limitações e insuficiências das demandas da comunidade trans venha combinada a uma intransigente rejeição da conservação do status quo a que ela é submetida.

    Nesse mesmo sentido, por exemplo, Jappe (2013, p. 99) ressalta que


    continua sendo necessário impedir que o desenvolvimento capitalista devaste as bases de sobrevivência de grandes camadas da população e gere novas formas de miséria, que são com frequência devidas muito mais à exclusão do que à exploração – com efeito, ser explorado se torna quase um privilégio em relação à massa daqueles que foram declarados “supérfluos”, por serem “não rentáveis”.


    Esse trecho ilustra vividamente que a luta por autonomia, dignidade etc., quando predicada a (e circunscrita por) uma ascensão à condição de trabalhador, não pode ser emancipatória, posto que equivale simplesmente ascender à condição de explorado (mesmo que saindo de uma condição ainda pior). A luta por assimilação pode vir a vencer preconceitos estritamente relacionados a condição de gênero, mas não cria as condições de possibilidade para uma vida digna à comunidade como um todo. Neste mesmo registro de luta, vencidos os desafios via gênero, permaneceriam empecilhos via raça, nacionalidade etc.

    Conforme sustentam Carcanholo e Baruco (2010), o capitalismo é indiferente a diferenças extraeconômicas. A lógica do sistema pode, portanto, conviver indefinidamente com a exclusão social de certos grupos, mesmo que o “certo grupo” possa nem sempre ser o mesmo. Pode também, por outro lado, operar uma incorporação relativamente extensa, mas que tende a ser homogeneizante. Por exemplo, a mulher, em geral, é tanto mais assimilada ao

    mercado de trabalho – ocupando posições mais relevantes e de prestígio e com maiores níveis de remuneração – quanto mais ela for capaz de reproduzir traços de conduta geralmente associados aos homens, ocupantes tradicionais dessas posições.

    Tampouco faz sentido pensar em realizar os anseios das variadas microcontestações um a um até a realização completa de uma sociedade emancipada, pois o pressuposto lógico de mobilizações que se organizam em torno de questões identitárias é exatamente a suposição (consciente ou não) da ausência de um elo que as articule, ou que torne sua origem e legitimidade conjuntamente inteligíveis no interior de um ordenamento social geral (KOHAN, 2007).

    Há, neste entendimento, um discernível componente pós-moderno, mais precisamente o reconhecimento da natureza difusa do poder na realidade social em que vivemos (CARCANHOLO e BARUCO, 2010). Falta, contudo, um elemento crucial neste reconhecimento, de inspiração foucaultiana: o poder é difuso, transversal e ninguém o centraliza substantivamente; mas ao mesmo tempo, ninguém o detém, ele é impessoal e abstrato. Se lembrarmos que a reflexão acerca do fetichismo, na segunda seção, concluiu que o movimento social dos produtos da atividade humana escapa ao controle dos indivíduos e os subordina, podemos reformular essa passagem e dizer que o poder é impessoal, abstrato e totalizante. Kohan (2007, p. 15) ilustra este ponto concretamente:


    Paradoxalmente, ainda que na literatura filosófica acadêmica dos anos 70, 80 e 90 se tenha produzido o festival do fragmento e o relato micro […], na vida econômica, política e militar a ordem social do capitalismo tomava exatamente um sentido inverso. Ainda que já desde suas origens o capitalismo constitua um sistema mundial em constante expansão […], nunca antes a história assistiu a semelhante onda expansiva das relações sociais mediadas pelo dinheiro e o capital.


    O que justifica então um enfrentamento totalizante? Sua necessidade é um simples postulado? Não! O que justifica é que o próprio metabolismo socioeconômico é totalizante, e seus efeitos parciais são, em geral, predicados à lógica/dinâmica da totalidade. A categoria da totalidade é fundamental,

    portanto, não apenas para a análise/investigação da realidade, mas também para sua transformação.

    O trecho citado acima dá a pista para aprofundar a questão. As décadas do pós-guerra marcam o início deste momento sem precedentes de expansão das relações sociais mediadas pelo capital. No centro dos processos transformadores do período, uma inflexão dramática nas possibilidades de automação da produção, proporcionada pela revolução da microeletrônica. Evidentemente, a contraparte de tais possibilidades de automação é simplesmente a possibilidade de prescindir crescentemente do trabalho numa variedade sempre crescente de processos produtivos. Uma primeira implicação de tais transformações, sustenta Postone (2003, pp. 371-2), “é a crescente contradição entre necessidade e não-necessidade do trabalho criador de valor, […] que precisamente aquilo que constitui a formação social e é a ela necessário – o trabalho atuando como atividade de mediação social – torna-se crescentemente desnecessário em termos do potencial do que ele constitui”.

    O potencial ao qual Postone se refere aqui é o das forças produtivas, o potencial extraordinário e crescente de produzir riqueza material com exigências cada vez menores (pelo menos em termos relativos) de trabalho. O autor prossegue no argumento para demonstrar que essa possibilidade crescente de converter tempo de trabalho necessário em tempo livre não pode ser realizada na sociedade capitalista. Para o capital, afirma, é imperativo converter qualquer redução do tempo de trabalho necessário em tempo de trabalho excedente; ou seja, tempo de trabalho criador de mais-valor. Aqui nos interessa, contudo, outro ponto que pode ser combinado ao raciocínio de Postone.

    Avaliando as mesmas transformações históricas, que coincidem com a dissolução da assim chamada Era de Ouro do capitalismo, Kurz (2014) aponta para o esgotamento histórico de uma engrenagem fundamental: o mecanismo que até então havia garantido – via ampliação do escopo e da escala de atuação do capital – que a massa de trabalho vivo absorvida pelo capital permanecesse crescente, mesmo diante do declínio da participação relativa desse trabalho. Conforme demonstrado por Marx (e inúmeros outros marxistas),

    a concorrência entre os capitais impele a sociedade à sistemática elevação das forças produtivas. A já mencionada revolução da microeletrônica é um dos momentos em que essa tendência se processa em um salto abrupto e pronunciado de produtividade, eficiência etc., trazendo consigo (pela primeira vez na história) a possibilidade técnica de generalização de processos produtivos automatizados.

    Não chega a ser novidade a conclusão de que o aumento das forças produtivas diminui (relativamente) a capacidade do capital de empregar força de trabalho. Até mesmo Ricardo (1996[1817]), economista do início do século XIX, já reconhecia tal implicação. A novidade qualitativa deste salto, dirá Kurz, é que as novas formas emergentes de produzir prescindem do trabalho em tal escala e velocidade que a capacidade do capital de empregar trabalho vivo decresce não apenas em termos relativos, mas em termos absolutos. Isso porque mesmo os novos ramos de atividade passam a já “nascer” praticamente incapazes de absorver trabalho. Nas palavras do próprio Kurz (2014, p. 267):


    na terceira Revolução Industrial da microeletrônica ocorreu […] uma reviravolta. Manifestou-se algo que desde sempre tinha sido concebível em termos lógicos, a saber, o aumento da força produtiva a uma tal escala que a transição para a produção em massa, nos produtos novos, já não requer uma quantidade suficiente de força de trabalho adicional para ser capaz de compensar a diminuição do dispêndio de trabalho por mercadoria. […] a entrada de novos produtos já de si pobres em trabalho – e que o são cada vez mais – na produção em massa e no consumo de massas desalavanca o mecanismo de compensação em vigor e faz parar o movimento de expansão interna do mais-valor para tal necessário.


    Como é possível perceber ao fim do trecho, a objeto da análise de Kurz é a produção de mais-valor (e os obstáculos criados pelo próprio capital a essa produção). Mas o argumento possui implicações concretas que nos interessam aqui. O raciocínio acima reproduzido é capaz fornecer uma interpretação teórica do desemprego endêmico como uma tendência imanente da sociedade capitalista e irreversível no interior de seus parâmetros próprios de reprodução; ou seja, não como uma ocorrência conjuntural, eventualmente provocada por políticas econômicas, sociais, educacionais equivocadas etc. Para isso, basta reconhecer, por um lado, a tendência imanente e irrefreável ao avanço das

    forças produtivas e, por outro, que as alternativas para empregar a força de trabalho tornada relativamente supérflua tendem a se exaurir.


  4. Considerações finais


Por tudo isso, é seguro concluir que o capitalismo atual é uma sociedade com capacidade rarefeita para empregar trabalho. De imediato, não parece uma descoberta significativa, já que qualquer observador atento seria capaz de afirmar algo semelhante a respeito de nossa realidade presente. O que de fato traz uma implicação superlativa para as aspirações de grupos minoritários excluídos é a afirmação de que essa capacidade é crescentemente rarefeita e, no capitalismo, irreversível.

Em outras palavras, justamente no momento em que certos grupos alcançam visibilidade suficiente para reivindicar mais espaço, os espaços são reduzidos e/ou esvaziados dramaticamente. De saída, a incorporação (nos termos em que é buscada) de toda a comunidade é, mesmo abstraindo-se todas as demais restrições, impossível. Jappe (2013, p. 152), por exemplo, sublinha que “um dos aspectos mais ameaçadores do mundo contemporâneo: indivíduos e grupos cada vez mais numerosos se tornam 'supérfluos' visto que 'inúteis'. 'Inúteis' […] do ponto de vista da valorização do valor”.

Nesse sentido, podemos reformular o enunciado de Carcanholo e Baruco (2010), que sustentam que o capitalismo é indiferente a diferenças extraeconômicas e, portanto, pode conviver com a exclusão sistemática de grupos inteiros da população. O enunciado mais preciso, em nosso juízo, traria a afirmação adicional de que, na medida que a exclusão geral é crescente, é funcional à reprodução dessa sociedade que certos grupos se encontrem excluídos a priori do mercado de trabalho, especialmente se tal exclusão for atribuída a causas extraeconômicas.

Assim, há ao menos duas razões para que as reivindicações das pessoas transgêneras assumam contornos anticapitalistas. Em primeiro lugar, porque a indiferença e a funcionalidade mencionadas acima operam como um obstáculo (não absoluto, evidentemente) a avanços no plano subjetivo, i.e. no reconhecimento geral da legitimidade dessas reivindicações. Em segundo lugar,

porque a incorporação, em qualquer escala relevante é impossível. Diga-se, impossível nesta sociedade; impossível na sociedade em que o trabalho (em geral) e o trabalho produtor de valor (em particular) operam como mediação social central e determinam a forma de sociabilidade acessível a cada indivíduo.


Referências Bibliográficas


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DUAYER, M.; MEDEIROS, J. L. Marx, estranhamento e emancipação: o caráter subordinado da categoria da exploração na análise marxiana da sociedade do capital. Revista de Economia (Curitiba), v. 34, p. 151-161, 2008.


HARAWAY, Donna J. Simians, cyborgs, and women: the reinvention of nature. Nova York: Routledge, 1991.


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Santo. Anais do 2º Encontro Nacional de Política Social. Vitória: Ufes, 2007. p. 1 - 26.


KURZ, R. Dinheiro sem valor: linhas gerais para uma transformação da crítica da economia política. Lisboa: Antígona, 2014.


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LUKÁCS, Gyorgy. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013.


MARX, Karl. O Capital: livro I. São Paulo: Boitempo, 2013 [1867].

POSTONE, Moishe. Time, labor, and social domination: A reinterpretation of Marx's critical theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.


RICARDO, D. Princípios de economia política e tributação. São Paulo: Nova Cultural, 1996 [1817].


Recebido em: 7 de dezembro de 2017. Aprovado em: 9 de janeiro de 2018. Publicado em: 31 de janeiro de 2018.

NEXOS ENTRE ECONOMIA E CULTURA: contribuições do materialismo histórico e da antropologia marxista¹


William Kennedy do Amaral Souza2

Lia Tiriba 3


Resumo: Como parte integrante de um estudo que busca evidenciar os nexos entre economia e cultura nos processos de produção da existência humana, partimos do pressuposto de que, embora não hegemônico entre os antropólogos, o materialismo histórico é essencial para o entendimento das formações sociais capitalistas e não capitalistas. Para explicitar o diálogo entre marxismo e antropologia, e em especial com a antropologia evolucionista de Lewis Henry Morgan, resgatamos o pensamento de Marx e Engels quanto as determinações sociais, materiais e simbólicas. Destacamos contribuições de E. P. Thompson, além do pensamento do antropólogo Maurice Godelier, considerado como marxista estruturalista.


Palavras-chave: Economia; Cultura; Antropologia marxista.


Resumen: Como parte integrante de un estudio que busca evidenciar los nexos entre economía y cultura en los procesos de producción de la existencia humana, partimos del supuesto de que, aunque no hegemónico entre los antropólogos, el materialismo histórico es esencial para el entendimiento de las formaciones sociales capitalistas y no capitalistas. Para explicitar el diálogo entre marxismo y antropología, y en especial con la antropología evolucionista de Lewis Henry Morgan, rescatamos el pensamiento de Marx y Engels en cuanto a las determinaciones sociales, materiales y simbólicas. Destacamos contribuciones de

E. P. Thompson, además del pensamiento del antropólogo Maurice Godelier, considerado como marxista estructuralista.


Palabras clave: Economía; Cultura; Antropología marxista.


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1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.15i28.p9640

2 Professor do Instituto Federal de Rondônia - IFRO; Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense - UFF.

3 Doutora em Ciências Políticas e Sociologia (Programa de Sociologia Econômica e do Trabalho) pela Universidade Complutense de Madrid. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense – UFF (Mestrado e Doutorado).

A pseudo incompatibilidade entre antropologia e marxismo


A partir do final do século XIX, quando a antropologia toma corpo de disciplina acadêmica, os antropólogos analisam, sobretudo, as formas de organização de sociedades não capitalistas, entendidas como povos não ocidentais ou pré-capitalistas. De uma maneira geral, por desconsiderar as categorias de análise do materialismo histórico, a-historicizam e naturalizam as relações sociais, o que pode nos levar a crer que individualismo e propriedade privada, por exemplo, são categorias que aparecem como se fossem recorrentes em toda a história das relações que os seres humanos, mediados pelo trabalho, estabelecem com a natureza e entre si. Por estarem hegemonicamente ancorados em concepções de cultura que dizem respeito a um conjunto de práticas de produção da existência humana, cujas particularidades devem ser verificadas em cada um dos grupos sociais, os antropólogos, de um modo geral, consideram que antropologia e marxismo não são compatíveis, uma vez que os marxistas reduziriam a história da humanidade às determinações econômicas.

Um exemplo dessas considerações vem do antropólogo político Pierre Clastres. Sob a influência de Claude Lévi-Strauss, Clastres fez importante pesquisa sobre os índios da América do Sul, procurando demonstrar a falsidade do pressuposto de que todas as sociedades evoluem de um sistema "tribal", "comunista" e "igualitário" para sistemas hierárquicos. De acordo com seus estudos, as sociedades não hierárquicas são portadoras de mecanismos culturais que impedem ativamente o aparecimento de figuras de comando – seja isolando os possíveis candidatos a chefe, seja destituindo-os do poder de mando. Nessa perspectiva, no livro A sociedade contra o Estado defende que essas formas sociais não hierárquicas não podem ser consideradas primitivas ou atrasadas.

Alguns dias antes de sua morte, em julho de 1977, publicou o artigo Os marxistas e sua antropologia, afirmando que:


[...] se o etnomarxismo constitui, por um lado, uma corrente ainda poderosa nas ciências humanas, a etnologia dos marxistas é, por outro, de uma nulidade absoluta ou, melhor, radical: é nula na raiz. Eis por que não é necessário entrar no detalhe das obras: pode-se sem dificuldade tomar em bloco homogêneo igual a zero.3


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3 Disponível em: http://pt-br.protopia.wikia.com/wiki/Os_Marxistas_e_sua_Antropologia

A crítica à antropologia marxista não é oriunda apenas dos antropólogos, nem é uma crítica de tempos idos, manifestando-se na atualidade. O filósofo Peter Singer, professor Universidade de Princeton, em seu livro A Vida Que Podemos Salvar: Agir agora para pôr fim à pobreza no mundo (2011) afirma que o marxismo não pode servir como teoria útil à antropologia porque este teria um suposto caráter economicista-reducionista. Ora, o próprio Engels já dizia:


Segundo a concepção materialista da história, o fator que, em última instância, determina a história é a produção e a reprodução da vida real. Nem Marx nem eu afirmamos, uma vez se quer, algo mais do que isso. Se alguém o modifica, afirmando que o fator econômico é o único fato determinante, converte aquela tese numa frase vazia, abstrata e absurda. (ENGELS, 1982, p. 547).


A concepção de que o elemento cultural tem tanta importância quanto o elemento econômico está implícita nesta passagem de A origem da família e da propriedade privada:


[...] o fator decisivo na história é, eu última instancia, a produção e a reprodução da vida imediata. Mas essa produção e essa reprodução são de dois tipos: de um lado, a produção de meios de existência, de produtos alimentícios, habitação, e instrumentos necessários para tudo isso; de outro lado, a produção do homem mesmo, a continuação da espécie. (ENGELS, 1984, p.10).


Para analisar a “produção do homem mesmo” é necessário observar suas determinações históricas, considerando vida material e simbólica, e as relações dialéticas entre infraestrutura e superestrutura. Tendo em conta que o significado original de cultura está relacionado à lavoura ou cultivo agrícola, Eagleton (2003, p.12) em A ideia de cultura, ressalta que numa “perspectiva etimológica, a expressão, hoje popular, «materialismo cultural», é algo tautológica. Inicialmente,

«cultura» designava um minucioso processo material, o qual veio a ser metaforicamente transposto para os assuntos do espírito”.

Ainda que a reflexão-guia do marxismo seja o desenvolvimento histórico do capitalismo, o que requer a análise da mercadoria, Marx e Engels necessitaram da apropriação crítica de Lewis Henry Morgan. Encontraram em Morgan evidências empíricas sobre a formação do Estado e das classes sociais, além da correspondência entre produção material e poder político, o que foi exposto em A Ideologia Alemã (2007). Também em A origem da família, da propriedade privada

e do Estado, cujo subtítulo é trabalho relacionado com as investigações de L. H. Morgan, Engels nos evidencia sua afinidade com o evolucionismo cultural4. Fundamentando-se em Morgan, analisa os sistemas de parentesco e o desenvolvimento da propriedade em três estágios de evolução do progresso humano: a selvageria, a barbárie e a civilização.

Em um estudo sobre a relação entre marxismo e antropologia, o professor Mauro W. B. de Almeida, da Unicamp, afirma que havia tanto afinidade ideológica quanto afinidade teórica entre Marx, Engels e Morgan, já que este “havia valorizado o comunismo e a democracia da sociedade norte-americana nativa, colocando-os acima do individualismo competitivo dos ianques da Nova Inglaterra” (ALMEIDA, 2003, p.76). Sendo assim, para Almeida, não há nenhum problema para Marx e Engels em admitir a validade dos textos de Morgan, mesmo sendo esse um antropólogo evolucionista. “Nada mais natural portanto do que acolher Lewis Morgan na linha de frente da ciência da história”. (2003, p.76).

Em Formações econômicas pré-capitalistas, Marx (1985) estuda a gênese de sociedades plenamente desenvolvidas, ou seja, o modo de produção capitalista, reconhecendo uma variedade de formações sociais e regimes de propriedade que modificam as relações sociais. Além de noções de modo de vida, a A Ideologia Alemã (MARX, 2007) anunciava a passagem de formas de propriedade comunais a propriedade privada capitalista; a passagem do campo a cidade; a passagem do trabalho coletivo ao trabalho alienado.

Interessante observar que, não fazendo uso da palavra cultura, em Introdução à crítica da economia política, Marx afirma que a produção de indivíduos é determinada socialmente. Assim, “a produção não cria somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto”. Mediada pelas condições objetivas, materiais e simbólicas da produção da existência humana, “a fome é a fome, mas a fome que se satisfaz com garfo e faca é uma fome muito distinta da que devora carne crua, com unhas e dentes” (MARX, 1978, p.110).

O escopo deste artigo não nos permite discorrer sobre a obra de Marx e Engels para afirmar a afinidade do marxismo com a antropologia. Entendemos que para buscar os nexos entre economia e cultura, não é possível desconsiderar o filósofo italiano Antônio Gramsci. Não por casualidade, fundamentado em


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4 Uma discussão mais aprofundada sobre essa relação pode ser vista em Leiner (2016).

Gramsci e tendo em conta as bases materiais da cultura, Raymond Williams nos alerta sobre importância da hegemonia cultural na conformação de um bloco histórico Em Gramsci, cultura e antropologia, Kate Crehan assegura:


A obra de Gramsci pode ser muitíssimo esclarecedora para os antropólogos. A sua abordagem da análise dos mundos culturais dos camponeses, e outros grupos não pertencentes às elites, proporciona aos antropólogos relatos potencialmente estimulante desses mundos. (CREHAN, 2004, p.20).


O que significa dizer que haveria incompatibilidade entre antropologia e marxismo? De nossa parte, entendemos que as críticas a antropologia marxista não estão assentadas necessariamente nos fundamentos do marxismo, mas na concepção estruturalista do marxismo, que reduz as relações sociais à esfera do econômico. Contra o reducionismo econômico foram fundamentais a obra de Gramsci e também do historiador marxista E. P. Thompson, os quais elegem a cultura como uma categoria que possibilita a análise de um determinado bloco histórico e/ou um processo histórico estruturado. Thompson lutou ardentemente contra a concepção estruturalista presente na obra de Louis Althusser (1998), cujo pensamento era hegemônico no interior dos partidos comunistas nas décadas de 1950 e 1960, pelo menos 5.

Para Thompson, que desafios devem ser enfrentados pelos historiadores e pelos marxistas, de uma maneira geral? Em Folclore, antropologia e história social, escrito em 1977, e publicado no Brasil somente em 2001, Thompson insiste sobre os nexos entre economia e cultura, convidando os historiadores para o debate com os antropólogos. Segundo Leal (2013, p.26), nos “assegura que não podemos, por exemplo, entender o sistema agrário dos pequenos produtores sem investigar as práticas hereditárias, os dotes e, quando for o caso, o ciclo de desenvolvimento familiar”. No entanto, qual a diferença entre antropologia e história? Fundamentado na sexta tese de Marx sobre Feuerbach, adverte que, “há de se encontrar a estrutura na particularidade histórica do conjunto das relações sociais” (THOMPSON, 2001, p.248), mas devemos estar atentos para não transpor mecanicamente as conclusões da pesquisa antropológica para a história.



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5 No século XXI, a disputa permanece ativa entre os marxistas. Vide a obra recente de Luiz Eduardo Motta (2014) com o sugestivo título A favor de Althusser: revolução e ruptura na Teoria Marxista.

A antropologia pode fazer descobertas acerca de sociedades particulares e revelar estruturas básicas de sociedades em geral, entretanto:


A história é uma disciplina do contexto e do processo; todo significado é um significado-dentro-do-contexto e, enquanto as estruturas mudam velhas formas podem expressar funções novas, e funções velhas podem achar sua expressão em novas formas (THOMPSON, 2001, p. 243).


A antropologia de Thompson: um “chamado” aos marxistas


Não apenas no Prefácio aos três volumes da Formação da classe operária inglesa, mas no conjunto de sua obra, o historiador marxista E.P. Thompson evidencia as bases materiais da cultura, assegurando que a classe é uma formação tanto econômica quanto cultural. Em Costumes em Comum (1998, p.304) analisa a economia moral da plebe inglesa no século XVIII e as novas formas de disciplinamento do trabalho requeridas pela Revolução Industrial, evidenciando que “não existe desenvolvimento econômico que não seja ao mesmo tempo desenvolvimento ou mudança de uma cultura”. Ao longo de seus estudos sobre o fazer-se de homens e mulheres trabalhadoras, dedica-se ao que considerava um silêncio na obra de Marx:


Há uma preocupação que corre ao largo de toda a minha obra, inclusive antes que eu percebesse totalmente o seu significado. Esta preocupação se refere ao que considero um verdadeiro “silêncio” em Marx, silêncio que se encontra na área que os antropólogos chamariam sistemas de valores. Não que Marx não tenha dito nada que possa preencher esse “silêncio”, mas há um “silêncio” em relação a reflexões de tipo cultural e moral. (THOMPSON, 1979, p. 315).6


No embate contra o estruturalismo de Althusser, as reflexões sobre antropologia foram fundamentais. Como lidar com as contradições de processos históricos mais profundos, sem observar os problemas revelados pelos antropólogos? Como membro do Grupo de Historiadores do Partido Comunista da Grã-Bretanha, junto como Raymond Williams, Stuart Hall, e Eric Hobsbawm essa opção teórico-metodológica implicaria numa “autocrítica marxista” (THOMPSON, 2001, p. 228). As escolhas de Thompson, de ênfase nas questões


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6 Este texto de Thompson encontra-se somente em língua espanhola. Toda a tradução foi feita pelos autores do artigo em questão.

culturais, não configuravam apenas uma escolha temática, mas um modo de escrever a história tendo em conta as experiências econômico-culturais da classe trabalhadora: “Em meu trabalho me interessaram especialmente os valores, a cultura, o direito, e essa zona onde a escolha que se chama geralmente escolha moral se faz manifesta”. Isto porque, para ele, existia “uma ausência total inclusive de uma linguagem para tratar a moral e os valores, o que constituiu uma característica distintiva do stalinismo”. (THOMPSON, 1979, p. 315-316).

No artigo Folclore, Antropologia e História Social chama para o debate não apenas os marxistas, mas também os antropólogos:


No trabalho a que me dediquei nos últimos dez anos, sobre a história social inglesa do século XVIII, é verdade que me deparei com problemas de recuperação e compreensão da cultura popular e do ritual, problemas possíveis de serem vistos, de modo muito geral, como mais próximos às preocupações da antropologia social que da história econômica. Também é verdade que estou cada vez mais propenso a dispor de materiais folclóricos. (...) mas o meu conhecimento da antropologia ocidental é intermitente e eclético. (THOMPSON, 2001, p.227-228).


De forma revisitada, sua incursão pela antropologia se dá, entre outros, pela necessidade de compreender a cultura consuetudinária do século XVIII. Embora reconhecendo sua pouca densidade teórica em relação aos estudos antropológicos, defende que “a atenção às formas e aos gestos do ritual podem fornecer significativas contribuições ao conhecimento histórico” (THOMPSON, 2001 p. 245). Argumentava que, ao invés de explicações pré-fabricadas pelos marxismo estruturalista, preferia examinar essas manifestações em seus próprios termos e dentro de seu próprio conjunto de relações. Desse modo, se utilizava de uma perspectiva de pesquisa em que “o historiador deve aprender a dar atenção e escutar grupos muito díspares de pessoas e tentar compreender seu sistema de valores e sua consciência” (THOMPSON, 1979, p. 309). Desprezando as abordagens funcionalistas, estruturalista e a tradição economicista do marxismo no interior da antropologia histórica, Thompson esclarece que:


O estímulo antropológico se traduz primordialmente não na construção do modelo, mas na identificação de novos problemas, na visualização de velhos problemas em novas formas, na ênfase em normas (ou sistemas de valores) em rituais, atentando para as expressivas funções das formas de amotinação e agitação, assim

como para as expressões simbólicas de autoridade, controle e hegemonia. (THOMPSON, 2001, pág. 229).


Para ele, o ser e o pensar são indissociáveis, o que o leva a afirmar que a assertiva “o ser social determina a consciência social” deve ser submetida a exame rigoroso. A experiência, então, é considerada como termo médio entre ser social e consciência social. Conceito fundamental, mas “termo ausente” (THOMPSON, 1981) entre os marxistas estruturalistas, a experiência compreende “a resposta mental e emocional, seja de um indivíduo ou de um grupo social, a muitos acontecimentos inter-relacionados”. (THOMPSON, 1981, p.15).

Thompson introduz a categoria experiência e a articula com a cultura. Segundo Moraes e Müller (2003, p. 12), ambas constituem “um ponto de junção entre estrutura e processo, entre as determinações objetivas do ser social e a possibilidade do agir e da intervenção humanos”. Ao entender a cultura como componente não passivo de análise histórico-social, Thompson reconhece que a experiência vivida, além de pensada é também sentida pelos sujeitos. Conforme ele mesmo afirma:


As pessoas não experimentam sua própria experiência apenas como ideias, no âmbito do pensamento e de seus procedimentos [...] Elas também experimentam sua experiência como sentimento e lidam com esse sentimento na cultura, como normas, obrigações familiares e de parentesco, e reciprocidades, como valores ou (através de formas mais elaboradas) na arte ou nas convicções religiosas (Thompson, 1981, p. 189).


Para Thompson é preciso evidenciar a ‘história dos de baixo’ para apreender o processo histórico. Como ele mesmo diz, “há um sem-número de contextos e situações em que homens e mulheres, ao se confrontar com as necessidades de sua existência, formulam seus próprios valores e criam sua cultura própria, intrínsecos ao seu modo de vida” (THOMPSON, 2001, p 200). Assim, não se pode negligenciar o diálogo entre o ser social e a consciência social, diálogo que se processa em ambas as direções. “A consciência, seja como cultura não autoconsciente, ou como mito, ou como ciência, ou lei, ou ideologia articulada, atua de volta sobre o ser, por sua vez: assim como o ser é pensado, também o pensamento é vivido” (THOMPSON, 1981, p. 17).

O nosso autor se lamentou inúmeras vezes de estudiosos como Althusser que, segundo ele, se recusavam a dar ouvidos aos argumentos de historiadores e antropólogos sobre essas questões. Partindo da tradição crítica marxista, seu propósito era refletir sobre os modos em que o ser humano está imbricado em relações de produção, mas também e, sobretudo, o modo como estas experiências materiais se moldam em formas culturais. Para ele, não existe uma ideologia moral pertencente a uma “superestrutura”. E acrescenta: “o que há são duas coisas que constituem as duas faces de uma mesma moeda”. (THOMPSON, 1979, p.315). Isso o fez recusar a infeliz metáfora do edifício, de Marx, buscando as evidências empíricas das relações dialéticas entre base e superestrutura.


Se desejo efetuar uma junção não apenas com a antropologia social, mas, também com a antropologia marxista, estou convencido de que devo abandonar o conceito, curiosamente estático, de base e superestrutura, pelo qual, na tradição marxista dominante, a base vem identificada com o econômico, afirmando uma prioridade heurística das necessidades e comportamentos econômicos diante das normas e sistemas de valores. (THOMPSON, 2001, p. 252-253).


Para o historiador marxista, a religião e outros imperativos morais estão imbricados com as necessidades econômicas. Seguindo a tradição inaugurada por Richard Hoggart e Raymond Williams, interessava-se pelas múltiplas dimensões dos seres humanos, valorizando a cultura, os costumes, as tradições, os valores morais e as histórias das pessoas comuns – elementos esquecidos tanto pela historiografia liberal quanto pela historiografia marxista predominante. Argumenta sobre a necessidade de uma aproximação entre a história social e antropologia - a história era, sobretudo, contexto, processo e movimento.

Questionou a ideia de ser possível descrever um modo de produção em termos econômicos pondo de lado, como secundários e menos reais, as normas, a cultura, e os conceitos sobre os quais se organiza um modo de produção. Criticava, então, a relutância dos historiadores da tradição marxista em acrescentar esse alargamento que julgava extremamente necessário. Esta resistência estava ligada a uma noção restritiva do que é a economia e a uma leitura que ignorava ou subestimava aspectos importantes da obra de Marx.

No artigo Modos de dominação e revoluções na Inglaterra (2001) ressalta que, embora a economia se constitua como determinação em última instância,

deve-se ter em conta que os eventos econômicos são também eventos humanos, que, por sua vez, encontram-se entrelaçados com eventos sociais e culturais. A economia e a cultura andam lado a lado na obra de Thompson. De acordo com suas próprias palavras: “é essencial manter presente no espírito o fato de os fenômenos sociais e culturais não estarem ‘a reboque’, seguindo os fenômenos econômicos à distância: eles estão em seu surgimento, presos na mesma rede de relações” (THOMPSON, 2001, p. 208).

Para Edward Thompson, o modo de produção é uma totalidade, e possui uma centralidade no que diz respeito à formação da vida humana e da experiência social. No entanto, o modo de produção não se reduz ao econômico, mas compõe normas, valores e cultura. Os costumes e o direito consuetudinário no período estudado por Thompson estavam longe de serem estáticos e permanentes, sendo campos permanentes de disputas e conflitos sociais. Dialogando criticamente com os antropólogos, e em especial com o historiador Peter Burke, esclarece que, como campo de conflitos:


[...] o costume era um campo para a mudança e a disputa, uma arena na qual interesses opostos apresentavam reivindicações conflitantes. Essa é uma razão pela qual precisamos ter cuidado quanto à generalizações como “cultura popular”. Esta pode sugerir, numa inflexão antropológica influente nos trabalhos de historiadores sociais, uma perspectiva ultra consensual dessa cultura, entendida como “sistema de atitudes, valores e significados compartilhados, e as formas simbólicas (desempenhos e artefatos) em que se acham incorporados”. (THOMPSON, 1998, p. 16-17).


Esses pressupostos obviamente não significavam que Thompson considerava que a formação da classe é independente de determinações objetivas e nem que a classe possa ser definida como simples fenômeno cultural. Insistiu: “a classe é uma formação tanto cultural como econômica”. (THOMPSON, 1987), porém, essas determinações exigem um exame muito escrupuloso.

Para o autor, está implícito na obra de Marx que é um erro definir o ser humano como um homem econômico. Assim, sua crítica aos marxistas estruturalistas “é totalmente complementar e em nenhum modo em conflito com a tradição marxista”. (THOMPSON, 1979, p. 317). Sua luta intelectual e política se deu com a intenção de contrapor-se a manifestações do marxismo marcadas pelo determinismo econômico e pela negação da ação humana. Destacava da obra de

Marx em especial nos Grundisse7, uma passagem na qual o filósofo alemão enfatizava as múltiplas manifestações da vida social. Citando Marx:


Em todas as formas de sociedade, é uma determinada produção e suas relações que atribuem posição e influência a qualquer outra produção e suas relações. É uma iluminação geral, em que são imersas todas as cores e que modifica suas tonalidades. É um éter especial a definir a gravidade especifica de que tudo dele se destaca. (Marx apud Thompson, 2001, p.254).


A antropologia marxista de Maurice Godelier


Além das contribuições de Thompson, é importante considerar as contribuições da antropologia marxista8 para compreensão das relações entre economia e cultura nos processos de produção da vida social, e também, para a crítica do “reducionismo econômico” que caracteriza o estruturalismo de Louis Althusser. Embora um de nossos propósitos seja resgatar algumas ideias de Maurice Godelier, antropólogo de renome internacional, o mesmo é considerado como marxista estruturalista. Para Maria Cecília Turatti (2011, p. 192), por exemplo, Godelier “nos apresenta um esforço teórico pecando por excesso de teoricismo e nitidamente marcado pelo estruturalismo de Althusser”. Referindo-se a Godelier, Claude Meillassoux, Emmanuel Terray e Pierre-Philippe Rey, da escola francesa de antropologia marxista, a autora afirma que os mesmos incorreram no erro de:


[...] tentar encontrar as categorias que acreditam existir – livre de determinação histórica – em todas as sociedades, como aconteceu com o conceito de classe. E se, de fato, aos nossos olhos, este erro ocorreu, foi de longe Maurice Godelier quem o cometeu sem acrescentar nada de positivo ao marxismo e ao conhecimento da história. Trasmudar as categorias do estruturalismo lévi-straussiano em categorias compreensivas pertinentes ao estudo que Marx fez do capital, não só representa um impropriedade diante da própria historicidade do marxismo, como confunde a compreensão deste último, ao violentá-lo como a introdução de categorias que lhe são estranhas”. (TURATTI, 2011, p.213-214).


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7 Outro grande historiador inglês, Eric Hobsbawm considera os Grundisse como “o único guia para o pleno entendimento do tratado do qual O capital é apenas uma pequena parte, e uma inigualável introdução à metodologia do Marx maduro” (HOBSBAWM, 2011, p. 120),

8 No Brasil é difícil identificar antropólogos considerados marxistas. Em nosso estudo, nos caberá o desafio de analisar os trabalhos de Darci Ribeiro, José Sérgio Leite Lopes e Moacir Palmeira que, de alguma maneira se utilizam de referenciais teóricos marxistas.


Francês e filósofo de formação, Godelier foi atraído para a antropologia devido às aulas com Claude Lévi-Strauss, fundador da antropologia estruturalista e de quem se tornou professor assistente no Laboratório de Antropologia Social do Colégio de França. No livro Antropologia e economia, Godelier (1974) defende a possibilidade de uma antropologia calcada no marxismo. Assim como Marx, analisa textos de antropólogos evolucionistas como Henry Maine e Lewis Morgan, buscando as contribuições desses pensadores. Sua crítica centra-se em especial na escola formalista (Robbins Burling, Edward Leclair, Frank Cancian)9 e, embora abrande a crítica a Karl Polanyi10, considera que tanto a escola formalista, quanto a substantivista são vertentes do funcionalismo e, portanto, são incapazes de apreender a essência dos processos econômicos. Discordando da tese de Polanyi de que a economia moderna está desincorporada da estrutura social, defendendo que em toda sociedade existe uma relação entre o econômico e o não econômico. A racionalidade econômica “não se reduz, de modo algum, a uma significação ‘puramente’ econômica” (GODELIER, 1969, p. 332). Por outra parte, denuncia que Polanyi, somente vê na redistribuição uma simples extensão do princípio de reciprocidade que preside as relações de parentesco.

Maurice Godelier afirma que conceitos e procedimentos epistemológicos marxistas são importantes para a análise antropológica. Para ele, um modo de produção determinado corresponde a um modo de organizar a sociedade, existindo correspondência entre as relações econômicas (infraestrutura) e as relações sociais (superestrutura). Mas qual a relação entre o marxismo de Godelier e o estruturalismo antropológico? Podemos dizer que há em comum é a ideia de analisar as relações sociais como totalidades, já que:


Só um enfoque estruturalista ou um enfoque marxista se ocupam explicitamente em buscar, sob a diversidade das semelhanças e


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9 O formalismo é uma corrente que se define como a ciência que estuda o comportamento humano como uma relação entre fins e meios. Para os formalistas qualquer resposta econômica é uma adaptação ao meio ambiente e sempre será de natureza racional, uma vez que tenta atingir os fins, otimizando os resultados. Isso significa que toda sociedade tenta maximizar seus meios: alcançar o máximo com o mínimo esforço.

10 Karl Polanyi (1886—1964) foi um filósofo social, historiador da economia, antropólogo econômico, sociólogo e economista político húngaro, conhecido por sua oposição ao pensamento econômico tradicional. Sua principal obra é A Grande Transformação, de 1944, onde ele funda o substantivismo, uma abordagem na linha da antropologia econômica que destaca as relações entre economia, sociedade e cultura.

diferenças, uma ordem subjacente, a lógica invisível das propriedades objetivas das relações sociais e suas leis de transformação. (GODELIER, 1974, p. 28).


Sobre as divergências entre estruturalismo e marxismo, Godelier (1977) destaca que Lévi-Strauss separa o estudo da forma das relações sociais da análise de suas funções. Ele jamais estuda sociedades concretas, totalidades orgânicas específicas, ou seja, não estuda o problema da articulação real dos níveis estruturais numa sociedade. Enfim, Lévi-Strauss não analisa as infraestruturas, a análise das relações entre seres humanos entre si na apropriação da natureza. Criticando Lévi-Strauss, Godelier procura elucidar a distinção entre imaginário e simbólico. E o faz contrariando Lévi-Strauss, para quem o simbólico triunfaria sobre o imaginário e sobre o real (GODELIER, 2001). Godelier afirma a prevalência do real, embora possa haver simbólico e imaginário. O marxismo parte do real para a sua análise.

Há o real (visível) e há o simbólico e o imaginário (invisível), e a tarefa da antropologia marxista é encontrar a junção desses elementos para realizar a análise. Essa junção está na cultura porque é ela o elemento que faz o imbricamento das estruturas sociais. Por isso, a análise deve ser sempre do conjunto das relações:


[...] todo o problema reside no fato de os antropólogos funcionalistas e, frequentemente, aqueles que se dizem marxistas, conceberem, de maneira espontânea e não científica que as relações de produção só podem existir sob uma forma que as distingue e as separe de outras relações sociais, como é o caso das relações de produção no modo de produção capitalista. Ninguém contestará que representa um progresso em relação ao empirismo abstrato e associacionista a recusa de estudar as relações sociais separadamente, para as tomar, pelo contrário, no seu conjunto e nas relações recíprocas, quer dizer, supondo que elas formem um sistema de relações. (GODELIER, 1977, p. 61- 62).


Essas relações induzem à procura das articulações entre mito e realidade, entre o mundo da natureza e o mundo da cultura, vistos sempre como totalidades vividas e pensadas simultaneamente. Em qualquer atividade humana existe um complexo de relações sociais, cuja presença e cuja intervenção são necessárias para que essa atividade tenha lugar. As representações advindas desta relação

não existem apenas no pensamento abstrato, mas são ideias expressas numa língua e comunicadas de geração em geração, no curso de aprendizagem das técnicas. A conclusão é que o pensamento e a linguagem funcionam em parte como elemento das forças produtivas. As ideias não são simplesmente o que são, mas também o que obrigam a fazer.

Portanto, em Godelier há uma relação de reciprocidade entre base e superestrutura, o que havia sido enfatizado por Engels há muito tempo atrás. Ao contrário do que desejam os críticos que acusam o marxismo de ser uma teoria reducionista:


[...] o desenvolvimento político, jurídico, filosófico, religioso, literário, artístico, etc., repousam sobre o desenvolvimento econômico. Mas todos eles atuam, igualmente, uns sobre os outros, bem como sobre a base econômica. E isto porque a situação econômica não é a causa, o único motor, e todo o resto simples ação passiva. Ao contrário, sempre existe ação recíproca sobre a base da necessidade econômica, que sempre predomina em última instância. (ENGELS, 1981, p. 231, grifo nosso).


Quando Godelier retoma a relação base e superestrutura no pensamento marxista, o faz dando ênfase ao papel da cultura na constituição das forças produtivas. Sobre a questão da ideologia, afirma Carvalho:


Na verdade, sem abandonar o pressuposto original da determinação do econômico, do papel dominante do parentesco e de sua função como relação de produção, será na questão do ideológico que a contribuição de Godelier será mais incisiva para a teoria antropológica. E isso porque pensa o ideal e todas as suas formulações, não como oposição ao material, nem como seu simples reflexo, mas como forma de produzir sentido, diretamente imbricada na produção das materialidades. (CARVALHO, 1985, p. 159).


É nessa perspectiva que em O enigma do dom, Maurice Godelier (2001) analisa o livro clássico Ensaio sobre a dádiva, de Marcel Mauss (publicado pela primeira vez em 1925). Nele, Godelier discute questões relativas a solidariedade, reciprocidade e cooperação diante das adversidades do neoliberalismo, enfatizando que:


É o contexto de uma sociedade ocidental na qual se multiplicam os excluídos, de um sistema econômico que, para permanecer

dinâmico e competitivo, deve “enxugar” as empresas, reduzir os custos, aumentar a produtividade do trabalho e, por isso, diminuir o número daqueles que trabalham, jogá-los maciçamente no desemprego — um desemprego que se espera provisório e que, para muitos, acaba por se mostrar permanente. (GODELIER, 2001, p.7-8).


Explicita que, embora o texto de Mauss tenha servido como base privilegiada da análise econômica das relações de troca (e não da produção), possui vários contatos com a análise da mercadoria de Marx.


Mas os dois mundos, aquele dos dons e aquele das mercadorias, são realmente comparáveis. Ao fetichismo dos objetos dos dons corresponde o fetichismo das mercadorias, e ao fetichismo dos objetos sagrados corresponde aquele do dinheiro funcionando como capital, como valor dotado do poder de gerar valor por si mesmo, como dinheiro capaz de gerar dinheiro. Eis a mitologia do capital. (GODELIER, 2001, p.109).


Em suma, Godelier enfatizou a necessidade do debate com outras matrizes teóricas, inclusive com o estruturalismo antropológico. Buscando se distanciar tanto de Althusser quanto de Lévi-Strauss, para ele, “a estrutura é realidade em movimento, conexões temporais, que se reproduzem durante certa época histórica antes de desaparecer, deixando lugar para outras”. (1976, p. 42).


Para ficar pensando...


Porque povos e comunidades tradicionais raramente se constituem como objeto de estudo dos marxistas? Porque apenas antropólogos não marxistas se dedicam a análise desses modos de viva que ainda perduram entre nós? Afinal, quais as contribuições do marxismo para a antropologia e vice versa? Não podemos concordar com a tese de que os fundamentos teóricos do materialismo histórico não podem servir como quadro teórico para a antropologia. As noções de modo de vida; a análise das economias ditas primitivas, calcadas na produção do valor de uso; a crítica à religiosidade como reino autônomo; o entendimento da práxis como terreno do pensamento presentes nas teses sobre Feuerbach, e a análise da economia burguesa e do desenvolvimento capitalista não seriam componentes de um quadro teórico que adensa a análise de temas caros à antropologia?

O diálogo entre marxismo e antropologia pode se tornar mais profícuo se incorporamos os Estudos Culturais, sobretudo a análise de Thompson (2001) e Williams (2011). Se o materialismo histórico se propõe ao estudo e transformação da sociedade, é preciso ter em conta que a cultura está imersa, é parte constitutiva e constituinte da totalidade social. Isso envolve a vida nas cidades, no campo, nas grandes concentrações urbanas e nas pequeninas comunidades tradicionais que sobrevivem em pleno século XXI.

Raymond Williams acredita que o conceito de hegemonia não pode ser entendido como um conceito estático. Ao contrário. Suas estruturas internas são muito complexas e por serem constantemente desafiadas, precisam ser renovadas, recriadas e defendidas de forma contínua. Referindo-se a um conjunto de significados e valores experimentados enquanto práticas que abrangem muitas áreas da vida, a hegemonia constitui um sentido absoluto de realidade que, para a maioria dos membros da sociedade, torna-se difícil mover-se. Mesmo assim é preciso considerar o que acontece fora do modo dominante:


Nenhum modo de produção e, portanto, nenhuma sociedade dominante ou ordem da sociedade e, destarte, nenhuma cultura dominante pode esgotar toda gama de prática humana e da intenção humana (essa gama não é o inventário de alguma ‘natureza humana’ original, mas ao contrário, é aquela gama extraordinária de variações práticas e imaginadas pelas quais seres humanos se veem como capazes). (WILLIAMS, 2011, p. 59).


Entre essas variações práticas e imaginadas, estão os povos e comunidades tradicionais que, no contexto da acumulação flexível do capital, insistem em preservar seus modos de vida. Seriam elas, ainda hoje, formas sociais pré-capitalistas, como preconiza a teoria evolucionista? Do nosso ponto de vista, assim como a infeliz metáfora do edifício está a infeliz expressão “sociedades pré-capitalista”. Afirmando não ser o socialismo nem cópia nem decalque de outras experiências históricas, José Carlos Mariátegui defende que o coletivismo agrário é uma importante estratégia política na luta pelo socialismo indo-americano, pois se fortalecida a organização coletiva, os “povos de economia rudimentar” não precisarão “sofrer a longa evolução pela qual passaram outros povos”.

Cremos que entre as populações “atrasadas”, nenhuma reúne, como a população indígena inca, condições tão favoráveis para que o comunismo agrário primitivo, subsistente em estruturas concretas e no profundo espírito coletivista, transforme-se, sob a hegemonia da classe proletária, numa das bases mais sólidas da sociedade coletivista preconizada pelo comunismo marxista. (MARIÁTEGUI, 2011, p.144).


De nossa parte, ao contrário de Jean Tible (2013), não se trata de resgatar o “Marx Selvagem”, mas buscar os nexos entre economia e cultura nas formações sociais da América indígena, questão essa que pode ser adensada com os estudos de Mariátegui sobre o ayllu (comunidade) e o comunismo agrário dos Incas, por ele nomeados de socialismo indo-americano. Sendo assim, devemos considerar os estudos sobre espaços/tempos das culturas milenares dos povos e comunidades tradicionais (TIRIBA; FISCHER, 2015) que, embora submersas no contexto da acumulação flexível, suas práticas econômico-culturais preservam modos de vida calcada no trabalho coletivo e na apropriação coletiva de seus frutos. Puro romantismo poderiam dizer alguns!

Como nos ensina Williams, ao analisar “culturas residuais” e “culturas emergentes” não podemos esquecer que elas tanto podem ser “alternativas” como podem, de fato, ser “opositoras” ao modo de produção capitalista. Sobre a dificuldade de romper a hegemonia, enfatiza que:


As dificuldades da prática humana fora ou em oposição ao modo dominante são obviamente reais. Elas dependem muito da prática estar ou não em uma área em que a classe e a cultura dominantes têm um interesse e uma participação. Se o interesse e a participação são explícitos, muitas novas práticas serão alcançadas e, se possível, incorporadas – ou então extirpadas com extraordinário vigor. (WILLIAMS, 2011, p. 59-60).


Para finalizar, entendemos que o materialismo histórico, embora não hegemônico entre os antropólogos, é imprescindível para o entendimento das formações sociais, estando elas submersas ou subsumidas, em maior ou menor grau, ao modo de produção capitalista. Não é possível falar de cultura sem relacioná-la as suas bases materiais. Se uma das especialidades da antropologia é a observação de culturas “pré-capitalistas” (ou, melhor, não capitalistas) porque os marxistas não podem se atrever a tal? Faltariam ao materialismo histórico categorias que possibilitem a análise de comunas rurais ou povos de economia

rudimentar? Sabemos que não são poucos os esforços para compreender a cultura como parte integrante do processo de apreensão da totalidade social. Como desdobramento deste estudo, vale aprofundar, entre outros, a crítica ao pensamento de Maurice Godelier e outros antropólogos considerados como marxistas estruturalistas.


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Recebido em: 13 de dezembro de 2017. Aprovado em: 27 de dezembro de 2017. Publicado em: 31 de janeiro de 2018.


AS POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS DA DITADURA EMPRESARIAL-MILITAR BRASILEIRA NO BOJO DAS DISPUTAS ENTRE FRAÇÕES BURGUESAS PELOS RUMOS DA EDUCAÇÃO¹


Renata Azevedo Campos2


Resumo

O artigo tem por finalidade a análise da política educacional da ditadura empresarial-militar brasileira tendo em vista as demandas do então modelo de desenvolvimento para a educação. Sabendo que a burguesia não se constitui de modo homogêneo, as políticas foram pensadas à luz de dois projetos educacionais, correspondentes a duas frações da burguesia brasileira: da burguesia multinacional e associada, organizada no Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais e dos empresários de ensino, participantes dos Congressos Nacionais dos Estabelecimentos Particulares de Ensino.


Palavras-chave: Política educacional; IPES; CONEPE.


Abstract

The article aims to analyze the educational policy of the Brazilian corporate- military dictatorship in view of the demands from the development model for education. Knowing that the bourgeoisie does not constitute homogeneously, the policies were considered in the light of two educational projects, corresponding to two fractions of the Brazilian bourgeoisie: the multinational and associated bourgeoisie, organized at the Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais and educational entrepreneurs, participants of the Congressos Nacionais dos Estabelecimentos Particulares de Ensino.


Keywords: Educational policy; IPES; CONEPE.


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1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.15i28.p9641

2 Doutoranda em Educação na Universidade Federal Fluminense, mestre em Educação pela UFF e graduada em História pela UFF. Atua como professora da disciplina História na Rede Municipal de Belford Roxo. Email: renataazevedort@gmail.com


  1. Introdução


    A educação brasileira encontrava-se, quando do golpe empresarial-militar de 1964, relativamente defasada em vista da complexificação das relações capitalistas, vivida pelo Brasil nas décadas anteriores. Essa defasagem se expressava tanto em relação às necessidades do desenvolvimento econômico quanto aos anseios da população. A expansão do capitalismo brasileiro encontrava alguns desacordos na política educacional de então que se materializavam na insuficiência da formação e da conformação da classe trabalhadora2.

    A análise da política educacional da ditadura empresarial-militar brasileira deve levar em conta os interesses dos diferentes setores que sobre ela se debruçaram. Ainda que possamos identificar frações de maior destaque na correlação de forças, diversos atores se organizaram em torno de seu projeto de educação e sociedade e desempenharam algum grau de pressão sobre a política governamental. Por trás do projeto vencedor encontravam-se as frações mais dinâmicas do capitalismo brasileiro, as agências internacionais e alguns setores internos à realidade educacional, que também incorporaram, de forma subordinada, aspectos selecionados e isolados dos projetos alternativos.

    Dentre esses atores e organizações, existiam diversas nuances que os separavam, por um lado, e os aglutinavam, por outro, na disputa pelos rumos da política educacional. Na correlação de forças, damos especial destaque para o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais/IPES, não somente pela sua capacidade centralizadora dos interesses empresariais, mas sobretudo pela sua ingerência em postos estratégicos da política ditatorial. Analisamos o IPES como um partido político da burguesia multinacional e associada3 que, através de seus intelectuais


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    2 A referência a essa defasagem entre educação e desenvolvimento não significa que o “atraso” econômico brasileiro se devesse à incapacidade educacional, visto que a própria limitação da educação também se originava na situação econômica. Na realidade, essa relação faz parte do contexto histórico que envolve a estrutura produtiva e também a luta de classes.

    3 Capital multinacional e associado é uma categoria, utilizada por Dreifuss (1981), para caracterizar uma fração da burguesia brasileira cuja dominação econômica remonta o governo de


    orgânicos, visava organizar os seus interesses enquanto fração de classe, de forma a construir uma vontade coletiva reconhecida não só por outras frações burguesas, mas também por parcelas da classe trabalhadora. (GRAMSCI, 2014; DREIFUSS, 1981).

    Atuando a partir de diversas frentes, o Instituto esteve à testa da articulação do golpe e também da reestruturação do aparato político e econômico que se seguiria. Além de contribuir para a formação da consciência coletiva do empresariado como um todo e de sua ligação com as forças militares, agiu no sentido da mobilização da sociedade de forma a deslegitimar o presidente João Goulart e construir um clima favorável à dissolução do seu governo. Nos primeiros anos da ditadura empresarial-militar, fez parte da elaboração do planejamento econômico e educacional e também da articulação da sociedade civil em torno desses projetos em desenvolvimento.

    Não obstante a caracterização do golpe como uma articulação da classe dominante, a burguesia não se constitui como um bloco monolítico de anseios homogêneos; ao contrário, existem diferentes frações em seu interior que se ligam de forma diferenciada a um mesmo processo de valorização de capital (CARCANHOLO; NAKATANI, 1999). No que se refere à educação, fundamentamo-nos na teorização de Rodrigues (2007), sobre educação- mercadoria e mercadoria-educação para compreender as heterogeneidades de interesses entre os empresários ligados à indústria, organizados no IPES e os empresários de ensino, atuantes no âmbito das escolas particulares. Nessa análise, a mercadoria-educação se refere ao modo como ela serve para o capital produtivo, oferecendo profissionais qualificados ou semiqualificados a serem incorporados à produção. E a educação-mercadoria diz sobre o a condição em que a educação é ela própria uma mercadoria, manejada pelo capital comercial.

    As formas de organização dos estabelecimentos particulares de ensino, nos anos de 1960, já possuíam considerável organicidade e poder de pressão. Ainda que não tenham protagonizado o golpe, as escolas particulares e suas associações se mostravam insatisfeitas com as práticas de João Goulart e


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    Kubistchek. A inserção do bloco multinacional, no Brasil, fez com que parte do capital brasileiro a ele tivesse que se associar para que pudesse coexistir no novo cenário de oligopólios.


    receberam bem o novo governo que então se instalava. Nesse sentido, em função de sua força e também de sua longa história, os interesses desses setores compuseram também a correlação de forças que se materializaria nas políticas públicas de educação da ditadura. Ainda que, nesse período, seja difícil separar a defesa das escolas confessionais em relação às escolas laicas, nossa análise se debruça sobre os setores privados que se articulavam nos Congressos Nacionais dos Estabelecimentos Particulares de Ensino/CONEPES, um espaço privilegiado para organização e difusão de ideias4.

    O presente trabalho se desenvolve no sentido de compreender os diferentes projetos educacionais defendidos, e implementados, pelas frações burguesas organizadas, no período da ditadura empresarial-militar brasileira. Observando que esse foi o período em que a educação seria colocada, mais diretamente, a serviço do capital, entendemos que as principais beneficiadas com a política educacional foram as frações que, associadas ao capital internacional, se ligavam ao setor produtivo e também a fração ligada à comercialização da educação. Observamos, nesse sentido, que os projetos das frações burguesas em destaque, ainda que distintos, não eram incompatíveis e puderam se adequar na materialização da política educacional do período.

    Ainda que não possamos nos deter em cada um desses documentos, eles estão na base da articulação que aqui se tenta fazer acerca da relação entre os distintos interesses empresariais e a política educacional da ditadura empresarial- militar brasileira. Com objetivo de empreender tal análise, o artigo se divide em duas partes, além da introdução e da conclusão. Na primeira parte, faremos uma abordagem mais teórica dos determinantes da educação no modo de produção capitalista, em especial na sua modalidade dependente, inserindo os projetos em questão nessa análise teórica. E, na segunda parte, nos debruçaremos sobre as leis n. 5.540/68 e n. 5.692/71, que reformam respectivamente a universidade e o então ensino de 1º e 2º graus, tendo em vista a correlação de forças a partir da qual elas foram implementadas.



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    4 As escolas católicas também participavam dos congressos, mas a hegemonia era construída pelos empresários de ensino.


    No período que aqui nos interessa – que se estende do golpe empresarial- militar em 1964 até a lei 5.692 – o IPES realizou dois encontros para tratar dos rumos da política educacional. O primeiro deles foi um Simpósio sobre a educação, entre 1964 e 65, onde foi defendido o modelo estrutural norte- americano para as universidades, a leitura privatista de financiamento, a obrigatoriedade da educação física, o vinculo da educação com o mercado de trabalho, entre outras questões. (IPES, 1964a; IPES, 1964b) De maior ressonância no período, em outubro de 1968, foi realizado o Fórum “A Educação que nos Convém”, que contava com a presença de diversos especialistas, empresários e políticos. (IPES, 1969)

    Nesse mesmo intervalo de tempo, 1964-1971, foram realizados cinco Congressos Nacionais dos Estabelecimentos Particulares de Ensino. Em 1964, o oitavo congresso, realizou-se em Salvador e teve como tema a “Análise da Lei de Diretrizes e Bases”. O nono congresso, realizado no ano de 1966 em Curitiba, debateu os “Aspectos Dinâmicos da Educação nos Graus de Ensino Primário, Secundário, Normal, Comercial e Industrial”. Em fortaleza, no ano de 1967, foi feito o décimo congresso com o tema “Educação para o desenvolvimento”. Em 1969, com o tema “A Educação Geral e a Educação Técnica”, foi realizado no Rio de Janeiro o décimo primeiro congresso. E, por fim, o décimo segundo congresso teve como tema “As Novas Diretrizes e Bases da educação” e realizou em 1971 no Recife (CONEPE, 1964; CONEPE, 1966; CONEPE, 1967; CONEPE, 1969;

    CONEPE, 1971).


  2. Aproximações teóricas e históricas sobre a relação entre educação e realidade brasileira


    A negociação entre classes e frações de classe se constitui como um aspecto estruturante da relação de poder na sociedade capitalista. Quando se trata da educação, essa negociação assume determinações específicas que se referem às diversas demandas que o capital tem para ela, indo desde a formação da mão de obra até a difusão ideológica. Atravessando as demandas do capital, e delas fazendo parte, também interferem nos rumos da educação as lutas sociais


    que sobre ela depositam expectativas de melhoria das condições de vida e até mesmo de transformação social.

    Para a sustentação material da ideologia burguesa, é importante que o sistema educacional se expanda, mesmo acima das necessidades produtivas, de forma a estabelecer, dentro dos limites, algum diálogo com as demandas da sociedade. Nesse sentido, as sociedades burguesas criam soluções – e tentam implementá-las – para os possíveis desajustamentos da ampliação do sistema educacional.

    O projeto de sociedade que tinha no IPES um de seus principais centros articuladores estava vinculado ao modelo de desenvolvimento capitalista dependente, que imprime características específicas à periferia do capitalismo monopolista. Essa forma específica de desenvolvimento capitalista tem suas raízes em um passado colonial que se reconfigura a partir da reposição das relações de dependência, agora sob os marcos do capital. No entanto, tal processo não se delineia somente por imposições e pressões externas, mas também por decisões políticas internas de frações burguesas locais que veem na parceria com a burguesia hegemônica as condições para sua reprodução (FERNANDES, 2005).


    Embora detenha localmente um poder extraordinário, exercendo a tirania burguesa de forma crua, sem disfarces, e utilize essa tirania para contar com níveis extremamente elevados de expropriação e de exploração, e embora – por sua condição de parceria desigual – tenha que partilhar seus lucros com as frações burguesas hegemônicas, nem assim essa burguesia se dispõe a se contrapor ao caráter dependente das estruturas capitalistas dentro das quais se encontra (CARDOSO, 2005, p. 25).


    O capitalismo dependente é uma forma específica de capitalismo, mas que mantém características do passado colonial que lhe fundamenta. A condição colonial mostra-se como permanente e mutável; permanente porque marca a relação entre desenvolvimento capitalista e heteronomia, desde seu crescimento inicial, e mutável porque muda de forma a cada nova fase de seu processo de expansão. A condição de dependência é o próprio capital se expandindo a partir de uma incorporação diferenciada tanto nos ramos produtivos como nos setores sociais e regiões geográficas, promovendo um desenvolvimento cujo ganho se


    concentra nos centros dinâmicos. A questão da autonomia/heteronomia não se pauta, dessa forma, por questões espaciais, mas pela (in)capacidade de decisão, direção, e gestão do processo de produção e reprodução do capital.

    Essa relação de dependência, expressão local da dinâmica global de expansão do capitalismo monopolista, se manifesta em uma Revolução Burguesa descaracterizada, que não rompe com o passado, mas a ele se alia como forma de conter os elementos populares de uma ruptura estrutural. Dependendo, portanto, da fraqueza das classes trabalhadoras, economias dependentes, como a do Brasil, caracterizam-se pela redução da democracia, fundamentando uma sociedade profundamente desigual, onde a exclusão e a ausência de direito predominam nos setores que se encontram fora da classe dominante.

    Estamos diante de uma burguesia dotada de moderado espírito modernizador que, além do mais, tendia a circunscrever a modernização ao âmbito empresarial e às condições imediatas da atividade econômica ou do crescimento econômico. Saía desses limites, mas como meio – não como fim – para demonstrar sua civilidade. Nunca para empolgar os destinos da nação como um todo, para revolucioná-la de alto a baixo (FERNANDES, 2005, p. 242).


    A chamada “modernização conservadora”, que revoluciona pelo alto, foi a marca do desenvolvimento capitalista brasileiro5, cuja maturidade se atingiu na década de 1960 e tinha no IPES a sua expressão política interna principal. As especificidades da educação no capitalismo dependente atingiram, desse modo, não somente a política e a realidade educacional brasileiras, mas também a própria classe dominante que chamava a educação a resolver seus problemas.

    Na realidade, podemos dizer que o capitalismo dependente exacerba as contradições que tem a educação no próprio capitalismo, como o dualismo de sistemas e a sua subsunção ao capital. Isso porque a reprodução do capital, periférica ou central, envolve a reprodução da força de trabalho, não somente daqueles que estão na ativa, mas também daqueles que constituem o exército industrial de reserva. (BRUNO, 2011).


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    5 A modernização conservadora caracteriza-se pela articulação de um pacto político entre burguesia e oligarquias tradicionais, a partir do qual a sociedade capitalista se reproduz preservando formas pretéritas de dominação (MOORE, 2010 apud SILVEIRA, 2011, p. 126).


    Na medida em que a tecnologia se desenvolve, a complexificação do trabalho passa a exigir mais da educação, cuja formação deve servir para que o trabalhador acompanhe a constante transformação da maquinaria e devolva com o nível necessário de produtividade. No entanto, não é somente o pragmatismo econômico que envolve essa relação, ao passo que a escola também é tida como um espaço de (con)formação da sociabilidade capitalista, em suas especificidades temporais e regionais.

    Como parte dessa sociabilidade, temos que no capitalismo, ao contrário de anteriores modos de produção, a classe dominante se reproduz incorporando outras frações de classe ao seu nível cultural, tanto para formar seus intelectuais e dirigentes, quanto para fundamentar a ideologia do mérito que diz sobre o trânsito entre as classes sociais. O capitalismo expande, desse modo, a educação formal por diversas razões; além da pressão da classe trabalhadora, a demanda por qualificação e a (con)formação ideológica tem na escola um de seus espaços privilegiados. A forma e a quantidade que a educação irá se subsumir à dinâmica do capital depende do modo como as frações burguesas se desenvolvem no interior da correlação de forças. Quanto mais permeáveis são, os centros de pensamento, à colaboração de agências privadas, mais fácil se torna a difusão ideológica.

    Por um lado, o sistema escolar capitalista termina por reproduzir, através do dualismo educacional, o seu sistema de classes, seja em sociedades mais ou menos democráticas. Por outro, condicionantes históricos específicos colocam determinações igualmente específicas para a educação. Isso é o que ocorre nas sociedades de economia dependente.

    Primeiramente, pesa nas economias dependentes a predominância, até muito tardiamente, da extração da mais valia absoluta, cuja expansão se dá através da ampliação do trabalho simples e pouco exige de instrução (BRUNO, 2011). Até meados da década de 1950, essa era a condição no Brasil; na medida em que a indústria ainda se encontrava minoritária na economia, essa reclamava à educação uma expansão limitada. Com a inflexão sofrida no governo Kubistchek, a industrialização dá um novo salto de expansão e supera a agricultura em participação no Produto Interno Bruto. No entanto, isso não


    significa a superação da mais valia absoluta ou a universalização do trabalho complexo, mas coexistência das diferentes formas de exploração, muitas vezes em uma mesma cadeia produtiva6. Essa composição hierárquica nas relações de trabalho se expressa também na composição e na trajetória escolar, compondo o dualismo educacional que se manteve mesmo após as reformas dos anos 1960.7

    Em segundo lugar, destacamos a despreocupação com a nação por parte dos países de capitalismo dependente, nos quais “a nação não chega a ser definida como um objetivo central do desenvolvimento capitalista, invariavelmente centrado em (...) fundir os desígnios dos estamentos ou das classes dominantes com os fins econômicos e extraeconômicos da dominação imperialista externa” (FERNANDES, 2005, p. 263). Disso decorre uma educação negligente com a cultura nacional e o desenvolvimento cultural autônomo, que tem na universidade a expressão mais sofisticada de sua heteronomia – local onde a ciência cede lugar à adequação tecnológica.


    Depreende-se que a condição capitalista dependente tem como consequência uma pequena demanda de cientistas e engenheiros, por isso as universidade não ocupam papel estratégico. A adequação tecnológica, algo inevitável para a implementação de plantas industriais e do setor de serviços, como é episódica, acaba sendo desviada para as universidades que, desse modo, tem suas funções ressignificadas, pois entram no circuito do capital de forma imediata e pontual, impedindo tanto a autonomia em P&D como a expansão e a melhoria das universidades públicas (LEHER, 2005, p. 240-1).


    Por fim, cabe apontar que, combinado a essa despreocupação com a nação, o ideal de desenvolvimento aparece como a promessa de superação não da dependência, mas do subdesenvolvimento8. A partir dessa interpretação da condição das periferias, as desigualdades mundiais são atribuídas à propagação diferenciada do progresso técnico, a ser superada através da incorporação de

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    6 Chamamos atenção para o fato de que não há uma separação estanque, a partir da qual a agricultura extrai mais valia absoluta, enquanto a indústria extrai a relativa. Há uma combinação de explorações tanto em um setor produtivo quanto em outro, fruto da industrialização da agricultura e do trabalho coletivo na indústria.

    7 Novamente, não queremos dizer que essa composição não exista em países de capitalismo central, mas que na periferia suas características ficam mais acentuadas.

    8 Entendemos que a própria caracterização de subdesenvolvimento traz implícita uma ideia de linearidade histórica inquestionável que retira das relações sociais a responsabilidade sobre as desigualdades existentes. Nessa perspectiva, as sociedades estariam em diferenciados estágios de desenvolvimento, a serem superados por escolhas e investimentos adequados.


    tecnologia avançada de modo articulado à formação da mão de obra adequada à atividade em expansão. Adequação essa que impõe não somente limites para a extensão da escolarização, mas também desigualdade para o sistema escolar existente.


    Na especificidade da sociedade brasileira, como em grande parte dos países de capitalismo dependente, o desenvolvimento desigual e combinado com setores produtivos “atrasados” imprime, no âmbito da educação, além da profunda dualidade escolar, um retrocesso nos princípios burgueses republicanos. A universalização se reveste em massificação, mas do tipo periférico, ainda mais minimalista (MOTTA; MAGALHÃES, no prelo, p. 4).


    A condição de dependência se manifesta na educação e nos projetos educacionais daqueles que querem reproduzi-la, como era o caso do IPES. Nesse sentido, a valorização do fator humano, através da formação educativa, estava acompanhada de uma despreocupação com o desenvolvimento do conhecimento científico autônomo. A preocupação central era a formação de mão de obra capaz de operar a tecnologia importada. No interior do projeto de sociedade, portanto, capitaneado pelas frações multinacionais e associadas, se encontrava um ideal de educação fruto de uma forma específica de apropriação da Teoria do Capital Humano. Dizemos “apropriação específica” por entender que a mesma teoria serve para justificar projetos educacionais distintos, em um país como os Estados Unidos da América e um país de capitalismo dependente, como o Brasil.

    Em sentido amplo, podemos dizer que a Teoria do Capital Humano atribui parte do desenvolvimento econômico à formação e qualificação do trabalho, responsáveis pelo aumento da produtividade industrial. A partir dessa perspectiva, do investimento em educação decorreria crescimento econômico para os países e ampliação das rendas para os indivíduos, os quais poderiam vender de maneira mais vantajosa o seu próprio capital9, a força de trabalho qualificada. A partir dessa análise econômica defendia-se que, em benefício de todos, a educação


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    9 A defesa de que todos podem ser portadores de capital tem por traz uma compreensão a- histórica das relações sociais, a partir da qual a exploração da sociedade capitalista aparece como uma troca entre seres livres e iguais.


    deveria se voltar para o desenvolvimento econômico e as necessidades do mercado. Nas palavras de Schultz:


    Os trabalhadores transformaram-se em capitalistas, não pela difusão da propriedade das ações da empresa, como o folclore colocaria a questão, mas pela aquisição de conhecimentos e de capacidades que possuem valor econômico. Esse conhecimento e essa capacidade são em grande parte o produto de investimentos e, combinados com outros investimentos humanos, são responsáveis predominantemente pela superioridade produtiva dos países tecnicamente avançados (SHULTZ, 1973, p. 35).


    A Teoria do Capital Humano surge em um país de capitalismo central, nos EUA, para explicar a desigualdade econômica entre nações e também os diferenciais de renda entre os indivíduos, com base nos investimento em educação. Ao explicar as razões do subdesenvolvimento, servia também como um guia para sua superação e assim foi incorporada em diversos países periféricos. No entanto, o que essa teoria deseja explicar é menos elucidativo do que acaba por esconder. Quando relaciona direta e proporcionalmente educação e desenvolvimento, ela está captando um sintoma e não desvelando uma relação causal, como pretende fazer. A suposta causalidade serve, porém, ao obscurecimento das relações capitalistas que estão na base não somente da desigualdade, mas também do baixo rendimento educacional.

    Em conformidade com o que viemos analisando até aqui, o projeto educacional das frações multinacionais e associadas, organizadas no IPES, propunha uma vinculação da educação com o mercado e com as demandas do desenvolvimento econômico. Na esteira da Teoria do Capital Humano, entendiam que o problema do Brasil estava na escassez dos recursos humanos demandados pelo processo produtivo, submetendo a educação não só capital, mas ao capital em sua modalidade dependente.

    O Estado era chamado a mediar a socialização dos custos da formação da força de trabalho e do aumento da produtividade do capital. Para tanto, era necessário a construção de uma política de educação que não só se estruturasse a partir das demandas do mercado, mas que também garantisse aos empresários o controle sobre o ensino. É a partir desse viés que as propostas


    eram feitas, centradas na reestruturação educacional e na participação empresarial, tanto nas políticas de financiamento quanto nos órgãos decisórios.

    Em termos estruturais, o projeto educacional do IPES defendia a necessidade de aproximar o então nível médio das relações de trabalho, combinando qualificação com conformação social, mas não ausentando as indústrias da participação nessa formação. Ao mesmo tempo, pedia por uma expansão controlada do ensino superior, de modo que pudesse atender às novas funções em desenvolvimento, sem onerar desnecessariamente o fundo público. Ainda nesse nível, o papel da pesquisa é elucidativo, pois quando não se via negligenciada em prol da formação dos operadores da tecnologia importada, era submetida às necessidades dos setores ligados ao modelo de desenvolvimento dependente. Em suma, podemos entender que, a partir desse projeto, a educação deveria se colocar a serviço do desenvolvimento econômico brasileiro vinculado à dinâmica global imperialista, gozando de reduzida ou nenhuma autonomia.

    Não obstante a ingerência do referido projeto nos aparelhos de Estado, devemos destacar que ele não foi contemplado por inteiro e que foi também atravessado pelas pressões de seus opositores. Na perspectiva de construção de um projeto suficientemente articulado, o IPES tomava a frente na defesa de demandas que lhe eram externas, adequando-as e relativizando-as de acordo com seus interesses. Na realidade, a própria necessidade de expandir o atendimento educacional, médio e superior, derivava não somente do mercado de trabalho, mas também da pressão da população urbana em expansão10.

    No entanto, pensando nas funções que a educação formal pode ter ao capital – formação para o trabalho e (con)formação da sociabilidade burguesa –, as pressões externas ao empresariado podem ser atendidas em conformidades com os seus interesses. A expansão educacional, além do necessário, pode ser compensada através da desqualificação de algumas, ou muitas, de suas instituições e da criação de novas hierarquias internas ao sistema de ensino. Quando os empresários do IPES defenderam os cursos de curta duração e o fortalecimento da pós-graduação, por exemplo, eles estavam criando novos


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    10 Um exemplo disso é a referência à demanda de técnicos de nível médio, colocada inclusive pelo IPES, mas que não havia nenhum estudo que comprovasse ou identificasse a intensidade dessa falta (CUNHA, 1973).


    mecanismos de reproduzir a estrutura de classes mesmo com uma expansão do ensino superior indesejada, mas incontornável frente ao movimento da Reforma Universitária.


    A improdutividade da escola parece constituir, dentro desse processo, uma mediação necessária e produtiva para a manutenção das relações capitalistas de produção. A desqualificação da escola, então não pode ser vista apenas como resultado as falhas dos recursos financeiros ou humanos, ou da incompetência, mas como uma decorrência do tipo de mediação que ela efetiva no interior do capitalismo monopolista (FRIGOTTO, 1984, p. 134).


    Como afirma Frigotto (1984), a improdutividade da escola não é uma consequência residual de um sistema desigual, mas uma das condições para sua reprodução, que se materializa em escolhas políticas que negligenciam o financiamento e sua autonomia. A limitação da escola não era, desse modo, descritiva e sim prescritiva, atuando de forma que a educação pudesse ser retirada da mão de seus agentes e se restringisse aos interesses empresariais.

    É também na intersecção dessas funções educacionais que vemos a possibilidade de conformação dos interesses dos empresários industriais e empresários de ensino, dando aos últimos a possibilidade de manejar o tipo formação oferecida dentro de suas necessidades corporativas.

    Os empresários de ensino, que se organizavam nos CONEPEs, não possuíam um projeto de sociedade definido, mas integravam os seus interesses corporativos ao projeto hegemônico, desde que estivesse em sintonia com a sua reprodução enquanto classe. No período de 1964-71, isso foi o que aconteceu; as sistematizações dos CONEPEs incorporaram a Teoria do Capital Humano e a partir dela organizaram a sua defesa que incidia, principalmente, sobre a liberdade de ensino e as subvenções públicas para as escolas particulares. Houve, no entanto, um momento de maior tensionamento quando, no debate sobre a profissionalização do ensino médio, os empresários não puderam esconder a sua insatisfação com uma política que elevaria sobremaneira os seus custos (CONEPE, 1967). Apesar da pressão, eles não tiveram força suficiente para travar o processo em curso e a ele tiveram que, ao menos temporariamente, se adaptar (CONEPE, 1971).


    Não obstante, a necessidade de ceder à legislação não significou uma derrota para os empresários de ensino, mas apenas uma intercorrência com a qual eles teriam de lidar. A forma como a legislação iria se materializar na realidade educacional era ainda mais importante. Outras soluções foram criadas e a correlação de forças também se reconfiguraria. A forma como as frações de classe analisadas buscaram conduzir a legislação e a realidade educacional, em meio a um processo que envolvia toda a sociedade, é o que nos interessa no ponto a seguir.


  3. As reformas educacionais da ditadura

    No período em análise, destacamos que tanto a burguesia quanto os trabalhadores chamavam, com finalidades diferentes, pela adequação da educação ao contexto social e econômico. Tentando evitar intercorrências, as frações empresariais multinacionais e associadas – que mais organicamente se entendiam enquanto classe e tinham no IPES sua instituição articuladora – buscaram controlar a expansão educacional, atrelando-a aos seus interesses e tirando-lhe a autonomia. Desse modo, tentaram construir um sistema educacional que fosse capaz de apaziguar as animosidades e oferecer, ao mercado de trabalho, os profissionais exigidos. Fazem parte, no entanto, desse campo profissional não somente a mão de obra qualificada, mas também aqueles que devem ter em sua história educacional uma contínua desqualificação para o trabalho combinada a uma conformação com a sua condição.

    Essa “produtividade da escola improdutiva” (FRIGOTTO, 1984) se faz sentir, principalmente, nos níveis iniciais de ensino, mas se mantém nos seguintes, conforme a expansão da educação atinge, do ponto de vista da produção capitalista, desnecessariamente os outros níveis de escolarização. Desse modo, com o desenvolvimento do capitalismo, a manutenção da desigualdade educacional toma uma nova face: não abandonando a exclusão direta de parte da classe trabalhadora aos mais altos graus de ensino, a desigualdade passa a se reproduzir também a partir da hierarquização das instituições escolares.


    A ampliação hierarquizada das matrículas escolares é produtiva, para classes dominantes, não somente para a sua sustentação ideológica em relação à classe trabalhadora, mas também para a reprodução do exército de reserva – um dos responsáveis pela regulação salarial. Com isso, não queremos dizer que as lutas pela educação de nada valem ou só beneficiem a reprodução do capital, mas que as classes dominantes estão sempre se reposicionando de modo a tentar contornar as lutas sociais, por meio da repressão ou da tutelagem de suas reivindicações.

    É no entrecruzamento dessas lutas em torno educação que as frações burguesas buscam conformar os seus interesses heterogêneos, se adaptando às diferentes funções da educação para a reprodução das relações capitalistas. Nesse trabalho, privilegiamos as proposições do IPES e dos CONEPEs, na perspectiva de analisar o modo como as frações burguesas, neles organizadas, construíram seu projeto educacional em meio aos debates que então se faziam e envolviam toda a sociedade.

    Vimos, dessa forma, como o IPES integrou a educação ao seu projeto de classe e desenvolvimento econômico, enquanto os CONEPEs representavam os ideais corporativos de uma fração de classe disposta a incorporar o projeto de sociedade hegemônico, se a partir dele pudesse garantir a manutenção de seus lucros. As políticas públicas aqui analisadas materializaram as perspectivas dos dois setores e tiveram como principais consequências, justamente, o recrudescimento da mercantilização da educação e a inflexão tecnicista dos currículos (SAVIANI, 2008).

    No entanto, não foram somente essas organizações que se debruçaram sobre a reforma educacional. Além do movimento estudantil, as agências internacionais, os educadores e os militares compuseram, igualmente, o cenário da reforma. De alguma forma, esses atores incidiram sobre a nova legislação e deixaram também sua marca nas proposições das organizações aqui analisadas. Vejamos agora um pouco do contexto e das principais forças que compuseram a formulação da Reforma Universitária e da Reforma do ensino de 1º e 2º graus.


    A Reforma Universitária de 1968


    No que tange o ensino superior, e mais especificamente a universidade, os anos 1960 assistiram um acirrar de posições em termos de qual seria o seu papel. Tudo isso animado pelo movimento que ganhou fôlego já no início dessa década, a partir de crescente engajamento político, com o protagonismo da UNE e dos CPCs. Suas principais bandeiras eram a democratização do acesso; a extinção da cátedra vitalícia; autonomia universitária, compromisso social e o co-governo nos órgãos colegiados. Somado a isso, aparecia o problema dos excedentes11, ou seja, de pessoas que estavam aptas ao ingresso no ensino superior, mas que se encontravam limitadas pelo número reduzido de vagas. No entanto, esses não eram os únicos atores engajados com o direcionamento do ensino superior brasileiro.

    Nos polos do debate se encontravam, de um lado, aqueles defensores da universidade crítica e implicada com os problemas conjunturais e estruturais e, de outro, aqueles que temiam tal engajamento, negando que sua própria concepção fosse de alguma forma engajada. Entre os polos, encontravam-se uma série de posições das quais se destaca a concepção liberal de universidade, comprometida com a multiplicidade de formas de conhecimento e também com a ciência desinteressada (CUNHA, 1988).

    O golpe de 1964, além da feroz repressão, representou o engajamento da universidade na modernização do capitalismo brasileiro, aproximando-a do modelo norte-americano, não só pelos departamentos e sistemas de crédito, mas por um novo ethos mais pragmático. No entanto, essa diretriz precisou ser adaptada e conformada aos projetos em disputa, ainda que sob a hegemonia do projeto tecnocrático, que tinha no IPES um de seus principais espaços de difusão (LEHER, 2013).

    Em termos mais amplos, a reforma precisou dialogar com as demandas do movimento estudantil e setores universitários resistentes, ao mesmo tempo em que consolidava os interesses dos grupos ligados ao regime que compunham o



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    11 Essa questão se relaciona com a LDB, de 1961, que havia equiparado os ensinos secundário e técnico para o ingresso no ensino superior, o que gerou forte pressão sobre a universidade.


    bloco no poder – com maior expressão, destacamos o IPES e as agências internacionais, mas também alguns setores universitários apoiadores.

    Com algumas formulações atentas às demandas estudantis, o relatório elaborado pelo Grupo de Trabalho12 responsável pela reforma aboliu as cátedras vitalícias, proclamou a indissociabilidade entre ensino e pesquisa, a autonomia universitária e elegeu a universidade como forma de organização preferencial. Ainda nessa perspectiva de construção do consenso, mesmo em um período de radicalização da coerção em relação aos estudantes, a Reforma universitária acabou por restabelecer a sua participação nos colegiados superiores, ainda que com diversas limitações.

    A Reforma Universitária de 1968, desse modo, ainda que tenha sido elaborada sob a hegemonia dos interesses multinacionais e associados, precisou dialogar com os amplos setores que construíram o movimento para sua elaboração; dentre esses setores encontrava-se o movimento estudantil. Combinando repressão às entidades estudantis combativas, contemplação de alguns interesses dos estudantes e adaptação discursiva, a tentativa de construção do consenso permeou não somente a atividade do governo, mas também esteve presente, como vimos, no próprio projeto educacional organizado pelo IPES. Nada disso deve, logicamente, obscurecer o caráter autoritário da reforma e do arranjo político que a legitimou.


    É preciso que fique bem claro, de antemão, que entendemos a reforma universitária consentida como uma manifestação de tutelagem política e como mera panaceia. Não podemos aceitá-la porque ela não flui de nossa vontade, não responde aos anseios que animam as nossas lutas pela reconstrução da universidade e não possui fundamentos democráticos legítimos (FERNANDES, 1975, p. 204).


    A despeito das negociações, tanto a lei 5.540/68 quanto a lei 5.692/71 foram norteadas pela tendência tecnicista de educação, já vivenciada em outros países do globo. Segundo as recomendações dos organismos supranacionais, em conformidade com as organizações nacionais da elite orgânica, a


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    12 Institucionalmente, o processo de formulação da Reforma Universitária se iniciou em meados de 1968 quando, em 2 de julho, foi baixado o Decreto nº 62.937 o qual mandava instituir um grupo de trabalho para estudar a reforma do ensino superior, composto por 11 membros, designados pelo presidente, além do ministro da educação. (CUNHA, 1988)


    universidade deveria se voltar para a formação de recursos humanos, a ser garantida pelo controle empresarial sobre a Universidade.

    As concessões representaram um engodo em função do qual as reformas, que interessavam às classes dominantes, puderam se consolidar. A partir de sua vertente pragmática, o relatório do Grupo de Trabalho instituiu o sistema de créditos, as matrículas por disciplina, os cursos de curta duração e a racionalização da estrutura e funcionamento. Aprovado no congresso, os aspectos “prejudiciais”, principalmente relacionados à autonomia, foram vetados pelo presidente. A composição múltipla do GT conformou uma reforma que se justificava por um idealismo em relação à universidade, mas que, na prática, abria espaço para a transformação inspirada pelo modelo norte-americano; modelo esse que pode ser assim definido:


    Em síntese, o modelo norte-americano põe ênfase no progresso, convergindo a aspiração dos indivíduos da sociedade para o saber que interessa ao desenvolvimento econômico, buscando, desse modo, associar estritamente os aspectos ideais ‒ ensino e pesquisa ‒ e o aspecto utilitário ‒ serviço à comunidade ‒ aos aspectos funcionais da sociedade, aspectos contemplados, ontem e hoje, em uma multiplicidade de cursos de graduação e pós- graduação de longa e curta duração, oferecidos por diferentes instituições (SILVEIRA, 2011, p. 230).


    Esse modelo de universidade interessava às frações da burguesia brasileira ligadas ao movimento internacional do capitalismo monopolista, mas já vinha conquistando adeptos no interior das universidades e na sociedade como um todo. Fazendo parte da agenda internacional de modernização das universidades, a educação como fator de desenvolvimento conformava interesses diversos num contexto em que o projeto desenvolvimentista havia logrado a hegemonia. Ainda que esse projeto possuísse mais de uma vertente, principalmente no que toca a questão do capital internacional, a reforma do ensino superior conseguiu obscurecer a sua incorporação subordinada na dinâmica imperialista, colocando em destaque os aspectos que modernizavam a


    estrutura universitária em detrimento da autonomia reivindicada por projetos de esquerda e até liberais13.

    A Reforma combinou uma inflexão no sentido do modelo norte-americano – não somente em estrutura, mas em função de um ethos mais pragmático – com a matriz autoritária do modelo alemão. Isso porque o controle empresarial sobre o ensino superior passou a se dar não somente por meio dos investimentos diretos e da participação nos órgãos diretivos, mas também pela repressão sobre professores e estudantes inadequados e resistentes ao novo funcionamento. (LEHER, 2005).

    Em conformidade com o projeto de educação do IPES, do qual fazia parte a negociação com setores resistentes, o processo de reforma teve de lidar com a contradição da expansão, que se expressava no conflito entre o ensino de massas e a sua condição histórica seletiva. Nesse sentido, o ensino superior foi colocado como seletivo por sua própria natureza e mantenedor da alta cultura, que permanecia como privilégio de alguns. Não obstante, na perspectiva de absorver ao menos uma parte do crescente fluxo de candidatos, a solução encontrada foi a “diversificação vertical”, com a fragmentação do grau acadêmico de graduação e a pós-graduação14.

    A hierarquização de graus e instituições de ensino é, como já foi comentado, um dos mecanismos que as sociedades capitalistas criaram para atender às demandas da população pela expansão educacional ao mesmo tempo em que se mantém e se reproduz a estrutura de classes, por meio do dualismo educacional. A materialização do dualismo tem como um de seus principais pressupostos a distribuição desigual dos recursos, ou até mesmo a negligência em relação a eles.

    Nesse caso, por exemplo, a lei e o grupo de trabalho fixaram que a estrutura privilegiada, para o ensino superior, era a universitária. Além disso, rejeitaram que a quantidade prejudicasse a qualidade. Mas como implementar essas orientações ao mesmo tempo em que a constituição retirava a vinculação de percentuais mínimos da União para a educação? Como manter a qualidade,


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    13 Isso não significa uma ausência de resistência em relação à reforma, mas que conseguiu se legitimar sem muitas críticas destinadas a elas.

    14 O Parecer nº 77, de 1969, regulamentou o sistema nacional de pós-graduação.


    quando a diretriz máxima é a racionalização? Complementando o que a lei prescreveu, o não dito compôs, igualmente, a reforma universitária que seria vivida na prática. “O sentido da transformação do ensino superior, na linha da paroquialização, da fragmentação e da privatização, fez com que a esperança do GT fosse atropelada pelos fatos, co-determinados pela própria política do CFE de abrir caminho para a multiplicação das escolas isoladas” (CUNHA, 1988, p. 246).

    Mantendo núcleos de pesquisa avançada e de formação da elite dirigente, a expansão do ensino superior que o movimento estudantil exigia foi feita, no entanto, através das escolas isoladas privadas e da desqualificação de determinados núcleos das universidades oficiais (SAVIANI, 2010). Paralelamente, era necessário conter a ampliação excessiva das vagas em função das demandas do mercado, para que os estudantes excedentes não fossem substituídos por profissionais excedentes, de nível superior. Foi com a perspectiva de conter a demanda sobre o ensino superior que o grupo de trabalho propôs a organização de um ginásio comum e um colégio integrado; proposição que viria a compor a reforma seguinte no tocante à estrutura do então ensino primário e médio.


    A Reforma do ensino de 1º e 2º graus de 1971


    A ditadura empresarial-militar brasileira contava com forte aparato repressivo, mas que não se mostrou suficiente para a contenção dos conflitos sociais em geral, e do movimento estudantil, em particular. A década de 1960, mesmo após o golpe de 1964, assistiu o recrudescimento da organização estudantil em torno da expansão da educação e da melhoria de suas condições, principalmente no que se refere ao ensino superior. Ainda que a Reforma Universitária tenha conseguido contentar a uma parte do movimento e, em articulação com o Ato Institucional nº 5, silenciar a outra parte, estava claro que ela não seria capaz de conter a pressão sobre o ensino superior. Somado a isso, os setores produtivos reclamavam uma adequação também dos níveis primário e médio às suas demandas.

    Tendo isso em vista, o presidente Costa e Silva nomeou, ainda em 1969, uma comissão de 32 membros encarregada de reestruturar esses níveis de


    ensino. No entanto, somente em 1970 que os trabalhos se iniciaram quando, através do Decreto nº 66.600, um novo grupo foi formado com a responsabilidade de propor medidas para atualização e expansão dos níveis fundamental e médio. O anteprojeto foi encaminhado à presidência em 30 de março de 1971, o qual seguiu para o Congresso Nacional em 29 de junho do mesmo ano. Em 11 de agosto de 1971, foi promulgada a Lei nº 5.692/71, que estabeleceu as bases legais no ensino de 1º e 2º graus.

    O Grupo de Trabalho, instituído em 1970, pelo então ministro da educação Jarbas Passarinho, era composto por nove membros, dentre os quais se destaca o seu presidente – o Padre José de Vasconcelos. Na ocasião, também presidente da Associação das Escolas Católicas, a sua presença demonstra uma organicidade ainda persistente da igreja católica no quadro de formulação das políticas educacionais. Através dessa ingerência, a reforma contemplou o ensino religioso, ainda que facultativo nas escolas oficiais, e o amparo técnico e financeiro às escolas particulares15 (LIRA, 2010). Não obstante, as linhas gerais da nova legislação coadunavam, mais diretamente, com os ideais tecnicistas do empresariado industrial.

    A partir da lei nº 5.692/71, o ensino primário e o 1º ciclo do ensino médio passaram a integrar o 1º grau que, dos 7 aos 14 anos, se tornava obrigatório e 2º ciclo do médio se tornava o 2º grau. Além disso, a nova lei teve como uma de suas principais iniciativas a fusão dos ramos do antigo ensino médio – secundário, industrial, normal, agrícola e comercial – em um só, todo ele profissionalizante. No primeiro grau, que passava a englobar o ensino primário e ginasial, já haveria uma sondagem de aptidões e até uma iniciação para o trabalho.

    A profissionalização do segundo grau, somada à ampliação da obrigatoriedade de escolarização de 4 para 8 anos, era encarada como uma abertura de oportunidades. Ao mesmo tempo, a nova estrutura era vista, ainda que não declaradamente, como uma forma de resolver o problema dos excedentes, já que todos que completassem o 2º grau estariam habilitados para


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    15 Como vimos em outro momento, os empresários de ensino que participaram do XII CONEPE, já mostrando relativa independência em relação à igreja católica, não estavam satisfeitos com a profissionalização e disputavam o fundo público como forma de implementá-la.


    algum tipo de trabalho; e, mesmo com 1º grau, já teriam passado por algum tipo de iniciação facilitadora da integração ao mercado de trabalho (SILVEIRA, 2010). Essa função de contenção da demanda não fica explícita na lei da profissionalização por razões ideológicas, onde a frustração aparece como consequência do despreparo para o trabalho e não em função do fracasso na perspectiva de ascensão social.

    De forma declarada, a justificativa manifesta da profissionalização era a necessária “terminalidade” do ensino médio que, a partir da produção de uma habilitação, poderia conter a frustração daqueles que se viam rejeitados pelo processo seletivo do vestibular. Nesses termos, a procura pelo ensino superior estaria relacionada com a insuficiência do ensino médio na preparação profissional. Contrariamente, Cunha (1973) defende que o ensino superior tinha o seu próprio “valor” e que sua procura se relacionava com as perspectivas de ascensão social e não somente com a busca de uma habilitação. Não obstante, em meio às tensões que se colocavam em torno da temática educacional, essa lei veio acalmar os ânimos e, de certa forma, pouca resistência sofreu em seu processo institucional.

    O relativo consenso que se firmou em relação a essa nova política de educação pode ser explicado pelo contexto em que ela foi formulada, no qual a ditadura gozava de certa legitimidade, em função do chamado milagre econômico. Também foi o período em que a repressão pode contar com um novo instrumento institucional, o AI nº5, e que a resistência se concentrava nas táticas guerrilheiras, pouco apreciadas pelo conjunto da sociedade. Tudo isso possibilitou que a atualização do ensino fundamental e médio pudesse transcorrer sem maiores sobressaltos16 (GERMANO, 1993). O contexto do milagre econômico também ajuda a explicar os determinantes econômicos que embasaram a reforma; contexto esse que reclamava a ampliação da oferta de 1º grau – a partir do qual se alcançava uma formação mínima para a classe trabalhadora – e também a preparação de um núcleo de mão de obra qualificada.

    Nesse sentido, a análise da lei 5.692 desvela o caráter classista dessa política; isso porque a prevista possibilidade de iniciação ao trabalho no 1º grau (8


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    16 O mesmo não podemos dizer sobre a sua aplicação, mas a isso voltaremos em outro momento.


    anos, dos 7 aos 14) se relacionava com a impossibilidade de permanência dos estudos por uma parte da população, sendo, portanto, necessária a terminalidade real ainda nessa etapa escolar. Essa lei, articulada à reforma universitária, foi a expressão máxima da luta de classes, em função da qual o bloco no poder tentou dar conta dos anseios da classe trabalhadora subjugando-os às demandas do capital. Formando e conformando17, hierarquicamente, os trabalhadores, a nova estrutura educacional se responsabilizava por oferecer ao mercado os profissionais exigidos para compor o exército produtivo e também o exército de reserva. Os inconvenientes de uma expansão educacional excessiva, para as necessidades do mercado, poderiam ser resolvidos na prática de uma escolarização desigual.

    Como vimos nos documentos elaborados pelo IPES, os empresários tinham uma demanda seletiva de trabalhadores qualificados, ao mesmo tempo em que não consagravam a escola formal como o espaço privilegiado de formação para o trabalho. No entanto, não era possível, sem colocar em risco a própria estrutura de poder, travar a expansão educacional. A solução que despontava era o controle sobre um processo inevitável. Os empresários do IPES articularam uma defesa que colocava as empresas em papel de colaboração com a habilitação profissional, oferecida pelas escolas. Essa orientação se formalizou na legislação e compôs o cenário de subsunção da educação à dinâmica de reprodução do capital.

    A expansão, e até universalização, da educação escolar é uma condição histórica da complexificação das sociedades burguesas por duas razões principais: por um lado, a própria burguesa demanda níveis de formação compatíveis com as diversas categorias profissionais requeridas pela indústria e, por outro, a classe trabalhadora reivindica a escola como um espaço propiciador de melhores condições de vida, em conformidade com o mito meritocrático da ideologia burguesa18. Como nenhuma ideologia se sustenta sem uma base material, a burguesia, muitas vezes, se vê impelida a estender a escolarização



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    17 Cabe apontar que a Educação Moral e Cívica, que já integrava o currículo desde 1968, teve seu programa elaborado oficializado em 1971, por meio do parecer nº 94/71.

    18 A luta pela expansão escolar pode também se integrar a uma luta geral pela transformação geral da sociedade.


    para além de suas próprias necessidades. Quando isso acontece, as classes dominantes procuram forjar dentro do sistema educacional a hierarquia que antes se consolidava através da exclusão ao sistema educacional.

    A análise da realidade educacional desvela a capacidade de adaptação, principalmente, da escola particular frente a uma gestão educacional que nem sempre a beneficiava19, mas que abria possibilidades quanto a sua participação no interior da hierarquia educacional demandada. Isso porque os empresários que vendem a educação como uma mercadoria não são motivados por sua qualidade, mas pela potencialidade de seus lucros. Desse modo, os empresários de ensino se adaptam às diferentes clientelas, adequando a qualidade de seu ensino à quantidade que seus clientes podem pagar. Essa flexibilidade das instituições particulares contribuiu para a materialização das hierarquias sociais no interior do sistema escolar.

    No período em análise, observamos como essa rede se manteve forte em níveis de ensino onde já havia se estabelecido – ainda que tenha reduzido a sua participação proporcional no 2º grau – e ainda estendeu a sua atuação para outros campos, antes menos ocupados, como o supletivo e o ensino superior. Além disso, na primeira oportunidade conjuntural, participou do processo em que a profissionalização universal foi posta em questão e, pouco tempo depois, seria descaracterizada a partir de uma nova lei, em 1982. (FREITAG, 1986)

    Desse modo, além da ingerência sobre a produção legislativa, a burguesia precisou se adaptar à legislação, adaptando-a a seu favor, de modo que as suas contradições se diluíssem na realidade educacional. Ainda que, na maior parte das vezes, essas adequações sejam previsíveis para os agentes da legislação, as lacunas deixadas, que permitem o espaço para adaptação, não são fruto simplesmente de um maquiavelismo, mas também da própria hierarquia de prioridades do pensamento burguês.


  4. Conclusão


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19 A despeito de algum prejuízo com o custo da profissionalização, muitas foram as medidas que atendiam as demandas dos empresários, se destacando o salário-educação e a previsão de auxilio técnico e financeiro, pela mesma lei que colocou a profissionalização.


No período que analisamos, quando as tensões entre capital e trabalho se acirraram, a democratização da educação se mostrou, ao mesmo tempo, uma necessidade e um perigo para a reprodução da estrutura de classes. Nesse caso, a expansão deveria ser acompanhada de um controle direto sobre o processo educativo, além de contar com a hierarquização educacional e a mercantilização do ensino como forma de desqualificar determinadas instituições. Essas alternativas, que a realidade possibilitava, resolviam ainda outros problemas relativos às próprias frações burguesas. Isso porque, entre as demandas dos diferentes setores produtivos, também os empresários de ensino disputavam os rumos da educação, tendo em vista os lucros que podem ser obtidos com a sua mercantilização. Se, na teoria, os projetos do IPES e dos CONEPEs eram heterogêneos, na prática, eles se complementavam para a reprodução das desigualdades, materializadas no dualismo educacional.

Em síntese, podemos dizer que a educação sofreu, nesse período, uma inflexão que teria como características principais a orientação tecnicista do sistema educacional e o favorecimento à mercantilização do ensino. Isso materializa as necessidades das frações de classe burguesas, cujos benefícios com a educação são incontáveis, mas também as lutas sociais que marcaram o contexto. Se, por um lado, a complexificação do sistema produtivo gerava um incremento na demanda por mão de obra qualificada, por outro, a vinculação dessa formação com a escola formal foi fruto da mobilização da sociedade em prol da expansão educacional.


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Recebido em: 2 de novembro de 2016. Aprovado em: 22 de novembro de 2017. Publicado em: 31 de janeiro de 2018.


A IMPLEMENTAÇÃO DO PRONATEC NO IFPE¹


André Luís Gonçalves Pereira2


Resumo

O Pronatec, principal iniciativa de qualificação profissional existente no país, tem origem no primeiro governo Dilma Rousseff e se apresenta como altamente capilarizado e responsável pelo despertar de inúmeras esperanças de empregabilidade e ascensão profissional para imensos setores da classe trabalhadora, sua faceta mais visível é a oferta de cursos FIC e técnicos através da modalidade bolsa-formação. Em nossa pesquisa analisamos o ordenamento do IFPE para a execução destes cursos como ofertante, seus impactos na estrutura da Instituição, os efeitos da oferta de cursos muitas vezes desconectados com a história de diferentes campi. Fizemos esta análise a partir da análise documental primária e secundária além da realização de entrevistas semiestruturadas junto a gestores, docentes e egressos do Programa, notadamente os que estavam inseridos nos cursos técnicos promovidos no Campus Vitória de Santo Antão do IFPE. As dificuldades relacionadas a uma estrutura deficiente, a falta de uma concreta assistência estudantil e o comprometimento dos docentes com o Programa são importantes destaques que estão presentes nas falas destes atores.


Palavras-chave: Pronatec. IFPE. Implementação.


Resumen

El Pronatec, principal iniciativa de cualificación profesional existente en el país, fue creado en el primero gobierno de Dilma Rousseff y se presenta como presente en varias ciudades y responsable por el despertar de muchas esperanzas relacionadas a la conquista de empleo y ascenso profesional para inúmeros sectores de los trabajadores, su faceta más visible es la oferta de cursos FIC y técnicos a través de na modalidad “bolsa-formação” . En nuestra investigación analizamos como el IFPE se organizó para ejecutar estos cursos, cuales sus impactos en la estructura de la institución y la oferta de cursos muchas veces no relacionados a la historia de distintos campi. Esta investigación se realizó a través del análisis documental además de la realización de entrevistas con egresados, maestros y gestores , principalmente los que participaban de los cursos técnicos del Campus Vitória de Santo Antão del IFPE. Las dificultades relacionadas a una estructura precaria, la falta de una asistencia a los alumnos satisfactoria y el compromiso de los maestros con



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1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.15i28.p9642

  1. Mestre em educação. Professor e coordenador de políticas institucionais no IFPE. E-mail: andre.pereira@belojardim.ifpe.edu.br


    el Programa son importantes rasgos presentes el habla de estos personajes.


    Palabras clave: Pronatec, IFPE, implementación.

    1. Introdução


      O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) é mais uma iniciativa estatal que busca levar a qualificação profissional aos setores mais espoliados da população. O Pronatec costuma despertar na classe trabalhadora uma grande esperança de mudança dos seus rumos profissionais. A juventude desta classe é um alvo importante do Programa, na medida em que é o setor da sociedade mais sensível ao desemprego e o maior empregado em funções precarizadas. Desta forma, a iniciativa aparece como uma maneira de superar as dificuldades de colocação no mercado de trabalho através da capacitação profissional.

      Este Programa é na verdade um “guarda-chuva” para várias iniciativas no campo da educação profissional, englobando desde o investimento nos equipamentos da rede de ensino profissional de escolas estaduais até o oferecimento de cursos técnicos e de Formação Inicial e Continuada (FIC) através da Bolsa-Formação (a faceta mais conhecida do programa). Estes cursos são ofertados por diversas instituições públicas e privadas e chama a atenção sua presença marcante nos diversos Institutos Federais, como ocorre no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco (IFPE), onde desde o nascimento do Programa foram executados diversos cursos técnicos e FIC através desta iniciativa.

      O IFPE já ofertou cursos do PRONATEC em todos os seus campi. A modalidade mais executada pelo Instituto são os cursos de Formação Inicial e Continuada (FIC). É nestes cursos, com alunos enviados pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), através do CRAS (Centro de Referência da Assistência Social) de cada município, que se encontra a porção mais marginalizada entre os estudantes da Bolsa-Formação do Pronatec. Os cursos técnicos vinculados à Bolsa-Formação foram ofertados pelo Instituto apenas nos campi de Vitória de Santo Antão e Cabo de Santo Agostinho. No primeiro Campus, cursos da modalidade concomitante demandados pela Secretaria Estadual de Educação e Esportes de


      Pernambuco (SEE-PE), e no segundo, cursos da modalidade subsequente, com oferta através do SISUTEC2.

      O presente trabalho tem como objetivo discutir o ordenamento interno realizado no IFPE para que esta Instituição fosse capaz de abrigar cursos da modalidade Bolsa-Formação do Pronatec. Procuramos analisar o Instituto de forma global e elegemos os cursos técnicos do Campus Vitória de Santo Antão para uma análise mais detalhada.

      A motivação para fazer esta pesquisa se apresenta fundamentalmente pelo fato de o Pronatec, como um Programa recém-implementado em nosso país, ser alvo crescente de pesquisas, embora estas ainda se apresentem em pequena quantidade frente ao tamanho e à complexidade desta iniciativa governamental. Nosso desejo é fazer desta pesquisa uma ferramenta para todos os envolvidos no Programa, notadamente a população que é atingida pelos impactos de suas diversas iniciativas, poderem melhor conhecê-lo e dar passos no sentido de avaliá-lo, e investigar as relações do Pronatec com outras políticas no campo social e econômico.


    2. Nosso percurso metodológico

      Em nossa pesquisa utilizamos o referencial teórico-metodológico do materialismo histórico-dialético. Triviños (1989) destaca que este referencial busca explicações coerentes, lógicas e racionais para os fenômenos naturais, sociais e do pensamento, buscando através do enfoque dialético mostrar como se transforma a matéria, estudando o que caracteriza a vida na sociedade, sua evolução histórica e a prática social humana. Nos parece que este referencial é o que está mais adequado para a nossa pesquisa, por ela necessitar de uma visão histórica sobre a sociedade e sua relação com a educação profissional, ao mesmo tempo que é importante relacionar os diversos aspectos presentes


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  2. Sistema de Seleção Unificada da Educação Profissional e Tecnológica. Instituído pelo Governo Federal, oferece vagas gratuitas de cursos técnicos para candidatos que participaram da última edição do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Seu processo seletivo acontece duas vezes ao ano, uma vez a cada semestre, dando ao candidato a oportunidade de conseguir uma vaga em instituições públicas e privadas de ensino superior, assim como as de educação profissional e tecnológica.


na realidade pesquisada, em um movimento que mostre estes aspectos dialeticamente como parte de uma totalidade social.

O entendimento do que seja o método dialético materialista inicia sua explicitação mediante a questão: como se reproduz concretamente um fenômeno social? ou seja, quais as “leis sociais”, históricas, quais as forças reais que o constituem enquanto tal? esta questão indica, ao mesmo tempo, no âmbito das ciências humano-sociais, o caráter sincrônico e diacrônico dos fatos, a relação sujeito e objeto, em suma, o caráter histórico dos objetos que investigamos (FRIGOTTO, 1989 p.78).


Esse referencial teórico-metodológico nos potencializa para a descoberta das contradições no processo de implementação do PRONATEC, em uma visão contextualizada, onde a história, as relações sociais, as relações de poder e as contradições estão presentes por todo o percurso. Ao mesmo tempo, por ter este referencial como basilar, compreendemos que os resultados de nossa investigação são sempre passíveis de questionamentos, como toda pesquisa deve ser, pois para o materialismo dialético a ciência compreende movimentos contínuos.


Se as verdades científicas fossem definitivas, a ciência teria deixado de existir como tal, como investigação, como novas experiências, reduzindo-se a atividade científica à repetição do que foi descoberto. O que não é verdade, para felicidade da ciência. Mas, se nem mesmo as verdades científicas são definitivas e peremptórias, também a ciência é uma categoria histórica, um movimento em contínua evolução [...] toda a ciência é ligada às necessidades, à vida, à atividade do homem (GRAMSCI, 1978, p. 70).


Fizemos seleção dos documentos necessários para subsidiar nossa pesquisa. Consideramos documento qualquer registro escrito que possa ser usado como fonte de informação (ALVES-MAZOTTI e GEWANDSZNAJDER, 2002). Dividimos os documentos segundo a classificação de Duffy (2010), que destaca que estes podem ser fontes primárias ou secundárias. As primárias são destacadas pelo pesquisador como as que sejam produzidas durante o período a ser investigado, já as secundárias consistem na interpretação de eventos deste período.


Outro instrumento de análise foram as entrevistas semiestruturadas. Neste instrumento não se espera a limitação das respostas dos entrevistados nem que respondam a tudo da mesma maneira, sendo o entrevistador livre para deixar os entrevistados responderem as questões da maneira desejada, oferecendo a oportunidade para qualquer esclarecimento (MOREIRA, 2006). Realizamos estas entrevistas com 12 egressos (seis de cada curso técnico investigado), 03 docentes, 02 gestores do Pronatec no Campus Vitória de Santo Antão, a gestora da escola estadual onde os egressos cursaram o ensino médio, o coordenador do Pronatec na SEE-PE e a coordenadora geral do Pronatec no IFPE. Estas entrevistas foram realizadas por um período de três meses, havendo a necessidade de visitar nove egressos em suas casas e três egressos em seus locais de trabalho. A totalidade dos docentes e gestores foi entrevistada em seus locais de trabalho, havendo uma boa receptividade para com o pesquisador da parte de todos, o que muito facilitou nossa investigação.


  1. O Pronatec

    O Pronatec teve início em 2011, através da lei n. 12.513, materializando um ambicioso Programa de qualificação profissional. Programa desenvolvido com uma série de ações voltadas ao ensino técnico e profissionalizante e altamente capilarizado, já que até 2016, 72,3% dos municípios brasileiros ofertavam ou haviam ofertado cursos relacionados ao Pronatec.

    A lei n. 12.513/2011 foi modificada pela de n. 12.864/2013, com o objetivo de ampliar o rol de beneficiários e ofertantes da Bolsa-Formação Estudante, no âmbito do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego – PRONATEC (BRASIL, 2013). Essa alteração teve como principal objetivo incluir no Programa instituições de ensino privadas, como se explicita em seu artigo terceiro:


    O Pronatec cumprirá suas finalidades e objetivos em regime de colaboração entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, com a participação voluntária dos serviços nacionais de aprendizagem, de instituições privadas e públicas de ensino superior, de instituições de educação profissional e


    tecnológica e de fundações públicas de direito privado precipuamente dedicadas à educação profissional e tecnológica, habilitadas nos termos desta Lei (BRASIL, 2015).


    No Brasil, historicamente se apresentam programas que servem para ofertar de forma precarizada o conhecimento estrito para o desempenho das funções dos que vivem do seu trabalho, em consonância com os desejos dos capitalistas. O acesso dos trabalhadores a um saber parcial interessa ao capital, pois este espera um corpo de operários minimamente qualificados, de acordo com suas necessidades (GORZ, 1980). É dentro dessa dialética entre o não oferecer de conhecimento completo e integrado e a necessidade de rudimentos básicos para o exercício da maior parte das ocupações ofertadas no mercado de trabalho que se fortalecem os programas de profissionalização como o Pronatec. É também necessário ressaltar a desqualificação do trabalhador como interessante ao capitalista, pois o operário, ao dominar o conteúdo do trabalho, passa a ter mais poder de reivindicação dentro do espaço onde trabalha (KUENZER, 1985).

    Os governos que sucederam a gestão de Fernando H. Cardoso se caracterizaram pelo empenho em defender a ideia de que nos seus mandatos existiram iniciativas concretas no sentido da efetiva expansão do número de escolas profissionalizantes e do maior acesso à formação profissional. O projeto educacional gestado por estes governos se origina de uma crítica ao governo gerido pelo PSDB, por ter sido deste a iniciativa de não mais construir escolas técnicas e realizar nos antigos CEFETs uma política de dicotomia entre o Ensino Médio e a Educação Profissional. Dilma Rousseff fez da expansão da Rede de Educação Profissional e das demais iniciativas neste campo, de responsabilidade de seu governo e da gestão capitaneada por Lula da Silva, um importante fator de propaganda em suas duas eleições à presidência da república.

    Não se pode negar a popularidade e a aceitação do Pronatec junto à classe trabalhadora. Essa repercussão positiva no imaginário da classe espoliada está relacionada diretamente à propagação da Teoria do Capital Humano, francamente hegemônica e colocada como imparcial e acima das ideologias. Segundo Frigotto (1997), a noção ou teoria de capital humano foi


    elaborada nos anos de 1956-57, por Theodoro Schultz, buscando explicar os acréscimos à produção que não mais podiam ser compreendidos através dos conceitos antes utilizados para avaliar capital e trabalho. Uma grande massa de estadounidenses investia maciçamente em suas carreiras e Schultz foi observando estes investimentos tendo significativa influência sobre o crescimento da economia. Assim, o investimento em “si mesmo” notadamente em capital e saúde foi chamado de “capital humano”. A partir desta observação é elaborada a Teoria do Capital Humano.

    Consequentemente, não podemos ver o Pronatec como uma iniciativa isolada e original, já que este Programa, como seus antecessores, não considera o desemprego como manifestação do capital mundializado, o qual intensifica o trabalho humano e precariza as relações do trabalho, produzindo o desemprego estrutural (Silva, Lucena e Ferreira, 2011). No lugar disso, esta iniciativa governamental, em sintonia com a Teoria do Capital Humano, responsabiliza o trabalhador pela sua situação dentro do mercado de trabalho.

    Em nosso país, planos como o PRONATEC visam dar uma continuidade a uma política de formação desconectada de uma educação geral, aprofundando a dicotomia entre os que “pensam” e os que “fazem”, sendo bastante útil para a perpetuação de nossos abissais conflitos sociais.

    O resultado de políticas de profissionalização como o PRONATEC é um misto de alento para os setores mais precarizados e reforço da política que coloca o Brasil na periferia do capitalismo e esses setores na marginalidade do processo de desenvolvimento.


    Se você pega alguém que veio da informalidade, que estava nos grotões da miséria e do subdesenvolvimento e lhe ensina a prestar uma informação sobre um evento de Copa do Mundo, por exemplo, ela sente isso como um progresso, no entanto, do ponto de vista agregado, global, do país, isso reproduz as bases desse neo-subdesenvolvimento, que se caracteriza justamente por postos de trabalho muito mal remunerados e subqualificados (BRAGA, 2013).


  2. A implantação do Pronatec no IFPE

Como membro da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica o IFPE é executor de diversos cursos no âmbito do Bolsa-Formação do


Pronatec, além de receber o impacto de outras iniciativas do Programa. Para uma execução mais eficiente do Programa no interior do IFPE, uma série de documentos foram formulados e aprovados: Resolução nº 47/2014 (aprova o regimento interno das ações da bolsa-formação do Pronatec no Instituto), Regimento interno das ações da bolsa formação do Pronatec no IFPE, Nota orientadora nº 001/ 2014 (assunto: pagamentos de bolsas/horas trabalhadas), Nota orientadora nº 002/ 2014 (assunto: estabelece normas, procedimentos e modelos de documentos para realização de visitas técnicas no âmbito da bolsa formação Pronatec/IFPE), Nota orientadora nº 002/ 2015 (assunto: estabelece modelo de declaração para os bolsistas do PRONATEC/IFPE nas funções docentes e administrativas). A Pró-Reitoria de Extensão do Instituto é a responsável pela implementação do Pronatec.

De todos os documentos citados, o mais importante é o Regimento Interno que disciplina as ações da Bolsa-Formação no IFPE. Aprovado em 2014 (três anos após a implantação do Pronatec no Instituto), tem como principal objetivo regulamentar a atuação do Programa, servindo como complementação da legislação estabelecida a nível nacional.

A Bolsa- Formação do PRONATEC no IFPE é executada por um comitê gestor na Reitoria e por comitês executivos, nos diversos campi em que ele é ofertado.


Art. 3º. O Comitê Gestor Bolsa Formação do PRONATEC é composto pelos seguintes agentes, com as respectivas competências, no âmbito do IFPE: I. Reitor(a): Presidente do Comitê; II. Coordenador(a)-Geral da Bolsa Formação do PRONATEC: vice-presidente do Comitê, representante do IFPE junto ao MEC, no âmbito da Bolsa Formação do PRONATEC, e responsável pela gestão, coordenação, orientação, seleção e execução da Bolsa Formação do PRONATEC e demais atribuições previstas em Resolução específica do FNDE. III. Coordenador(a) Adjunto(a) da Bolsa Formação do PRONATEC: responsável por assessorar o Coordenador-Geral nas ações relativas à Bolsa Formação do PRONATEC e substituí-lo em período em que estiver ausente ou impedido e demais atribuições previstas em Resolução específica do FNDE. IV.Pró-Reitor(a) de Extensão: responsável pelas políticas institucionais de extensão, pela supervisão e planejamento da oferta anual de vagas de cursos FIC e pela articulação interna e externa no âmbito da Bolsa Formação do PRONATEC. V. Pró- Reitor(a) de Ensino: responsável pelas políticas


institucionais de ensino e pela supervisão e planejamento da oferta anual de vagas de cursos Técnicos no âmbito da Bolsa Formação do PRONATEC. VI. Pró-Reitor(a) de Administração: responsável pelas políticas institucionais de administração e pela supervisão da execução orçamentária e financeira das atividades relacionadas à Bolsa Formação do PRONATEC.

Art. 4º. Cada Comitê Executivo da Bolsa Formação do PRONATEC é composto pelos seguintes agentes, com as respectivas competências no âmbito dos Campi do IFPE: I. Diretor-Geral: Presidente do Comitê; II. Coordenador-Adjunto da Bolsa Formação do PRONATEC no Campus: vice- presidente do Comitê: responsável pela oferta da Bolsa- Formação no Campus da Instituição, pelo desenvolvimento, avaliação, adequação e ajuste da metodologia de ensino adotada, pela execução orçamentária e financeira das atividades relacionadas à Bolsa Formação do PRONATEC e demais atribuições previstas em Resolução específica do FNDE. III. Diretor de Ensino: responsável pelo planejamento da oferta anual de vagas de cursos Técnicos no âmbito da Bolsa Formação do PRONATEC. IV. Diretor de Extensão ou instância equivalente: responsável pelo planejamento da oferta anual de vagas de cursos FIC no âmbito da Bolsa Formação do PRONATEC. V. Diretor de Administração: responsável pela execução orçamentária e financeira das atividades relacionadas à Bolsa Formação do PRONATEC (IFPE, 2014, p. 3-4).


Cabe aos comitês executivos a gestão dos recursos de forma compartilhada com o comitê gestor. Estes comitês podem contar ainda com coordenadores, supervisores e pessoal de apoio, assim como o comitê gestor pode contar com profissionais de apoio e supervisão. Estes profissionais, que podem participar da execução e gestão do Programa, assim como o coordenador geral e os coordenadores adjuntos (indicados pela Reitoria), recebem remuneração para o desenvolvimento de funções relativas ao programa, ao contrário dos demais que são membros natos.

Os diferentes cursos FIC e técnicos oferecidos pelo IFPE através do Pronatec têm o seu projeto pedagógico elaborado de maneira prévia. Os professores anteriormente recebiam este projeto pronto, assim como o plano de suas disciplinas, mas são agora os responsáveis pela elaboração dos planos do curso que vão ministrar, de acordo com os editais responsáveis pela seleção docente, publicados a partir de 2015.

Há uma política no IFPE conectada com as diretrizes nacionais do Programa para a assistência aos estudantes.


Art. 28. O IFPE deverá criar mecanismos de acompanhamento e de assistência que permitam o acesso, a permanência e a conclusão de cursos técnicos e FIC aos beneficiários das atividades da Bolsa Formação do PRONATEC. Art. 29. A assistência estudantil ofertará os seguintes benefícios: I. Fardamento (camisa da Instituição); II. Alimentação (repasse financeiro); III. Materiais didáticos/ escolares gerais ou específicos; IV. Transporte para os estudantes que não têm transporte escolar gratuito disponível (repasse financeiro). V. Seguro contra acidentes (IFPE, 2014).


. Essa política se mostra muito importante para a permanência dos alunos nos cursos ofertados, porém sua execução plena nem sempre se apresenta de maneira satisfatória como atestam os seguintes depoimentos de gestores e discentes de cursos técnicos ofertados pelo IFPE através do Pronatec quando questionados se havia atraso no pagamento do auxílio financeiro, necessário para o deslocamento do estudante e também para sua alimentação:


Muitos meses teve confusão, atraso e até mesmo falta mesmo, porque o IFPE era desprovido. É como se o Instituto tivesse dificuldade por algum motivo, não sei se distância, não sei se era devido à política, politicagem, não sei explicar ao certo, mas em alguns momentos teve algumas polêmicas, porém depois foi ressarcido (Gestor1).

Era até um problema que a gente sempre tinha, porque os alunos vinham e aí a gente falava: olha nem a nossa foi paga. Não pensem que a gente tá recebendo e vocês não. Sempre houve atraso. A gente recebia assim, três, quatro bolsas de uma vez ((Gestor 2).

Foram pagos, regularmente não. Geralmente atrasava 3, 4 meses. A gente nunca sabia quando ia sair esse auxílio, sempre atrasava, sempre! Era sempre sem previsão (Estudante 1).

Ficavam três, quatro meses atrasando e nunca vinha certo (Estudante 4).

Não. Nunca foi pontualmente. Às vezes a gente recebia um “mês dentro”, às vezes demorava dois meses, aí a gente ia e recebia (Estudante 5).

Foram pagos, regularmente não. Geralmente atrasava 3, 4 meses, a gente nunca sabia quando ia sair esse auxílio, sempre atrasava, sempre, era sempre sem previsão (Estudante 11).


Todos os 16 campi do IFPE onde são ou já foram cursos da Bolsa-


Formação tem a obrigação de atuar como ofertante, e as instituições credenciadas pelo MEC atuarão como parceiros demandantes. Cabe a cada Campus do IFPE pactuar no sistema SISTEC os cursos e a quantidade de turmas e de vagas por turma disponíveis para a oferta. Cabe a cada parceiro selecionar os estudantes e trabalhadores para os cursos (IFPE, 2015). Até 2014 existia uma discussão conjunta entre cada unidade do IFPE e os demandantes sobre os cursos que deveriam ser ofertados, de acordo com as necessidades diagnosticadas pelo demandante e as possibilidades do Instituto. A partir de 2015 o demandante passou a ser o único responsável pela seleção dos cursos a serem ofertados em cada localidade. Segundo a coordenação geral do Pronatec-IFPE, isso fez alguns campi não oferecerem ou oferecerem menos cursos que o possível pela simples razão de os cursos desejados pelos demandantes não terem condições estruturais de serem oferecidos naquelas unidades. O curioso é que em muitas ocasiões, como não havia nenhum ofertante com capacidade de ministrar os cursos desejados pelos demandantes (predominantemente prefeituras), simplesmente não era ofertado nenhum curso do Pronatec Bolsa-Formação naquela localidade.

Em 2015 o IFPE ofertou apenas 589 vagas, distribuídas em 11 cidades. Neste ano não houve oferta de vagas para nenhum curso técnico, todos os cursos ofertados foram da modalidade FIC. A redução orçamentária impediu o crescimento do número de cidades atendidas e de cursos ofertados, já que em 2012 houve 1.300 matrículas em 9 cidades para 67 cursos. Em 2013, um substancial crescimento para 4.966 matrículas, 200 cursos ofertados e 12 municípios atendidos. Em 2014 foram 3.421 matrículas de Bolsa-Formação no Pronatec na Instituição, ofertadas por todos os 16 campi do Instituto em 18 cidades (Abreu e Lima, Igarassu, Afogados da Ingazeira, Barreiros, Tamandaré, Paulista, São José da Coroa Grande, Belo Jardim, Olinda, Cabo de Santo Agostinho, Ipojuca, Jaboatão dos Guararapes, Caruaru, Garanhuns, Palmares, Pesqueira e Vitória de Santo Antão). A diferença entre o número de cidades impactadas e os campi ofertantes é pelo fato de o Campus de Barreiros ofertar cursos em São José da Coroa Grande e Tamandaré.

Até o ano de 2015, foi investido na Bolsa-Formação do Pronatec do


IFPE a quantia de R$ 30.365.604,00. No ano de 2013 tivemos o maior número de recursos destinados ao Programa (R$ 8.416.378,00), seguido de 2014 (R$ 5.776.426,00) e 2012 (R$ 5.047.200,00). No ano de 2015, como consequência da redução de orçamento promovido pelo Governo Federal, o orçamento destinado é de apenas R$ 1.581.576,00, o menor ao longo de todos os anos (menos de 20% do orçamento destinado no ano anterior). Essa redução drástica do orçamento resultou em uma menor quantidade de vagas oferecidas, apenas 589 vagas, e menos cidades atendidas, já que apenas 10 municípios foram contemplados com cursos do Pronatec ofertados pelo IFPE.

Os cursos do Programa se estabelecem nas unidades educacionais sem nenhuma relação com os cursos regulares ofertados nas mesmas. Isso acontece notadamente nos Institutos Federais, onde o seu projeto de ensino médio integrado é contraditório ao que se estabelece com o Pronatec.


Um programa que “caiu” na conta dos Institutos Federais, em específico, não fazendo parte naturalmente da estrutura organizacional administrativa e pedagógica que estas instituições possuem. Paliativa, ainda, considerando a temporalidade do programa, pensado e colocado em atuação com uma estrutura de pagamento de pessoal como forma de bolsa, que precariza a atuação docente e coloca o professor numa situação de refém de uma condição de trabalho sem garantias e direitos (SANTOS, 2013).


Esta não integração com os cursos ofertados regularmente pela instituição é algo que precariza sensivelmente os cursos ofertados, notadamente os cursos técnicos, pela inexistência de estrutura adequada para o desenvolvimento dos trabalhos educacionais, a oferta do curso de técnico em Segurança do Trabalho no Campus Vitória de Santo Antão já previa desde sua concepção que não havia estrutura adequada para o mesmo, o que devia ser compensado com viagens para outros campi do IFPE:


Para atender as necessidades de aulas práticas essenciais à formação do Técnico em Segurança do Trabalho, o Campus possui laboratórios de Informática e realizou parceria com o Campus Caruaru, que dispõe dos seguintes laboratórios: 1. Laboratório de Higiene Industrial e Medicina do Trabalho; 2. Laboratório de Proteção Contra Incêndio [...] o Campus Vitória de Santo Antão conta com uma biblioteca que atende a totalidade dos cursos técnicos atualmente ofertados. Com


relação ao acervo específico para o curso de Segurança do Trabalho, utilizaremos, por meio de parceria firmada, a biblioteca do Campus Caruaru (IFPE, 2012).


Quando o curso foi executado os estudantes deste curso técnico notaram a ausência de equipamentos para um desempenho satisfatório, assinalando inclusive a diferença entre o que era ofertado para este curso e o que era oferecido aos estudantes do curso técnico de alimentos:


A infraestrutura eles não deram a gente. [...] Técnico em Alimentação tinha toda infraestrutura, lá porque eles já têm ali alimento, já têm tudo. A gente não, não tinha infraestrutura igual ao que o Técnico de “Alimentação” tinha (E2ST).


O Campus Vitória de Santo Antão oferta de maneira regular o curso de técnico em agroindústria, que tem uma matriz curricular e infraestrutura muito semelhantes ao curso técnico em alimentos, se apresentando assim como um curso não inteiramente desconectado do que tradicionalmente é ofertado no referido Campus. Por isso a percepção de haver uma qualidade diferenciada. Diversos outros depoimentos de alunos chamam a atenção para a estrutura altamente deficiente para os futuros técnicos em segurança do trabalho:


A gente tinha que sair porque lá não tinha... [...] implantaram o curso, mas não tinha uma estrutura qualificada para [...] o curso de Segurança do Trabalho. Por exemplo, a gente não teve a disciplina de Combate a Incêndio, que é uma das principais da área (Estudante 5).


Lá no IFPE Vitória, não tem laboratório para o Técnico de Segurança do Trabalho. O refeitório era fechado à noite, e a gente só ficava nas salas mesmo. As salas eram climatizadas e dava pra você assistir aula normalmente (Estudante 4).


As salas de aula são todas equipadas, são boas, a biblioteca também [...] só o que a gente não achava legal era a maioria dos laboratórios. Porque tinha equipamento que tava lá parado, como eu já disse, a gente foi fazer o mapa de risco, e a gente viu muita coisa irregular nos laboratórios (E 6).


Podemos observar nas falas um desencanto com o ofertado ao curso escolhido, mas um desencanto que se relaciona a um reconhecimento da estrutura física geral do Campus, como assinala a Estudante 5 “ as salas de aula são todas equipadas (...) a biblioteca também”.

Além da ocorrência de oferta de cursos não relacionados aos ofertados regularmente pelos Campi, ainda há a problemática da precarização da oferta. Os Institutos Federais, assim como as escolas que os antecederam, são reconhecidos pela sociedade como Instituições ofertantes de um ensino de qualidade, e esta constatação é por vezes paradoxal às condições ofertadas para os alunos do Programa. NOVAES (2013), ao analisar a instalação do Programa no IFPR, constatou que as verbas para materiais e equipamentos não foram pensadas antecipadamente. As nossas pesquisas no IFPE Campus Vitória de Santo Antão nos levaram a conclusões bastante similares, já que, notadamente os alunos, constatavam a ausência de material de trabalho como equipamento de proteção individual ou insumos essenciais para o desenvolvimento dos cursos, como atestam os depoimentos seguintes.


A infraestrutura da agroindústria que deixou um pouco a desejar porque nós sentimos um pouco de dificuldade. Questão de empecilhos que a gente tinha pra fazer a prática. Tudo que a gente aprendeu na teoria tinha que fazer na prática só que a gente tinha que um pouco mascarar aquilo com o que tinha...[...] vou dar um exemplo, se a gente tinha que ter um piso abaulado, na agroindústria não tinha. Só que a gente sabia o certo, mas na prática nós não víamos o certo (Estudante 10).


As botas, a gente teve que comprar. E o capacete, o coordenador comprou e deu. Agora o resto foi por conta da gente: O óculos e os materiais que a gente usava pro estágio (Estudante 5).

No início a gente teve dificuldade com a renda. Aí a bota a gente teve que investir pra que as aulas práticas começassem mais cedo. A gente comprou a bota, a gente comprou jaleco, touca pra nosso uso... a turma de segurança só teve que comprar a bota, pois o resto dos equipamentos foram tudo ganhos (E 12).

A parte teórica eles davam os materiais, mas a parte prática a gente é que comprou os materiais, tipo a bota, o que necessitava a gente comprava para fazer a aula. Se faltasse alguma fruta, alguma coisa bem básica, a gente se reunia e fazia cota, mas geralmente tinha tudo lá. Já faltou


coisa básica que a gente precisava nas aulas práticas da gente: roupa branca, bota. Isso a gente não ganhou, a gente teve que tirar de nosso bolso, diferente da turma de segurança do trabalho, que recebeu esses materiais didáticos (E2).

A gente só recebeu capacete. A bota [...] tinha que comprar, porque não tinha como conseguir lá. A gente só recebeu lá o capacete (E3).


Além do oferecimento da Bolsa-Formação, modalidade mais visível e predominantemente associada pela população em geral como única iniciativa do PRONATEC, a expansão do IFPE, prevista como uma das iniciativas do Programa, provocou a criação dos novos campi de Paulista, Igarassu, Abreu e Lima, Jaboatão dos Guararapes, Cabo de Santo Agostinho e Palmares. A criação destes campi corresponde à terceira fase de expansão da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica, instituída pela Lei nº 11.195/2005. Todas as unidades educacionais frutos desta terceira expansão funcionam em prédios alugados ou cedidos, um dos indícios da falta de estrutura que acompanha esta expansão. A precarização da expansão do Instituto já havia sido constatada em relatório do Tribunal de Contas da União, publicado em 2013, que constatou que “no IFPE houve um grande aumento do número de alunos sem o correspondente acompanhamento de infraestrutura, sobretudo no que diz respeito à quantidade de salas de aula” (TCU, 2013).

Outro importante fator para ilustrar a precarização da expansão da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica é o quadro de docentes e técnicos. Mesmo considerando a notável contratação de servidores ocorrida nos últimos anos através de sucessivos concursos públicos, estes ainda se mostram insuficientes para a demanda existente. Como resultado desta realidade, houve a abertura de campi do IFPE sem um quantitativo adequado de técnicos e docentes necessários ao bom funcionamento da Instituição. Alguns campi entraram em funcionamento predominantemente com os contratados pelo Pronatec (tal fato ocorreu em Abreu e Lima, Jaboatão dos Guararapes e Cabo de Santo Agostinho). Com relação a este movimento, Schewede e Lima Filho (2015) constataram que ocorre um processo de expansão destas instituições a baixo custo, com contingenciamento de professores e elevação da relação de alunos por professor. Na unidade em


que fizemos as entrevistas os docentes eram todos servidores públicos do IFPE o que os levava a considerar os proventos recebidos pelo Programa como um dinheiro extra. Os mesmos docentes acreditavam na proposta do Pronatec e assinalavam sua importância:


Eu atuei em três cursos FIC como professor e recebi o convite para ser gestor. Então recebi o convite da direção [...] A motivação foi em contribuir mesmo com a ideia do programa (G1).


Eu sou professor por vocação mesmo. Eu nasci pra isso. É o desafio de aumentar nossa clientela, foi esse o grande desafio, de atender a um cliente, um aluno, um estudante de outra Instituição de Ensino [..] Acho que foi isso (D 3).


Eu fui convidado pelos professores da Agroindústria a apresentar a minha documentação pra concorrer. Eu sabia que existia uma vaga, inclusive eu tava com uma carga horária apertada, mas eu tive intenção de entrar justamente pra colaborar pra que o curso efetivamente se realizasse. Tinha necessidade, tava sem professor e eu entrei no Pronatec. (D2).


O motivo principal foi a questão da Agricultura Familiar. Eu sempre gostei muito de agricultura familiar e como eram pessoas carentes que necessitavam de mais conhecimento sobre a área e eu sempre me dediquei nessa área, eu resolvi entrar no PRONATEC (D1).


A questão financeira pra gente pesa bastante e também pela oportunidade da gente aprender uma forma diferente de gerir. [...] E o Pronatec a gente iria começar, porque a gente pegou bem no comecinho. Então era essa possibilidade de empreender algo novo. Isso também foi algo que despertou interesse (G2).


Não existem nos depoimentos dos docentes e gestores críticas ao modelo de ensino profissional proposto pelo Pronatec, também estão ausentes de suas falas críticas aos proventos recebidos através de bolsa ou até mesmo ao frequente atraso do pagamento da mesma, como já mencionamos, os depoimentos eram de professores do IFPE, que não tinham a renda do Pronatec como o pilar de seu orçamento.


  1. Considerações finais


    O Pronatec aponta para uma profissionalização mais aligeirada e desconectada da formação geral. Este tipo de formação profissional é inerente à própria natureza das políticas públicas educacionais no capitalismo. É importante esta compreensão para não cair em uma análise simplista, panfletária e caráter superficial.


    A política educacional [...] é um fenômeno que se produz no contexto das relações de poder [...] e portanto no contexto das relações sociais que plasmam as assimetrias, a exclusão e as desigualdades que se configuram na sociedade e no nosso objeto. A questão é tentar o sábio equilíbrio: manter uma postura objetiva que dote o conhecimento produzido de um coeficiente científico, sem abdicar de um nível analítico [...] assim, podemos nos livrar da constante tentação de nos deixar envolver na prática “das denúncias”, que pouco contribui para a construção de novos saberes comprometidos com a mudança substantiva da ordem (AZEVEDO, 2001, p. 3-4).


    O ordenamento do Pronatec no IFPE é um bom exemplo para compreender a execução do Programa e os impactos que este tem junto aos Institutos Federais. O fato de haver uma clara priorização dos cursos FIC, mais aligeirados, a expansão do Instituto não acompanhada da necessária qualidade nos oferece a visão de uma política fortemente capilarizada (presente em todos os campi da Instituição), com um considerável número de alunos mas desconectada com os diferentes cursos tradicionalmente ofertados.

    Apesar de toda uma narrativa que defende os governos da Frente Popular (Lula da Silva e Dilma Rousseff) como responsáveis por uma ruptura com o modelo de educação estabelecido ao longo dos anos em nosso país, notadamente o que foi implantado pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, as mudanças que aconteceram nos governos do Partido dos Trabalhadores não romperam com a lógica de uma educação voltada à satisfação dos interesses do capital. O que fica bem claro com a reivindicação do Pronatec pelo governo Michel Temer.


  2. Referências Bibliográficas


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Recebido em: 7 de novembro de 2017. Aprovado em: 28 de novembro de 2017. Publicado em: 31 de janeiro de 2018.

A FORMAÇÃO HUMANA NO ENSINO MÉDIO INTEGRADO: o

que dizem as pesquisas¹


Crislaine Cassiano Drago2


Resumo

Neste trabalho, pretende-se apresentar uma análise sobre as discussões acerca da formação humana no Ensino Médio Integrado (EMI), constantes em artigos, dissertações e teses publicados no Repositório da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) entre os anos 2000 e 2015. A partir dos dados coletados, a pesquisa busca traçar um panorama das concepções de formação humana presentes nas publicações que tratam desta forma de oferta de educação básica, evidenciando seus fundamentos teóricos a respeito da formação humana no processo de integração entre ensino médio e educação profissional no Brasil. As conclusões do estudo revelam que o Ensino Médio Integrado é marcado pela dualidade estrutural e que sua materialidade, embasada numa concepção de educação politécnica, ainda não se efetivou na sociedade brasileira. Parte disso se deve às discussões ainda restritas sobre esta temática. Porém, apesar das limitações impostas pelo sistema capitalista, o EMI se constitui como possibilidade de formação emancipatória da classe trabalhadora, contribuindo para o desenvolvimento de sua autonomia e participação cidadã na busca por uma sociedade mais democrática.


Palavras-chave: Formação Humana; Ensino Médio Integrado; Educação Profissional.


Abstract

In this paper, we intend to present an analysis of the discussions about Human Formation in Integrated Higher Education (EMI), contained in articles, dissertations and theses published in the Repository of Coordination for the Improvement of Higher Education Personnel (A.k.a. Capes) between 2000 and 2015. Based on the collected data, the research seeks to outline the conceptions of human formation present in the publications which deal with this form of basic education offer, evidencing its theoretical foundations regarding the human formation in the integration process between high school and professional education in the Brazil. The conclusions of the study show that Integrated Secondary Education is marked by structural duality and that its materiality, based on a conception of polytechnical education, has not become effective in Brazilian society until present days. Part of this is due to the still limited discussions on this subject. However, despite the limitations imposed by the capitalist system, the EMI constitutes a possibility of emancipatory formation of the working class, contributing to the development of its autonomy and citizen participation in the search for a more democratic society.


Keywords: Human Formation; Integrated High School; Professional Education.



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1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.15i28.p9643

2 Mestranda em Educação Profissional pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte- PPGEP/IFRN. Pedagoga no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amapá – IFAP/Campus Macapá.

  1. Introdução

    O presente trabalho objetiva apresentar um panorama acerca da concepção de formação humana presente nos estudos sobre o Ensino Médio Integrado (EMI), buscando explicitar os fundamentos teóricos, análises e discussões realizadas pelos autores, bem como os aspectos evidenciados por eles quanto aos limites e avanços da área. A pesquisa realizou-se por meio do levantamento das publicações constantes no Repositório da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), publicadas no período de 2000 a 2015, utilizando-se dos descritores Formação Humana; Ensino Médio Integrado e Educação Profissional. A partir da análise das publicações, busca-se traçar um cenário das concepções de formação humana presentes nos estudos acerca da integração entre ensino médio e educação profissional no Brasil.

    As análises, discussões e reformulações realizadas sobre o ensino médio durante os últimos anos, especialmente nos anos 2000, revelam a defesa pela construção de uma política de formação que vá além da simples preparação para o ingresso no ensino superior. Como etapa final da educação básica, o ensino médio é uma fase fundamental na formação dos jovens, concluindo sua formação elementar e tornando-os aptos à participação social, política e econômica. Por outro lado, a trajetória histórica das relações entre educação básica e profissional é fortemente marcada por um viés pragmatista, assumindo ainda mais o caráter preparatório, porém com centralidade numa formação voltada para a preparação dos jovens para a ocupação de postos de trabalho, muitas vezes precarizados e mal remunerados.

    Para que esta dicotomia seja plenamente superada, faz-se necessária também a superação do modo de produção capitalista, algo muito distante nas relações concretas presentes na sociedade atual. Neste contexto, o que se busca é uma educação capaz de romper com a dicotomia entre trabalho intelectual e trabalho manual, ou seja, um projeto de educação que integre estas duas dimensões na formação dos jovens e dos adultos que chegam ao ensino médio, tendo o trabalho como princípio educativo. Tal formação inclui o mundo do trabalho, mas não tem por obrigação preparar para o desempenho de funções no mercado, mas para a compreensão das correlações de forças e das disputas inerentes ao mundo do trabalho na sociedade capitalista.

    Neste sentido, Saviani (2003, p. 136) entende o ensino médio como uma etapa onde se deve explicitar como o trabalho se desenvolve e se organiza na sociedade moderna. A partir da perspectiva da politecnia, todo trabalho humano envolve aspectos manuais e intelectuais, e sua dissociação é uma construção social e histórica. Desta forma, para Moura (2013b, p. 146), busca- se a construção de um EMI politécnico, unitário e universal, que tenha por objetivo a superação da dualidade que marca a educação brasileira e a construção de uma sociedade em que os jovens possam optar por uma profissão apenas quando concluírem o ensino médio.

    O que se pretende, pois, é a construção de uma educação fundamentada na concepção de formação humana integral, uma educação capaz de integrar os aspectos inerentes ao mundo do trabalho, aliados a uma sólida formação crítica, autônoma e cidadã. Para que se possam vislumbrar formas de se alcançar este objetivo, é fundamental a construção de uma compreensão aprofundada destes conceitos, a fim de se avançar no delineamento de práticas capazes de instituir o tipo de formação de nível médio que se almeja materializar.


  2. Metodologia

    O estudo foi construído por meio de pesquisa realizada no Repositório Capes no segundo semestre de 2016 a partir de descritores relacionados à temática citada, apresentando poucas variações de resultados encontrados no período em questão. O recorte temporal adotado para a pesquisa foi o período de 2000 a 2015. Pretendeu-se com este recorte a seleção e análise de trabalhos publicados no contexto das transformações sociais, econômicas e políticas em curso nos anos 2000, procurando identificar possíveis referências deste contexto nas produções dos pesquisadores. Os descritores utilizados nas buscas relacionavam-se com as concepções de formação contidas no título ou no interior dos trabalhos, com o objetivo de identificar qual a abordagem dos autores sobre estas concepções.

    É importante ressaltar que os termos utilizados foram pesquisados utilizando-se aspas, visto que ao se realizar a pesquisa sem a utilização deste recurso foi encontrada uma multiplicidade de trabalhos que pouco se relacionavam com o foco pretendido. Como exemplo, ao buscar o termo

    Formação Humana, sem aspas, encontramos 3.676 trabalhos e quando se buscou o mesmo termo entre aspas, encontramos apenas 292 ocorrências, nas quais os trabalhos realizavam discussões acerca do EMI, temática explorada nesta pesquisa.

    Neste sentido, num primeiro momento, os termos buscados foram: Educação Profissional (714); Formação Humana (292) e Ensino Médio Integrado (41), totalizando 1.047 trabalhos. Muitos destes textos referiam-se à formação de professores para a educação básica e superior e, ainda, a formação de profissionais para outras áreas de atuação, fora do âmbito de interesse deste estudo. Entre estas áreas com maior ocorrência de abordagem destacam-se as de saúde e nutrição (enfermagem, medicina, vigilância sanitária), contabilidade e administração. Assim, por não estarem diretamente relacionadas ao escopo pretendido, estas publicações foram desconsideradas. Foram ainda pesquisados novos descritores relacionados à concepção de formação humana integral. Nesta etapa, obteve-se o seguinte resultado: Escola Unitária (16); Politecnia (32) e Omnilateralidade (05).

    Considerando a quantidade de resultados obtidos demasiado abrangente para os limites e objetivos da análise que se pretendia realizar, procedeu-se à etapa de seleção dos trabalhos. Os critérios utilizados para a triagem foram: 1) os estudos que se relacionavam de forma mais direta com as concepções de formação humana no EMI; 2) pesquisas cujo enfoque do ensino médio situavam-se a partir da perspectiva da formação humana integral, com base na politecnia e 3) estudos delimitados apenas ao Brasil e realizados no período delimitado (2000-2015).

    Após a seleção segundo os critérios descritos e compreendendo que as buscas realizadas continham um número suficiente de elementos para a realização da análise desejada, as pesquisas selecionadas foram então reagrupadas, excluindo-se os trabalhos em duplicidade, sendo por fim escolhidas 11 (onze) publicações, das quais 5 (cinco) eram artigos e 2 (dois) ensaios, publicados em revistas científicas ou periódicos; 2 (duas) dissertações de Mestrado (UnB e UFRGS) e 2 (duas) teses de Doutorado (USP e Unicamp), todos desenvolvidos em programas na área da Educação, situados nas regiões centro-oeste, sul e sudeste. Não foram encontradas entre as dissertações e teses selecionadas nenhuma realizada nas regiões norte e nordeste do país.

    Após esta análise preliminar, as pesquisas foram organizadas de acordo com nome dos autores e ano de publicação, tipo de trabalho e objetivos, conforme apresentado no quadro 1 (um), ao final deste trabalho.

    O enfoque nos objetivos dos trabalhos se deu devido à necessidade de se ter uma visão mais ampla em relação ao seu conteúdo e ao objeto delimitado por cada autor. Para tanto, buscou-se localizar os objetivos nos resumos das publicações, a fim de que fosse possível constatar quais as suas relações com as concepções de formação humana que se anunciavam de forma explícita, ou buscar desvelar as concepções que poderiam estar implícitas nos objetivos elencados pelos autores.

    Optou-se por utilizar a ordem de apresentação dos autores pelo conteúdo das temáticas abordadas por eles. Por este motivo, os trabalhos não são apresentados em ordem cronológica nem os autores em ordem alfabética. Tal opção se justifica pela construção do encadeamento lógico das ideias e discussões no corpo do texto. Apresentamos em seguida as concepções de formação humana no Ensino Médio Integrado presentes nas publicações analisadas, bem como o posicionamento dos autores acerca dos principais conceitos abordados no que se refere à educação integral.


  3. O que dizem as pesquisas

    Os trabalhos selecionados sinalizam, desde os seus resumos, as concepções dos autores a respeito do tipo de formação humana a ser adotada no processo de escolarização dos jovens estudantes do ensino médio integrado à educação profissional. De modo geral, os autores procuram contextualizar historicamente o processo de constituição da educação profissional no Brasil e suas relações com a educação básica, enfatizando avanços, limites e perspectivas para a sua integração.

    Defendem um ensino médio que caminhe em direção à formação humana integral, sendo esta compreendida a partir do referencial teórico materialista histórico-dialético, tendo como base a concepção de formação integrada e o princípio da politecnia. Os estudos têm em comum, ainda, o objetivo de desejarem contribuir para a construção da autonomia e emancipação dos jovens da classe trabalhadora como forma de estruturar as bases de uma nova sociedade, mais justa e igualitária.

    Situando a origem histórica das concepções de formação integrada e de politecnia a partir do materialismo histórico, Ferretti (2009) ressalta que estas concepções não são exclusivas deste campo teórico, sendo encontradas em outros aportes teóricos com significados distintos. Tal fato demonstra que a polissemia que envolve os termos formação integrada e politecnia pode conduzir a interpretações diversas e muitas vezes antagônicas. Busca evidenciar a forma como Marx/Engels e Gramsci elaboram suas visões sobre as relações entre educação e trabalho mediadas pelas concepções de politecnia e formação integrada, bem como as aproximações e distanciamentos entre eles.

    Aponta que as obras de Marx e Engels e Gramsci abordam a educação numa perspectiva histórico-política, focada no conflito entre as classes na sociedade capitalista. Afirma que Marx/Engels defendiam a união entre o ensino e o trabalho produtivo por meio da combinação entre ensino intelectual, exercícios físicos e formação politécnica. Esta articulação se constituiria como elemento central da formação da classe trabalhadora, contribuindo para o desenvolvimento superior do homem. Neste sentido, é central em Marx a perspectiva de que o ensino politécnico fundamenta-se na relação teoria e prática (FERRETTI, 2009).

    Gramsci, por sua vez, via a escola tanto como elemento de reiteração do poder das classes dominantes quanto local de realização da reforma intelectual das massas, com vistas à superação da sociedade capitalista. Neste sentido, entende como ideal educativo a ser buscado é uma educação unitária, ou seja, uma educação inicial de caráter humanista e de cultura geral em seu caráter mais amplo (ensino primário), seguida de crescente orientação profissional (ensino secundário), fundamentada nos princípios humanistas de autodisciplina intelectual e autonomia moral, necessárias à futura profissionalização (FERRETTI, Op. Cit.).

    Com isso, Ferretti identifica como semelhanças entre Marx/Engels e Gramsci o materialismo dialético como perspectiva teórica e a preocupação política com a superação da sociedade capitalista, sendo a educação escolar a possibilidade concreta de desenvolvimento dos trabalhadores. Por outro lado, as diferenças estão situadas no contexto histórico específico em que viviam, visto que Marx/Engels admitem aliar educação e trabalho no processo de

    formação das crianças operárias no século XIX, enquanto Gramsci busca integrar educação e trabalho de forma diversa, de acordo com o momento vivido por ele no início do século XX.

    A noção de politecnia é apresentada e problematizada no texto de Saviani (2003), o qual postula que o processo de trabalho deve desenvolver os aspectos materiais e intelectuais de forma indissolúvel. Acerca do conceito de politecnia, afirma que esta deriva da problemática do trabalho, pois, “toda a educação organizada se dá a partir do conceito e do fato do trabalho, portanto, do entendimento e da realidade do trabalho” (SAVIANI, 2003, p. 132).

    Assim, a politecnia se refere ao domínio dos fundamentos científicos das diversas técnicas que caracterizam o processo produtivo, o domínio dos princípios científicos que fundamentam o trabalho (SAVIANI, 2003). Acrescenta que a politecnia caminha na direção da superação da dicotomia entre trabalho manual e intelectual, formação geral e profissional, concebendo a educação como um processo inteiro que envolve e integra as diversas dimensões da vida humana sem hierarquizá-las.

    Abordando o processo histórico de construção do modelo de ensino médio vigente no país a fim de situar a educação profissional voltada para a área da saúde, o ensaio escrito por Wermelinger; Machado e Amâncio Filho (2007, p. 207) discute, a partir de análise sobre a legislação brasileira, a dualidade presente no ensino médio, a associação entre discriminação social e ocupações técnicas e a contenção da demanda pelo acesso ao ensino superior no país. Para os autores, o processo de integração entre ensino médio e profissional, instituído de forma compulsória na década de 1970, apresentou múltiplas dificuldades. Entre elas, destacam:


    [...] o viés acadêmico de que se revestiu a proposta, a falta de esclarecimento dos professores em relação ao projeto, a falta de incentivo para adoção e aplicação das novas diretrizes e a carência de professores qualificados para ministrarem disciplinas novas (OLIVEIRA, 1981, p.133-134). Pode-se acrescentar a esses fatores a falta de apoio ao modelo por parte da sociedade, que continuava a compreender o ensino secundário como uma etapa preparatória para a universidade [...]. (WERMELINGER; MACHADO; AMÂNCIO FILHO. 2007, p. 210).

    Desta forma, o projeto de formação profissional compulsória no ensino médio não obteve apoio por parte das classes mais abastadas que matriculavam seus filhos na rede privada ensino, visto que esta não cumpriu o estabelecido em Lei. Tal fato aprofundou ainda mais a dualidade: escola profissional de nível médio para os pobres e propedêutica para os que poderiam continuar seus estudos em nível superior. Como alternativa para a superação deste impasse, apontam uma educação profissional de nível médio tendo por base o trabalho como princípio educativo.

    Argumentam que a formação de nível médio deve ser fundamentada em uma visão crítica do contexto social, articulando o domínio da técnica com a ação política. Neste sentido, apontam a politecnia como uma alternativa à formação profissional técnica de nível médio na área da saúde com o intuito de afastá-la do modelo de educação profissional com caráter de terminalidade, pois, consideram que “a educação politécnica permitiria propiciar ao trabalhador a formação centrada no desenvolvimento multidimensional, capaz de habilitá-lo para o exercício de diversificadas funções, rejeitando adestramentos direcionados para tarefas específicas” (WERMELINGER; MACHADO; AMÂNCIO FILHO. 2007, p. 211).

    Com o objetivo de realizar uma síntese histórica da relação entre a educação profissional (EP) e a educação básica (EB) no ensino médio, o artigo escrito por Moura (2010) busca analisar esta relação no contexto dos anos 2000 e suas perspectivas no Plano Nacional de Educação (PNE) então em processo de elaboração. Para tanto, analisa a produção acadêmica da área e os documentos oficiais, em especial o Documento Final da Conferência Nacional de Educação (CONAE) realizada em 2010.

    A integração entre educação básica e profissional, dissolvida na década de 1990 por meio do Decreto nº 2.208/1997, é retomada no âmbito da legislação nos anos 2000, a partir da promulgação do Decreto nº 5.154/2004, que aponta novamente sua possibilidade de integração, mesmo mantendo elementos de articulação presentes no Decreto anterior (nas formas oferta subsequente e concomitante). Desta forma, o EMI se apresenta como uma possibilidade de avanço na construção de um ensino médio igualitário. Fundamentado no princípio da politecnia, se constitui na travessia para uma nova realidade, na qual os jovens das classes populares possam, assim como

    os das classes mais abastadas, ter acesso à continuidade dos estudos e à possibilidade de escolha de uma profissão apenas após a conclusão da educação básica, sendo uma forma de se romper com a dualidade estrutural que marca a educação brasileira.

    Em outro texto, Moura (2013a, p.705) confirma a perspectiva do EMI como uma possibilidade de se avançar na direção de uma educação que proporcione aos jovens da classe trabalhadora uma “formação omnilateral, integral ou politécnica de todos, de forma pública e igualitária e sob a responsabilidade do estado”, questionando se é possível que se caminhe nesta direção na atual sociedade brasileira, periférica e marcada pelo sistema capitalista. Tomando como referência os escritos de Karl Marx, Friedrich Engels e Gramsci, ratifica o EMI como a possível “travessia” entre a educação atual e a pretendida para a emancipação da classe trabalhadora, concluindo que o ensino médio deve garantir uma base unitária para todos, fundamentada na concepção de formação humana integral e tendo como eixos o trabalho, a ciência, a tecnologia e a cultura.

    Numa perspectiva aproximada, o ensaio de Rodrigues (2005) objetiva analisar os efeitos do Decreto nº 5.154/2004, que reestrutura as formas de oferta da educação profissional, e os limites impostos à educação pelo modo de produção capitalista, manifestados pela dualidade estrutural da escola. Diante deste contexto, retoma a concepção de educação politécnica “como um (ainda) novo horizonte de debate teórico, político e pedagógico para o campo da educação profissional” (2005, p.259).

    Aponta o texto intitulado “Sobre a concepção de Politecnia”, apresentado por Saviani no Seminário Choque Teórico em 1987, como um marco referencial nas discussões da área de trabalho e educação, principalmente para as discussões sobre as relações entre ensino médio e técnico como uma forma de superação da dualidade educacional brasileira. No entanto, apesar da repercussão deste marco, afirma que o debate entre ensino médio e técnico na perspectiva da politecnia ficou restrita a poucos interessados, mesmo após os efeitos do Decreto nº 2.208/1997, já comentados anteriormente, entrando novamente no cenário educacional a partir da promulgação do Decreto nº 5.154/2004.

    Estão no cerne destes debates posições contrárias nas quais um grupo entende ser este o caminho possível para a superação da dualidade entre educação profissional e ensino médio e, por outro lado, outro grupo considera ser este uma forma de naturalizar esta dualidade. A fim de superar esse impasse, Rodrigues propõe a retomada urgente do debate e a defesa da educação politécnica, assim como a luta contra o avanço do capital sobre o trabalho e contra uma educação fragmentada e voltada para a empregabilidade. Considera, enfim, que defender a politecnia é ir na contramão do avanço neoliberal e favor de uma educação omnilateral para a classe trabalhadora.

    Considerando o trabalho pedagógico como uma das formas históricas mais significativas de disciplinamento para a vida social e produtiva, no contexto das relações capitalistas de produção, Ignacio (2009) busca compreender de que forma o atual modo de produção capitalista, marcado pela acumulação flexível, abre espaço para que a concepção de educação politécnica ingresse na discussão das políticas educacionais brasileiras. Para o autor, a “desespecialização dos trabalhadores – e sua transformação em operários polivalentes – passa a ser uma demanda concreta do novo padrão de acumulação” (IGNACIO, 2009, p. 193), demanda esta que passa a nortear as políticas educacionais brasileiras.

    Conclui que as contradições presentes no sistema capitalista produzem brutais desigualdades ainda mais exacerbadas no modelo de acumulação flexível. Postula uma educação profissional voltada à classe trabalhadora, que vá além da simples formação de mão de obra para atender aos interesses do modo de produção capitalista mas, sim, uma educação que permita-lhes compreender sua condição histórica e social e contribuir de forma ativa na construção de uma nova sociabilidade, mais justa e igualitária.

    Buscando compreender como essas concepções são materializadas no cotidiano das escolas técnicas de nível médio, apresenta-se o estudo de Bezerra (2012) que, em sua dissertação de Mestrado, analisa as matrizes curriculares e os planos de ensino dos professores de Língua Estrangeira- inglês dos cursos técnicos de nível médio dos Institutos Federais, considera que as bases filosóficas, epistemológicas e pedagógicas do EMI são oriundas da concepção de educação omnilateral e politécnica de Marx e Engels, da

    escola unitária de Gramsci e do currículo integrado. Por outro lado, alega que os Institutos Federais (IF), têm por missão “escamotear a dualidade de classes brasileira via superação da dualidade histórica entre formação geral e formação profissional” (2012, p. 7).

    A análise de Bezerra, neste e em outro texto escrito em conjunto com seu orientador (BEZERRA; JOVANOVIC, 2015), evidencia que, apesar dos discursos presentes nos documentos institucionais seguirem na direção da formação humana integral, sua adoção ou não fica a cargo das instituições. Para os autores, a concepção de formação integral não é incorporada pelos planos curriculares e de ensino das instituições e seus professores. Os referidos autores concluem que o papel de adesão das instituições no aprofundamento dos construtos do EMI é fundamental para a sua materialização no âmbito escolar, com vistas a romper a dualidade histórica presente no sistema educacional brasileiro.

    Ao analisar a percepção dos docentes do curso técnico em Turismo do Instituto Federal do Pará - IFPA – Campus Belém, acerca da concepção de formação integral na prática docente, Figliuolo (2010, p. 8) aborda o EMI e a politecnia nos embates travados desde o seu início e apresenta, ainda, um breve histórico dos impactos, na Educação Profissional e no contexto mundial, dos organismos internacionais e sua relação com as Políticas Públicas para a Educação Profissional no Brasil.

    Figliuolo (2010) busca analisar as percepções dos docentes acerca de como está se dando, na prática, a integração entre ensino médio e educação profissional e o significado do Ensino Médio Integrado, procurando detectar os avanços e retrocessos dessa implementação. Conclui que é necessário investimento da instituição na formação continuada de professores, tanto das disciplinas gerais quanto das específicas do curso técnico em Turismo (2010).

    Tendo por objeto a relação trabalho-escola, Pergher (2012, p. 8), a partir da experiência desenvolvida no Instituto de Educação Josué de Castro, buscando analisar de que forma esta experiência demonstra o aporte teórico– prático da Pedagogia Socialista da classe trabalhadora na direção de seu projeto histórico, a partir da prática desenvolvida pelos educandos na escola. Discute a relação trabalho-escola tendo o trabalho como princípio educativo e

    ensaia elementos da perspectiva politécnica na escola à luz da Pedagogia Socialista.

    Pergher (2012) reafirma a “necessidade de uma alternativa radical a este modo de produzir a vida gerida e pautada pelo capital, que só pode ser fruto da luta dos trabalhadores, a necessidade do socialismo” (PERGHER, 2012, p. 144). Conclui que a relação trabalho-escola traz em seu bojo elementos de contraposição à lógica do capital e proporciona experiências alternativas nas relações de trabalho aos estudantes. Tal fato é destacado por ele como um ponto relevante na formação dos estudantes, contribuindo assim para o projeto educativo da classe trabalhadora, com base na Pedagogia Socialista e em elementos na perspectiva da politecnia.

    O conjunto dos trabalhos analisados revela aspectos fundamentais para a compreensão das discussões atuais sobre o EMI e como uma educação de nível médio, de base politécnica, pode se fazer presente nas políticas educacionais do país, no contexto das relações capitalistas de produção. Além disso, esses estudos conduzem a reflexões importantes sobre como esta educação, a partir da perspectiva da formação humana integral, pode ser materializada nas escolas brasileiras.

    Os estudos revelam que as práticas docentes e institucionais ainda não adotaram plenamente o EMI como uma possibilidade de formação inteira para os jovens da classe trabalhadora. Mesmo sendo esta uma discussão bastante difundida no meio acadêmico, como revela o número significativo de trabalhos encontrados, muitos aspectos ainda não foram discutidos ou abordados, causando uma lacuna que dificulta a compreensão profunda da concepção de formação humana integral e sua disseminação nos círculos que atuam diretamente com o EMI.

    Somam-se a essas discussões os acontecimentos recentes da política educacional brasileira, no qual se introduz um novo conjunto de reformulações que distanciam ainda mais educação básica e profissional numa perspectiva politécnica e emancipadora. Apresentando uma consistente retomada da trajetória histórica das reformulações do ensino médio, Ferretti (2016) evidencia que estas se resumem basicamente a alterações na estrutura e conteúdo do currículo. Quanto à educação profissional, enfatiza que suas Diretrizes Curriculares são “marcadas pelo hibridismo entre a concepção político-

    educacional pautada pela formação politécnica e omnilateral e a fundamentada na formação por competência” (FERRETTI, 2016, p. 85).

    A reforma do ensino médio que se realiza atualmente de forma bastante controversa pelo atual governo, instituída por meio do Projeto de Lei de Conversão (PLV) 34/2016, de 8 de fevereiro de 2017, mais uma vez modifica apenas o currículo deste nível de ensino. Sob o discurso de flexibilização e maior liberdade e autonomia para os estudantes do ensino médio, a atual reforma deixa claro que os projetos societários em disputa estão pendendo cada vez mais para o viés pragmatista, promovendo o esvaziamento deste nível de ensino. Neste contexto, a materialização da integração entre educação básica e profissional numa perspectiva politécnica se torna ainda mais distante.


  4. Considerações finais

À luz das análises realizadas pelos autores das publicações selecionadas, tem-se um panorama acerca das pesquisas sobre a formação humana no Ensino Médio Integrado. Estas análises são fundamentadas no materialismo histórico dialético, notadamente a partir das obras de Karl Marx, Friedrich Engels e Antônio Gramsci. A integração entre ensino médio e educação profissional, fundamentada na concepção de formação integral e no princípio da politecnia, é apresentada como uma possibilidade de superação da dualidade que marca a educação brasileira.

A proposta de uma educação de base politécnica para os jovens da classe trabalhadora por meio do EMI é então problematizada e discutida como o caminho a ser trilhado na busca da emancipação da classe trabalhadora e para a construção de uma cidadania participativa. No entanto, o atual estágio da sociedade brasileira, marcada pelo sistema capitalista, limita a realização deste projeto, reforçando a dualidade educacional como forma de sustentação de seu sistema político-econômico.

As pesquisas que abordam as percepções e práticas dos docentes sobre a concepção de politecnia, bem como dos currículos e políticas de gestão das instituições, demonstram que a materialização de uma formação humana integral, que tenha como fundamento o trabalho, a ciência, a tecnologia e a cultura, é algo possível, porém ainda distante da realidade do sistema educacional brasileiro. O investimento na formação continuada dos

docentes é, assim, proposto como um caminho para a superação destas limitações.

Diante das discussões propostas nos estudos analisados, entendemos que a temática da formação humana necessita ser ainda aprofundada, suscitando a necessidade de realização de novos estudos que avancem na direção da superação das limitações encontradas pelos autores. As discussões acerca da temática proposta neste trabalho devem, também, contribuir para a compreensão da concepção de politecnia como embasamento teórico a partir do qual se possam construir propostas educacionais capazes de materializar, de forma efetiva, a formação da classe trabalhadora na perspectiva de sua emancipação.

Por fim, as conclusões deste estudo revelam que o Ensino Médio Integrado é marcado pela dualidade estrutural e que sua materialidade, embasada numa concepção de educação politécnica, ainda não se efetivou na sociedade brasileira. Parte disso se deve às discussões ainda restritas sobre esta temática. Porém, apesar das limitações impostas pelo sistema capitalista, o EMI se constitui como possibilidade de formação emancipatória da classe trabalhadora, contribuindo para o desenvolvimento de sua autonomia e participação cidadã na busca por uma sociedade mais democrática.


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SAVIANI, D. O choque teórico da Politecnia. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 131-152, mar. 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981- 77462003000100010&lng=pt&nrm=iso. Acesso: jul. 2016.


WERMELINGER. M.; MACHADO, M. H.; AMÂNCIO FILHO, A. Políticas de

educação profissional: referências e perspectivas. Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.15, n.55, p. 207-222, abr./jun. 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ensaio/v15n55/a03v1555.pdf. Acesso: de 7 a 14 jul. 2016.

Quadro 1 – Trabalhos selecionados para a análise.




AUTORES

TIPO DE TRABALHO


OBJETIVOS


01


BEZERRA (2012)

Tese de Doutorado – Educação (USP)

Objetiva entender como a especificidade da forma integrada de ensino médio com a educação profissional deveria ser equacionada pelas instituições (Institutos Federais).


02


BEZERRA; JOVANOVIC (2015)


Artigo

Recorre à história, aos construtos teóricos e às políticas curriculares para apreender como o que é historicizado, almejado e prescrito (deveria) impacta(r) a materialização desse conjunto na elaboração da dimensão do planejamento de

ensino de Inglês no Ensino Médio Integrado.


03


FERRETTI (2009)


Artigo

Pretende, de um lado, situar ambas as concepções no universo teórico do materialismo histórico, ressalvando que, por não serem exclusivas deste universo, comparecem em outros, com diferentes significados. De outro lado, intenciona examinar, com algum detalhe, de que forma dois autores- chave - Marx e Gramsci - elaboram suas visões sobre as relações entre a educação e o trabalho mediadas pela concepção da politecnia e da formação integral e, de forma bastante breve, quais as aproximações e distanciamentos entre eles, relativamente a tal questão.


04


FIGLIUOLO (2010)

Dissertação de Mestrado em Educação (UnB)

O estudo tem por finalidade analisar a percepção dos docentes que atuam no Curso de Turismo do Instituto Federal do Pará, Campus Belém, em relação aos pressupostos da concepção de formação integral na prática docente.


05


IGNACIO (2009)


Tese de Doutorado – Educação (Unicamp)

Investiga em que grau, o nível alcançado pela base técnica da produção na atualidade, marcado pelo regime de acumulação flexível, dá as condições objetivas para que o a concepção politécnica de educação ingresse, definitivamente, no debate sobre políticas educacionais, ainda que seja no campo do contraditório e das lutas contra- hegemônicas, na medida em que, pelas relações

sociais de produção capitalista, o limite é a polivalência.


06


MOURA (2013a)


Artigo

Discute o ensino médio integrado à educação profissional técnica de nível médio como uma possibilidade de travessia na direção formativa pretendida para os jovens brasileiros.


07


MOURA (2010)


Artigo

Discute a relação entre a educação profissional (EP) e a educação básica (EB), especialmente o ensino médio (EM), assumindo como pressuposto a educação como direito igualitário de todos, tendo em vista a elaboração do novo Plano Nacional de

Educação (PNE) a partir da Conferência Nacional de Educação (CONAE 2010).


08


PERGHER (2012)


Dissertação de Mestrado em Educação (UFRGS)

A pesquisa se desenvolve em torno da problemática expressa nas seguintes questões: De que forma se dá a relação trabalho-escola no Instituto? Que potencialidades podem ser destacadas na participação dos educandos no

processo de trabalho no Instituto a partir de elementos teóricos e práticos? Em que medida a





relação trabalho escola que acontece no IEJC expressa o acúmulo teórico-prático da Pedagogia

Socialista da classe trabalhadora na direção do projeto histórico?


09


RODRIGUES (2005)


Ensaio

Analisa o recente decreto sobre educação profissional, nº 5.154/04, considerando os limites estruturais impostos pelo modo de produção capitalista à educação, que se manifestam no fenômeno da dualidade estrutural escolar. A partir daí, retoma a concepção de educação politécnica, como um (ainda) novo horizonte de debate teórico,

político e pedagógico para o campo da educação profissional.


10


SAVIANI (2003)


Artigo

O trabalho se originou do Seminário Choque Teórico, realizado em 1987 e organizado pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio. Convidado a participar desse seminário para tratar da concepção de politecnia, o autor fez uma exposição oral, posteriormente publicada em livro (Saviani, 1989). A parte I deste artigo é constituída pela versão revista da exposição apresentada no referido seminário. A parte II retoma a discussão do conceito de politecnia, trazendo novos elementos para a compreensão de seu significado, em correlação com a situação histórica atual.


11


WERMELINGER; MACHADO; AMÂNCIO FILHO (2007)


Ensaio

Revisita o processo histórico de construção do modelo de educação profissional de nível médio vigente no Brasil, procurando identificar aspectos que auxiliem na compreensão de questões pertinentes a essa modalidade de ensino. Aborda a dualidade do ensino médio, a associação entre discriminação social e ocupações técnicas, a contenção de demanda ao nível superior de ensino, a formação integral do cidadão e a formação para o mundo do trabalho, situando a educação

profissional na área da saúde nesse contexto.

Fonte: Repositório CAPES (2016)/Elaboração própria.


Recebido em: 30 de outubro de 2017. Aprovado em: 28 de novembro de 2017. Publicado em: 31 de janeiro de 2018.

CONCEPÇÕES TEÓRICO-PRÁTICAS DA FORMAÇÃO INICIAL E CONTINUADA DE PRECEPTORES E RESIDENTES DO PROGRAMA DE RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL EM SAÚDE DE UM HOSPITAL PÚBLICO DA REGIÃO SUL¹


Elisabeth de Fátima da Silva Lopes2 Carmen Lucia Bezerra Machado3


Resumo

O artigo aborda as concepções teórico-práticas da formação inicial e continuada de preceptores e residentes de um Programa de Residência Multiprofissional em Saúde. Trata-se de uma pesquisa qualitativa orientada pelo método materialista dialético-histórico. Conclui-se que tanto a formação inicial e continuada dos preceptores e dos residentes, embora o lapso de tempo entre essas, não se diferenciaram, resultando em práticas de formação e de trabalho ainda distantes dos objetivos propostos no Programa de Residência pesquisado. Entretanto, a residência tem estimulado os profissionais a repensarem práticas que expressem a realização do trabalho integrado em saúde.


Palavras-chave: Trabalho; Formação em saúde; Residência multiprofissional.


Resumen

El artículo aborda las concepciones teórico-prácticas de la formación inicial y continuada de preceptores y residentes de un Programa de Residencia Multiprofesional en Salud. Se trata de una investigación cualitativa orientada por el método materialista dialéctico-histórico. Se concluye que tanto la formación inicial y continuada de los preceptores y de los residentes, aunque el lapso de tiempo entre ellas, no se diferenció, resultando en prácticas de formación y de trabajo aún distantes de los objetivos propuestos en el Programa de Residencia investigado. Sin embargo, la residencia ha estimulado a los profesionales a repensar prácticas que expresen la realización del trabajo integrado en salud.


Palabras clave: Trabajo; Formación en salud; Residencia multiprofesional.



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1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.15i28.p9644

2 Dra. Elisabeth de Fátima da Silva Lopes, pedagoga do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. E- mail: vvitvvit@gmail.com

3 Dra. Carmen Lucia Bezerra Machado, professora titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: carmen.machado@ufrgs.br

Introdução

Entendemos a formação como um processo de aprendizagens e experiências mediatizado por múltiplas determinações e contradições sociais, que produz mudanças singulares no ser social que se forma. Nesse sentindo, Freire menciona que “quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado [...]” (1996, p.23). A formação é um processo coletivo.

Ao investigarmos as concepções teórico-práticas da formação inicial e continuada de preceptores e residentes3 do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde de um Hospital Público da Região Sul nos acercamos de uma figura de linguagem criada por Antonio Gramsci em uma de suas obras, “Cadernos do Cárcere” (2002), denominada de “miscelâneas”. Preso político pelo governo fascista, privado de sua liberdade, sem amplo acesso aos saberes constituídos e circulantes no seu tempo, Gramsci constrói seus “Cadernos do Cárcere” nessa materialidade, recebendo em vários momentos de sua construção partes que denominou “Miscelâneas”. Este termo que no Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa tem o significado de: “Mistura de variadas compilações literárias. Mistura de coisas diversas” (2008, p. 339), para o autor designa conjuntos de informações e ou textos já organizados, mas que não pretendem esgotar o assunto. Utilizamos o termo na combinação destes dois sentidos. Concebendo a formação como um devir, não pretendemos esgotar a temática e, tampouco, a análise sobre a formação inicial e continuada dos sujeitos pesquisados. Os dados podem ser retomados em novas pesquisas desencadeadas a partir deles.

Este artigo é composto pelas miscelâneas de alguns aspectos teóricos e práticos da formação inicial e continuada dos sujeitos da pesquisa, a partir do resgate oral sobre o vivido em suas formações em saúde como algo que continua se constituindo no presente num processo histórico inacabado. Há um lapso de tempo entre as formações iniciais dos preceptores e residentes. Estes após a vigência das atuais Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para a formação em

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3 Preceptores são os profissionais de saúde, contratados do hospital, que orientam e acompanham de modo teórico-prático, os residentes ao longo de toda a formação em serviço. Residentes são os profissionais de saúde, que fazem um curso de especialização latu sensu oferecido por um Programa de Residência em Instituições de saúde.

saúde, publicadas a partir de 2001, e metade dos preceptores antes da vigência dessas Diretrizes. Como uma política pública intersetorial entre o Ministério da Saúde e Ministério da Educação para a formação e desenvolvimento de profissionais da saúde, as DCN têm seu marco regulatório inspirado no Art. 200, inciso III da Constituição Federal (CF) de 19884 e suas orientações a partir das proposições da Reforma Sanitária Brasileira (RSB)5. Estão inspiradas também na pedagogia do aprender a aprender6. Embora esse arcabouço pedagógico, estudos apontam que a formação dos profissionais da saúde realizada nas universidades permanece distante do proposto na RSB. Ceccim observa que as “Instituições formadoras têm perpetuado modelos essencialmente conservadores, centrados em aparelhos e sistemas orgânicos e tecnologias altamente especializadas” (2004a, p. 42).

A pesquisa sobre as concepções teóricas e práticas da formação inicial e continuada dos preceptores e residentes tornou-se imprescindível no estudo da repercussão daquelas nas práticas desenvolvidas no programa investigado no sentido de oferecer contribuições para o repensar dessas práticas.


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4 CF/88 - Art. 200 - Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: III - ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acessado em 23-09- 16.

5 O texto das DCN menciona como objetivo: “permitir que os currículos propostos possam construir

perfil acadêmico e profissional com competências, habilidades e conteúdos, dentro de perspectivas e abordagens contemporâneas de formação pertinentes e compatíveis com referências nacionais e internacionais, capazes de atuar com qualidade, eficiência e resolutividade, no Sistema Único de Saúde (SUS), considerando o processo da Reforma Sanitária Brasileira ( grifo nosso)” (BRASIL, 2001).

6 Em entrevista à Revista Rubra, Demerval Saviani ao ser perguntado sobre quem seriam os defensores da pedagogia do aprender a aprender, referiu que essa pedagogia tem sido a grande referencia dominante, presente nos documentos oficiais internacionais reproduzidos em diversos países. As Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos da Saúde constituem um dos expressivos exemplos da reprodução da pedagogia citada. Saviani fala na revista que: “O Relatório Jacques Delors das Nações Unidas sobre educação para o século XXI tem como eixo essa orientação do “aprender a aprender” e os países reproduzem isso nas suas políticas educativas. É uma pedagogia que tem origem na escola nova, no construtivismo de Piaget, que estava apoiado no keynesianismo. Agora foi recuperada, no contexto político do neoliberalismo. A ideia é que todo o ambiente é educativo – aprende-se em diferentes lugares, em diferentes circunstâncias e também na escola. Em razão disso, a visão rígida foi superada em benefício de uma sociedade flexível em que nada se pode prever. A escola não pode formar para 5 ou 10 anos. Não se sabe como vai ser o futuro que está em constante mudança. Portanto, a escola não deve ensinar algo mas apenas aprender “[…] No Brasil introduzem parâmetros curriculares nos temas 'transversais' – é como se os temas não fossem objeto desta ou daquela disciplina mas atravessam todo o currículo – educação cívica, moral, ambiental, sexual”. Disponível em: http://www.revistarubra.org/?page_id=171. Acessado em 15/02/17.

Método

Este artigo resultou de parte de uma pesquisa qualitativa realizada sob a orientação do método materialista dialético-histórico. O materialismo dialético tem sido considerado como a filosofia do marxismo. Nessa concepção metodológica, a realidade material é estudada e interpretada como essencialmente contraditória e em permanente transformação. Conforme o dicionário do pensamento Marxista, “o conflito dos contrários faz avançar a realidade num processo histórico de transformação progressiva e constante” (BOTTOMORE, p. 259, 2001). O materialismo histórico, por sua vez, constitui a parte da filosofia marxista que aplica os princípios do materialismo dialético no estudo da vida social. Para Friedrich Engels (1981) é uma visão do desenvolvimento da história que busca a causa final e a força motriz que move os acontecimentos históricos significativos no desenvolvimento econômico da sociedade, nas transformações dos modos de produção, na divisão e na luta de classes.

A coleta de informações se deu pela história oral temática sobre a formação inicial e continuada dos preceptores e residentes do programa de residência pesquisado. Para a definição da amostra foi estabelecido, como critério prévio os entrevistados, serem egressos de graduação em saúde, participantes do programa entre 2010 a 2014.

Foram realizadas entrevistas com seis residentes e seis preceptores, representantes dos seis núcleos profissionais do programa, ou seja, com educadores físicos, assistentes sociais, nutricionistas, enfermeiros, farmacêuticos e psicólogos, integrantes das Áreas de Concentração do Programa na ocasião: Adulto Crítico, Saúde Mental, Saúde da Criança, Controle de Infecção Hospitalar e Onco- Hematologia. Elaboramos, portanto, dois roteiros de entrevista. Um para o segmento de preceptores, outro para o segmento de residentes.

O estudo foi aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da instituição, preservada sua identificação.

As possibilidades da análise e resultados foram organizadas por meio da realização de entrevistas semiestruturadas aprofundadas. Segundo Triviños (2001) essas constituem uma das "ferramentas" utilizadas pela pesquisa qualitativa para atingir seus objetivos.

Lançamos mão da “história oral temática”, uma vez que focamos a escuta dos sujeitos desta pesquisa nos temas que constituíram o processo histórico de suas formações em saúde. A história oral é definida como


um método de pesquisa (histórica, antropológica, sociológica etc.) que privilegia a realização de entrevistas com pessoas que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos, conjunturas, visões de mundo, como forma de se aproximar do objeto de estudo (ALBERTI, 2001, p.18).


O emprego da história oral gera a possibilidade da recuperação de informações que não se encontram em documentos, tais como: experiências pessoais, concepções, vivências de um acontecimento na prática.

Meihy aponta a história oral temática como uma modalidade da história oral e argumenta que essa abordagem busca “a verdade de quem presenciou um acontecimento ou pelo menos dele tenha alguma versão que seja discutível ou contestatória” (1996, p.41). Nesse sentido, necessitávamos ouvir dos sujeitos da pesquisa o vivido em seu passado distante e recente, a recuperação de suas histórias orais sobre o tema – formação inicial e continuada em saúde, por isso histórias orais temáticas. Entretanto, essas histórias só abrangeriam o propósito de um estudo de caso qualitativo, se fossem acrescidas de uma gama de informações provenientes de outras fontes, analisadas a partir de uma interpretação dialética. Cada entrevistado, ao narrar sua formação e práticas profissionais, recuperou nesses aspectos a materialidade de sua existência, circundada pelos mais variados contextos sociais.

Foram descritas as concepções dos sujeitos sobre educação em saúde, os aspectos facilitadores e dificultadores de suas formações e práticas profissionais, suas percepções sobre os aspectos pedagógicos da formação e referenciais teóricos que a compuseram, além de suas representações sobre os âmbitos estruturais e conjunturais que produziram a materialidade de suas graduações.


Miscelâneas da formação em saúde

No sentido de apreendermos as contradições que compõem a realidade que produziu e produz as formações dos trabalhadores da saúde foi necessário percorrermos os movimentos que resultaram em mudanças estruturais expressivas e decisivas politicamente no âmbito da saúde e da educação em

saúde entre essas, a Reforma Sanitária Brasileira e mais tarde a criação do SUS. Frigotto diz que nos anos 80, tanto a luta pela reforma na saúde, quanto a desenvolvida no campo educacional fazem parte de um “contexto mais amplo de mudanças societárias estruturais, de forte determinação política, de mobilização e luta da sociedade por seus direitos sociais e subjetivos (2008, s.p.).

Entre esses acontecimentos, a 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), em 1986, constituiu um movimento importante de ativações de mudanças no modo de pensar a saúde no Brasil. Mais de cinco mil representantes de todos os segmentos da sociedade civil problematizaram acerca de um novo entendimento de saúde para o país, como direito do cidadão e dever do Estado. O conteúdo textual e político produzido na 8ª CNS resultou no nascimento do Sistema Único de Saúde (SUS), garantido na CF de 1988 e regulamentado pelas Leis 8.080/90 e 8.142/907 que determinam os princípios legais para o funcionamento de sua rede


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7 A Lei 8.080 de 19 de setembro de 1990: Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. A Lei 8.142 de 28 de dezembro de 1990: Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências.

8 A Lei 8080/1990 no Art. 6º, inciso XI, § 1º, define Vigilância Sanitária como “um conjunto de

ações capazes de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e da circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde, abrangendo: I - o controle de bens de consumo que, direta ou indiretamente, se relacionem com a saúde, compreendidas todas as etapas de processo, da produção ao consumo; II - o controle da prestação de serviços que se relacionam direta ou indiretamente com a saúde” (BRASIL, p. 10, 2002).

9 A Lei 8080/1990 no Art. 6º, inciso XI, § 2º define a vigilância epidemiológica como: um conjunto de ações que proporcionam o conhecimento, a detecção ou prevenção de qualquer mudança nos fatores determinantes e condicionantes de saúde individual ou coletiva, com a finalidade de recomendar e adotar as medidas de prevenção e controle das doenças ou agravos (BRASIL, 1990).

10 A Lei 8080/1990 no Art. 6º, inciso XI, § 3º define a saúde do trabalhador como: um conjunto de atividades que se destinam, através das ações de vigilância epidemiológica e vigilância sanitária, à promoção e proteção da saúde dos trabalhadores, assim como visa à recuperação e reabilitação da saúde dos trabalhadores submetidos aos riscos e agravos advindos das condições de trabalho, abrangendo: I - assistência ao trabalhador vítima de acidentes de trabalho ou portador de doença profissional e do trabalho; II - participação, no âmbito de competência do Sistema Único de Saúde (SUS), em estudos, pesquisas, avaliação e controle dos riscos e agravos potenciais à saúde existentes no processo de trabalho; III - participação, no âmbito de competência do Sistema Único de Saúde (SUS), da normatização, fiscalização e controle das condições de produção, extração, armazenamento, transporte, distribuição e manuseio de substâncias, de produtos, de máquinas e de equipamentos que apresentam riscos à saúde do trabalhador; IV- avaliação do impacto que as tecnologias provocam à saúde; V - informação ao trabalhador e à sua respectiva entidade sindical e às empresas sobre os riscos de acidentes de trabalho, doença profissional e do trabalho, bem como os resultados de fiscalizações, avaliações ambientais e exames de saúde, de admissão, periódicos e de demissão, respeitados os preceitos da ética profissional; VI - participação na normatização, fiscalização e controle dos serviços de saúde do trabalhador nas instituições e empresas públicas e privadas; VII - revisão periódica da listagem oficial de doenças originadas no processo de trabalho, tendo na sua elaboração a colaboração das entidades sindicais; e VIII - a

assistencial. É orientado pelo atendimento integral, pela priorização das ações preventivas, entre essas, as ações de vigilância sanitária8, vigilância epidemiológica9, saúde do trabalhador10, sem o descuido das ações assistenciais, pelo controle da população sobre os serviços oferecidos e pela descentralização, mas com direção única em cada esfera de governo.

Em meio aos cenários do final da década de setenta e pós-criação do SUS os preceptores e residentes realizaram suas formações em saúde. Os preceptores entre 1974 e 2003 e os residentes entre 2008 e 2010.

Nessa materialidade, a história oral sobre alguns aspectos das formações dos sujeitos de pesquisa vai sendo tecida ao longo de suas memórias de um tempo longínquo para alguns e recente para outros:


Preceptor Enfermeiro: A minha formação só transmitiu conhecimentos e foi com muito pouco debate, pouca atuação do aluno. Não me preparou para trabalhar na lógica do SUS. Durante os meus vinte e sete anos trabalhando num hospital público, ninguém me preparou para trabalhar no SUS.


Residente Nutricionista: A graduação na universidade pública em que me formei foi muito voltada para clínica, não me preparou para atuar no SUS. E para trabalhar com o SUS eu tive somente uma cadeira que abordava a parte de nutrição e da saúde comunitária. Só que o modo como eles abordaram na faculdade não foi atrativo. É muito complicado tu discutires só em cima de lei e ler lei, tu não te motivas. É uma cadeira que ninguém gosta. Então é muito difícil, por exemplo, alguém querer seguir a área de saúde comunitária ou saúde da família. Não instiga a curiosidade. Eles têm uma visão muito hospitalar.


A primeira narrativa acima trata das vivências da formação inicial de um preceptor, que concluiu seu curso há mais de 20 anos. A segunda relata as vivências de um residente que realizou seu curso a partir das atuais DCN. Apesar da distância entre uma e outra os dois realizaram suas formações na perspectiva biomédica, ainda dominante. Sobre esse aspecto, Ceccim e Feuerwerker referem:


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garantia ao sindicato dos trabalhadores de requerer ao órgão competente a interdição de máquina, de setor de serviço ou de todo ambiente de trabalho, quando houver exposição a risco iminente para a vida ou saúde dos trabalhadores (BRASIL, 1990).


O modelo pedagógico hegemônico de ensino é centrado em conteúdos, organizado de maneira compartimentada e isolada, fragmentando os indivíduos em especialidades da clínica, dissociando conhecimentos das áreas básicas e conhecimentos da área clínica, centrando as oportunidades de aprendizagem da clínica no hospital universitário, adotando sistemas de avaliação cognitiva por acumulação de informação técnico-científica padronizada, incentivando a precoce especialização, perpetuando modelos tradicionais de prática em saúde (CECCIM; FEUERWERKER, 2004a, p. 1402).


A permanência ativa do modelo hegemônico na formação dos trabalhadores da saúde, para além das propostas mais progressistas materializadas nos anos dois mil, é fortemente vivificada pelas influências internacionais do Banco Mundial (BM) e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura (UNESCO). Segundo Melo, “A formação do trabalhador [..] vai se modificando nas propostas do BM e da UNESCO, na direção da conformação a estas novas necessidades para o trabalhador polivalente e flexível” ( 2004, p.190).

A polivalência, muito em voga atualmente, propõe um trabalhador crítico, reflexivo, como apontam os textos das atuais DCN11 com diversificadas “competências, habilidades e atitudes” exigidas como performance nos postos de trabalho.

Essas Diretrizes mediadas por um terreno de contradições, além de terem absorvido as características apontadas por Melo, em seu reverso, buscaram subsídios nos princípios do SUS, propondo um perfil de formação generalista, humanista, crítica e reflexiva. Em suas propostas ficam visíveis as marcas das políticas públicas de saúde, de educação e do projeto de sociabilidade neoliberal


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11 O texto das DCN do Curso de Graduação em Enfermagem aponta no perfil do formando egresso/profissional em enfermagem, entre outras proposições, a formação: “generalista, humanista, crítica e reflexiva. Profissional qualificado para o exercício de Enfermagem, com base no rigor científico e intelectual e pautado em princípios éticos. Capaz de conhecer e intervir sobre os problemas/situações de saúde-doença mais prevalentes no perfil epidemiológico nacional, com ênfase na sua região de atuação, identificando as dimensões biopsicossociais dos seus determinantes. Capacitado a atuar, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano”. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/Enf.pdf, acessado em 24-08-13. (O grifo no texto é meu). O texto das DCN do Curso de graduação em Nutrição também refere no perfil do formando egresso/profissional em Nutrição: “a formação generalista, humanista e crítica”. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/Nutr.pdf, acessado em 24-08-13.

dos organismos internacionais resultantes das relações de poder e dos embates das forças contraditórias presentes na sociedade brasileira.

No entendimento de Ito (2006), se a proposta das DCN fosse bem trabalhada poderia trazer resultados positivos à formação no sentido de atender às reais necessidades dos problemas de saúde. No entanto, a autora adverte que ainda existem muitas contradições que impedem uma mudança efetiva na formação, algumas delas produzidas pelos próprios docentes, tais como: “a pouca reflexão sobre a docência, o distanciamento dos serviços de saúde com o reforço à clássica dicotomia entre o pensar e o fazer, além do autoritarismo, fragmentação e tecnicismo” (ITO, 2006, p. 574).

Nesse cenário, os programas de Residência Multiprofissionais em Saúde, espalhados pelo Brasil, inserem-se como uma política pública, que traz em suas proposições o empenho de dar conta do trabalho integrado e dos princípios do SUS e, de certo modo, desenvolver na formação em serviço o que não foi praticado, durante a formação graduanda. Constitui-se de um curso de especialização lato sensu com duração de 24 meses desenvolvidos em instituições de saúde. A formação em serviço, nessa modalidade, segue as determinações da CF de 1988, art. 200, incisos III e IV12, da Lei 8.080/90, art. 6, inciso III e art. 1513 e, em específico, da Lei 11.129/2005, art. 1314 que cria o Programa de Residência para as demais profissões da saúde, excetuando a área da medicina que desde 1977 já possui essa modalidade de ensino.

Contraditoriamente ao que almejam, as residências multiprofissionais são propostas de especializações que, se levadas na lógica dominante da formação


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12 Constituição Federal do Brasil de 1988 - Art. 200: Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: inciso III - ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde; inciso IV - participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico.

13 Lei 8.080 de 1990: Art. 6º Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS): inciso III - a ordenação da formação de recursos humanos na área de saúde; Art.

15. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios exercerão, em seu âmbito administrativo, as seguintes atribuições: inciso I - definição das instâncias e mecanismos de controle, avaliação e de fiscalização das ações e serviços de saúde.

14 Lei 11.129 de 2005: Art. 13. Fica instituída a Residência em Área Profissional da Saúde, definida como modalidade de ensino de pós-graduação lato sensu, voltada para a educação em serviço e destinada às categorias profissionais que integram a área de saúde, excetuada a médica Art. 14. Fica criada, no âmbito do Ministério da Educação, a Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde - CNRMS, cuja organização e funcionamento serão disciplinados em ato conjunto dos Ministros de Estado da Educação e da Saúde.

em saúde, poderão aprofundar ainda mais o que criticam em relação à formação nas residências médicas que seguem, prioritariamente, o modelo biomédico com ênfase em especializações e superespecializações, como menciona Pustai (2006), ao analisar a medicina científica moderna.

Além da residência multiprofissional, existem programas que buscam aproximar a formação aos eixos orientadores do trabalho em saúde necessário ao fortalecimento do SUS. Entre esses, destacamos o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde, o PET-Saúde15 e o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde - o Pró Saúde16. Estes têm como balizadores propostas de formação que vislumbrem a produção de conhecimentos e práticas em cenários estratégicos do sistema de saúde, além da tentativa de darem concretude às DCN para os Cursos de Graduação em Saúde. No entanto, mesmo



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15 Conforme referido no portal da Saúde o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde) é regulamentado pela Portaria Interministerial nº 421, de 03 de março de 2010, disponibilizando bolsas para tutores, preceptores (profissionais dos serviços) e estudantes de graduação da área da saúde. Tem como objetivo geral: propiciar a formação de grupos de aprendizagem tutorial em áreas estratégicas para o SUS com a pretensão de qualificar os profissionais da saúde em serviço, bem como de iniciação ao trabalho e vivências dirigidos aos estudantes das graduações em saúde, de acordo com as necessidades do SUS. Tem como objetivos específicos: facilitar o processo de integração ensino-serviço-comunidade; Institucionalizar as atividades pedagógicas dos profissionais dos serviços de saúde; Valorizar estas atividades pedagógicas; Promover a capacitação docente dos profissionais dos serviços; Estimular a inserção das necessidades do serviço como fonte de produção de conhecimento e pesquisa na universidade; Incentivar o ingresso de profissionais do serviço na carreira docente. Expectativas do PET- Saúde: fortalecer a integração ensino-serviço-comunidade; a qualificação/fortalecimento da Atenção Básica em Saúde e da Vigilância em Saúde; o desenvolvimento de planos de pesquisa em consonância com áreas estratégicas de atuação da Política Nacional de Atenção Básica em Saúde e da Vigilância em Saúde; a constituição de Núcleos de Excelência Clínica Aplicada à Atenção Básica em Saúde; o estímulo para a formação de profissionais de saúde com perfil adequado às necessidades e às políticas públicas de saúde do país; a publicações e participação dos professores tutores, preceptores e estudantes em eventos acadêmicos; o desenvolvimento de novas práticas de atenção e experiências pedagógicas, contribuindo para a reorientação da formação e implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de graduação da área da saúde; e a satisfação do usuário SUS. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/saude/profissional/area.cfm?id_area=1597. Acessado em: 11/06/12.

16 O Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde) foi instituído pelo Ministério da Saúde, por meio da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES), em parceria com a Secretaria de Educação Superior (SESU) e com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), do Ministério da Educação (MEC), e com o apoio da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Tem como objetivo a integração ensino-serviço, visando à reorientação da formação profissional, assegurando uma abordagem integral do processo saúde-doença. Tem como estratégias: a articulação entre as Instituições de Ensino Superior e o servidor público de Saúde, a potencialização de respostas às necessidades concretas da população brasileira, mediante a formação de recursos humanos, a produção do conhecimento e a prestação dos serviços com vistas ao fortalecimento do SUS. Disponível em: http://prosaude.org/not/prosaude-maio2009/proSaude.pdf. Acessado em 11/06/13.

com essas iniciativas ainda não sentimos a repercussão esperada por tais programas.

A formação dos profissionais por meio do PET Saúde e do Pró Saúde, de modo geral hospitalocêntrica, ainda está subsumida pela lógica biomédica do cuidado, centrada no médico, no procedimento e, marcadamente, fragmentada nas relações entre os profissionais. Com algumas exceções, vislumbram-se práticas em saúde com processos e fluxos aproximados da lógica da clínica ampliada, que leva em consideração os aspectos preconizados pelos princípios do SUS e a perspectiva do cuidado centrado no paciente. Nesse sentido, Aguiar, Nery e Peixoto ao relatarem uma experiência derivada de um PET-Saúde, implantado na Universidade de Brasília e inserido na realidade da comunidade do Paranoá-DF, durante o período 2009-2010, indicam alguns aspectos dificultadores, entre outros, para o sucesso efetivo desse programa:


Ausência de um secretariado dentro da Regional de Saúde para assuntos específicos do PET atrasam o desenvolvimento de atividades. A não fixação de equipe de gestores locais gera uma necessidade de frequentes repactuações, havendo, muitas vezes, falta de investimentos da Secretaria de Saúde em equipamentos básicos para a realização das atividades. As dificuldades também estão presentes dentro da própria Universidade, por intermédio de um baixo apoio da direção (AGUIAR et al., 2010, p.682).


Ao problematizarmos o conceito ampliado de saúde, pensado na 8ª CNS, contrário ao entendimento de que a saúde é a simples ausência de enfermidade, ou “um completo estado de bem-estar físico, mental e social (conceito da Organização Mundial de Saúde – OMS), observa-se que mesmo com o propósito de buscar a superação da tradição higienista e curativa por meio da determinação social da doença e de propor o rompimento com o conceito da OMS caracterizado na visão de Dejours (1986) e Caponi (1997) como utópico ou subjetivista, o que presenciamos, no dia-a-dia da formação em saúde, são pequenas e tímidas mudanças periféricas que não provocam rupturas no modelo hegemônico. Apesar do mérito do conceito ampliado de saúde ter articulado a formação aos aspectos sociais, tal providência “não pode ser entendida como um meio e um instrumento de transformação da sociedade como um todo, como o eixo principal e norteador das lutas de mudanças da sociedade” (LUNARDI,1999, p. 29).

A compreensão ampliada da saúde, portanto, requer a convicção de que as possibilidades de transformações da sociedade estejam aliadas a rupturas de

aspectos estruturais e conjunturais da ordem capitalista que não se resumem às resoluções encaminhadas somente no campo da saúde. Este é apenas um entre tantos campos que, dialeticamente, se mediatizam no metabolismo da sociedade. Nos caminhos da investigação proposta, as falas abaixo evidenciam a formação positivista, pautada pela lógica dominante nas diversas profissões com algumas mudanças na formação do assistente social, conforme referida pela

preceptora:


Residente nutricionista – Nos campos de estágio que eu fiz em hospitais públicos não é explorado o fato de sermos profissionais do SUS, isso não é abordado, não é trabalhado ter um olhar integral do paciente. Os estágios me ajudaram mais na logística como profissional, sabe, tu aprenderes o jeito que tu abordas o paciente e o que podes fazer no atendimento individual, mas nada conectado com o SUS.


Preceptor assistente social – Eu faço parte de uma formação positivista. Nos anos 70 a nossa faculdade seguia o modelo do Serviço Social americano. Durante muito tempo a área da saúde seguia o modelo biomédico. Em meados dos anos 80, a associação brasileira de ensino e pesquisa na área da assistência social começou a fazer toda uma revisão para criar no Serviço Social um movimento de reconceituação que rompe com a linha positivista, funcionalista, mas nem todas as faculdades estão comprometidas com isso.


Segundo Couto o atual currículo enfatiza o Serviço Social como profissão orientada pela teoria social crítica, tendo seu pluralismo assegurado como valor (2004). Por outro lado, mesmo que desfigurado pelo MEC, quando chancelado legalmente em 2001, a sua origem continua sendo um marco ético-político para a formação em Serviço Social.

Por outro lado, embora as mudanças relatadas pela assistente social, formada nos anos setenta, tenham rompido com o ideário biomédico, sobretudo, pelas próprias peculiaridades do seu campo de atuação, a narrativa abaixo de uma residente, recentemente graduada, vai, em parte, de encontro à efetividade dessas mudanças no âmbito da formação inicial:


Residente Assistente Social – A minha graduação na verdade não me preparou para eu trabalhar no SUS. Na grade curricular do serviço social havia uma disciplina de políticas públicas uma vez por semana em seis meses, onde víamos as três políticas que compõe a seguridade social do cidadão no Brasil e a respectiva bibliografia que eu e minhas colegas não dávamos conta de ler em razão de estudarmos à noite e trabalhar de dia em outro setor

fora do serviço social. O peso da minha formação foi voltado para a assistência social. Essa disciplina foi a única na qual tive contato com o SUS.


Essa residente realizou sua graduação numa universidade privada no turno da noite. É importante referir o quanto os cursos noturnos, única possibilidade para os trabalhadores que não dispõem de turnos livres, são, de modo geral, os responsáveis pela formação de grande parte do contingente dos trabalhadores. As condições para experiências de estágio são reduzidas e no caso do Serviço Social restam as atividades pontuais de assistência social tais como: albergues, plantões noturnos nos serviços assistenciais oferecidos pelo Estado ou Organizações Não Governamentais (ONGS), trabalhos voluntários, entre outros. Na sequência de sua narrativa a residente destaca essa questão:


Residente Assistente Social – Na minha graduação eu vivia um dilema, porque eu não tinha experiência como assistente social, tinha apenas a teoria. As opções para quem fazia curso noturno e trabalhava de dia seria realizar o estágio à noite e a única alternativa oferecida era nos albergues ou no Departamento Médico Legal.


O curso noturno realizado pela residente manteve-se distante da apropriação das mudanças curriculares promovidas nos anos noventa pela Associação Brasileira de Ensino de Serviço Social e pelo Centro de Pesquisa e Documentação em Serviço Social (MACIEL, 2006).

A década de noventa como reduto das políticas neoliberais de mercado, da regressão de direitos e da flexibilização das conquistas trabalhistas, ofereceu o terreno fértil para a afirmação de uma concepção de formação do profissional fragmentada e precarizada. Nesse horizonte “embora sob formas mais sofisticadas, continuam a servir eficientemente aos interesses das várias frações do capital” (COUTINHO, 2005, p. 13).

A proposta neoliberal de educação e a consequente proliferação de cursos aligeirados e massificados de ensino superior limitam as proposições das reformas curriculares, pensadas no final dos anos setenta e anos oitenta, motivadas pela necessidade de reestruturação do processo de trabalho em saúde e pela premente modificação de seu modelo assistencial. Frigotto acentua que nos anos noventa: “A dimensão certamente mais profunda e de consequências mais graves no plano do desmonte da esfera pública foi a privatização do

pensamento pedagógico” (2006, p. 46). Essa dimensão é sentida fortemente na saúde, como podemos observar na fala de mais um sujeito ao referir-se sobre sua formação inicial realizada numa instituição privada, ao final da década de noventa:


Preceptor psicólogo – A minha formação como psicóloga foi prioritariamente clínica e me detive muito nisso. A minha faculdade priorizava a psicanálise. Entre as disciplinas no curso de psicologia, a de psicologia social trabalhou alguma coisa voltada para as políticas, mas muito pouco sobre o SUS.


A narrativa do preceptor revela a desconexão da formação em relação à apropriação dos fundamentos do SUS. Em igual medida a fala do residente, graduado em 2009 numa universidade pública, não foge tanto da realidade do preceptor de psicologia formada dez anos antes. Mesmo após 21 anos dos atuais

27 de existência do SUS a formação ainda se realiza, hegemonicamente, na lógica médico-centrada, medicalizante, biomédica e da especialidade:


Residente farmacêutico – A formação inicial dos profissionais ainda é para atuar exatamente no enfoque biomédico do hospital. A graduação não forma o profissional para o SUS, forma o profissional para resolver os problemas da profissão. Os profissionais que estão dando aulas para nós, na residência, ainda são formados nessa lógica. Eles estão conseguindo dar aulas na perspectiva do SUS só no teórico. Na prática ainda não conseguiram implementar as propostas, pois eles também estão aprendendo junto conosco. As tentativas de mudança ocorrem, só que às vezes acabam caindo no modelo atual do hospital.


As demais narrativas, citadas a seguir, configuram um panorama no mesmo sentido. O primeiro sujeito formado em 2010, o segundo em 2002, o terceiro em 2003 e o quarto em 1991 caminham na mesma direção. Por outro lado, algumas trajetórias que deram sentido a uma formação ampliada para a atuação na saúde, na perspectiva dos fundamentos do SUS, foram propiciadas pelas experiências de vida dos sujeitos, pelas iniciativas pessoais, como assinalado pelas narrativas do residente de farmácia e do preceptor graduado em Educação Física:


Residente farmacêutico – Eu tive contato com o SUS, porque eu procurei estágios na rede básica de saúde. Ali eu tive contato com a rede, com os pacientes. Eu queria ter um pouco de experiência, de contato com o paciente. Apesar de ser farmacêutica, que é um profissional que tem bastante contato com o paciente, a universidade não proporcionava tal contato. Era um estágio extra, fora da faculdade, por minha vontade, eu que fui atrás.


Preceptor nutricionista – A minha graduação em nutrição, em 2002, não me preparou em nada para trabalhar no SUS. O que tínhamos muito era aula sobre conhecimento específico da nutrição.


Preceptor educador físico – As disciplinas da graduação não tocavam nessa questão do atendimento do educador físico na saúde, na questão da formação para o SUS, não contribuíram para eu entender o sistema. O que ajudou foram as minhas experiências de vida.


Preceptor assistente social – A minha formação em serviço social não me preparou para atuar no SUS. Tive uma formação acadêmica mais direcionada para a questão teórica do serviço social. Não eram trabalhadas as questões do SUS.


No movimento dialético expresso nas falas acima, a formação em saúde, fomentada a partir do ideário proposto pela RSB, acabou sucumbindo mediante as articulações hegemônicas da academia; às produções intelectuais em série, que apesar de refletirem a necessidade de mudanças não apontam caminhos efetivos para tal; aos projetos do Ministério de Educação e da Saúde, desvirtuados dos princípios do sistema; e às posições das Câmaras Técnicas das diversas profissões, rotineiramente defensoras de seus interesses corporativistas. Nesse sentido Gramsci alerta sobre o equívoco do pensamento corporativo, tipicamente burguês (2002, p. 239). O corporativismo das profissões da saúde dificultou, sobremaneira, a concretização do projeto coletivo de saúde pensado na RSB. A formação do trabalhador da saúde do ponto de vista produtivo falou mais alto, as incursões “hegemônico-pedagógicas” como expõe Coutinho, ao prefaciar o livro de Neves, perpetuam a busca do consenso no rumo da satisfação dos interesses do capital (2005, p.12). O curso de medicina é um exemplo expressivo quando se observa em seu currículo o leque de opções de áreas de atuação oferecidas. Os graduandos detêm suas opções pelas áreas que lhes trarão um retorno financeiro mais elevado em suas promissoras carreiras, ficando a área da atenção primária em última opção. Reproduzindo essa lógica da formação médica, os demais profissionais da área da saúde, sobretudo, a enfermagem, a nutrição, a farmácia, a fisioterapia, a psicologia também privilegiam o seu lócus de trabalho nos níveis de atenção secundário e terciário. Prioritariamente, suas práticas de estágio concentram-se em hospitais, com raras

exceções. As falas a seguir relatam esta questão da formação costumeiramente hospitalocêntrica:


Preceptor de farmácia – Eu peguei o currículo antigo em que a gente se formava e fazia especialização. Nenhuma disciplina me preparou para o entendimento do SUS. Os estágios também não. Fiz a maioria no Hospital.


Preceptor de nutrição – Os meus estágios foram a maioria no hospital na área da pediatria e materno-infantil. E depois de formada eu fiz um aperfeiçoamento também em Hospital. Os estágios nos hospitais não me proporcionaram uma ideia do SUS. As supervisoras do estágio não davam orientações sobre o SUS.


Na organização hierarquizada do sistema de saúde17, a atenção primária representa o grau dos serviços de menor complexidade e maior frequência, onde se realizam cuidados preferencialmente de promoção e prevenção à saúde, nível considerado de baixo custo pela medicina tradicional. A lógica dessa organização acabou, contraditoriamente, indo de encontro ao princípio da integralidade, com a consequente fragmentação do sistema. Embora a Portaria Nº 648/GM de 28 de março de 200618 que institui a Política Nacional de Atenção Básica, esteja teoricamente consubstanciada nos princípios do SUS, sobretudo nos da universalidade, da integralidade e da participação popular, ao lermos suas disposições chegamos a conclusão do quanto a atenção primária teria que passar por elevados investimentos para dar conta do que está formalmente estabelecido



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17 O SUS organizou a atenção à saúde de forma hierarquizada, em níveis crescentes de complexidade. Segundo essa lógica, os serviços de saúde são classificados nos níveis primário, secundário e terciário de atenção, conforme o grau de complexidade tecnológica requerida aos procedimentos realizados. A imagem associada a essa hierarquização é a de uma pirâmide, em cuja base se encontram os serviços de menor complexidade e maior frequência, que funcionariam como a porta de entrada para o sistema. No meio da pirâmide, estão os serviços de complexidade média e alta, aos quais o acesso se dá por encaminhamento e, finalmente, no topo, estão os serviços de alta complexidade, fortemente especializados (MATTA, MOROSINE,2008, p. 42).

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18 A Portaria nº 648/GM de 28 de março de 2006 define a atenção básica como um conjunto de ações de saúde no âmbito individual e coletivo que abrangem a promoção e proteção da saúde, prevenção de agravos, diagnóstico, tratamento, reabilitação e manutenção da saúde. É desenvolvida através do exercício de práticas gerenciais e sanitárias democráticas e participativas, sob a forma de trabalho em equipe, dirigidas a populações de territórios bem delimitados pelas quais assume a responsabilidade sanitária, considerando a dinamicidade existente no território em que vivem essas populações. Utiliza tecnologias de elevada complexidade e baixa densidade que devem resolver os problemas de saúde de maior frequência e relevância em seu território. É o contato preferencial dos usuários com os sistemas de saúde. Orienta-se pelos princípios da universalidade, acessibilidade e coordenação do cuidado, vínculo e continuidade, integralidade, responsabilização, humanização, equidade, e participação social (BRASIL, 2006).

em seu conteúdo e do quanto a formação dos trabalhadores da saúde necessita estar voltada para as necessidades desse nível de atenção.

Na nossa vivência cotidiana com os trabalhadores da saúde seguidamente nos deparamos com a incompreensão por parte desses da dinâmica de gestão dos mecanismos de conexões que cabe aos níveis de atenção à saúde realizar e dos caminhos de integração por meio da referência e contra referência, de linhas de cuidado e de apoio matricial,19 que o sistema requer para funcionar a partir do princípio da integralidade.

A integralidade como princípio orientador da formação em saúde, da gestão, da atenção e do controle social ainda é discursivo, embora existam esforços dos atuais sanitaristas20 que buscam na articulação desses eixos o fortalecimento e afirmação do sistema em todos os níveis, sobretudo o de sua porta de entrada. Nessa direção a transformação da organização dos serviços e da formação dos trabalhadores da saúde “implicaria trabalho articulado entre o sistema de saúde (em suas várias esferas de gestão) e as instituições formadoras” (CECCIM, FEUERWERKER, 2004, p. 45).


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19 Referência constitui “o ato de encaminhamento de um paciente atendido em um determinado estabelecimento de saúde a outro de maior complexidade. A referência deverá sempre ser feita após a constatação de insuficiência de capacidade resolutiva e segundo normas e mecanismos preestabelecidos. O encaminhamento deverá ser acompanhado com todas as informações necessárias ao atendimento do paciente (formulário com resumo da história clínica, resultado de exames realizados, suposição diagnóstica, etc.) e a garantia, através de agendamento prévio, do atendimento na unidade para o qual foi encaminhado. Contra referência constitui “o ato de encaminhamento de um paciente ao estabelecimento de origem (que o referiu) após a resolução da causa responsável pela referência [..], deverá sempre ser acompanhada das informações necessárias ao seguimento ou acompanhamento do paciente no estabelecimento de origem onde, juntamente com seus familiares, será atendido nas suas necessidades básicas de saúde”. Disponível em: http://www.fasi.edu.br/files/biblioteca/nut/ABC_sus.pdf, acessado em 01-09-13.

Apoio Matricial: A equipe de referência pede apoio não só a especialistas, mas a profissionais que estão próximos ao usuário no sentido de que são capazes de perceberem aspectos da vida do usuário que podem auxiliar sobremaneira no conjunto das intervenções terapêuticas mais apropriadas. Essa ação se dá pelo apoio matricial que é “uma forma de organizar e ampliar a oferta de ações em saúde, que lança mão de saberes e práticas especializadas, sem que o usuário deixe de ser paciente da equipe de referência” Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/equipe_referencia.pdf, acessado em 01-09-13.

Linha de cuidado é uma ferramenta pedagógica, entre outras, para dar concretude ao princípio da integralidade. Seria o itinerário que o usuário realiza na rede de saúde, os fluxos assistenciais necessários para atender às necessidades do usuário, incluindo outros caminhos que podem não estar inseridos no sistema de saúde, mas que fazem parte de algum modo da rede.

20 Utilizo as expressões “atuais sanitaristas” no sentido de identificar os trabalhadores da saúde que inspirados nas proposições da RSB vem revitalizando seus sentidos na literatura sobre a materialidade do SUS, além de se constituírem como defensores do sistema tendo por base o revigoramento do ideário da RSB acrescido por inovações e adequações necessárias a atual conjuntura.

Na realidade, o princípio da integralidade do sistema está longe de uma prática que conecte os segmentos: ensino, gestão, atenção e controle social. Ceccim e Feuerwerker interpretam essas conexões por meio do conceito do “quadrilátero da formação para a área da saúde” que seria a


Construção e organização de uma gestão da educação na saúde integrante da gestão do sistema de saúde, redimensionando a imagem dos serviços como gestão e atenção em saúde e valorizando o controle social (CECCIM; FEUERWERKER 2004b, p. 41).


Com base nos argumentos acima, é importante referirmos que o conceito ampliado de saúde vai demandar uma nova concepção de educação que forme os trabalhadores para além da compreensão de suas atribuições junto à equipe de saúde, mas, sobretudo, para que sejam protagonistas na gestão do sistema, realizando as intervenções na sua organização e atuando no seu controle. A formação em saúde é condição para “qualificar a intervenção dos trabalhadores na definição e organização do sistema de saúde, aliando com isso, a dimensão técnica e a dimensão política na formação dos futuros dirigentes do sistema” (LIMA, 2007, p. 3).

Nesse movimento observamos pelos relatos dos sujeitos da pesquisa que a maioria quase absoluta não teve oportunidade de aprender a historicidade dos movimentos na área da saúde que culminaram na RSB, as questões conjunturais e estruturais que produziram as bases para a criação do sistema, os fundamentos e princípios balizadores que o organizam, suas contradições, avanços e dificuldades, conforme as narrativas a seguir:


Residente farmacêutico – Não tínhamos nada sobre o SUS. Eu não fui preparado para atuar seguindo os princípios do SUS. Nós tivemos disciplinas de deontologia, na qual nos foi colocado como funciona o SUS, só que não nos falaram: “vocês devem atuar assim”. Nunca fomos estimulados a atuar como profissionais no SUS. As outras disciplinas não abordavam nada do SUS. Eu concluí o curso em 2009/02.


Preceptor enfermeiro – Na graduação em enfermagem tive disciplinas em que o enfoque principal era a formalidade, a rigidez no cuidado, não a compreensão do SUS.


Sobre essas questões Martins alerta que as universidades não vêm atendendo aos princípios político-pedagógicos projetados nas DCN, assinalando

que os avanços nesse sentido são, acentuadamente, tímidos e, ainda que a inserção de mudanças, por meio de práticas de integração docente assistenciais, venha se efetivando nos currículos formais das graduações em saúde, estas continuam batendo de frente com a rigidez dos currículos tradicionais. Assevera que um dos entraves para as propostas de mudança na formação é “o processo de capitalização do setor da saúde”. (MARTINS, 2006, p.112). Acrescentamos que também essa situação se configura em hospitais públicos. Nesse sentido as narrativas dos sujeitos não deixam dúvidas.


Preceptor psicólogo – Nem a minha graduação, nem os cursos de pós que eu fiz contribuíram para o entendimento do SUS. Eu só fui ter uma ideia do sistema bem recentemente, quando começou a existir uma maior abertura no hospital público para isso.


Preceptor nutricionista Na graduação não tinha essa questão da compreensão das conexões do hospital com a rede, do trabalho em equipe. Na especialização o enfoque também foi puramente clínico.


Residente farmacêutico – A faculdade de farmácia oferece estágios aqui no Hospital, na Farmácia Popular do Brasil e na Unidade Básica de Saúde. Eu queria ter feito o meu estágio curricular no hospital, mas por falta de vaga acabei optando por uma Unidade Básica.


Residente nutricionista – Durante os estágios junto às equipes não se trabalhava a partir dos princípios do SUS, porque no Hospital público onde fiz o estágio não tinha round multidisciplinar na equipe que eu estava. A gente não interagia com o residente médico. Era tudo desconexo.


Residente psicólogo – A minha escolha de campo de estágio foi pelas questões técnicas da psicologia, nunca foi pelo SUS.


A tendência do distanciamento da academia de práticas político- pedagógicas que deem sustentabilidade para atuação no SUS, numa lógica que contrarie as práticas hegemônicas do trabalho em saúde, tem sido uma constante. Nas narrativas acima observamos que nas falas dos preceptores de psicologia e de nutrição essa tendência observada na graduação se estendeu para a pós-graduação. Tais aspectos potencializam as dificuldades de atuação dos trabalhadores, como formadores na residência multiprofissional em saúde.

Considerações Finais

As graduações em saúde, realizadas pelos preceptores e residentes do Programa de Residência Multiprofissional, resultaram em formações, ora demasiadamente reprodutoras da lógica cartesiana, positivista e fragmentária, ora produtoras de formações que se aproximaram do ideário dos princípios e diretrizes do SUS.

O Programa de Residência pesquisado, pensado para propiciar um caminho de formação multiprofissional integrado, quando praticado por seus sujeitos, mediado por suas formações iniciais e continuadas ficou limitado em suas respectivas propostas, conforme a eloquência das falas dos entrevistados.

A formação inicial e a formação continuada, tanto dos preceptores como dos residentes, embora o lapso de tempo entre essas e as mudanças veiculadas nas atuais Diretrizes Nacionais da formação em saúde, não se diferenciaram, resultando em práticas de formação e de trabalho ainda distantes dos objetivos propostos no Programa de Residência em tela. Entretanto, foi observado que a formação em serviço promovida no programa tem estimulado os profissionais envolvidos a repensarem práticas que expressem a realização do trabalho integrado em saúde.

A Residência Multiprofissional é um caminho, os programas PET Saúde e Pró Saúde também, os caminhos de formação permanente dos trabalhadores nas instituições, as rodas de conversa sobre trabalho, problematizando conceitos ampliados de educação e saúde, constituem também espaços de reflexão-ação- reflexão que podem produzir frutos saudáveis na busca de uma base social/material sustentável na defesa e fortalecimento do SUS.

Embora a base positivista e cartesiana do individualismo empírico persista na formação dos profissionais da saúde, já observamos por dentro dessa, rupturas no sentido de uma formação que vai se preparando para o Sistema Único de Saúde, na perspectiva de seus princípios ético-políticos e da própria complexidade da atenção em saúde.

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Recebido em: 08 de setembro de 2017. Aprovado em: 10 de janeiro de 2018. Publicado em: 31 de janeiro de 2018.

A LÓGICA DO SISTEMA CAPITALISTA E A PRÁXIS DOS PESCADORES ARTESANAIS DA COLÔNIA Z-16 DE CAMETÁ/PA¹


Raimundo Nonato Gaia Correa2 Fred Junior Costa Alfaia/UFPA3


Resumo

O objetivo deste artigo é analisar como as determinações do sistema capitalista se expressam na práxis dos pescadores artesanais da Colônia de Z-16 de Cametá/PA. A pesquisa pauta-se em revisões bibliográficas e entrevista semiestruturada. Os dados foram analisados pelo viés da análise de conteúdo sob a perspectiva do Materialismo Histórico-Dialético. Conclui-se que os pescadores artesanais, ao constatarem os negativos impactos gerados pela construção da Hidrelétrica de Tucuruí, desenvolvem uma práxis de reação e se organizam politicamente a partir da Colônia Z-16, embora, contraditoriamente, também afirmem interesses do sistema capitalista.

Palavras-Chave: Práxis; Pescadores Artesanais; Contradições entre capital e trabalho.


Abstract

The objective of this article is to analyze how the determinations of the capitalist system are expressed in the praxis of the artisanal fishermen of the Z-16 Colony of Cametá/PA. The research is based on bibliographic reviews and semi-structured interviews. The data were analyzed by the bias of content analysis from the perspective of Historical-Dialectical Materialism. It is concluded that artisanal fishermen, when verified the negative impacts generated by the construction of the hydroelectric plant of Tucuruí/PA, they developed a praxis of reaction and organized themselves politically from the Z-16 Colony, although, in a contradictory way, they had also affirmed capitalist interests.


Keywords: Praxis; Artisanal fishermen; Contradictions between capital and work.


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1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.15i28.p9645

2 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação e Cultura (PPGEDUC) vinculado à Universidade Federal do Pará, Campus de Cametá. Graduado em Pedagogia pela mesma instituição. E-mail: r.nonatog@hotmail.com.

3 Mestre em Educação pela Universidade Federal do Pará. Docente da Faculdade de Educação da UFPA, Campus de Cametá. E-mail: fredparaense@yahoo.com.br.

TrabalhoNecessario – www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 15, Nº28/2017

INTRODUÇÃO


No presente texto apresentamos e discutimos alguns resultados de pesquisa sobre a práxis de trabalhadores ligados à Colônia de Pescadores Artesanais Z-163, município de Cametá/PA4, objetivando responder às seguintes questões: Quais as implicações da criação da Usina Hidrelétrica de Tucuruí na práxis dos pescadores artesanais ligados à Colônia de Pescadores Z-16 de Cametá/PA? Como as determinações do sistema capitalista se expressam nas ações e projetos da Colônia de Pescadores Z-16 de Cametá/PA?

Metodologicamente, a pesquisa pauta-se em revisões bibliográficas e pesquisa de campo, além do uso da entrevista semiestruturada (PÁDUA, 2012) junto a dois membros da direção da Colônia Z-16 e dois pescadores artesanais filiados na Entidade5. Os dados foram analisados pelo viés da análise de conteúdo6, sob a perspectiva do Materialismo Histórico-Dialético, permitindo a explicação dos fenômenos sociais a partir do movimento de ascensão da aparência à essência, conforme nos orienta Kosik (1976).

Em termos estruturais, duas seções constituem este trabalho. Numa primeira, apresentamos reflexões sócio-históricas acerca dos impactos ambientais e sociais causados a partir da criação da Usina Hidrelétrica de


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3“Embora o termo colônia possa suscitar a imagem de um coletivo de pescadores vivendo da pesca à margem de um rio, a Colônia de Pescadores Artesanais Z-16 é bem mais que isso. Ela constitui-se na entidade representativa de classe desses sujeitos, reunindo 15.000 associados de diferentes comunidades do município cametaense, com sede na Travessa Porto Pedro Teixeira, nº 165, bairro de Brasília, cidade de Cametá” (RODRIGUES, 2012, p. 31). Fundada na década de 1920, esta entidade só recentemente (início dos anos 1990) passou a ser conduzida por gestores que se constituem pescadores artesanais, uma vez que desde sua fundação “[...] não estava sob a gestão dos pescadores, mas sim sob os auspícios de sujeitos não pescadores ligados aos interesses das oligarquias locais [...]” (ibidem, p. 257).

4Segundo Rodrigues (op. cit., p. 21-23), o município de Cametá, Estado do Pará, “[...] segundo o IBGE (2010), pertence à mesorregião do nordeste paraense e à microrregião Cametá, apresenta uma área correspondente a 3.122 km². Limita-se ao norte com o município de Limoeiro do Ajuru; ao sul, com o de Mocajuba; a leste, com o de Igarapé-Miri; e a oeste, com o de Oeiras do Pará. Ainda segundo o (IBGE, 2010), o município cametaense apresenta uma população de 110.323 habitantes, dos quais 47.984 encontram-se na zona urbana e 62.339 na zona rural. Trata-se de um município com contingente rural maior do que o urbano. Com relação aos pescadores artesanais nesse município, eles estão presentes em um total de 122 localidades, com 523 comunidades cristãs, inseridas nas ilhas de Cametá, o que ordenou inclusive a própria organização administrativa dos pescadores”.

5No corpo do texto serão identificados como “Dirigente A” e “Dirigente B”; “Pescador A” e “Pescador B”.

6Para o desenvolvimento das análises a partir da Análise de Conteúdo tomamos as orientações de Bardin (1997).

Tucuruí – UHT e a formação da atividade consciente objetiva7 dos pescadores artesanais ligados à Colônia de Pescadores Artesanais Z-16 de Cametá, estado do Pará. Numa segunda seção, abordamos, a partir de dados empíricos em correlação com questões teóricas, formas de expressão de determinações constitutivas do sistema do capital no contexto da Colônia Z-16 e as implicações disso na práxis dos pescadores artesanais. Por fim, apresentamos as considerações finais.


  1. A CONSTRUÇÃO DA UHT E ATIVIDADE CONSCIENTE OBJETIVA DOS PESCADORES ARTESANAIS DA COLÔNIA Z-16 DE CAMETÁ/PA

    A Usina Hidrelétrica de Tucuruí – UHT (1974-1985), foi construída “[...] para atender às demandas de grandes projetos industriais que se instalavam na região Norte, como o Complexo Industrial do Alumínio, em Vila do Conde, e a ALBRÁS e ALUNORTE, em Barcarena-PA” (RODRIGUES, 2012, p. 219). Os

    chamados “grandes projetos” são resultados das políticas desenvolvimentistas impostas pelos governos do Regime Militar (1964-1985) para a Amazônia Brasileira. Entretanto, o planejamento e a execução dessas obras não foram submetidos à consulta popular na região sobre os possíveis impactos.

    Nesse contexto, a UHT, como uma das políticas de modernização autoritária, trazia consigo o discurso do desenvolvimento regional, sobretudo porque todos os municípios da Região do Baixo Tocantins8 seriam atendidos com redes de energia elétrica, e assim


    [...] junto às camadas populares da região construía-se o saber de que sua implantação traria o desenvolvimento, implicando melhorias nas áreas da educação, da saúde, da geração de emprego e renda, principalmente para os ribeirinhos que



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    7Referenciando-nos em Vázquez (2007), entendemos a categoria práxis como atividade consciente objetiva e, por isso, especificamente humana. Segundo esse autor “para que se possa falar em atividade humana é preciso que se formule nela um resultado ideal, ou fim a cumprir, como ponto de partida, e uma intenção de adequação, independentemente de como se plasme, definitivamente, o modelo ideal originário. [...] E o resultado é uma nova realidade, que subsiste independentemente do sujeito ou dos sujeitos concretos que a engendraram com sua atividade subjetiva, mas que, sem dúvida, só existe pelo homem e para o homem, como ser social” (223-227).

    8Conjunto de municípios do nordeste paraenses banhados pelo Rio Tocantins: Mocajuba, Igarapé-Miri, Oeiras do Pará, Limoeiro do Ajuru e Cametá.

    habitavam o rio Tocantins, com suas ilhas, igarapés e furos (ibidem, p. 219).


    Todavia, esse discurso não passou de um instrumento ideológico capaz de conseguir o consenso na região, uma vez que, concluída a obra, seus municípios passaram a conviver com os negativos impactos que interferiram no próprio modo de seus habitantes produzirem suas existências, pois


    [...] ao longo dos anos pós-construção da barragem, os pescadores artesanais foram verificando a diminuição de pescado, o empobrecimento ainda mais das comunidades e a perda de seus valores culturais, de sua identidade (ibidem, p. 221).

    Em Cametá não foi diferente. Todavia, nas comunidades ribeirinhas os pescadores artesanais que aí permaneceram, mesmo diante da diminuição do pescado, dentre outras negativas impostas pela construção da Hidrelétrica de Tucuruí, passaram a se organizar em função da busca de formas de garantir sua sobrevivência e atendimento aos seus interesses políticos e econômicos. Este fato revela-se quando os pescadores assumiram a administração da Colônia Z-16 e passaram a planejar as linhas de atuação, uma vez que, desde a sua criação na década de 1920, era dirigida por representantes das oligarquias cametaenses (RODRIGUES, 2012).

    Segundo Rodrigues (ibidem, p. 221), pode-se afirmar que esses trabalhadores, à medida que perceberam “[...] a realidade advinda com a construção da Hidrelétrica de Tucuruí, constatando a falta de pescado e o desequilíbrio total no cotidiano dos pescadores”, desenvolveram um saber constatativo diante da realidade, não ficando, contudo, tão somente nessa perspectiva de constatação, pois passaram a interferir “[...] na realidade ao denunciar o culpado pelo desequilíbrio, instituindo um posicionamento político contrário ao propugnado pelo capital, qual seja o de que a construção da hidrelétrica melhoraria a qualidade de vida dos pescadores”, desenvolvendo um saber performativo, agindo sobre a realidade de forma política.

    A partir de então, a Colônia Z-16 passou a ser um instrumento de organização dos pescadores artesanais de Cametá, inclusive desenvolvendo

    ações alternativas aos impactos da construção da UHT, conforme acima mencionado. Nessa perspectiva, destaca-se a criação dos Acordos de Pesca:9

    [...] uma forma que nós encontramos , para que a gente pudesse garantir algumas espécies, garantir também com que a pesca de uma vez por todas não seja acabada, digamos assim , por isso nós damos muita importância na questão dos acordos, pra gente equilibrar essas questões do ambiente (DIRIGENTE “A”).


    Os Acordos de Pesca foram criados nas comunidades de pescadores artesanais do município de Cametá sob a perspectiva da preservação ambiental, havendo um cuidado no sentido de coibir a chamada pesca predatória, isto é, aquela prática pesqueira que se vale de determinados instrumentos, como o puçá10 ou as malhadeiras com malha fina (malhas pequenas) capazes de capturar o pescado miúdo (pequeno), impedindo dessa forma a sua reprodução.

    Barra (2013) explica que os Acordos de Pesca constituem-se basicamente na autogestão dos recursos pesqueiros pelas próprias comunidades de pescadores artesanais.


    [...] um grupo de pescadores controla o acesso e o uso de um território pesqueiro bem definido, ou melhor, os acordos de pesca exprimem regras que regulam o uso do recurso pesqueiro definidas por membros da comunidade ou grupos de usuários locais (p. 74).


    Segundo um dos entrevistados, a prática dos Acordos de Pesca “[...] foi uma forma mais aprimorada de educar os pescadores para a questão da preservação do meio ambiente, para evitar a extinção do pescado e ter uma produção mais qualificada no município” (DIRIGENTE “B”, grifo nosso).

    Se por um lado os Acordos de Pesca revelam resistência aos impactos ambientais e às múltiplas carências do pescado na região, por outro, induzem a uma compreensão unilateral do problema, visto que os pescadores se


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    9Regulamentado conforme Instrução Normativa n° 29, 31 de dezembro de 2002 do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA.

    10Segundo Rodrigues (2012, p. 141), “O puçá é uma “Grande rede de malha fina, chega a

    1.300 metros. Serve para fazer grandes bloqueios e arrasta o fundo do rio. Pega tudo [...]”. Segundo a Revista Cametá (2004), com esse tipo de rede “pega tudo”, há necessidade da extinção desse material, sendo sua existência decorrente das “[...] relações patronais e políticas que se estabeleciam [no município de Cametá] — muitos eram pequenos empresários com esse tipo de material que precisa de uma turma de pelo menos 80 pessoas”.

    percebem como sujeitos da causa e efeito dos fenômenos advindos da construção da Usina Hidrelétrica de Tucuruí e não percebem os impactos ambientais e as carências como efeito dos interesses capitalistas.

    Movidos pela propagação de ideias convenientes aos interesses dominantes, os pescadores artesanais reproduzem a crítica ingênua de sua realidade social conforme ilustra a posição do entrevistado:


    Eu acredito que isso aí [falta de peixe] é uma falta de conscientização que faltando para nós em todas as comunidades. E aí, o que motiva isso, o ponto principal é esse, é o povo se conscientizar pra não fazer as coisas indevidas (PESCADOR “A”).


    Nas palavras de Marx e Engels (2007, p. 78), diríamos que:


    Os indivíduos que formam a classe dominante possuem, entre outras coisas, também uma consciência e, por conseguinte, pensam; uma vez que dominam como classe e determinam todo o âmbito de um tempo histórico, é evidente que o façam em toda a sua amplitude e, como consequência, também dominem como pensadores, como produtores de ideias, que controlem a produção e a distribuição das ideias de sua época, e que suas ideias sejam, por conseguinte, as ideias dominantes de um tempo.


    Isto posto, entendemos, entretanto, que não basta tão somente educar, quando a realidade que os pescadores artesanais vivenciam necessita muito mais do que isso. Assim, o educar para preservar deve ser acompanhado pelo educar para combater, conhecendo as determinações dos problemas enfrentados. Ademais, antes dos Acordos de Pesca como alternativas à diminuição do pescado por conta da construção da UHT, os cuidados com a preservação ambiental “eram práticas rotineiras na vida dos pescadores, que cuidavam de selecionar, por exemplo, o tipo de rede para o tamanho de peixe a ser pescado, a fim de se garantir a sempre reprodução” das espécies (RODRIGUES, op. cit., p. 233).

    A perspectiva do educar se esvaece quando observamos que, historicamente, os pescadores artesanais já entendiam a necessidade de se preservar o meio ambiente, no sentido de tornar as suas práticas pesqueiras adequadas à manutenção da abundância do pescado. Daí entenderem que “onde tem os Acordos de Pesca é pra melhorar, porque onde não é [onde não

    existe o acordo] [...] você coloca uma malhadeira no seu porto, você não pega nem um peixe pra uma criança” (PESCADOR “B”).

    Não se pode negar que os Acordos de Pesca contribuíram para a preservação das condições mínimas de reprodução das espécies, o que possibilitou/possibilita o aumento da circulação de peixes nos rios da região. Mas não se pode deixar de considerar que esses acordos encontraram as bases de sustentação nas próprias experiências dos pescadores, já que muito antes buscavam pescar, no cotidiano de suas práticas laborativas, dentro das necessidades de uso, evitando agredir o ambiente que lhes fornecia a existência.

    A questão que se coloca, pois, é que existe relação entre os impactos ambientais na região e a construção da UHT, conforme corrobora o Dirigente “A”, para o qual,


    [...] depois da construção da barragem de Tucuruí, muitas espécies desapareceram e deixou, digamos assim, um débito com a população, principalmente com a pesqueira né, então a gente não pode ficar de braços cruzados né, a gente procurou algum mecanismo pra que a gente possa tá preservando isso (DIRIGENTE “A”).


    Nota-se, nesta assertiva, certo conhecimento por parte do informante da relação macro entre os fenômenos (impactos ambientais e UHT), porém se confirma a estratégia dos Acordos de Pesca como ação de preservação e manutenção das condições de reprodução do pescado, mas a origem do problema e a lógica que sustenta a criação de novas usinas hidrelétricas na Amazônia continua. Os Acordos de Pesca, por um lado, acabam sendo formas de adaptação às múltiplas carências e manutenção das poucas espécies que ainda restam. Neste contexto, não representam a negação do fenômeno gerador das múltiplas carências estabelecidas pela contradição do capital, uma vez que a degradação das condições naturais (falta de espécies de pescado, falta de qualidade da água, etc.) está mantida.

    Os Acordos de Pesca, por outro lado, também representam a reafirmação do homem (classe trabalhadora) ao espaço, à terra, aos elementos da natureza, à moradia, ao trabalho, à cultura, às relações interpessoais, ou seja, constituem a reestruturação de sua identidade histórico-social, de modo que a objetividade capitalista, por mais que imponha múltiplas necessidades às

    subjetividades, não consegue produzir a negação absoluta da identidade dos trabalhadores, que se faz resistente nas suas formas de vida e trabalho.

    Os Acordos de Pesca são construções da práxis dos pescadores artesanais, da reação à objetividade dominante capitalista, mas essa construção se dá sob relações contraditórias de interesses dos pescadores artesanais e do capital. Assim, mesmo tendo criado os Acordos de Pesca, os pescadores artesanais da Z-16 precisam submetê-los ao reconhecimento legal do Estado capitalista que legitima as práticas desses Acordos.

    Observa-se que a práxis desses sujeitos não está condicionada somente à relação homem-natureza, mas à nova relação que se estabelece, homem-natureza-Estado. Nessa perspectiva, a pesquisa revela-nos que além da legalização de suas ações, a Colônia Z-16 vê-se desafiada a lutar por políticas sociais no âmbito do Estado como forma de fortalecimento organizacional.

    Uma dessas políticas sociais é o chamado seguro defeso11 que, a partir de meados dos anos de 1990, torna-se acessível aos pescadores artesanais filiados à Colônia Z-16 por meio de um processo de lutas sociais. Na ótica dos entrevistados o seguro defeso “[...] tem ajudado sim, muito, na qualidade de vida” (DIRIGENTE “B”), o que nos mostra que essa política se insere no contexto da Z-16 sob a mediação ideológica da qualidade de vida, que passa a fazer parte do discurso social desses trabalhadores, os quais visualizavam o seguro defeso como forma de lhes garantir renda.

    Ainda segundo o entrevistado Dirigente “B”, se for feita uma análise das condições de vida dos pescadores há cerca de vinte anos, período anterior ao seguro defeso, e compararmos com a sua condição de vida atual,


    você vê que tem um diferencial muito grande. [...] as moradas do pescador [...] eram quase padronizadas; uma casinha de madeira simples, tinha lá uma parede de miriti, sempre era coberto com palhas; em vez de ter um trapiche lá, ele tinha um miritizeiro que ele colocava lá pra dar acesso da beira-mar até a casa dele. Seu meio de transporte era o casco à vela que lhe transportava até a cidade [...].



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    11 Recurso financeiro fornecido pelo Governo Federal, para que, no período de reprodução dos peixes, de novembro a fevereiro, não se entrasse nos rios para a pesca de alta produção, destinada ao mercado consumidor, senão para consumo próprio.

    Aparentemente, observa-se que houve certo avanço qualitativo na vida dos pescadores artesanais, mas com um olhar mais crítico, percebe-se, contraditoriamente, a inserção desses sujeitos na lógica de reprodução do capital pela via do consumo. De fato,


    [...] não se pode imaginar um sistema de controle mais inexoravelmente absorvente [...] do que o sistema do capital globalmente dominante, que sujeita cegamente aos mesmos imperativos a questão da saúde e do comércio, a educação e a agricultura, a arte e a indústria manufatureira, que implacavelmente sobrepõe a tudo seus próprios critérios de viabilidade [...] sempre a favor dos fortes e contra os fracos. (MÉZÀROS, 2011, p. 96)


    Assim, a produção da sensação de um falso “bem-estar” e o desejo consumista inserem esses trabalhadores na lógica de mercado: “Lá na casa, onde o pescador filiado, ele e a esposa, ele consegue levantar durante o ano, através do seguro, mais de cinco mil reais” (DIRIGENTE “B”). Ou seja, essa sensação de “bem-estar” pode acabar por obstruir a percepção da necessidade do acesso a outras políticas sociais (saúde, educação, segurança e etc.), na medida em que o entrevistado destaca a ascensão econômica e a aquisição de bens como aspecto transformador da realidade social dos pescadores.

    A pesquisa revela-nos que, embora a práxis dos pescadores tenha produzido, ao longo da história, resistência aos impactos ambientais, culturais, econômicos, sociais e políticos causados pela construção da UHT, as políticas assistencialistas do Estado contribuem para uma relativa estabilidade nos conflitos de classes mediante a inserção da classe trabalhadora na lógica consumista e na realização pessoal em detrimento questões mais abrangentes como a luta pela educação de qualidade no campo, do atendimento à saúde no campo, da segurança, do lazer etc.

  2. A EXPRESSÃO DA LÓGICA DO CAPITAL NOS PROJETOS/AÇÕES DA COLÔNIA DE PESCADORES ARTESANAIS Z-16 DE CAMETÁ

Nesta seção, detemo-nos na análise de ações ou projetos que a Colônia Z-16 desenvolve tanto do ponto de vista da formação quanto no que tange ao auxílio financeiro para atividades produtivas do pescador artesanal. Inicialmente, vamos analisar o segundo caso.

Pontuamos, de imediato, que o acesso às políticas de financiamento de atividades produtivas do pescador artesanal se dá por meio de empréstimos bancários, os quais lhes são acessíveis mediante projetos formulados pela Z- 16 em parceria com determinado banco. Mas também há projetos que fazem parte de políticas sociais do Estado de incentivo à pequena produção familiar, como é o caso do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Contudo, todo empréstimo bancário possui taxas de juros de financiamento e que, no caso do não pagamento por parte do tomador, causam situações de inadimplência e bloqueio de crédito.

Do ponto de vista da percepção por parte dos pescadores artesanais ligados à Colônia Z-16 da importância ou não das políticas de financiamento bancário da produção, o entrevistado DIRIGENTE “A” considera que: “[...] é muito importante , porque devido ao crédito eles podem melhorar lá na sua localidade, comprar o seu barquinho de pesca, podem melhorar lá o seu terreno; isso melhora muito a economia familiar”.

Nessa mesma perspectiva corrobora o entrevistado PESCADOR “A”, falando-nos acerca da importância do acesso ao PRONAF B12: “[...] a gente tem necessidade todo tempo, e ele trouxe um benefício pra nós porque a gente conseguiu alguma coisa que a gente não tinha [...]; com esse financiamento nós conseguimos alguma coisa”.

Novamente vemos que o pescador artesanal da Colônia Z-16 visualiza a política de crédito bancário enquanto uma possibilidade de atendimento a suas carências materiais imediatas não se consubstanciando em ações que visem à transformação radical da sociedade em proveito de uma perspectiva



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12O Pronaf Grupo “B” é uma linha de microcrédito rural que disponibiliza recursos de pequenos valores para pequenos investimentos em atividades agrícolas e não agrícolas no meio rural tais como: compra de pequenos animais, artesanato, implementos para fabricação de alimentos, caixas de abelha, construção de poços para a criação de peixes, etc.

revolucionária. Segundo Rodrigues “[...] o capital cria formas conjunturais de garantir a sobrevida do trabalhador, sem mudar as condições estruturais que lhe garantem a dominação política, social, cultural e econômica, acima de tudo” (op. cit., p. 85), percebe-se nas falas dos pescadores entrevistados a assimilação da ordem social constitutiva do capital sem indicarem as contradições dessa aparente “benfeitoria”.

Os pescadores artesanais não percebem que, para o capital, todos são tratados como consumidores, isto é, não interessa se a atividade produtiva de quem tomou o empréstimo tenha dado certo ou fracassado, essa questão é indiferente ao banco, pois o que importa é o pagamento das parcelas e juros em dia. Por outro lado,


[...] quando tem inadimplência, o banco, ele se resguarda em fazer o financiamento, porque ninguém quer perder dinheiro né? Então, ele só vai colocar esse crédito à disposição [do pescador] quando a instituição [a Colônia Z-16] apresenta uma proposta de investimento seguro [...] (PESCADOR “A”, grifos nossos).


Nesse caso, observa-se a inserção do pescador à lógica capitalista, via spread bancário, quer dizer, projetos dessa natureza acabam por expor o pescador à lógica consumista e dependente da movimentação de desenvolvimento de capital (relação capital-produto-capital). Marx (2010, p. 46) recorre às palavras de Smith para ressaltar que


O único motivo que determina o possuidor de um capital a empregá-lo, seja na agricultura, seja na manufatura, ou no ramo particular do comércio por atacado (em gros) ou varejista (em détail), é o ponto de vista do seu próprio lucro. Nunca lhe vem à mente calcular quanto trabalho produtivo todas essas diversas espécies de aplicação põe em atividade, ou quanto é acrescentado em valor ao produto anual das propriedades agrícolas e [ao produto anual] do trabalho de seu país.


O pescador que antes tinha uma práxis econômica simples (mercadoria-capital-mercadoria), por meio da comercialização do excedente de sua produção, agora inaugura uma práxis econômica complexa (capital- mercadoria-capital) no ciclo de contrair empréstimo bancário-produzir e vender- quitar a dívida e juros contraídos, atendendo assim as exigências políticas, econômicas e burocráticas do mercado. Segundo Bogo (2008, p. 12) é através

do mercado que os agentes do capital, tais como os bancos, “se ‘intrometem’ na vida privada e coletiva dos seres humanos e [...] vão desmanchando todas as resistências. [...] é com ele e graças a ele que a mais-valia, na produção, ganha sentido, e se transforma em novas aquisições e investimentos”.


[...] então a Colônia apresenta sempre projetos assim [projeto seguro], uns ele é entendido [pelas agências financiadoras] assim como projetos seguro; outros não. Então o projeto que a gente já apresentou de forma segura foi o DRS – Desenvolvimento Rural Sustentável que seria um crédito direcionado para o pescador fazer os seus poços de criação. Esse projeto foi avaliado como positivo porque todos pagaram seus financiamentos e já está sendo financiado novamente (DIRIGENTE “B”. Grifos nossos).


Um projeto é avaliado como seguro pelos bancos quando oferece possibilidades de retorno imediato que garanta o pagamento dos empréstimos contraídos. Não há a preocupação com a relevância social, isto é, com os benefícios que tais projetos podem trazer para a melhoria das condições de vida e trabalho dos sujeitos nele envolvidos, ficando claro o objetivo de inserção dos pescadores artesanais no movimento de reprodução do capital.


Para o capitalista, a aplicação mais útil do capital é aquela que lhe rende, com igual segurança o maior ganho. Esta aplicação não é sempre a mais útil para a sociedade; a mais útil é aquela que é empregada para extrair benefícios (Nutzen) das forças produtivas da natureza (MARX, op. cit., p. 46).


O que aparentemente pode ser visto como uma política de auxílio aos pescadores artesanais, na essência (KOSIK, op. cit.) fortalece a consolidação da sociedade em classes, movimenta o capital e aliena o trabalho dos pescadores à lógica lucrativa do capitalismo e dificulta o desenvolvimento de uma postura de contestação ao projeto do grande capital.

Da mesma forma, a pesquisa revela-nos que os projetos deflagrados pela Colônia Z-16 seguem essa mesma lógica, isto é, insuficiência de conteúdo crítico e conotação imediatista e pragmática. Assim, é que se desenvolveu um laboratório de produção de alevinos a fim de fornecê-los aos pescadores para a criação de peixes mediante a escavação de poços.


[...] então, essas coisas que a gente trabalha é uma alternativa [...]. Quando a pessoa trabalha com a piscicultura, tem ali as suas casas de mel que ele vai cuidar disso, e a gente [Colônia

Z-16] vai ajudar eles a fazer isso. Ano passado por exemplo, nós vendemos quatro toneladas de mel (DIRIGENTE “A”).


Ainda que se trate de projetos que contribuem para o sustento das famílias pescadoras, consideramos que se trata de ações que primam pelo aspecto utilitarista da práxis humana (VÁZQUEZ, op. cit.), voltadas para o saber fazer, para o que rapidamente pode gerar dividendos econômicos, esvaziando do resultado do trabalho o sentido de valor de uso e instaurando o valor de troca. No dizer de Marx (2002, p. 63),


quem com seu produto, satisfaz a própria necessidade gera valor de uso, mas não mercadoria para criar mercadoria, é mister não só produzir valor de uso, mas produzi-lo para outros, dar origem a valor de uso social [...]. O produto, para se tornar mercadoria, tem de ser transferido a quem vai servir como valor de uso por meio da troca.


Dessa forma, observa-se uma busca por processos de industrialização em que a maximização da produção e a capacidade de gerar retornos imediatos são princípios norteadores das ações: “Nós construímos uma fábrica de palmito, aí faz o manejo do açaí no final do verão, quando termina o açaí, a pessoa fode fazer o manejo, aí tira o palmito e já leva pra fábrica. [...] teve muito produtor que melhorou ali, conseguiu ganhar seu dinheirinho” (DIRIGENTE “A”).

São ações que não ensejam uma reflexão sobre as condições materiais de existência dos pescadores artesanais e, assim, não permitem compreender o porquê desse coletivo de trabalhadores, desassistidos de políticas que lhes possibilitem melhorias efetivas de suas condições de vida e trabalho, serem obrigados a buscar na informalidade as condições de reprodução da existência.

Nessa mesma perspectiva de esvaziamento de conteúdo crítico, a Colônia Z-16 também desenvolve ações na área da formação das quais destacamos algumas: o Pescando o saber que possibilitou aos pescadores artesanais analfabetos, por meio de processo de letramento, o conhecimento da linguagem escrita padrão; os projetos Gestão Compartilhada de Recursos pesqueiros e Formação de Agentes Ambientais Voluntários que se mostram relevantes pois promoveram debate intersetorial sobre a importância da preservação ambiental para a garantia da reprodução das espécies de peixes e

da pesca na região, bem como a formação de sujeitos pescadores artesanais para atuarem diretamente no processo de sensibilização da população ribeirinha acerca dessa importância, respectivamente; o projeto Pescador Transformador que, por meio do cursinho pré-vestibular em parceria com a UFPA13, possibilitou o acesso de jovens filhos de pescadores artesanais ao ensino superior; e as aulas de informática do projeto Inclusão Digital que colocaram pescadores artesanais de diversas idades em contato com as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação.

No plano imediato, observamos que as ações e projetos desenvolvidos pela Colônia de Pescadores Z-16, em termos formativos e produtivos, buscam preencher a lacuna deixada pelo Estado brasileiro que historicamente nega o acesso às políticas sociais para a categoria dos pescadores artesanais e aos demais trabalhadores no município de Cametá e no Brasil como um todo, pois, como bem ilustra Arroyo (2002, p. 92), o trabalhador “nunca foi convidado a desfrutar dos prazeres da cultura e do cultivo das letras, das artes e do espírito”.

Acreditamos que tais ações, circunscritas nos limites das necessidades imediatas, representam afirmação de interesses da classe trabalhadora, mesmo coexistindo com o interesse do sistema capitalista de não questionamento da ordem vigente de relações. Contudo, para que a práxis dos pescadores artesanais não se resuma aos limites da ordem sociometabólica do capital, é preciso que a Colônia Z-16 promova ações que avancem na contestação da objetividade vivida, inclusive experienciando modos outros de relações para além daqueles vinculados ao capital, como individualismo, consumismo, etc.

Novaes (2002) adverte que “[...] a integração de parcelas dos trabalhadores à sociedade de consumo de mercadorias descartáveis e à geração de emprego precário somente aprofundam a alienação dos trabalhadores” (p. 3). A partir disso, pontuamos que a Colônia Z-16 precisa traçar estratégias que objetivem o fortalecimento da organização política de classe dos pescadores artesanais. Assim, deve se utilizar de demandas imediatas da categoria para estruturar suas lutas, pois “de modo algum se


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13 Universidade Federal do Pará, Campus de Cametá.

podem libertar os homens enquanto estes não estiverem em condições de adquirir comida, bebida, habitação e vestuário na qualidade e na quantidade perfeitas” (MARX & ENGELS, op. cit., p. 35), mas isso não impede que, paralelamente se avance na compreensão das contradições do sistema do capital, na forma como essas contradições afetam os pescadores artesanais como classe e na contestação da ordem social de distribuição da riqueza desenvolvendo, paulatinamente, a consciência de classe-para-si14.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


Do ponto de vista formal, historicamente, a formação dos trabalhadores é alienante e por isso os espaços coletivos de organização dos trabalhadores, como a Colônia de Pescadores Artesanais Z-16 de Cametá, fazem-se relevantes e necessários para a organização política e o entendimento da situação de exploração em que se encontram. Contudo, a pesquisa aponta- nos, nesse aspecto, para uma carência de acesso por parte dos pescadores artesanais a uma formação crítica que lhes forneça a compreensão da sua materialidade e a possibilidade de transformá-la, uma vez que os processos de formação que observamos se pautam na esfera do utilitarismo e do imediatismo.

As determinações da lógica capitalista, ao impor múltiplas necessidades para a sobrevivência dos pescadores artesanais, também dificultam a atuação desses sujeitos no sentido da contestação da ordem


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14 Rodrigues (2012, p. 79) destaca que Lukács (2003) “[...] tratando de questões relacionadas à consciência de classe, expõe que ela passa por dois momentos fundamentais no processo de sentido sobre a ‘situação histórica de classe’, consubstanciados numa consciência de classe- em-si e numa consciência de classe-para-si”. E ainda salienta que “inicialmente, em decorrência do processo de estruturação da propriedade privada, vê-se o surgimento da classe-em-si, quando, independente de consciência sobre a realidade fundada na relação capital-trabalho, os homens se postam em frontes diferentes pela própria natureza estruturante do capital. Nesse contexto, a consciência de classe não chegou a instaurar a ação organizada dos trabalhadores, ficando na constatação de que o mundo para uns é bom e para outros, mal” [...]. Todavia, no dizer de Lukács (2003, p. 184), “é preciso que os trabalhadores se tornem ‘[...] uma classe, como disse Marx, não somente ‘em relação ao capital’, mas ‘para si mesmo’; isto é, elevar a necessidade econômica de sua luta de classe ao nível de uma vontade consciente, de uma consciência de classe ativa’. Aqui, a consciência alcança o status de uma práxis revolucionária, nos moldes propostos por Vázquez (1968), quando a unidade teórico-prática passa a orientar a atividade política dos trabalhadores, fornecendo-lhes estratégias e táticas necessárias para suas disputas de classe”.

vigente, uma vez que os força a lutar pelo imediato, como no caso da implementação dos Acordos de Pesca, do acesso ao seguro defeso, aos financiamentos bancários, etc. Ademais, uma vez resolvidos os problemas imediatos do pescador artesanal, não há continuidade na luta em função da resolução daqueles problemas a partir de suas causas estruturais, nem o entendimento de tais problemas como sociais, isto é, que ocorrem para além do espaço da Colônia Z-16, mesmo que sob diversas formas de manifestação.

Nesse aspecto, os princípios de organização coletiva em busca de interesses coletivos estão sendo dominados pela objetividade das necessidades imediatas, transformando o que poderia se tornar consciência revolucionária em consciência imediata e/ou reformista que se objetiva como práxis utilitária de luta no campo imediato sem a contestação da ordem vigente de relações.


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MÈSZÁROS, I. Para além do capital. 1ª ed. (revista). São Paulo: Boitempo, 2011.


NOVAES, Henrique T. A educação escolar e não escolar nas fábricas recuperadas. 2002. Mimeografado.


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RODRIGUES, Doriedson do Socorro. Saberes Sociais e Luta de Classes: um estudo a partir da Colônia de Pescadores Artesanais Z-16 – Cametá-Pa. 2012. 337f. Tese (Doutorado em Educação) – UFPA, Belém.


VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da Práxis. 1ª ed. Buenos Aires: Consejo Latino americano de Ciencias Sociales – CLACSO; São Paulo: Expressão Popular, Brasil, 2007.


Recebido em: 22 de outubro de 2017. Aprovado em: 9 de janeiro de 2018. Publicado em: 31 de janeiro de 2018.


A seção Memória e Documentos¹ deste número representa, simultaneamente, uma memória afetiva das editoras e uma homenagem ao professor e historiador Ciro Flamarion Cardoso, que faleceu no ano de 2013, mesmo ano em que assumimos a editoria da Trabalho Necessário. Um dos mais importantes historiadores do país, construtor de extensa e importante produção acadêmica, da qual destacamos o livro “Os Métodos da História”, escrito em conjunto com Héctor Pérez Brignoli. Também professor da Universidade Federal Fluminense, esse intelectual marxista não abria mão de sua independência intelectual e, em decorrência, criticava, com ênfase, as visões lineares e dicotômicas da história difundidas por alguns intelectuais de esquerda assim como por alguns partidos políticos.

A importância de Ciro Flamarion Cardoso para a ciência da história não pode ser aqui apresentada. O que desejamos destacar é um aspecto poucas vezes valorizado por parte muito expressiva de intelectuais que transitam no mundo acadêmico, em diferentes áreas do conhecimento. Trata-se, em especial, de sua atuação como professor. Para sublinhar este aspecto, valemo- nos das palavras da Profa. Virgínia Fontes, também historiadora e professora marxista da Universidade Federal Fluminense, membro do Conselho Editorial da Trabalho Necessário e amiga bastante próxima de Cardoso.

Como assinalou Virgínia Fontes,


Ciro preparava suas aulas meticulosa e minuciosamente, de tal maneira que os alunos dispunham de textos originais altamente qualificados sobre o tema trabalhado. E isso não apenas em cursos de mestrado ou doutorado, pois Ciro era rigoroso e generoso em todas as aulas que dava, sobretudo na graduação de História, onde atuou por muitos anos. Não escondia seus novos textos: eles integravam plenamente sua vida docente, sua relação com os alunos, com seus colegas e com o mundo dos historiadores. Numa época em que a pressão pela quantidade desdenha a qualidade e impede a reflexão crítica, Ciro nos ensinou a necessária dialética entre quantidade e qualidade: realizou uma produção de enormes dimensões, sempre com altíssimo nível de elaboração. (FONTES, 2013)



¹ DOI: https://doi.org/10.22409/tn.15i28.p9646


TrabalhoNecessario – www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 15, Nº28/2017


É, precisamente, um destes textos que oferecemos aos leitores. Ele chegou às nossas mãos em momentos e circunstâncias distintas, mas foi igualmente precioso para nós e, muitas vezes, o oferecemos a nossos alunos. Elaborado e partilhado pessoalmente pelo autor na segunda metade dos anos de 1970, outra versão mais ampliada chegou aos leitores em 1981, constituindo o último capítulo do livro Uma introdução à história, editado pela Brasiliense, na Coleção Primeiros Voos (CARDOSO, 1981). Não é demais assinalar as marcas do tempo na versão aqui reproduzida e, sobretudo, o fato de o original ter sido datilografado pelo próprio professor.

Certamente encontraremos em sua formulação as marcas de um tempo histórico em vários aspectos distinto do atual. Há, entretanto, bases indispensáveis à produção do conhecimento que até hoje se apresentam fundamentais, embora abandonadas pela febre das narrativas e pelo que Fontes denominou como “turismo temporal” e “repositório de curiosidades” (FONTES, 2013). Num momento em que a reflexão histórica, porque essencial e revolucionária, é virulentamente atacada, valer-nos dos ensinamentos de Cardoso constitui, segundo nosso entendimento, um exercício diário de resistência contra a alienação, a submissão encantada e os feudos acadêmicos que tentam tomar para si, em exclusivo, períodos, temas e formas de construção do conhecimento. Esperamos que os leitores partilhem conosco desta compreensão.


Jaqueline Ventura Sonia Maria Rummert

Editoras da Revista Trabalho Necessário


Referências


CARDOSO, Ciro Flamarion S. Como elaborar um projeto de pesquisa. [Niterói], snb.

. Uma introdução à história. São Paulo: Brasiliensa, 1981


FONTES, Virgínia. Ciro Flamarion Cardoso – ao professor e historiador marxista. Laboratório de Estudos do Tempo Presente. Disponível em http://www.dhi.uem.br/labtempo/index.php?option=com_content&view=article&i d=334:ciro-flamarion-santana-cardoso--ao-professor-e-historiador- marxista&catid=1:labtempo&Itemid=61. Acesso dezembro de 2017


Publicado em: 31 de janeiro de 2018.