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Universidade Federal Fluminense Faculdade de Educação
NEDDATE - NÚCLEO DE ESTUDOS, DOCUMENTAÇÃO E DADOS SOBRE TRABALHO E EDUCAÇÃO
REVISTA TRABALHO NECESSÁRIO: http://periodicos.uff.br/trabalhonecessario
Redação: R. Professor Waldemar Freitas Reis, s/n°, bloco D, sala 525, Gragoatá - São Domingos, Niterói - RJ, CEP 24210-201 - revistatrabalhonecessario@gmail.com
EDITORES
Lia Tiriba, Maria Cristina Paulo Rodrigues e José Luiz Cordeiro Antunes
CONSELHO EDITORIAL
Caridad Perez García (UCPEJV – Cuba), Celso Ferretti (UNISO - Brasil), Gaudêncio Frigotto (UFF/UERJ - Brasil), José Claudinei Lombardi (UNICAMP – Brasil), Maria Ciavatta (UFF - Brasil), Roberto Leher (UFRJ - Brasil), Tomás Rodrigues Villasante (UCM – Espanha), Sonia Maria Rummert (UFF) e Virgínia Fontes (UFF/EPJV / Fiocruz - Brasil).
COMITÊ CIENTÍFICO
Alexandre Maia do Bomfim (IFRJ), Ana Margarida Campello (EPSJV/FIOCRUZ), Ana Motta (UFF), André Feitosa (EPSJV/FIOCRUZ), André Martins (UFJF), Andrea Araújo Vale (UFF), Anita Handfas (UFRJ), Angela Siqueira (UFF), Angela Tamberlini (UFF), Aparecida Tiradentes (EPSJV/FIOCRUZ), Claudio Fernandes da Costa (UFF), Célia Regina Vendramini (UFSC), Daniela Motta (UFJF), Dante Moura (IFRN), Deise Mancebo (UERJ), Domingos Leite Lima Filho (UTFPR), Dora Henrique da Costa (UFF), Edison Oyama (UFRR), Edson Caetano (UFMT), Eneida Oto Shiroma (UFSC), Eraldo Leme Batista (UNIVAS-MG), Eunice Trein (UFF), Eveline Algebaile (UERJ), Filippina Chinelli (EPSJV/FIOCRUZ), Flávio Anício (UFRRJ), Francisco José Lobo Neto (FIOCRUZ), Guadelupe Teresinha Bertussi (UNAM e UFSC), Hajime Nozaki (UFMS e UFJF), Henrique Tahan Novaes, Ivo Tonet (UFAL), Jacqueline Botelho (UFF), Jaqueline Ventura (UFF), João dos Reis da Silva Jr. (UFSCar), José dos Santos Souza (UFRRJ), José Luiz Cordeiro Antunes (UFF), Júlio Cesar França Lima (FIOCRUZ), Justino de Souza Junior (UFC), Kátia Lima (UFF), Laura Souza Fonseca (UFRGS), Lea Calvão (UFF), Lia Tiriba (UFF), Lígia Klein (UFPR), Luciana Requião (UFF), Marcelo Lima (UFES), Maria Clara Bueno Fischer (UFRGS), Maria Cristina Paulo Rodrigues (UFF), Maria Inês do Rego Monteiro Bomfim (UFF), Maria de Fátima Félix Rosar (UNICAMP), Marcia Alvarenga (UERJ), Mariléia Maria da Silva (UDESC), Marisa Brandão (CEFET-RJ), Marise Ramos (UERJ,FIOCRUZ), Marlene Ribeiro (UFRGS), Myriam Feldfeber (UBA - Argentina), Ney Luiz Teixeira Almeida (UERJ), Olinda Evangelista (UFSC), Ramon de Oliveira (UFPE), Raquel Varela (Universidade Nova de Lisboa - Portugal), Roberto Leher (UFRJ), Ronaldo Lima (UFPA), Rosilda Benacchio (UFF), Rui Canário (Universidade de Lisboa – Portugal), Sandra Maria Siqueira (UFBA), Sandra Morais (UNIRIO), Sérgio Lessa (UFAL), Sonia Maria Rummert (UFF), Susana Vasconcellos Jimenez (UFC), Tatiana Dahmer (UFF), Valdemar Sguissardi (UFSCar), Vania Motta (UFRJ) e Zuleide Silveira (UFF)
ORGANIZAÇÃO DA TN 30 (2018)
Marcelo Lima (LAGEBES/PPGE/UFES)
ASSISTENTES DE EDIÇÃO
Daniel Tiriba, Jean Pablo Silva de Lima, Sandra Butschkau, Victória Sias e William K. do Amaral Souza
FOTO DA CAPA
Trabalhador de Rede de Telecomunicações - Alcântara/São Gonçalo-RJ, 2017, autoria de Socorro Andrade, jornalista do SINTTEL/Rio
MONTAGEM DA CAPA
Daniel Tiriba
Indexado por / Indexed by
Apoio:
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá/SDC/UFF Bibliotecária:
Mahira de Souza Prado CRB-7/6146
EDITORIAL: A CLASSE TRABALHADORA E SEUS CAMPOS DE BATALHA.¹
A tarefa de iniciar o debate, a cada edição da TN, no campo teórico e político em que a revista se situa, remete-nos à necessidade de desvelar alguns aspectos da luta de classes na contemporaneidade. Ainda mais quando estes aspectos explicitam uma profunda desvantagem para aqueles e aquelas que têm na venda da sua força de trabalho a condição fundamental de sua existência.
Assim, ao trazer as Políticas de Qualificação da Classe Trabalhadora como temática central da TN30, queremos contribuir para aprofundar a análise das condições objetivas/subjetivas em que a classe trabalhadora brasileira se lança no que que Harvey (2011) vai denominar de “campo de batalha perpétua”. E, para tanto, pensamos ser importante destacar, nessa “batalha”, o que significou (e significará) a aprovação da Reforma Trabalhista em abril de 2017 (Lei 13.467/17) – com implantação iniciada em novembro do mesmo ano.
Em primeiro lugar, concordamos com Krein (2018, p. 77) que, com a lei que libera a terceirização e amplia o contrato temporário (Lei 13.429/2017), a Reforma Trabalhista significa o “desmonte dos direitos sociais e trabalhistas conquistados nos últimos cem anos pelo povo brasileiro”, assumindo, nesse sentido, muito mais um caráter de contrarreforma, num profundo retrocesso na regulação social do trabalho.
Tal retrocesso deve ser compreendido como parte de um conjunto de medidas que consolidaram o apoio do “mercado” ao golpe de 2016 (vide o documento “Ponte para o Futuro”, do PMDB) e podem ser traduzidas no congelamento do gasto público por vinte anos, nas privatizações, na reforma do ensino médio, na política econômica ortodoxa, na tentativa da reforma da previdência. E que, no caso da Reforma Trabalhista, contou com subsídios muito claros de entidades patronais como a CNI (Confederação Nacional da Indústria) e a CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil.
Sob o argumento da necessidade de modernização de uma “legislação ultrapassada”, 201 pontos da CLT foram alterados, para garantir ao capital maior flexibilidade na relação com o trabalho. Os resultados são, segundo a publicação “Contribuição Crítica à Reforma Trabalhista”, do CESIT/IE/Unicamp (2017), novas configurações do trabalho, desmonte dos direitos sociais e esvaziamento da ação coletiva, viabilizados por uma série de medidas que inclui desde a terceirização total,
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i30.p10083
www.uff.br/revistatrabalhonecessario - ano 16 - nº 30/2018
que levará ao que os autores chamam de “pejotização” nos contratos de trabalho, ou seja, à prestação de serviço, só que individual e ao aumento dos micro empresários individuais (MEI), acompanhada da flexibilização da jornada de trabalho e da remuneração variável.
Além disso, aumentarão também as contratações atípicas: com a adoção do contrato por tempo parcial, do contrato intermitente e do contrato temporário (que passa a valer até 270 dias, contra os 90 dias anteriores); e será facilitada a demissão dos trabalhadores, uma vez que os patrões poderão demitir coletiva ou individualmente, sem negociarem com os sindicatos ou prestarem conta às instituições públicas; a homologação não precisa ser no sindicato e vale a rescisão por acordo, quando o aviso prévio e o saldo do FGTS são pagos pela metade, só se tem direito a 80% do FGTS e não se tem direito ao seguro desemprego.
No que se refere à jornada de trabalho, o empregador terá muito mais liberdade para manejar o tempo de trabalho necessário, através da adoção do Banco de Horas, das escalas (de 12x36h), do parcelamento das férias, da redução da hora do almoço, do não cômputo das horas de deslocamento, do não pagamento de horas extras em caso de home office, ao desconsiderar as atividades preparatórias como parte da jornada.
Mas ainda há alterações também no campo da remuneração, com a possibilidade de redução salarial (através de negociação coletiva ou individual); do estímulo à remuneração variável (assim como pagamento por produtividade ou desempenho individual); possibilidade de pagamento em bens, bônus e serviços; gorjetas apropriadas pela empresa; não consideração de gratificações como parcela salarial, comprometendo, assim, os fundos de financiamento das políticas públicas, em especial, a da seguridade.
Todas estas medidas atuam para que os(as) trabalhadores(as) vivenciem uma dificuldade cada vez maior de organizarem sua vida para além do “tempo econômico”, o que certamente traz efeitos na sua saúde, física e mental.
Do ponto de vista da ação coletiva, há uma descentralização do processo de definição das regras da relação de emprego para o interior da empresa, deixando à margem as instituições públicas do trabalho. E como isso acontece? Através da prevalência do negociado sobre o legislado (mas, ao contrário do vigente até então, este negociado pode ser menos que o que está na lei); do estrangulamento financeiro
dos sindicatos; da normatização da representação dos trabalhadores no local de trabalho com base no Estado; da possibilidade de negociação individual; da retirada dos sindicatos das homologações; da eliminação da ultratividade dos acordos (que significa que, enquanto empresas e sindicatos não fecham novo acordo, vale os termos do último).
Tais medidas atingem, nesse sentido, dois dos mais importantes princípios do direito do trabalho, que são o reconhecimento da assimetria na relação entre KxT (que demanda, portanto, a presença do sindicato ou a intervenção do Estado); e o fato de que o trabalho não pode ser considerado uma mercadoria qualquer, exatamente porque ele pressupõe a pessoa humana.
Mas, apesar de a correlação de forças atual apontar para um favorecimento do capital, ou, como Deddeca (1999 apud Krein, 2018) afirma, para “uma vingança do capital contra o trabalho”, há resistência, há lutas. E, nesse sentido, é que podemos entender o aumento nas taxas de sindicalização, assim como também tem se mostrado crescente a credibilidade dos sindicatos de trabalhadores na sociedade (KREIN, 2018). Tais elementos colocam, por sua vez, para os(as) trabalhadores(as), a necessidade de se pensar novas estratégias de organização e ação, dentre as quais poderíamos citar uma maior aproximação dos sindicatos com a base e com a sociedade, além da unificação de entidades, para fazer frente a essa ofensiva.
É neste mesmo “chão histórico” que possibilitou a aprovação e implementação da contrarreforma trabalhista que se situam também as questões tratadas nos artigos sobre Políticas de Qualificação da Classe Trabalhadora. Mas os trabalhadores (e os educadores) continuam no campo de batalha, em defesa de uma concepção de educação e qualificação, que propõe o fortalecimento de “processos de resistência, emancipação e formação de identidade política” (HORTA, 2016), a partir dos quais continuamos a defender a radicalização da democracia e da justiça social.
Com este espírito e essa esperança, entregamos mais um número da nossa revista TrabalhoNecessário, dedicando-o à companheira Aparecida Tiradentes, professora aposentada da EPSJV/Fiocruz e membro do Comitê Científico da TN, que nos deixou recentemente.
Lia Tiriba
Maria Cristina Paulo Rodrigues José Luiz Cordeiro Antunes
Referências
HARVEY, David. O enigma do capital e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011.
HORTA, Carlos Roberto. Mutirão, Trabalho e Formação Humana: forjando novas relações entre o saber e o poder. 2016. 656p. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de
Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, 2016.
KREIN, José Dari. O desmonte dos direitos, as novas configurações do trabalho e o esvaziamento da ação coletiva: consequências da reforma trabalhista. Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 30, n. 1, abril/2018 (p.77-104).
TEIXEIRA, Marilane Oliveira et al (orgs). Contribuição Crítica à Reforma Trabalhista. Campinas, S.P.: CESIT/IE/Unicamp, 2017.
Publicado em: 21 de novembro de 2018.
Marcelo Lima2
A partir do ano de 2018 a Revista Trabalho Necessário passou a editar números temáticos coordenados por grupos de pesquisa associados ao NEDDATE, considerando sua afinidade com a linha editorial da revista, - o materialismo histórico. Assim, como meio de veiculação e mediação do pensamento crítico em relação ao mundo do trabalho, à formação humana e as relações históricas entre trabalho e educação, os números vêm sendo constituídos por artigos de autores convidados, vinculados a temática específica, além de artigos de demanda espontânea.
No número 30 (maio/agosto/2018), de acordo com o tema dos projetos e programas de formação humana, o NEDDATE em articulação com grupo de pesquisa GETAE-LAGEBES e o PPGE-UFES, sob nossa coordenação, buscou dar lugar a estudos e pesquisas sobre Políticas de qualificação da classe trabalhadora. Para além das ações de escolarização, esse número temático aglutinou análises sobre ações estatais e não governamentais coordenadas que, pretenderam dar respostas às pressões sociais e econômicas por preparação de trabalhadores para atuarem em postos de trabalho com alguma qualificação.
Em Trabalho-educação: uma unidade epistemológica, histórica e educacional, Maria Ciavatta (2017) assinala que o amadurecimento do campo da pesquisa em educação nos últimos anos nos permitiu avançar na busca do entendimento da unidade epistemológica do campo Trabalho e Educação. A constituição deste campo de pesquisa tem ajudado os pesquisadores a identificar um conjunto de questões relacionadas a fenômenos complexos como educação profissional, ensino técnico, educação tecnológica, educação de jovens e adultos trabalhadores, trabalho infanto-juvenil, movimento sindical, etc.
Fundada numa perspectiva histórico-social onde a luta de classes constitui a totalidade mais ampla da realidade, a história se coloca como método e como
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i30.p10324
2 Doutor em Educação pela UFF. Professor na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Membro do PPGE-UFES e coordenador do LAGEBES.
processo de investigação da transformação social. Neste contexto, o Trabalho e a Educação tomados empiricamente como categorias distintas são indissociáveis e conceitualmente são pensados como Trabalho-Educação.
Para Ciavatta (2017, p.04), o “campo de pesquisa Trabalho-Educação busca pensar analiticamente e atuar socialmente sobre os processos educativos em sua relação com o mundo do trabalho”. Segundo a autora os estudiosos “desse campo se identificam pelos estudos sobre o mundo do trabalho, mercado de trabalho, relações de trabalho, formação profissional, técnica e tecnológica, educação dos trabalhadores, formação integrada entre o ensino médio e educação profissional”. Sua base teórica é “o pensamento crítico expresso pelo materialismo histórico”. Neste sentido, é próprio “do campo de pesquisa Trabalho-Educação, no GT 09 da ANPEd, estudos sobre as relações capitalistas de produção, as transformações do mundo do trabalho, as políticas educacionais, o ensino médio, a preparação para o trabalho” (p.05).
A qualificação profissional, elemento central de análise no presente número temático, não pode ser tomada como processo desconectado do conjunto das contradições da luta de classe. Como bem nos informa Bravermam (1987), a formação profissional e a alienação do trabalho são forças em conflito no interior do processo produtivo que antecedem a forma exclusivamente escolar anterior a inserção produtiva.
A necessidade dos trabalhadores se qualificarem de modo sistemático decorre das formas históricas de elaboração e distribuição (alienada ou não) dos saberes profissionais que se articulam com o sistema da divisão social e técnica do trabalho. Estrutura essa atravessada pelas contradições de classe que se encontram no seio das disputas pelo controle dos saberes produzidos pelos trabalhadores e apropriados pelo capital. Nessa lógica o capital homeopaticamente por meio da escola tenta exercer controle do acesso dos trabalhadores aos saberes profissionais e conhecimentos outros, acumulados historicamente, cada vez mais complexos. Assim, uma leitura do campo Trabalho e Educação sobre as políticas de qualificação dos trabalhadores, considera a negatividade destas políticas, que ao escolarizar e
profissionalizar promovem processos simultâneos de qualificação e desqualificação, conforme seus interesses econômicos e ideológicos.
Para designar o conceito de políticas públicas de educação situamo-nos na interface do campo da pesquisa em “Trabalho e Educação” e do campo da pesquisa em “Políticas Educacionais” ou “Estado e Educação”.
No primeiro campo temos uma forte ênfase de base marxista que faz a crítica ao processo capitalista de produção e acumulação tendo em vista os fundamentos ontológicos de formação humana cujos objetos de pesquisa dão foco nas relações da educação média e profissional com as formas e relações de trabalho.
Já o campo acadêmico da Política Educacional, segundo Stremel (2016), caracteriza-se por estudos sobre a situação de ensino no país e estudos sobre a administração da educação, administração escolar e educação comparada (STREMEL, 2016, p.47); mas também vincula-se a certos interesses que estão em jogo, seja para legitimar uma determinada política, seja para negá-la, de tal modo que tomadas de posições dos intelectuais nesse campo podem contribuir para certos mecanismos de reprodução social (STREMEL, 2016, p.39).
Num esforço de conceituar a política como elemento central para designar sua derivação e especificidade no campo educacional, Stremel (2016) parte das distinções presentes na língua inglesa que elenca os conceitos de Polity, Politics, Policy (ou politicies). Para Stremel (2016), segundo os dicionários Pocket fowler’s modern english usage e dictionare of the social sciences, Polity pode significar governo civil - constituição e ou sociedade – país, podendo ser utilizado de modo geral para designar sistema político como um todo (apud STREMEL, 2016, p. 64). Nesse caso Polity teria mais a ver com a estrutura do Estado. O termo Politics, por sua vez, segundo as obras de referência, teria nos conflitos e nos interesses em jogo, sua essência, referindose também às relações de poder presentes no Estado (Johnson Jr, 2003 apud STREMEL, 2016, p. 64).
De modo geral, o termo politics indicaria ações em conjunto de sujeitos que coletivamente articulados por meio de interações sociais, atuam nos processos de luta no interior do Estado. Já o termo Policy (ou no plural – Policies) diz respeito à ação pública dos governos, envolvendo intencionalidade e planejamento para
realização de ações governamentais que se configuram como políticas públicas (Dutra, 1993 apud STREMEL, 2016, p. 64).
Nestes termos, podemos afirmar que a política tomada como estrutura ou sistema político e social (Polity) é produto de processos de interação social (Policy) relacionados às relações de poder e aos jogos de forças internas à luta de classes e frações de classe que disputam o controle do Estado (Polity) para fazer as políticas públicas (Politics) cujo alcance, consistência, racionalidade e intencionalidades, podem ser verificados segundo a sua afetividade. Esta, por sua vez, pode ser avaliada tantos pelos benefícios quanto pelos beneficiários (finais ou intermediários) sem perder de vista seus efeitos de curto, médio e longo prazo.
Nesta lógica, diferenciam-se as políticas estruturantes (políticas de Estado) das quais resultam infraestrutura e recursos perenes relacionados a serviços prestados pelo poder público e, as primeiras, como (políticas de governo), das quais resultam transferência de recursos financeiros que podem ficar no meio do caminho, beneficiando mais os operadores (beneficiários intermediários) dos serviços prestados do que o público-alvo (beneficiários finais). Tais princípios podem ser aplicados na avaliação dos “planos, projetos e programas” que se constituem como Politics de segunda categoria, identificáveis mais, como políticas de governo e de curto prazo. Historicamente, podemos identificar ações governamentais deste tipo.
Desde o governo de João Goulart, passando pela ditadura civil-militar, pelos governos FHC e Lula, chegando ao governo Dilma, foram instituídos muitos programas. Denominados de PIPMOI (Programa Intensivo de Preparação de Mão- de-obra Industrial - decreto nº 53.324 -18/12/63); PIPMO (Programa Intensivo de Preparação de Mão-de-obra - decreto nº 70.882 – 27/07/72); PREMEM (Programa de Expansão e Melhoria do Ensino Médio - decreto nº 70.067 – 26/01/72); PROMED (Programa de Melhoria e Expansão do Ensino Médio - parecer 15/98 do CNE e Resolução CNE/CBE nº3/98); PROEP (Programa Nacional de Expansão da Educação Profissional - norma nº 001/99 – 23/09/99); PLANFOR (Plano Nacional de Formação - lei nº 7.998 – 11/01/90 e resolução 126/96 do CODEFAT); PNQ (Plano Nacional de Qualificação - resolução nº 333 – 10/07/03); PROJOVEM (Programa Nacional de Inclusão de Jovens - no 11.129 – 30/06/05); PROEJA
(Programa de Integração da Educação Profissional à Educação de Jovens e Adultos
- decreto-lei nº 5840 – 13/07/06; PROEMI (Programa Ensino Médio Inovador - portaria MEC 971 – 09/10/09) e PRONATEC (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego - lei nº 12.513 – 26/10/11); estes, cumpriram papéis diversos, tendo ou não recursos externos, sendo determinados por acordos internacionais ou provindos de decisões internas.
Em geral, essas políticas derivam da iniciativa da União que, atendendo a determinadas demandas da "sociedade", estabelece linhas de ação por meio de repasse de recursos públicos às instituições não estatais e/ou por meio de uma ação direta das redes públicas (federal, estadual e ou municipal), que realizam determinado atendimento escolar. Essa dinâmica implica grande impacto nas políticas públicas de educação, estabelecendo um campo de disputa na luta pela hegemonia, no estabelecimento das prioridades educacionais nos planos financeiro, econômico, ideológico e pedagógico.
No campo educacional, esses programas podem deixar como legado obras realizadas, atividades de formação de professores, laboratórios e equipamentos instalados na estrutura escolar que podem resultar em benefícios de longo e/ou de médio prazo para a sociedade. Entretanto, quando as ações se resumem ao repasse de recursos do fundo público para o setor privado, esses resultados podem se reduzir à capitalização e ao fortalecimento de instituições e/ou de seus proprietários e dirigentes. Aqui, as consequências podem não resultar num legado educacional, podendo ainda fazer sobrepor os meios (contratação de entidades privadas) aos fins (atendimento ao públicoalvo).
Nesse contexto, a transparência e a fiscalização dos repasses e resultados são fundamentais para se avaliar a qualidade da efetividade do atendimento escolar.
Ao longo dos anos, muitas políticas públicas de qualificação articuladas ou não com processos de escolarização são colocadas em prática, tendo como base justificadora o argumento da falta de mão de obra qualificada e se inspiram nos princípios da teoria do capital humano com objetivo de impulsionar ou em decorrência do crescimento econômico. Exemplo disso é o documento “Exposição de Motivos” encaminhado à apreciação da Presidente da República à época, Dilma
Roussef, classificando-o como um dos “maiores desafios colocados hoje para continuidade do crescimento econômico do País”, que é a falta de mão de obra qualificada (BRASIL, 2011, p. 1).
Não obstante, as funções pretendidas pelos programas dessa natureza, em sua grande maioria, desarticulam-se dos processos mais amplos de escolarização, podendo também servir menos a objetivos estruturantes na repartição pública de oferta e permanência escolar, e mais a objetivos secundários no fortalecimento dos setores privados de formação profissional. Considerando que o fundo público deve financiar o direito à educação, o qual deve ser estruturado por meio de políticas públicas permanentes de modo a atender a todos os indivíduos universalmente e de forma obrigatória em ação direta e/ou colaborativa pelos entes públicos federados, cabe uma análise dos processos de formulação e implementação destas políticas.
No caso particular de projetos e programas tomados como políticas de governo e não de Estado, outras contradições se exacerbam devido ao caráter efêmero e não estruturante do conjunto de suas ações. Ou seja, consideramos, para efeito de nossa análise, que quanto mais imediatista for as premissas que orientam essas políticas, provavelmente mais distorções e inversões entre objetivos e resultados podem ocorrer. Assim sendo, as políticas que poderiam ser classificadas como políticas de Estado seriam aquelas estruturantes de um sistema nacional de educação no qual o setor privado teria apenas função complementar e não substitutiva já que, posto ser a educação um direito, perder essa essência significaria também perder o seu caráter público.
Nessa direção os textos em tela fazem a crítica necessária e oportuna articulando atual crise do capital na sua relação com o contexto de ampliação permanente do desemprego onde o Estado brasileiro, na maioria das vezes, ao invés de consolidar os direitos sociais, opta historicamente, por um processo de esvaziamento e de mercantilização da a educação desarticulando processos mais amplos de escolarização e de profissionalização da classe trabalhadora servindo a propósitos imediatos de gestão da pobreza, de reprodução do trabalho simples com políticas de formação aligeiradas voltadas não mais o emprego e sim para empregabilidade.
O artigo internacional, Uma abordagem interacional dos saberes e das culturas profissionais, de Telmo H. Caria (Portugal) e Marise Ramos (Brasil), aborda o conceito de saber profissional no âmbito das Ciências Sociais vinculado com o tema das culturas profissionais. Neste trabalho, considera-se
“contribuições da microssociologia, vindas da fenomenologia social e do interacionismo simbólico, em diálogo interdisciplinar com as Ciências
Cognitivas e com o pensamento histórico-dialético” para se discutir o complexo processo de produção do conhecimento e sua importância. A contemporaneidade do estudo nos leva a necessidade de repensarmos os elementos sociais e cognitivos constitutivos da ontologia do Trabalho.
O artigo Políticas de EJA no IFES: percursos de escolarização, de profissionalização e de resistência no PROEJA, de Edna Castro de Oliveira e Maria José de Resende Ferreira, com base em dados de registros das práticas de construção coletiva dos cursos do Proeja no campus Vitória “indicam que mesmo num contexto adverso à oferta da EJA na instituição, a ocupação dos cursos pelos trabalhadores evidencia marcas de resistência na manutenção da oferta” da modalidade EJA “e o exercício coletivo dos sujeitos na luta pelo direito à educação”. Nesta pesquisa as autoras extremamente engajadas na defesa do direito dos jovens e adultos na rede federal, destacam o papel da pesquisa na construção coletiva para o processo de resistência que explica a expansão e o fortalecimento da oferta do Proeja no campus Vitória do IFES.
O artigo Educação Profissional: uma análise sobre a oferta de cursos técnicos, como ação do Programa Brasil Profissionalizado, nos estados da Bahia e do Acre, de Remi Castioni, contempla um estudo descritivo sobre a oferta de educação profissional nesses mesmos estados. Esse texto, dá notícia de um importante subprograma cujos objetivos estruturantes que visavam financiar a ampliação das redes estaduais de educação profissional poderiam e deveriam ter sido ampliados nos governos Lula e Dilma, mas que ficando subordinado ao Pronatec ainda permanecem pouco analisado.
O artigo A educação no período da ditadura militar: o ensino técnico profissionalizante e suas contradições (1964-1985), de Nara Lidiana Silva Dias Carlos, Ilane Ferreira Cavalcante e Olívia Morais de Medeiros Neta, por meio de um estudo de revisão bibliográfica e documental analisou as mudanças educacionais ocorridas durante o período da ditadura civil militar (1964- 1985) para evidenciar não apenas a função social e ideológica das reformas viabilizadas pelas Leis nº 5.540, de 28/11/1968 (ensino superior nacional) e nº 5.692 de 11/08/1971 (ensino de 2º profissionalizante), mas sobretudo revela a relação de subordinação entre elas.
O artigo O Projovem Urbano como política de invisibilidade da classe trabalhadora, de Rafael de Lima Bilio e Sonia Maria Rummert trata, à luz do materialismo histórico, analisa o programa denominado ProJovem Urbano, que visou atender jovens com idade entre 18 e 29 anos, alfabetizados, mas que não concluíram o 9ª ano do Ensino Fundamental. Para os autores, trata-se de uma das muitas políticas focais de gestão da pobreza na qual, apesar dos avanços dos governos Lula-Dilma, foram mantidos os pilares neoliberais da política macroeconômica e muitos programas compensatórios de atenuação do desemprego e amortização de conflitos instituídos, como o Projovem urbano.
Compondo conjunto de análises, dando ênfase ao contexto mais recente, apresentamos 03 artigos: 1) Qualificação Profissional no Pronatec e as demandas do Neodesenvolvimentismo Lulo-Petista: formação voltada para a empregabilidade, de Ricardo Afonso Ferreira de Vasconcelos e Mário Lopes Amorim; 2) Pronatec: ampliação das ações fragmentárias e intensificação da privatização da formação do trabalhador, de Jaqueline Pereira Ventura, Ludmila Lustosa Lessa e Samantha Castro V. de Souza, e; 3) A trajetória do
Pronatec e a reforma do ensino médio: algumas relações com a política de educação profissional mundial, de Danilma de Medeiros Silva, Dante Henrique Moura e Lincoln Moraes de Souza.
Cada texto, ao seu modo particular, analisa aspectos problemáticos e contraditórios deste programa que envolveu vultosos recursos (cerca de 15 bilhões) e mobilizou enormes contingentes de estudantes (cerca de 10 milhões), em cursos realizados em todos estados da federação. O programa surge para resolver um suposto apagão de mão de obra, o que exigiria ampliação das redes físicas de
educação profissional; com efeito, acabou por ser uma estratégia de coalizão política de afirmação como marca do governo Dilma (VASCONCELOS e AMORIM). Os processos educativos realizados caracterizaram-se por propiciar uma formação fragmentada para o trabalho simples e resultaram na intensificação do processo de privatização da formação do trabalhador (VENTURA; LESSA; e SOUZA). Além disso, afirma-se que o Pronatec representa um ponto de continuidade com a Reforma do Ensino médio que aprofunda ainda mais a dualidade estrutural da educação (SILVA; MOURA; SOUZA).
Nesse número da revista “Trabalho Necessário”, como de praxe, foram publicados quatro trabalhos de demanda contínua que mantém nos seus temas e nos sujeitos das pesquisas correlação com a questão da inserção no mundo do trabalho.
A juventude trabalhadora do campo e da cidade vivencia, de modo particular, processos de qualificação profissional e de escolarização que nem sempre garantem uma formação humana emancipatória, capaz de lhes trazer uma inserção profissional para além do trabalho simples e precário. Para tanto, sugerimos a leitura dos artigos: A condição de vida e as expectativas de jovens do campo e da cidade frente ao trabalho, à educação e ao futuro (Adriana D’Agostini e Rafael Márcio Kreutzer) e, A relação estabelecida entre a formação profissional e o ensino regular: falam os jovens aprendizes (Angelita Oliveira Almeida e Inara Barbosa Leão).
Destacam-se aqui, ainda, as experiências e estruturas públicas de formação propiciadas pelos casos analisados da rede pública de educação profissional da Bahia e da Escola Joaquim Venâncio – Fiocruz que, num cenário de regressão pública e privada das ações de qualificação, dão a ver alternativas públicas de formação humana. Para tanto evidenciamos os trabalhos: Educação Profissional Integrada na rede Pública Estadual da Bahia: a experiência do
Centro Territorial da região Metropolitana de Salvador/BA (Aline de oliveira Costa Santos e Avelar Luiz Bastos Mutim) e Formação para a reforma psiquiátrica: a experiência do curso de qualificação em saúde mental para profissionais com
formação de nível médio – EPSJV/FIOCRUZ (Nina Soalheiro dos Santos e Danúbiah Mendes Pereira).
No item “Teses e Dissertações” temos dois importantes trabalhos: A dissertação de Mestrado de Luiz Augusto de Oliveira Gomes intitulado: Jovens trabalhadores-estudantes: a construção da vontade coletiva em experiências de ocupação de escolas e a tese de Doutorado de Carlos Roberto Horta denominada Mutirão, Trabalho e Formação Humana: forjando novas relações entre o saber e o poder.
No primeiro trabalho, Gomes dialogando com Gramsci, Makarenko, Pistrak e Shulgin nos mostra como recentes processos concretos de luta, materializados nas ocupações dos estudantes, são capazes de produzir novos processos educativos emancipatórios e contra-hegemônicos. Num momento de grandes retrocessos nos direitos à educação, esse trabalho evidencia a força educativa dos movimentos sociais sem perder de vista os elementos teóricos revolucionários socialistas que lhes dão base.
No segundo texto, Horta revisita as experiências de qualificação profissional da classe trabalhadora desenvolvida pelos próprios trabalhadores e militantes de movimentos sociais nos anos 1980. Na articulação entre formação sindical, profissional e política o trabalho destaca o papel do “operário como sujeito educador e elaborador de sua própria cultura” onde o espaço da fábrica para além do locus da alienação e de extração de mais-valia revela-se como espaço social “de atividade política, de educação e de tomada de consciência”. Diante da hegemonia do Sistema S na operacionalização das políticas de qualificação, Horta afirma que essas experiências são mais “avançadas do que a das organizações patronais, como o SENAI e o SENAC”, pois pela sua proposta de uma educação operária constrói um saber (e um poder) que subverte o que fora definido e articulado a partir do poder do patronato sobre os trabalhadores.
Na seção “Memória e Documentos” temos a icônica e rara imagem do presidente João Goulart ainda no exercício legítimo de suas funções. Para
refletirmos sobre este contexto, Francisco José da Silveira Lobo Neto nos oferece a análise O Programa Intensivo de Preparação da Mão de Obra – PIPMO: Contexto Normativo. Nesta abordagem, ao dialogar com Cunha (2000) e Barradas (1986), o autor sinaliza alguns movimentos de reconfiguração do PIPMOI ao PIPMO que informam sobre o deslocamento da gestão do Ministério da Educação para o Ministério do Trabalho e forte influência e participação do Senai e do Senac.
Vem à tona, uma comparação inescapável entre Goulart e Roussef, ambos defenestrados do poder por meio de golpes conduzidos pelas elites nacionais do atraso que tanto em 1964 quanto em 2016, retiram do poder presidentes da república que tinham entre suas principais ações programas com vistas a “induzir o processo de desenvolvimento no Brasil” e integrando-se ao
“processo mais global de acumulação, concentração e centralização do capital” (BARRADAS, 1986, p. 165 apud LOBO NETO) por meio de políticas de qualificação da classe trabalhadora como o PIPMO e o PRONATEC.
Não obstante, alguns aspectos positivos das Políticas de qualificação da classe trabalhadora, é possível perceber enorme incompletude do Estado Brasileiro que se articula com o esvaziamento do direito à educação. Os fundamentos dos interesses do capital ganham, nesta quadra histórica, ainda mais força no aprofundamento de crise de sua base civilizatória.
Como podemos perceber à luz dos textos e pesquisas presentes nesse número temático, os programas ao serem implementados operam priorizando ações de qualificação desarticuladas dos processos de escolarização com vistas à destinação de recursos para o setor não estatal de educação profissional, submetem-se à esfera privada na sua gestão ou execução, o que tende, por vezes, a distorcer objetivos republicanos presentes nas formulações que em geral propugnam a promoção do desenvolvimento econômico e a geração ou inserção do/no emprego.
Acreditamos que a educação gerida ou executada por instituições privadas ou ainda orientada para fins (intermediários ou finais) mercantis, pode servir a objetivos imediatistas que vão desde o viés economicista, visando formar profissionais adaptados ao mercado de trabalho, até o viés explicitamente mercantil,
no qual a própria formação torna-se o mercado. Nesse caso, o fim intermediário subordina o objetivo final, em que se atribui mais importância à formação para o mercado do que o mercado da formação. Quando isso ocorre, a educação engendra- se pela forma de mercadoria, atendendo aos ditames de fragmentação e flexibilização típicos do mercado, cujos princípios temporais e epistemológicos subordinam-se à mercantilização que corrói as bases curriculares do direito à educação.
Políticas como o Pronatec acabam por tentar eximir o poder público da responsabilidade com uma questão inerente ao capital que é o desemprego. A falta de empregos suficientes para todos é um aspecto estrutural do processo de produção de mais-valia que não será superado no interior do processo de acumulação capitalista. Tratando de planos nacionais de qualificação como o Planflor, PNQ e Pronatec, ideologicamente, tenta-se justificar, por meio do discurso da teoria do capital humano (TCH) e da empregabilidade, que o Estado poderia reverter essa problemática e que tais políticas impactariam o desenvolvimento do país e / ou reduziriam as taxas de desemprego. Nessa lógica, a superação da condição de desempregado dependeria do empenho e da capacidade de adaptação dos principais afetados pela falta de oportunidades de trabalhos.
Nesse caso, evidenciam-se os objetivos ideológicos nos quais os programas de formação profissional não se adequam ao mercado, mas sim ao
“não mercado”, pois a ausência dos empregos em quantidade e qualidade inviabiliza a inserção dos egressos dos cursos, mas permite ao Estado responder às pressões sociais por crescimento econômico e por maior oferta de qualificação, entendida à luz da TCH como passaporte para o emprego.
Na verdade, esses planos de qualificação, além de serem usados como marketing político visam, por um lado, responder às pressões dos trabalhadores quando faltam empregos, gerando paz social e esperança aos desempregados, e por outro, dos empregadores quando faltam empregados. Ou seja por meio dessas ações o Estado capitalista, gera farta oferta de força de qualificação simples para o trabalho simples, mas com alguma atualização e em condições de reforçar o exército de reserva, mantendo os salários suficientemente baixos para o capital.
BRAVERMAN, H. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987.
CIAVATTA, M TRABALHO-EDUCAÇÃO: uma unidade epistemológica, histórica e educacional Autor: Niteri, Mimeo 2017.
STREMEL, Silvana A constituição do campo acadêmico da política educacional no Brasil Ponta Grossa: tese de doutoramento PPGE-UEPG, 2016.
Vitória, 13 de junho de 2018. Publicado em: 21 de novembro de 2018.
Telmo H. Caria3 Marise Ramos4
O artigo aborda o conceito de saber profissional no âmbito das Ciências Sociais vinculado com ao tema culturas profissionais, considerando contribuições da microssociologia, vindas da fenomenologia social e do interacionismo simbólico, em diálogo interdisciplinar com as Ciências Cognitivas e com o pensamento histórico-dialético em alguns aspectos, visando a contribuir para estudos sobre o trabalho profissional em interação social. Conclui destacando a importância de investigações empíricas sobre os elementos que interconectam tais componentes interacionais no interior do grupo profissional e sobre os efeitos das interações multiculturais na reflexividade interna desse mesmo grupo.
The article discusses the concept of professional knowledge in the field of Social Sciences linked with the theme professional cultures, considering contributions from microsociology (social phenomenology and symbolic interactionism) in interdisciplinary dialogue with the Cognitive Sciences and with historical-dialectical thinking in some aspects, aiming to contribute to studies of professional work in interaction. Concludes by highlighting the importance of empirical research about interconnect components such interactional within the professional group and the effects of multicultural interactions in professional reflexivity.
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i30.p10085
2 O conteúdo deste artigo é produto de estudos e pesquisas do primeiro autor, além de diálogos com a segunda no estágio pós-doutoral realizado na UTAD/Portugal, em 2012, ao identificar contribuição desses estudos para se compreender aspectos virtuosos da abordagem das competências que foram apropriadas pelo pensamento neoliberal, como as implicações subjetivas e interacionais dos trabalhadores no desenvolvimento de seus saberes e no enfrentamento das situações concretas de trabalho.
No âmbito da sociologia do conhecimento, identificamos movimentos teóricos e um crescente interesse analítico por conexões entre conceitos e senso comum nas atividades e interações sociais práticas com o conhecimento, inspiradas na fenomenologia social, o que significou um avanço em relação às análises histórico-discursivas dos enunciados das ideias e das doutrinas político- ideológicas e uma focalização no uso prático do conhecimento (COUTER, 1989; DUBOIS, 2001; PHARO et al., 2003). Mesmo assim, a exemplo das correntes que enfatizam as aprendizagens a partir dos processos de recontextualização do conhecimento (BERNSTEIN, 1990, 1996; EVANS et. al., 2011), nessa renovada abordagem, o conhecimento conceitual, disponível, teórica e discursivamente, é o que tem se mantido central (CARIA, 2015).
Esta abordagem revela-se insuficiente para explicar a mobilização de conhecimento numa perspectiva horizontal, que articule práticas e significações em contexto de interação social e profissional, pois o conceito de recontextualização pensa a mobilização do conhecimento a partir de relações sociais que sobrevalorizam quem oferece e quem transmite (as instituições de educação formal, os educadores e os formadores) o conhecimento e não a partir da ação social de quem procura e de quem aprende (de quem usa conhecimento) na prática social (BRASSAC, 2007; CARIA, 2007; SAWCHUK, 2011). A
recontextualização, assim, enfatiza a dependência da reflexividade social da reprodução dos poderes desiguais sobre o conhecimento abstrato e, tal como todas as abordagens estruturais e institucionais do social, salienta a determinação da escala macro de análise sobre as atividades práticas e ação social em contexto.
Esta constatação justifica a influência da fenomenologia social na elaboração teórico-metodológica dos saberes profissionais. Primeiramente, cabe explicar tratar-se de um estudo sobre as ações sociais de grupos numa dinâmica cotidiana, constituindo-se, assim, um objeto da microssociologia com inspiração compreensiva. Isto por considerar que a apreensão das formas de uso do conhecimento pelos profissionais em interação contribui para a compreensão de dinâmicas da sociedade. A fenomenologia, por sua vez, nos ajuda a colocar em questão análises sociais que tomam os conhecimentos abstratos como verdades
independentes da prática social. Assim, a teorização que tomará corpo ao longo deste texto orienta investigações ao nível micro social, isto é, das interações.
Talvez Edmund Husserl tenha se atentado mais para este plano do que Karl Marx. Afinal, como afirma Paci (1968), Husserl não se interessou por Marx e na realidade o campo dos problemas do marxismo era estranho a suas investigações. Ele explica que em Husserl a psicologia é para a fenomenologia uma espécie de pedra de toque, uma “ciência das decisões” (PACI, 1968, p. 233, grifado no original), faltando-lhe o problema da relação entre a esfera das necessidades e das satisfações e sua estrutura condicionante.
Em seu estudo sobre Fenomenologia e Marxismo, o referido autor procura “instituir uma relação de recíproca integração e fecundação entre Marx e Husserl” (BOBBIO, 2006, p. 250): “se colocamos o marxismo em relação com a problemática fenomenológica, devemos esperar que se nos revele um marxismo crítico e uma possível nova leitura dos textos marxistas”. (PACI, 1968, p. 233)
Não teríamos pretensão de tal monta quando sinalizamos as contribuições da fenomenologia para o presente estudo, em um diálogo interdisciplinar que inclui o pensamento histórico-dialético. Mas não deixa de nos interessar a proposição do filósofo italiano, ao discutir natureza e história na referida obra, sobre a presença das leis engelianas da dialética na análise fenomenológica de grupos, classes e comunidades. Na análise fenomenológica, segundo ele, modalidades dialéticas como as apresentadas por Engels – compenetração dos opostos, conversão da quantidade em qualidade e vice-versa, negação da negação – deveriam necessariamente ultrapassar a subjetividade entendida como ponto de partida ou como presença vivente e operante: “a subjetividade, já se viu, é também intersubjetividade que se determina em grupos sociais viventes”. (PACI, 1968, p. 234) Este seria um ponto de diálogo entre a fenomenologia e o materialismo histórico-dialético neste estudo, ou seja, o foco na intersubjetividade que se processa no mundo real.
Uma pretensão para além desta, implicaria tematizar criticamente uma tentativa de integração dessas duas filosofias, tal como fez Bobbio (2006, p. 255), o que foge ao escopo deste texto. Mesmo assim, concordamos com o autor que o marxismo é uma metodologia da história e a fenomenologia não tem a mesma abrangência. A alienação, questão comum a ambas, é abordada por eles
distintamente; para o primeiro, é determinada pela ciência, para o segundo, pela economia. Por consequência, enquanto em Husserl a crítica das ciências e a descoberta do mundo-da-vida como esfera pré-categorial permitiria a volta ao sujeito e a sua libertação da objetividade que o subsume, Marx encontra a objetividade na crítica da economia política ao desvelar a falsificação das relações humanas pelo caráter abstrato desta ciência e pelas “mistificações subjetivas”.
Essas, porém, são questões filosóficas. Colocado no plano sociológico, nosso objeto de estudo – os saberes profissionais – são considerados no mundo do cotidiano da intersubjetividade. Sendo assim, reconhecemos sua delimitação à perspectiva fenomenológica e, em convergência com Karel Kosik (1976, p. 11), seriam manifestações da pseudoconcreticidade: “o complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera comum da vida humana, que, com a regularidade, imediatismo e evidência, penetram na consciência dos indivíduos agentes”. No mundo da pseudoconcreticidade, a diferença entre fenômeno e essência desaparece. Mas, com este mesmo autor aprendemos que o fenômeno, simultaneamente, revela e esconde a essência. Se assim não fosse, o mundo da realidade se distinguiria radicalmente do mundo do fenômeno. Por esses motivos, reconhecemos a pertinência de tal perspectiva de análise, mas também seus limites pois, “sem o fenômeno, sem a sua manifestação e revelação, a essência seria inatingível”. (idem, p. 12)
A fenomenologia social, portanto, nos ajuda a não tentar chegar diretamente à essência sem buscar apreender exaustivamente o fenômeno na sua aparência. Veremos que sua contribuição para este estudo se vê confrontada pelo materialismo histórico-dialético pela categoria contradição, posto que os grupos profissionais, sua experiência, sua cultura e seus saberes se constituem como fenômenos de interações subjetivas que guardam determinações da estrutura social, ao mesmo tempo em que a apropriação de seus saberes pelo reconhecimento das formas de uso do conhecimento abstrato ajudam a recuperar o sentido da agência humana no confronto com esta mesma estrutura.
Além da fenomenologia social, consideramos também as contribuições do interacionismo simbólico. E sobre isto, vale lembrar que as orientações sobre o uso prático do conhecimento não são novas na sociologia. Abordagens teórico- metodológicas inspiradas na sociologia simbólica-interacionista têm
continuadamente salientado a autonomia da (des)ordem social que se constrói à escala micro das atividades práticas de interação social, inclusive perspectivando- a em diálogo com várias correntes da psicologia (BLUMER, 1982). Porém, muitas das pesquisas que seguem esse caminho acabam por centrar-se na análise da construção da mente e da identidade do sujeito cognitivo, ou na especificidade das significações, das crenças e dos conteúdos de conhecimento das atividades práticas locais, tendendo a ser acusadas de desenvolverem explicações subjetivistas e relativistas do conhecimento e da reflexividade social. Entendemos que a compreensão dos processos sociais que considerem a agência humana não pode prescindir do estudo da experiência dos sujeitos na produção de sua existência no plano do cotidiano e da estrutura social. Para isto, uma contribuição para se superar os limites da abordagem fenomenológica e/ou sócio-interacionista são algumas categorias de Edward Thompson (1981) sobre a experiência humana, às quais recorreremos em alguns pontos deste texto.
A abordagem do saber profissional4 como parte de uma cultura de grupo, por sua vez, ao colocar seu interesse para além da recontextualização do conhecimento e das pesquisas que visam coletar os conhecimentos e as crenças subjetivas das pessoas, procura enfocar processos sociocognitivos de aprendizagem e uso do conhecimento de forma contextual e situacional, sem desprezar influências das relações sociais institucionalizadas e relações de poder mais amplas sobre o conhecimento (QUÉRÉ & FORNEL, 1999). Nesse sentido, entende o poder como constituinte das interações sociais e não opõe agência humana à estrutura social (CARIA, 2008, 2010).
A sociocognição – o uso do conhecimento associado à aprendizagem na interação – advém de um aporte interdisciplinar, incluindo contribuições mais recentes da psicologia cognitiva e das ciências cognitivas. Essas, porém, devem contribuir para uma compreensão da mente na perspectiva da ação social e não estritamente da organização e formas das representações mentais internas ao sujeito, como é propósito da psicologia cognitivista (EVANS, 2008; STERNBERG & HORVATH, 1999; SUN, 2002; CARIA, 2017).
4 O conceito de profissional deve ser entendido no âmbito da tradição internacional de pesquisa em Sociologia dos Grupos Profissionais e sua associação, mais recente, com a Sociologia das Organizações (Dubar & Tripier, 1998; Noordegraaf, 2007; Caria, 2013).
Inicialmente, discutimos o conceito de saber profissional como o conhecimento em uso por profissionais em situações de trabalho, sendo constituído por dualidades epistemológica, cognitiva e social. Ao ter a ciência e a experiência como fontes, emerge de interações nos grupos profissionais em que se instauram tensões advindas das diferenças de poder em confronto com identidades coletivas e com a reflexividade social. (CARIA, 2005, 2008).
Passamos, depois, ao diálogo com as ciências cognitivas a partir do conceito de sociocognição, mantendo uma referência sociológica, isto é, colocando práticas, ações, atividades, interações, mais do que as pessoas, no centro do interesse analítico. Discutimos também o saber profissional na perspectiva da comunicação com os usuários quando, pela linguagem – meio de externalização sociocognitiva – podem se manifestar desigualdades de poder e de conhecimento entre as pessoas em interação.
Para melhor compreender o conceito de saber, importa repetir que enfatizamos os processos de aprendizagem que decorrem do uso do conhecimento, pelos sujeitos sociais, na ação.
Assim, o saber não se confunde com o conhecimento científico, com recortes e apropriações aplicadas – conhecimento técnico e tecnológico – ou, ainda com enunciados de ordem filosófica, jurídica ou equivalentes. No escopo de nosso estudo, esses serão reconhecidos como conhecimento abstrato.
O conhecimento abstrato, ainda que delimite e em grande medida defina profissões (ABBOTT, 1988; EVETTS, 2003; BRANTE, 2010), não se configura imediatamente como saberes profissionais, mas sim como uma de suas fontes. A outra é a experiência prática. No trabalho profissional processa-se uma transformação prática do conhecimento abstrato para que seja adequado à intervenção profissional em situação e na interação social, gerando uma forma situada do conhecimento: o saber profissional. Por meio deste, os membros de um grupo coordenam suas ações em situação com consciência prática; isto é, com um conhecimento tácito habitualmente utilizado no desenvolvimento de sequencias de conduta (COLLINS & EVANS, 2007; PAVLIN et al., 2010; GHERRARDI, 2007; STERNBERG & HORVATH, 1999; CARIA, 2017b).
Neste processo, os critérios acadêmicos normalmente utilizados para se julgar a validade de um conhecimento – coerência dos enunciados, rigor conceitual e generalização dos problemas diagnosticados – adquirem uma relação tensional com a ambiguidade e ambivalência dos significados partilhados na interação social, com a subjetividade das interpretações dos problemas e dos casos e com a procura de eficácia para os resultados obtidos, por relação com aquilo que é prescrito socialmente e é assumido pela ideologia e saberes tácitos que suportam o poder profissional numa dada sociedade (CARIA, 2014).
Esta tensão pode ter várias interpretações teóricas. Na perspectiva dos processos de recontextualização do conhecimento abstrato, trata-se de reconhecer que o saber se organiza pela mediação que a experiência e a reflexividade do profissional fazem entre a teoria e a especificidade dos casos sobre os quais o trabalho profissional se debruça, visando uma intervenção profissional em contexto que saiba lidar com o contingente e o incerto dos problemas sociais a partir de princípios e regras abstratas de aplicação generalista (SHON, 1983; ABBOTT, 1988; CARIA, 2000; CARIA et al., 2012).
Complementar esta perspectiva com uma contribuição interacionista, permite também afirmar que na cultura profissional existe uma especificidade pragmática no trabalho quando este visa a atender expectativas dos usuários. Por esta especificidade, o saber resulta da interpretação do curso da interação social nos seus efeitos imediatos, cognitivos e expressivos, na atuação do outro, e suas consequências naquilo que acontece, aqui e agora.
Essa perspectiva se confronta com aquela discutida por Zarifian (1994) sobre as organizações qualificantes e aprendizes, cuja característica seria se aproveitar da imprevisibilidade da produção como origem e ocasião de aprendizagem para trabalhadores e organização. Ainda que ambas as abordagens valorizem as componentes cognitiva e comunicacional das interações no trabalho, as organizações que adotam tal perspectiva de gestão visam, na lógica da aprendizagem organizacional, a apropriação dos saberes tácitos dos trabalhadores ao formalizá-los, “tornando-os proposições explícitas e transformando-os em estruturas de rotina, que constituem a memória da organização [...] designadas pelos termos de competências organizacionais”. (RAMOS, 2001, p. 207) Ao contrário disto, interessa-nos o estudo dos saberes
profissionais muito mais como resultantes de constrangimentos e tensões que potencializam soluções no fluxo da interação no interior de um grupo profissional e, que pode, inclusive, proteger e/ou manter a coesão do grupo frente ao poder institucional. Do ponto de vista epistemológico, como indicam alguns dos estudos etnográficos desenvolvidos em Portugal (CARIA, 2000, 2011; LOUREIRO, 2008;
PEREIRA, 2008; CARIA e PEREIRA, 2017) e no Brasil (RAMOS, 2011, 2015,
2017), a dualidade se manifesta numa articulação complexa, contraditória e variável, onde o implícito e o tácito parecem ter um importante papel.
Ao trazer a categoria experiência para o estudo dos saberes profissionais, Ramos (no prelo) trata da experiência direta e indireta, explicitando uma tensão desse termo nas perspectivas pragmática e histórico-dialética, exposta a seguir.
Os pragmatistas, ao considerarem que todos os conhecimentos autênticos resultam da experiência direta, elidem o fato de que o homem não pode ter uma experiência direta de tudo, razão pela qual a maior parte dos nossos conhecimentos é, na realidade, o produto de uma experiência indireta. No trabalho profissional, certamente ocorre a experiência direta com situações, tornando- se uma fonte empírica de conhecimentos. A formação profissional/escolar, por sua vez, é uma experiência indireta com a realidade, fonte de conhecimentos já produzidos por outros sujeitos no processo histórico-social de apropriação da realidade.
Nas situações de trabalho, experiência direta e indireta com a realidade se encontram como práxis produtiva e social. A elaboração teórico-metodológica dos saberes profissionais aqui expostas originária de pesquisas realizadas em Portugal enfrenta contradições no Brasil. Por ser um país de capitalismo dependente (FERNANDES, 2006), a acumulação de capital se baseou na superexploração do trabalho e na desqualificação da maioria dos trabalhadores, manifesta na baixa escolaridade média da população.
Assim, enquanto em Portugal se estudam saberes de profissionais de nível superior (CARIA, 2010), no Brasil, outras pesquisas (RAMOS, 2011, 2015, 2017) têm-se voltado para profissionais de nível médio, trabalhadores técnicos da saúde. Muitos desses trabalhadores obtiveram antes a experiência prática no trabalho para, depois, realizarem a formação técnica. Ademais, eles desenvolvem seu trabalho com baixa autonomia e elevada subordinação ao profissional de nível superior.
Esses trabalhadores possuem baixo poder econômico, social e simbólico. Suas atividades têm por base o conhecimento científico que orienta procedimentos técnicos, mas o acesso a esse conhecimento de forma sistematizada foi delimitado pelo nível de ensino exigido, de modo que os conteúdos selecionados pelas escolas que os formam tendem a ser restritos àqueles considerados necessários a orientar bons procedimentos práticos (RAMOS, 2010). Mesmo com essa configuração, o conhecimento científico está presente na atividade de trabalho, seja explícita ou implicitamente; e os trabalhadores fazem algum uso deles. Tais usos sofrem influência de determinações estruturais, tais como as condições de classe, as políticas de educação básica e de educação profissional; além de relações de poder instauradas entre subalternos e superiores e entre pares de um mesmo contexto profissional (RAMOS, 2014). Essa realidade desafia a teoria original ao confrontá- la com as relações sociais de produção em uma formação social concreta como o Brasil.
Ao estudar os saberes profissionais de técnicos de nível médio de vinte equipes da Saúde da Família das cinco regiões brasileiras (RAMOS, 2017), por exemplo, identificamos uma importante capacidade resolutiva das equipes, porém, em circunstâncias débeis e/ou heterogêneas de formação no interior da equipe. No que tange à educação formal, tendo-se a ciência como uma das fontes, tais debilidades e/ou heterogeneidades decorrem de um lado, dos limites da formação inicial; e de outro, da insuficiência da formação continuada. Já em relação aos aprendizados da prática, quando a experiência predomina como fonte de conhecimentos, a manutenção de relações hierárquicas, ao invés de tornarem a heterogeneidade da formação em oportunidades de aprendizagem mútua, acabam por reiterá-las, perdendo-se, assim, o potencial formativo da experiência profissional vivida coletivamente e confirmando a configuração mais de equipes fragmentadas em seus interesses e poder do que por eles integradas.
Situar o conceito de saber profissional no âmbito de uma cultura supõe considerar que, independentemente da epistemologia-fonte usada ser científica
ou ser prática e experiencial, ele constrói-se na interação com o outro, num processo de ajustamento de expectativas mútuas e de atribuição de significados às coisas e às ações do meio social envolvente. Nesta perspectiva interacionista sobre o conceito de cultura, pretende-se evitar que, por um lado, o conhecimento usado pelo indivíduo para agir numa dada situação seja concebido como independente do uso que o seu interlocutor lhe dá, isto é, dos significados atribuídos pelo outro à mesma situação. Porém, como já afirmamos, pretende-se evitar que o conhecimento seja perspectivado somente como o resultado de um processo socializador de conformação dos indivíduos a estruturas simbólicas ou a instituições culturais no qual a experiência possuída seja mais ou menos equivalente ao conhecimento social herdado (BLUMER, 1982).
Nesse sentido, propomos mais uma vez o diálogo com o historiador Thompson (1981), quando este afirma que considerar os valores somente como impostos pela classe dominante seria um equívoco em relação a todo o processo social e cultural: “ao negar a ideia de imposição heterônoma, ele não desvincula completamente os valores da ideologia, mas os coloca no plano da cultura, o que significa reconhecê-los como experiência vivida” (RAMOS, 2018).
No estudo dos saberes profissionais, o conceito de cultura põe em evidência que os conhecimentos abstratos e experienciais usados em situação não são apenas uma criação individual ou um produto institucional. São um processo social de construção que tem, simultaneamente, motivações cognitivas de ação e resolução de problemas comuns e de comunicação de significações variadas capazes de exprimir e negociar uma identidade social partilhada. É a conjugação destas duas motivações que permite dizer que a cultura que constrói em situação o saber profissional está ao mesmo tempo construindo um grupo de pares: associando uma prática situada de trabalho com uma diferenciação grupal identitária (QUEIROZ & ZIOTKOWSKI, 1997).
No entanto, como indica a fenomenologia social, o que está em causa não é só a construção social de um grupo profissional. Ao desenvolver-se na interação social um cotidiano compartilhado em comum e um repertório de experiências sociais coletivas, a cultura profissional constrói um mundo social próprio, onde os outros existem por referência aos limites e aos horizontes desse mundo auto referenciável. A realidade social é suportada por uma atitude natural que apaga o
processo cultural de construção dessa realidade, fazendo com que a percepção, a identidade e a reflexividade da cultura profissional dependam em primeiro lugar da consciência prática que existe na interação social sobre o que se acredita ser o mundo (SCHUTZ, 1994; DENYS, 2001). Neste contexto, todo o uso que se fizer do conhecimento abstrato institucionalizado está dependente dos limites e dos horizontes que uma cultura profissional herda, tem e potência quando constrói a realidade social e quando reproduz uma ordem interacional.
Se ampliarmos a construção do objeto na perspectiva histórico-dialética, os grupos profissionais seriam entendidos como particularidades sociais que podem ou não se identificar como classe trabalhadora. Não é possível partir-se de um ou outro pressuposto, mas trata-se de uma questão que o pesquisador pode se colocar ao ser coerente com essa filosofia. Neste caso, tensionando tanto com a fenomenologia social, quanto com o pragmatismo, teria que se colocar a categoria experiência humana no plano das relações sociais de produção, para além das interacionais; e a cultura, como materialização dessa experiência a qual, por sua vez, “exerce pressões sobre a consciência social existente” (THOMPSON, 1981,
16). Nesse sentido, o estudo dos saberes de grupos profissionais poderia ajudar a compreender dinâmicas e processos pelos quais os trabalhadores se afirmam, em suas relações de trabalho, como sujeitos das relações sociais de produção e, assim, resistem e elaboram formas de enfrentamento à dominação.
As pesquisas que informam este texto não se colocaram tal desafio5. Porém, o escopo teórico até então construído, não ignora que a construção de uma cultura profissional é constrangida por poderes de estruturas e instituições sociais exteriores mais amplos e não deixa de poder gerar, em articulação com outros processos simbólicos e culturais (incluindo o conhecimento abstrato), consequências sociais que poderão ir além da realidade e da identidade herdadas e reproduzidas por um dado grupo.
5 As pesquisas coordenadas pelo primeiro autor deste artigo valem-se predominantemente da contribuição da fenomenologia social, enquanto as da segunda autora têm-se apoiado na teoria sobre saberes profissionais por ele desenvolvida, mas propõem extrapolar a análise do plano micro para o macrossocial, a partir do materialismo histórico-dialético, com contribuições do materialismo cultural de Raymond Williams, do conceito de experiência em Edward Thompson e de práxis em Antônio Gramsci, ainda delimitado ao plano teórico e não empírico. O confronto dessas perspectivas tem-se mostrado virtuoso, para os autores, no estudo dos saberes de grupos profissionais ao ajudar a compreender dinâmicas e processos desiguais de ativação e mobilização de conhecimento tácito-experiencial e conhecimento explícito-abstrato, pelos quais os trabalhadores se podem afirmar como sujeitos das relações sociais e, assim, resistir e elaborar formas de enfrentamento à dominação socio-econômica e/ou socio-cultural.
A ordem social interacional que é construída pela cultura contém prescrições, normas e regras gerais que lhe são externas, mas que precisam ser atualizadas à medida que o processo de interação social ocorre porque ela não está acima da história, nem é obrigatoriamente homogênea.
Esta dualidade, estruturante da vida social, permite afirmar que toda a ordem cultural – reproduzida pelo poder-constrangimento – contém uma história de desordens, de desigualdades e conflitos sociais e culturais – reproduzida pelo poder-capacitador – que também precisa ser regulado na interação social. Trata- se de uma dualidade do poder que introduz uma descontinuidade nas interações sociais. Aquilo que se herda como conhecimento provado e validado por gerações anteriores não é necessariamente equivalente àquilo que se exprime e prática na situação; isto é, a identidade social que garante a reprodução do passado no presente opera em situação sem ter que estabelecer uma equivalência automática entre o interiorizado-incorporado e o exteriorizado-comunicado.
Numa interpretação menos psicológica do interacionismo simbólico fala-se de uma tensão (de um potencial desencaixe) na identidade social de um grupo entre aquilo que é atribuído pelos outros a nós e aquilo que herdamos da nossa experiência coletiva e que nos permite ter uma expectativa social sobre os outros (DUBAR, 1997; CARIA et. al., 2017).
Na referência praxiológica reconhece-se que pode existir uma descontinuidade (uma histeresis da prática que manifestaria um envelhecimento do habitus) entre as estruturas sociais e simbólicas passadas herdadas, nas quais os grupos sociais são socializados, e as estruturas de poder atuais, nas quais os grupos sociais atuam como agentes simbólicos e culturais (BOURDIEU, 1972, 1997).
As ideias de “experiência herdada” e “experiência transformada” de Thompson (1998), por sua vez, expressam o movimento de construção, transmissão e transformação cultural na classe. As formas de resistência à dominação nas estratégias de organização cotidiana do povo visam, muitas vezes pela defesa e manutenção de sua cultura, garantir condições para sua existência.
Na nossa perspectiva existe uma interdependência entre a dualidade do poder e a dualidade das mentes que organizam os saberes profissionais. Ambas se encontram na construção cultural dos grupos profissionais ao nível da
interação social. A primeira dualidade salienta o fato de ser possível haver improviso prático apesar dos constrangimentos externos e das consequências não previstas da ação. A segunda salienta o fato de poder haver uso do conhecimento abstrato e uma atitude reflexiva face ao mundo social, apesar da subordinação da cultura aos processos que ordenam o social na interação. Vejamos como estes dois processos podem ser pensados em conjunto com base nas conclusões dos estudos etnográficos que temos desenvolvido, que referenciamos anteriormente.
O trabalho profissional sofre constrangimentos externos porque é alvo de expectativas institucionais e sociais. Pode-se supor que ao necessário alinhamento de seus procedimentos a essas expectativas corresponda algum nível de subordinação da cultura do grupo profissional à ordem social. As interações no interior do grupo tenderiam a se orientar em defesa da sua coesão frente aos constrangimentos e, nesse sentido, o movimento predominante seria evitar o conflito e buscar o consenso, afastando ou silenciando as perturbações. Sob tal lógica, o que tenderia a predominar na interação seriam condutas automáticas; isto é, agir como de costume, correspondendo às expectativas mútuas influenciadas pela defesa da coesão interna face aos constrangimentos externos.
As interações realizadas nesses termos são produtoras do senso comum compartilhado pelo respectivo grupo – um conhecimento tácito coletivo (Collins, 2010) – que consolidam uma cultura profissional. Porém, há situações em que as tensões não são eliminadas pelo consenso nem acirradas ao ponto de se irromper o conflito, pois a construção de uma identidade social partilhada, numa dada conjuntura, não pressupõe práticas iguais.
Nesses casos, como as ações reprodutoras se desestabilizam, os automatismos não conseguem manter o fluxo da interação. Surgem os improvisos, que advêm de processos sociocognitivos não-representacionais; isto é, da intuição, da capacidade de associar experiências com expectativas e de selecionar oportunidades e alternativas. Os improvisos se tornam aprendizagens mútuas para as quais as divergências de sentido, desde que negociadas internamente, tornam-se uma oportunidade, e compõem os saberes profissionais juntamente com os automatismos consolidados na prática do grupo profissional.
Ao mesmo tempo, as respostas do grupo profissional a constrangimentos e expectativas externas podem levar à afirmação de interesses, projetos e ações comuns que exigem da cultura profissional o uso de conhecimento abstrato e o investimento na reflexividade profissional. Nesses casos, a coesão interna visa tanto manter o fluxo das interações, mas também assegurar uma relativização do seu etnocentrismo cultural, potenciando o uso da razão teórica e critica em relações sociais mais amplas, inclusive para atuar sobre os constrangimentos que a subordinam. O saber profissional, neste caso, se revela em competências analíticas, em articulação e contraposição às de tipo automáticas e intuitivas.
Enfocamos até aqui as interações no interior do grupo profissional por relação com a dualidade de processos, mais ou menos articulados ou descontínuos entre consenso-improviso e divergência-consciência crítica. Mas as que se processam deste com os usuários dos serviços também têm relevância e trazem outros elementos para a análise, dado que neste caso trata-se de relações multiculturais.
Estas relações podem ser reproduzidas automaticamente num sistema de papéis e estatutos que legitima as diferenças de poder e conhecimento entre profissionais e usuários, desde que na interação social esses participantes tenham uma atitude de conformação mútua com as normas sociais institucionalizadas. Sempre que esta conformação normativa não ocorre, à escala micro da interação acumulam-se tensões e perturbações nas expectativas mútuas. Neste quadro, as culturas profissionais têm uma de duas alternativas extremas: ou se fecham no seu etnocentrismo profissional e geram exclusão dos usuários menos conformados, fazendo uso da violência simbólica para que as relações assimétricas na comunicação sejam reproduzidas; ou relativizam o seu etnocentrismo e geram inclusão social procurando desenvolver relações de compreensão também com os usuários que mais perturbam a interação.
No primeiro caso, a cultura profissional usa o seu poder constrangedor e em consequência o conhecimento prático e experiencial frente ao senso comum dos usuários sobre os problemas sociais em que estão envolvidos que é considerado irrelevante e supérfluo para o saber profissional. No segundo, ao contrariar e minimizar o uso da violência simbólica, a cultura profissional usa o seu poder capacitador para possibilitar uma ressignificação do seu saber pelo
senso comum dos usuários, abdicando do monopólio do conhecimento em benefício de uma compreensão mútua menos desigual. A comunicação, uma mediação fundamental para a eficácia do trabalho profissional, ocorre pelo encontro contraditório entre a linguagem profissional e a linguagem comum dos usuários.
Entre esses dois extremos estão outras possibilidades que dependem não só do profissional, mas também da receptividade do usuário, porque a rigor, não há uma fronteira clara, ou uma dicotomia, entre as duas soluções. Como referimos, o poder constrangedor não se opõe ao poder capacitador dado que, por um lado, o uso do conhecimento abstrato pode dar ao profissional uma consciência crítica de que precisa desenvolver relações de compreensão mútua com os usuários, mas não é por isso que passa a ter automaticamente o saber prático e experiencial para encontrar formas e meios de expressão a uma comunicação menos assimétrica. O profissional precisa improvisar, valendo-se de sua experiência anterior para lidar com usuários com condutas desviantes. Assim, acaba por construir o saber profissional necessário a esse fim.
Em conclusão, a interdependência entre dualidade de poder e dualidade das mentes nesse tipo de interação se processaria da seguinte forma: quanto mais o conhecimento abstrato e a reflexividade profissional forem orientados para a compreensão do usuário, menor o recurso à violência é visto como um meio legítimo de ação, ainda que isso não seja suficiente para se saber melhor lidar com a diferença cultural; quanto mais houver experiência de improvisar para gerar compreensão, menos o uso da violência será visto como um meio cultural do grupo, ainda que isso não seja suficiente para se saber porque é que em cada caso um dado improviso é mais eficaz do que outros. A seção que se segue aprofunda o estudo do saber profissional nessas duas perspectivas.
Nossa abordagem cognitiva do saber profissional não opõe os princípios da representação simbólica aos da ação situada, tal como se pode encontrar nos debates das Ciências Cognitivas (QUÉRÉ & SCHOCH, 1998; VARELA et al., 2003; VERA & SIMON, 1993; FRAWLEY, 1997; WILSON, 2002). O que nos
parece fundamental é reconhecer que o conhecimento produzido a partir de representações mentais do mundo objetivo tem limites para domínios indefinidos de tarefas como a experiência cotidiana.
Na seção anterior referimo-nos à dualidade epistemológica que produz os saberes profissionais: a prática e a teoria. Abordaremos, agora, a dualidade sociocognitiva, dada à coexistência de formas de pensamento de tipo pragmático e analítico no trabalho profissional. Esta dualidade é abordada pelas teorias da mente dual (EVANS, 2009, 2008; SUN, 2002) que nos ajudam a compreender a cognição sendo constituída por processos de representação, percepção e associação que se interconectam no agir em situação.
Nessa abordagem, o cérebro humano conteria dois sistemas paralelos de cognição, ou duas mentes: uma pragmática e outra analítica. A primeira produziria, armazenaria e utilizaria conhecimentos que são inerentemente implícitos envolvendo a percepção, a atenção, a associação e a aquisição de habilidades motoras, além de sensações e respostas emocionais e intuitivas. Ela opera predominantemente, através dos processos de tipo 1 – rápidos, automáticos, com alta capacidade de processamento a baixo esforço. Trata-se de automatismos que orientam o comportamento diretamente sem precisar de atenção controlada, ao reconhecerem imediatamente padrões e regularidades de ação que não passam pela consciência. A segunda mente usaria conhecimento explícito e operaria primariamente através de processos de tipo 2 – lentos, controlados, de capacidade limitada e elevado esforço. Esses incluem raciocínio lógico, analítico e hipotético, via suposições e simulações mentais conscientes baseadas em princípios e regras explícitos.
Ainda que os processos de tipo 1 formem o sistema designado como mente pragmática e os de tipo 2, o sistema da mente analítica, considera-se pertinente – para não se ficar apenas no estudo psicológico das estruturas cognitivas internas ao sujeito – a hipótese da existência de ambos os tipos de processamentos em cada uma das mentes (Evans, 2009): primeiro, a extração de saber da prática; segundo, a recontextualização rotineira do saber. No primeiro os conhecimentos implícitos poderiam ser também processados analiticamente na forma de associações e comparações seletivas, relativas à reflexão a partir da experiência entre diferentes contextos de ação. No segundo, os conhecimentos
explícitos poderiam ser processados rápida e automaticamente, visando a recontextualização de princípios e regras gerais, na forma de normas e rotinas práticas de pensamento e ação recorrentemente aplicadas.
Para nós, é essencial esta hipótese, pois dela, como veremos, depende o próprio conceito de saber profissional como construção social na articulação entre mentes-epistemologias do conhecimento (CARIA, 2017a).
O papel da linguagem na interação entre profissionais e usuários – aquilo que designamos como a componente comunicacional da ordem interacional nas relações multiculturais – é também relevante, uma vez que nesse tipo de interação as desigualdades de poder e conhecimento manifestadas na comunicação podem ser muito marcantes. Sendo assim, o estudo da sociocognição na perspectiva interacional buscaria também entender o saber profissional sob o enfoque da comunicação com o outro (com outras culturas), considerando a linguagem como externalização sociocognitiva; ou seja, como mediação que mantêm o fluxo da interação social pelo diálogo. Para tal propósito, encontramos na abordagem sobre os gêneros discursivos de Bakhtine (1977), uma possibilidade teórica.
Para o autor, as falas sociais em uso numa situação medeiam a relação entre o sujeito, a língua e o mundo, fixando o regime social de funcionamento da língua que são os gêneros. Não se trata de uma norma, ou de regras explícitas de uso da linguagem, mas sim de um estoque de enunciados mutuamente esperados, protótipos de maneira de dizer ou de não dizer num espaço sociodiscursivo, que retêm a memória social nos atos comunicativos. Eles trazem os subtendidos – o conhecimento implícito na comunicação que constitui o tácito coletivo (COLLINS, 2010) – que regem as relações com os objetos e entre as pessoas, tradições adquiridas que se exprimem e se preservam nas palavras. Quando partilhado, o gênero permite o fluxo do diálogo e, portanto, a partilha de um quotidiano de vivências implícitas comuns, no sentido fenomenológico. Quando não partilhado, pode travar o fluxo do diálogo, evidenciando perturbações
nas expectativas mútuas de interação, para as quais é necessário encontrar soluções ajustadas à (des)ordem interacional.
Para enfocar o saber profissional nesta perspectiva, consideramos a linguagem profissional como um gênero discursivo, constituída por significados científicos explícitos e por outros tácitos compartilhados pelo grupo profissional. Os usuários dos serviços, por sua vez, entram em interação com os profissionais a partir de sua linguagem diária corrente que não é a mesma do gênero discursivo profissional. Mas os usuários não conformam um grupo cultural com identidade própria, dada a grande diversidade de origens sociais e culturais destes, especialmente quando se trata de serviços profissionais no âmbito do desenvolvimento de políticas públicas (orientação que temos privilegiado no contexto dos nossos trabalhos anteriores). Por esta razão, abordamos a componente comunicacional desse tipo de interação a partir da orientação que o profissional confere à sua fala com o usuário, uma vez que podemos falar da existência de um gênero discursivo do grupo profissional, mas não podemos fazer o mesmo em relação aos usuários.
No âmbito de uma cultura profissional, o gênero discursivo pode ser entendido como a externalização da cultura pela linguagem e contribui para a unidade do grupo. Porém, o gênero discursivo profissional pode contribuir também para o fechamento etnocêntrico da cultura profissional, tornando-se um obstáculo para a fluência da comunicação na relação multicultural entre profissional e usuário, uma vez que as dualidades de poder e de conhecimento institucionalmente reproduzidas e legitimadas se podem estender, na comunicação, para uma forma de dualidade de poder sobre a linguagem.
Profissional e usuários dominam gêneros discursivos distintos, sendo próprio dessa interação o predomínio do gênero discursivo profissional que organiza e externaliza o saber profissional necessário e esperado pelo usuário para a eficácia na resolução de seus problemas. No enfrentamento dessa dualidade, o profissional pode se dispor a ressignificar a linguagem profissional com a linguagem comum, a fim de proporcionar maiores condições de compreensão pelo usuário. Trata-se da orientação da fala para a partilha. Diferentemente, o profissional pode orientar sua fala demarcando a diferença entre sua linguagem e a linguagem comum. Designamos tal orientação como
distinção. Podemos dizer, então, que a interação multicultural entre profissional e usuário ocorre em contextos sociodiscursivos formados pelo encontro entre as orientações das respectivas falas. Quando a fala profissional orientada pela partilha encontra-se com a fala receptiva do usuário, tem-se um contexto de coordenação compreensiva entre os sujeitos; contexto este no qual interesses do profissional e do usuário passam a convergir.
Buscamos compreender a sociocognição uma perspectiva interdisciplinar, com contribuições da sociologia do conhecimento, da fenomenologia social, do interacionismo simbólico e das ciências cognitivas, considerando diálogos em alguns aspectos com o pensamento histórico-dialético. A construção do conceito de saber profissional como uma referência organizativa da cultura profissional enfocou o processo de transformação do conhecimento científico da profissão por práticas sociais comuns. Privilegiou-se o enfoque analítico que ressalta e problematiza as dualidades que se confrontam e se articulam na dinâmica interacional no interior do grupo profissional e na relação deste com os usuários dos serviços.
Na abordagem do saber profissional, discutimos as dualidades epistemológica (teoria e prática) e cognitiva (mentes analítica e pragmática) a partir das quais este saber é produzido. Compreendendo que o saber profissional só se produz em interação com o outro, num processo de ajustamento de expectativas mútuas e de atribuição de significados às coisas e às ações do meio social envolvente, demonstramos que seu caráter interacional e coletivo conforma a cultura profissional.
Numa perspectiva fenomenológica, discutimos que a percepção, a identidade e a reflexividade da cultura profissional depende também da consciência prática dos sujeitos na interação e não só do que seus determinantes estruturais. Nesse âmbito, destacamos a dualidade de poder que se interconecta com a dualidade epistemológica e cognitiva do saber profissional, privilegiando as perspectivas da descontinuidade que existe entre o herdado e o determinado social e estruturalmente e as práticas sociais que implicam novos improvisos ou
análises em situações atuais. O detalhamento analítico da dinâmica interacional do grupo na perspectiva cognitiva nos levou a discutir a relação entre os automatismos, a intuição e a capacidade de análise dos profissionais, as quais exprimem a flexibilidade que as situações impõem às dimensões epistemológica e cognitiva do conhecimento. Não nos furtamos a questionar as possibilidades desse estudo na perspectiva histórico-dialética, o que exigiria dar centralidade ao conceito de classe social e a discussão da categoria experiência e cultura nesse sentido. Apontamos, porém, os limites desse movimento no diálogo aqui construído.
Externamente ao grupo, optamos por enfocar a dualidade de poder que existe na relação deste com os usuários do trabalho profissional, posto que essa relação é, necessariamente, orientada pela desigualdade de conhecimento legitimada e reproduzida institucionalmente. Conformam-se, nesses casos, interações de tipo multiculturais nas quais a comunicação torna-se uma componente fundamental, dado que nesta se reproduzem as desigualdades anteriores. A forma como o profissional usa a linguagem pode ser decisiva para a eficácia do seu trabalho, especialmente quando o usuário não legitima a desigualdade de poder e reconhece as perturbações na interação como desafios profissionais.
Com esta problemática, demonstramos que distintos contextos sociodiscursivos podem instaurar na relação multicultural, dependendo da orientação da fala dos respectivos interlocutores, o que nos deu indicações sobre como o profissional pode ser levado a agir a partir das expectativas dos usuários, de suas próprias expectativas em relação ao seu conhecimento e ao papel dos usuários e, finalmente, em relação às expectativas de seu grupo profissional. Em todas as situações, por implicar negociação de significados entre os sujeitos que seja eficaz para a manutenção do fluxo da interação, as referências identitárias do grupo parecem ser fundamentais para que o encontro multicultural não seja inviabilizado.
Do ponto de vista teórico-metodológico, apresentamos aqui duas aprendizagens. A primeira, de que uma teoria cujos conceitos precisam ser historicizados face à realidade empírica que pretende explicar talvez requeira o diálogo com outras teorias para atender a uma exigência do próprio objeto
científico. Nesse sentido, é possível que os conceitos experiência e cultura possam nos orientar no estudo de grupos sociais para apreendermos sua materialidade como classe. Esta pode ser também uma razão para se estudar o senso comum, o conhecimento prático, os saberes de grupos profissionais a partir de sua própria experiência e não somente dos processos formais de aquisição do conhecimento científico.
Como afirmamos na introdução deste texto, a possibilidade do diálogo entre o materialismo histórico-dialético e a fenomenologia estaria em que o primeiro não visa transcender imediatamente o fenômeno em busca da essência, mas reconhece não se poder ir além do fenômeno sem primeiro buscar compreendê-lo exaustivamente na sua manifestação empírica. Compreender o fenômeno na sua manifestação empírica parece-nos ser o projeto da fenomenologia. O do materialismo é tentar captar o que o fenômeno revela e, ao mesmo tempo, esconde.
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Recebido em: 27 de fevereiro de 2018. Aprovado em: 27 de abril de 2018. Publicado em: 21 de novembro de 2018.
Edna Castro de Oliveira2 Maria José de Resende Ferreira3
O texto explora algumas reflexões sobre a contrarreforma do ensino médio e suas implicações para a oferta da EJA, tomando como base a pesquisa documental com destaque para as tensões e historicidade de projetos societários distintos. A partir de dados de registros das práticas de construção coletiva, analisa o cotidiano escolar dos cursos do Proeja no campus Vitória com foco na escuta dos estudantes. Os resultados indicam que mesmo num contexto adverso à oferta da EJA na instituição, a ocupação dos cursos pelos trabalhadores evidencia marcas de resistência na manutenção da oferta e o exercício coletivo dos sujeitos na luta pelo direito à educação.
This article explores some reflections on the high school´s counter-reform and its implications to EJA´s offering, using documentary research it highlights the tensions and historicity of different projects for society. Based on data from the notes taken on the collective construction practice, it analysis the school daily routine of the courses offered by Proeja at campus Vitoria, focusing on students´perspectives. The results indicate that even in the adverse context of EJA´s offering at the institute, the occupation of the courses by workers from popular classes shows signs of resistance that have sustained the maintenance of the offer and the collective exercise of the subjects in favor of the fight for the right to education.
Pensar hoje acerca dos rumos da educação no Brasil, implica, necessariamente, considerar a crise estrutural do capitalismo que se impõe, cada vez mais de forma avassaladora e contrária aos direitos universais básicos da saúde, educação, habitação etc.
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i30.p10086
2 Professora associada do Centro de Educação da Ufes. e-mail:oliveiraedna@yahoo.com.br
3 Professora titular do Ifes. e-mail: majoresende@yahoo.com.br
É por meio da reflexão sobre os atrelamentos dessa crise que intentamos explicitar as implicações da atual contrarreforma 3 da educação (LOMBARDI, 2017). Os setores mais conservadores da sociedade brasileira, por meio de um movimento jurídico e midiático, impuseram à nação um golpe de Estado em 2016 que liquidou com o Estado democrático de Direito e em ato contínuo, iniciou a implementação de uma nova ordem social excludente que vem desmontando os direitos sociais e trabalhistas e colocando a soberania do país à mercê das nações centrais da ordem capitalista.
Esse conjunto de medidas de austeridades e supressão de direitos, nefastas à população brasileira, orquestrada por uma nova investida do receituário neoliberal – acrescido do avanço da onda conservadora neofascista que se vem se alastrando por todo o país, nos impulsionam a repensar elementos fundantes da formação sócio histórica brasileira para o entendimento da realidade que se processa nesse nosso acontecer histórico (HELLER, 2004).
Ao considerar a importância da nossa historicidade, recuperamos as teses de Fernandes (1979; 2006) que reiteram as persistentes heranças fundantes que caracterizam a opção da classe dominante brasileira ao aderir ao projeto societário asssociado de forma subordinada aos centros hegemônicos, delineando assim, uma sociedade de capitalismo dependente nos marcos do desenvolvimento desigual da economia mundial4: “O que distingue a situação brasileira da situação existente em outros países [...] não é a natureza dos processos econômicos, mas o modo pelo qual a sociedade regula a sua manifestação e a seleção de seus efeitos construtivos” (FERNANDES, 1979, p. 89).
Essas análises históricas, embora com um distanciamento de algumas décadas entre elas, trazem similaridades quanto à perspectiva da burguesia e seu descompromisso com o Estado brasileiro no cenário atual. Presenciamos o desmonte arbitrário de um projeto societário inclusivo para favorecer o capitalismo
3 Tomamos de empréstimos a ideia defendida por Ferreira (2017a) a partir dos estudos de Behring (2003) que problematiza o conceito de reforma a processos regressivos. Ferreira (2017a) pauta como retrocesso as mudanças empreendidas na legislação do ensino médio em vigor desde fevereiro de 2017.
4 A teoria do desenvolvimento desigual e combinado explicita a dinâmica das contradições econômicas e sociais dos países periféricos. A esse respeito consultar Lowy (1995).
transnacional com implicações político-econômicas e socioculturais perversas para a maioria do povo brasileiro.
O texto explora, preliminarmente, as políticas educacionais destinadas aos trabalhadores com ênfase na oferta do Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica de Nível Médio na Modalidade de Educação e Jovens e Adultos (Proeja) no Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes) Campus Vitória. Na sua conformação para a inserção dos jovens e adultos no mundo do trabalho, este programa assumiu contornos próprios, a partir das mediações construídas no processo de composição e de consolidação da sociedade e do Estado brasileiro, subordinadas às diretrizes do capitalismo hegemônico. Em sequência, situa possíveis implicações da contrarreforma do ensino médio, materializada na Lei nº 13.415/2017, para a modalidade da Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Metodologicamente, tomamos de empréstimos as concepções defendidas por André (2008) que reitera a importância da pesquisa no e do cotidiano escolar onde se desvelam inúmeras circunstâncias que cercam aspectos de toda ordem e que refletem nas relações sociais. A partir desse opção metodológica, nos apropriamos de dados de registros das práticas de construção coletiva que desenvolvemos no campus por meio das reuniões pedagógicas e pelos diários de campo das pesquisadoras e intentamos analisar o cotidiano escolar dos cursos ofertados pelo Proeja no Campus Vitória privilegiando a escuta dos estudantes.
Sinalizamos, nas considerações finais, que mesmo num contexto adverso à oferta da EJA na instituição desde a sua implementação, a ocupação dos cursos pelos sujeitos jovens e adultos trabalhadores evidencia marcas de resistência que vêm sustentando a manutenção da oferta do Programa no Ifes e o exercício coletivo em favor da luta pelo direito à educação por parte dos docentes e profissionais envolvidos.
O percurso das lutas pela constituição da modalidade EJA como política pública de Estado, ao longo de sua recente história, caracteriza-se pela busca de inserção de suas pautas no âmbito da agenda das políticas educativas no Brasil.
Uma análise deste percurso, na esteira da educação assumida tardiamente como direito de todos e dever do Estado pela Constituição de 1988 (BRASIL, 1988) e, em específico, a afirmação da EJA como direito público subjetivo pela LDB 9394/96 (BRASIL, 1996), nos remete à consideração da produção do campo que tem se ocupado desta temática.
Os estudos desenvolvidos por Machado (2017), Pierro et al (2001), Pierro e Haddad (2015), Rummert et al (2013) dentre outros, indicam que as conquistas obtidas do ponto de vista jurídico, a partir da década de 1990, não resultaram significativas para se permitir avançar na consolidação de uma política de Estado. Simultaneamente às conquistas alcançadas evidenciam-se, nesse mesmo contexto o avanço do neoliberalismo, a integração subalterna do Brasil à lógica do capital e, consequentemente, o esgarçamento das desigualdades sociais que, de forma estrutural, se constitui e segue sendo uma ameaça à plena realização dos direitos dos sujeitos jovens, adultos e idosos.
Dessa forma, a EJA, no âmbito das políticas educativas, subordinadas às diretrizes do capitalismo financeiro que se tornou hegemônico (VIEIRA, 2011) não escapa de ser pautada por uma agenda global que se impõe, a partir da redefinição do papel do Estado que se volta para atender as demandas impositivas do mercado. Como consequência, instaura-se o controle do financiamento destinado a responder pela concretização ou não dos direitos sociais. Nesta perspectiva, é que seguindo o curso das políticas públicas, desde o Consenso de Washington 5, a definição sobre o que priorizar se tornou a orientação, o que no caso brasileiro incidiu diretamente na priorização do financiamento da educação de crianças em detrimento da educação de jovens e adultos.
No entanto, contraditoriamente, é neste mesmo contexto de subalternidade das políticas locais à uma agenda internacional, que a dinâmica de acumulação do capital acirra a competitividade do mercado de trabalho passando a demandar a necessidade de qualificação profissional (DI PIERRO et al, 2001), ao mesmo
tempo em que políticas educacionais passam a ser pensadas para a formação da classe trabalhadora, numa clara correlação de forças entre capital e trabalho.
No que se refere à ênfase da inserção da EJA no Ifes, essa não pode ser pensada de forma desconexa em relação aos objetos de pesquisa no campo da política educativa (TELLO, 2015), quando o que está em jogo é a democratização do acesso na Rede Federal de Educação, Ciência e Tecnologia para os jovens e adultos trabalhadores6. Não podemos deixar de considerar a investida assumida pelo Ifes - Campus Vitória ao insistir na abertura da oferta e na democratização da escola pública para esse segmento ao propor, mesmo no contexto controverso da reforma da Educação Profissional da década de 1990, o ensino médio para os jovens e adultos trabalhadores (EMJAT).
Essa experiência se fez simultânea a algumas poucas em outros Estados (FERREIRA; RAGGI; FERREIRA, 2011) como antecedentes da experimentação com a oferta da EJA, não obstante as origens da Rede Federal que nos remetem ao seu atendimento na formação dos “desvalidos da sorte”. Nesse sentido, o encontro da EJA e da Educação Profissioanal na sua historicidade, guarda as marcas de uma educação desde sempre reservada às classes menos favorecidas.
O Proeja como sabemos emerge das lutas históricas dos trabalhadores e dos segmentos acadêmicos e profissionais na defesa de uma formação que objetivasse romper com a ênfase dual da escola brasileira. Essa, a partir de uma perspectiva de classe, tem reproduzido uma formação para o trabalho manual e por consequência percursos formativos voltados para o mercado de trabalho em oposição a uma formação intelectual de base propedêutica com vistas à buscas do ensino superior (RAMOS, 2017).
Portanto, como parte de uma disputa permanente, por um projeto de formação para o segmento dos trabalhadores e por um projeto de nação, e face aos desafios de um diagnóstico que evidenciava a grave situação educacional de jovens da classe trabalhadora fora da escola e com percursos escolares interrompidos, conforme o Documento Base (BRASIL, 2007), o Proeja passa a ser
6 A esse respeito ver estudos desenvolvidos durante a formulação e acompanhamento da política no âmbito da rede Proeja/Capes/Setec/Ufes/Ifes (OLIVEIRA; PINTO; FERREIRA, 2012).
formulado como política, embalada pelo sonho de uma política pública perene para formação dos trabalhadores.
Neste movimento, diferentes segmentos da sociedade civil foram envolvidos num diálogo tenso com o governo, sobre uma proposição que buscava superar a dicotomia entre educação profissional e educação básica imposta pelo Decreto nº 2.208/97. Segundo Rummert et al (2013, p. 736),
o acúmulo de reflexões e propostas acerca da educação da classe trabalhadora, construído em conjunto com intelectuais comprometidos com a educação politécnica, unitária e capaz de assegurar uma formação integral aos trabalhadores, constituiu elemento fundamental para a [...] existência do PROEJA.
Nesse cenário de disputas e tensões para a imposição do projeto mercadológico de educação, uma releitura da proposição do Proeja, numa possibilidade de elevação de escolaridade e de formação humana integral, nos permite situar os embates de projetos já tensionados a partir de interesses privatistas que se evidenciam na dispersão de cursos, programas e projetos direcionados à escolarização de jovens e adultos trabalhadores, conforme problematizado por Rummert et al (2013).
Assim, somos atravessadas por uma outra lógica e política de formação que têm disputado de forma permanente no Campus Vitória, tentativas de esvaziamento do Proeja e de negação de direitos. A demanda inicial para que a oferta fosse assumida pela Rede Federal, não logrou o êxito esperado em função da não assunção política pelos gestores no interior do sistema. Após os 10 anos de indução dessa política (OLIVEIRA; SCOPEL, 2016) podemos reafirmar, a partir das pesquisas desenvolvidas pelas Redes Capes/Proeja e pelo Observatório da Educação UFG/Ufes/UnB7, a não consolidação do Proeja como política pública (VITORETTE, 2014).
Prevalece como hegemônica uma cultura política cuja perspectiva de oferta, voltada para a perspectiva mercantil, que reserva para segmentos da classe dirigente o acesso a uma formação propedêutica como privilégio que
7 Rede interinstitucional de pesquisa UFG/Ufes/UnB do Observatório da Educação (Obeduc/Capes) que objetivava dar prosseguimento às ações realizadas pelo Grupo de Pesquisa Proeja/Capes/Setec/ES.
viabiliza o acesso ao ensino superior, ao tempo em que o direito de acesso, permanência e conclusão com êxito da escolarização pelos trabalhadores vem sofrendo ofensivas, tal como evidenciada na proposição do Pronatec que foi assumido pela Rede Federal na perspectiva de “uma formação funcionalista, subordinada à lógica do mercado e formadora de trabalhadores aos quais se busca destituir a possibilidade de crítica ativa e organização coletiva” (RUMMERT et al, 2013, p. 736).
Em nível local, entretanto, podemos dizer que o Proeja resiste e vem promovendo a inserção orgânica da EJA na instituição. Essa inserção tem se materializado em várias ações e práticas, tais como: a oferta de um curso de qualificação profissional em Cadista para Construção Civil para manter o número de vagas para a EJA e a proposição do curso técnico integrado Guia de Turismo são ações que se juntam entre outras, para a ressignificação dos espaços e tempos e das práticas pedagógicas exploradas por Scopel (2012; 2107) e Scopel, Oliveira e Ferreira (2014).
Em relação ao curso integrado Guia de Turismo, Scopel (2017) já anunciara a estratégia da Coordenadoria do Proeja, nos seus embates, tensões e conflitos internos de apresentar a nova oferta do curso, utilizando como argumentos a extinção do curso de Edificações e a ameaça também feita pelo curso de Metalurgia. Essa nova oferta, a partir de 2015, representou uma vitória para o colegiado diante dos acontecimentos enunciados por nós.
O desafio que se impôs (e que ainda tenciona) foi organizar um curso que atendesse aos preceitos e às concepções educacionais que defendidas diante da experiência acumulada pela equipe, embora contando com poucos profissionais qualificados nessa área de turismo. Uma preocupação que também perpassava a equipe gestora era a tendência mercadológica que se buscava se afirmar na abordagem do curso de Guia de Turismo (SCOPEL, 2017).
Das muitas experiências em andamento no Proeja do Ifes Campus Vitória, importa destacar o esforço do coletivo dos educadores desse curso, para ações
que trazem possibilidades de integração entre ensino, pesquisa e extensão como desafios da práxis docente.
As experiências pontuais apresentadas por Moura, Rezende e Ferreira (2018) fazem parte de um dinâmico processo de resistência explorado nesse texto. O projeto de extensão denominado Coletivo pela base: educação e mobilização para o exercício da cidadania, possibilitam o diálogo entre escola e comunidade sob a intermediação e participação direta dos estudantes.
Outra experiência diz respeito ao projeto de extensão – Mobiliza Proeja, que problematiza as condições de acesso dos jovens e adultos aos cursos do Proeja com perspectiva de ações de incursão nas comunidades com parcerias estabelecidas entre movimentos sociais, sindicatos, ONGs e prefeituras da Grande Vitória, para divulgar e criar ações efetivas de acesso aos cursos do Programa.
Seguem ainda como ações na dimensão do ensino, pesquisa e extensão, os projetos de pesquisa em nível de iniciação científica júnior voltados para a identificação e caracterização dos espaços e de grupos afrodescendentes; e a identificação e caracterização das comunidades populares da cidade de Vitória. Esses projetos anunciam variadas possibilidades para o exercício do diálogo, na perspectiva da integração curricular, entre conteúdos das mais diversas disciplinas do núcleo comum e do núcleo técnico do referido curso.
Resta destacar inclusive, o protagonismo dos estudantes do curso Guia do Turismo na idealização, organização e realização da I e II Semana de Turismo e da I Feira de Turismo do Ifes Campus Vitória, realizadas nos anos de 2016 e 2017, respectivamente. Assim articulados com os projetos citados, no campo das relações entre o ensino, a pesquisa e a extensão, esses eventos apresentam um exercício à concretude dessa relação e ainda revelam sua consonância com o projeto político pedagógico proposto que almeja reduzir as tensões presentes na estrutura do ensino médio integrado em suas contradições historicamente determinadas e traz possibilidades para
nós educadores, de usar a criatividade, os saberes e o conhecimento, a astúcia e o rigor científico do pensar para saber fazer, de forma participativa e compartilhada, promovendo assim o protagonismo de nossos estudantes na condição de sujeitos engajados em experiências didático-pedagógicas possíveis,
principalmente no exercício do diálogo permanente e nas possibilidades das práticas de integração (MOURA; REZENDE; FERREIRA, 2018, p. 12).
Como já abordado acima, a indução do Proeja como uma política de formação para os jovens e adultos trabalhadores foi movida pelos desafios postos à educação brasileira para a democratização do acesso ao ensino médio para esse segmento da população, o que segue sendo algo ainda interditado, se considerarmos
[...] que o número de ausentes do sistema educacional - entre 18 a 29 anos - que não concluíram a educação básica representa 34,8% entre os que possuem de 18 a 24 anos, e chega a 40,7% entre os que estão entre 25 e 29 anos. De um total de 40.976.703 entre 18 a 29 anos, 15.268.965 estão fora da escola (MACHADO; RODRIGUES, 2014, p. 385).
Esses dados indicam os desafios postos para a EJA, no sentido de que há um potencial público a ser atendido em relação ao qual a lei 13.415/17 da contrarreforma do ensino médio é quase omissa, postergando assim as condições do exercício do direito à educação por esses sujeitos, para acesso, permanência e conclusão dos seus percursos de escolarização, com sucesso. A partir dessa reflexão algumas inquietações nos interpelam no que se refere ao quase silenciamento da EJA no texto da referida lei. Nela, encontramos apenas uma menção aos jovens e adultos com a alteração do Art. 24 da LDB: “§ 2o Os sistemas de ensino disporão sobre a oferta de educação de jovens e adultos e de ensino noturno regular, adequado às condições do educando, conforme o inciso VI do art. 4o”.
A maneira como a EJA é inserida no texto da lei, de certa forma reitera a lógica de desresponsabilização do Estado com a educação pública e, historicamente o trato das políticas educacionais para as camadas populares. Ao determinar que os sistemas de ensino disporão sobre a oferta de EJA, coloca-se em questão a garantia de sua obrigatoriedade pelos entes federados, tendo em vista as implicações do ajuste fiscal imposto pela Emenda Constitucional 95/2016. Como uma das implicações, o que se explicita no parágrafo 2º da lei 13.415/17 é
que a não disponibilidade dos sistemas de ensino em cumpri-la, só reforçará a redução que sofreu, nos últimos anos, as matrículas na modalidade EJA (BRASIL, 2016).
O contexto do ajuste fiscal, nos permite observar uma tendência da intensificação da precariedade das condições materiais, de trabalho, bem como de estrutura da oferta no campo da educação, que reserva para jovens e adultos uma posição praticamente invisibilizada nos sistemas, uma vez que não se prevê nenhuma ação específica para esses sujeitos.
Numa reconstrução do percurso da contrarreforma, observamos que embora a Medida Provisória 746/2016, se constitua um retrocesso, como mecanismo de destituição de direitos, no seu texto encontramos indicação de alterações no Art. 2º com relação à Lei nº 11.494/20078 nos seguntes termos:
Art. 10. [...]
- formação técnica e profissional prevista no inciso V do caput do art. 36 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996;
- segunda opção formativa de ensino médio, nos termos do § 10 do caput do art. 36 da Lei nº 9.394, de 1996;
– educação especial;
- educação indígena e quilombola;
-educação de jovens e adultos com avaliação no processo; e XIX -educação de jovens e adultos integrada à educação profissional de nível médio, com avaliação no processo (BRASIL, 2016).
Ou seja, a menção aos sujeitos da EJA nas suas diversidades culturais e etnicorraciais é varrida do texto pela Lei 13.415/2017, bem como a ênfase da formação integrada à educação profissional de nível médio. Assim, mais uma vez nos deparamos com a forma como os jovens e adultos das camadas populares, historicamente esquecidos, são secundarizados nas políticas educacionais. Podemos dizer que a restrição imposta pela nova diretriz praticamente os torna invizibilizados, o que acaba por se constituir um dos impactos da contrarreforma do ensino médio na EJA.
Essa é uma das questões que nos mobilizam a afirmar algumas aproximações entre o acúmulo que tem sido produzido sobre o ensino médio
8 Regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB.
integrado e currículo integrado. O que nos leva a operar com a hipótese de que a forma como o Proeja, como proposição de política tem sido traduzida no Campus Vitória, nos aproxima dos estudos sobre o ensino médio integrado hoje ameaçado por essse marco legal.
Ainda no intuito de compreender algumas das implicações da contrarreforma para educação de jovens e adultos e para a educação pública, faz- se necessário situar seu contexto e algumas reflexões que vêm sendo produzidas pelos que se ocupam da temática do ensino médio e da Educação Profissional.
No rastreamento da literatura, ainda são poucas as ferramentas que podemos lançar mão para uma leitura crítica e substantiva das implicações da contrarreforma do ensino médio na EJA, o que se coloca como desafio para os pesquisadores do campo. Isto nos leva a dialogar com as manifestações do Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio (MNDEM) e mais diretamente com Ramos (2017) para quem esse novo marco legal é a
[...] expressão da hegemonia do pensamento burgês, conservador e retrógrado, que se revelou em seu método e em seu contéudo [...] voltada mais uma vez para a classe trabalhadora no sentido de restringir seu acesso à educação básica pública e de qualidade social (RAMOS, 2017, p. 43).
A legislação em discussão, antes mesmo de entrar em vigor, despertou forte rejeição pelos mais diversos movimentos sociais, sindicatos, associações acadêmicas e científicas, entre outros representantes da sociedade civil organizada em várias partes do país. Vale destacar a reação estudantil que protagonizou a “primavera secundarista” que ecoou de norte a sul com as ocupações em 2015 e 2016, reiventando formas de organizar a escola e denunciando as consequências da contrarreforma do ensino médio, as medidas de austeridade e a supressão dos direitos sociais que vêm se processando após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
Nesse mesmo movimento, a comunidade acadêmica, com destaque para estudiosos do campo Trabalho e Educação 9 , tem reforçado as denúncias debruçando em suas análises e enfatizando como a atual legislação, imposta
9 Com efeito, Ramos e Frigotto (2017), Ferreira (2017) e Ramos (2017) discorrem sobre os retrocessos da legislação ao apontarem as similaridades dessas políticas educacionais.
arbitrariamente, além de desconsiderar os acúmulos dos estudos relativos ao ensino médio, retoma dispositivos de reformas educacionais, que, no nosso entendimento, teriam sido superadas, a exemplos da reforma Capanema, da Lei nº 5.692/1971 e do Decreto nº 2.208/97. Importante situar no contexto do governo Lula a revogação desse dispositivo de 1997, pelo Decreto nº 5.154/2004, “a partir do qual se retoma a formação integrada inspirada pela concepção politécnica, debatida na década de 1980” (RAMOS, 2017, p. 32).
Apontamos, nessas análises, o que foi reiterado pelo MNDEM com respeito à proposição da nova diretriz. Esse problematizou o disposto na Medida Provisória 746/2016 no que se refere ao direito ao acesso e permanência da população de 15 a 17 anos na escola, que além, de se propor como integral em todo o período diurno, incide na proibição da oferta noturna para jovens de 17 anos. Essa proibição constitui “em cerceamento de direitos, além de configurar-se em uma superposição de ensino médio na modalidade EJA e ensino médio regular noturno” (ANPED, 2016, p. 1). Temos nesta problematização, questões que requerem o adentramento da pesquisa, principlamente quando consideramos a imposição da escola de tempo integral no Espírito Santo, e suas relações com a proposta da chamada “Nova EJA” pela rede estadual (ESPIRITO SANTO, 2017).
Do ponto de vista curricular, somos confrontadas com a proposta de itinerários formativos que anuncia a perspectiva de escolha por parte de estudantes, na tentativa de torná-los protagonistas do seu percurso de escolarização. O que vemos numa análise prospectiva é que as possíveis “escolhas” esbarram nas condições dos sistemas e de suas opções de oferta que, observando a lógica mercantil tendem a se restringir aos interesses e subordinação às demandas de um mercado de trabalho que, como nos aponta Morrow e Torres (2003) se caracteriza como mercado de trabalho marginal. Nesse caso, a não possibilidade de escolhas determinada pela opção e condições da oferta dos sistemas tendem à responsabilização dos sujeitos pelo sucesso ou insucesso nos seus percursos formativos.
No nosso entendimento o que se vislumbra como parte de interesses camuflados (BONETTI, 2015) é o esvaziamento do papel do Estado em prover condições efetivas para o “desenvolvimento de uma formação sólida, crítica e
contextualizada socialmente para todos os estudantes do Ensino Médio” (ANPED, 2018, p. 1).
A contrarreforma, nesse sentido, vem acentuar as desigualdades educacionais que marcam, notadamente, as juventudes brasileiras, e retira, desse segmento, o direito a uma formação “plena, de qualidade como requer e estabelece a Constituição Federal de 1988 consolidando o processo de apartheid social dos mais pobres” (ANPED, 2018, p. 1).
Assim, as aproximações do ensino médo integrado e do currículo integrado na EJA se reafirmam, quando temos a proposta do Proeja sob as mesmas bases “de uma formação omnilateral voltada para o desenvolvimento dos sujeitos em todas as direções” (RAMOS, 2017, p. 36). Como elemento fundamental de integração entre EJA e Educação Profissional ressalta-se, para essa autora, que “a luta pelo ensino médio integrado é a luta pelo direito a uma formação humana, plena, tendo o trabalho como princípio educativo em um currículo centrado nas dimensões fundamentais da vida: o trabalho, a ciência e a cultura” (RAMOS, 2017, p. 47).
Os impactos da presença dos sujeitos da EJA e os embates de cunho político e ideológico, a respeito da implementação do Programa no Ifes já foram problematizados por diversas abordagens teóricas e metodológicas da produção acadêmica (ZANETTI NETO, 2016; ZEN, 2016; SCOPEL 2017; FERREIRA, 2017b).
Ao se apropriarem de diferentes fontes documentais, escritas e orais, esses autores expuseram, por um lado, evidências e relatos marcantes que desqualificam os estudantes da EJA nesta unidade de ensino e marcas de discriminação à presença deles na escola tanto no início de sua oferta em 2001, por meio do EMJAT quanto nas ofertas mais recentes pelo Proeja. E por outro, desvelaram todo o movimento de resistência empreendido pelo coletivo de profissionais para a garantia do direito à educação pública e de qualidade socialmente reconhecida para esse público estudantil.
A inserção dos representantes dos segmentos da população de baixa renda, nesta escola, não se deu por iniciativa de uma filosofia institucional, mesmo considerando as suas origens e objetivo nos primórdios de sua criação. Na atualidade, essa inserção é decorrente das prescrições legislativas e da ação indutora e contestatória de grupos sociais envolvidos com a modalidade e por programas de inclusão social do governo federal. Cotidianamente, de forma velada e sutil e outras vezes, de forma devastadora e escancarada, as marcas do “não lugar” desses estudantes são expostas (FERREIRA, 2017b).
Os diferentes cursos ofertados e a cultura escolar estão ainda sedimentadas na concepção de formação do trabalhador pelo modelo tecnicista mercadológico (OLIVEIRA; PINTO, 2012), agravada pela expansão da Rede Federal desde 2008 e pela consequente necessidade de ampliação dos quadros de profissionais, com a contratação de um número elevado de profissionais. Desses, muitos são bacharéis não licenciados, têm ingressado na carreira docente sem a formação pedagógica adequada e sem perspectiva de uma formação continuada desenvolvida pela instituição.
Esse panorama, de acordo com Scopel (2017), torna a situação ainda mais latente e complexa, quando se trata da formação pedagógica dos educadores para o trabalho com jovens e adultos. Não restam dúvidas que temos um grupo de docentes que avança em suas práticas pedagógicas como bem discorreram Zen (2016) e Scopel (2017). Entretanto, reconhecemos que ainda temos caminhos a serem trilhados na garantia desses processos educativos para os sujeitos da EJA na instituição.
Ao nos atentarmos para os sujeitos trabalhadores-estudantes em suas lutas de sobreviência e em seus percursos de escolarização voltados para a ampliação de horizontes na realização de sonhos, para se afirmarem com dignidade humana no seio da nossa sociedade, encontramos nas reflexões de Freire, elementos que nutrem essa busca quando chama a atenção para a importância do não se acomodar, do não desistir. “A acomodação é a expressão da resistência da luta pela mudança que falta a quem se acomoda ou quem se acomoda e fraqueja, a capacidade de resistir” (FREIRE, 2000, p. 41).
A resistência em Paulo Freire pressupõe “[...] uma briga permanente e quase sempre desigual em favor da justiça e da ética” (FREIRE, 2000, p. 41).
Portanto, constitui “Uma briga entre desiguais onde a boniteza de ser gente se acha entre outras coisas nessa possibilidade e nesse dever de brigar” (FREIRE, 1996, p. 67).
Essa ideia de resistência trazida de Freire, contraria a visão e a cultura escolar dominantes e nos chama a refletir sobre a importância de que não basta apenas reconhecer programas como Proeja, como política de formação e de inclusão para as camadas populares. Torna-se necessário empreender, permanentemente, ações políticas de vigilância para a garantia do direito e de problematização da organização cristalizada da escola, no sentido de promover mudanças nessa realidade que não está dada, mas que deve ser transformada pela ação conjunta de todas as instâncias e sujeitos envolvidos.
Foi com esse propósito que o coletivo de professores e pedagogos do Proeja ressignificaram as reuniões pedagógicas (SCOPEL, 2012)10. Esse espaço e tempo escolares tornaram-se ímpares para esse coletivo e para os estudantes do Proeja porque possibilita, não só a concretização e efetivação da participação discente na organização do trabalho escolar, como também constituem espaços de dialógo para o protagonismo dos estudantes quanto aos direcionamentos políticos e administrativos da instituição.
A reunião pedagógica das turmas do Proeja diferencia-se da dinâmica organizacional dos conselhos de classe vigentes hoje em todos os cursos técnicos de nível médio do Instituto. Nas reuniões desses cursos, apenas o representante da turma tem participação. Vale destacar que essa é limitada somente nos primeiros momentos do encontro para a exposição de uma visão geral da turma sobre cada disciplina. Configura-se em uma ação meramente burocrática do papel da escola, onde se reforçam e legitimam os resultados dos desempenhos de cada estudante.
Esse encontro pedagógico dos cursos do Proeja acontecem semestralmente durante o período letivo e conta com a presença obrigatória dos docentes e estudantes, mediados pela equipe pedagógica e coordenação do curso técnico e do Proeja. Após orientações da condução da reunião pelos
10 Os cursos técnicos integrados ofertados para o público da EJA são semestrais. São organizadas duas reuniões pedagógicas no periodo letivo. A reunião intermediária e a reunião do Conselho final que objetiva discutir a situação de cada estudante para aprovação ou retenção dos discentes (SCOPEL, 2012).
representantes do corpo pedagógico, ocorre assim, nesse momento, a avaliação coletiva do processo educativo e avaliativo, dos serviços prestados pelos servidores nos diversos âmbitos do apoio ao ensino e da infraestrutura escolar.
Inicia-se a reunião com a avaliação da turma por cada professor. Esses fazem apontamentos gerais sobre os seus planejamentos e suas percepções sobre encaminhamento das suas disciplinas. Em seguida, discorrem sobre a atuação dos estudantes de uma forma geral e quando necessário, vão pontuando o desempenho da turma e formas de participação individual de cada estudante, se detendo em momentos importantes do processo ensino aprendizagem, com destaque para as dificuldades dos estudantes no que diz respeito à aprendizagem, assiduidade e pontualidade às aulas11.
No sequenciamento da reunião, os estudantes relatam as suas percepções acerca do planejamento das aulas, dos conhecimentos trabalhados, os aspectos que facilitam e/ou dificultam sua aprendizagem, relacionando as dinâmicas das aulas teóricas e práticas e os diversos processos avaliativos a que são submetidos. Além da avaliação das práticas pedagógicas vivenciadas, fazem referências ainda a outros serviços e setores da escola, tais como as monitorias ofertadas, as dependências, o apoio da assistência estudantil, as condições dos ambientes físicos, materiais e equipamentos de estudos12.
Uma primeira leitura desse encontro pedagógico diz respeito ao posicionamento mais cuidadoso e criterioso dos professores acerca de suas narrativas de desqualificação dos discentes, práticas correntes na instituição desde as primeiras experiências com os estudantes da EJA. Devido a dinâmica dessas reuniões, as narrativas de desqualificação dos estudantes do Programa são mais sutis uma vez que nesse espaço, processa-se uma escuta e o movimento de ”falar com ele” e “não para ele”, conforme nos alertava Freire (1996) sobre a necessidade da escuta como requisito para o diálogo e para a compreensão do conhecimento que os estudantes trazem à situação de ensino e aprendizagem.
11 Essas questões apontadas são correntes nas atas examinadas dos cursos do Proeja desde 2010 até 2017.
12 As atas apontam também reclamações acerca dos horários das monitorias muitas vezes inacessíveis pelos estudantes do noturno e da falta de monitores em diversas áreas de conhecimento das disciplinas técnicas. Também foram encontrados relatos sobre a pouca
manutenção dos serviços gerais (limpeza, lâmpadas quebradas, poucos ventiladores, aparelhos de ar condicionado quebrados e sem manutenção) nas salas de aulas das turmas do Proeja.
Assim, problematizações como o rendimento escolar, a pontualidade e a assiduidade são feitas a partir do contexto de vivências de cada estudante da EJA. Isso exige do corpo docente e técnico administrativo, reflexão e reavaliação do planejamento pedagógico e busca de soluções concretas dos serviços prestados aos estudantes e da melhoria da infraestrutura escolar para minimizar as questões postas que têm comprometido o processo escolar.
Ponderamos outra leitura possibilitada por esse encontro semestral dos sujeitos do Proeja no Ifes. Não restam dúvidas acerca das leituras positivas que os discentes fazem a respeito dos cursos, do reconhecimento e pertencimento ao Proeja, mesmo quando apontam questões que têm interferido no seus percursos educativos.
Porém, há de se ter cuidado no que diz respeito a culpabilização pelo “fracasso escolar” que se consubstancia em justificavas em “não aprender”, “por tirar nota baixa” ou “fazer as avaliações de recuperação” ou “atrasar” ou “por faltar” às aulas ou “por estar em dependência” que ainda são frequentes nos seus discursos ou até mesmo nos silêncios empreendidos por eles, como se tivessem concordando, diante das exposições dos docentes. São momentos em que percebemos que reproduzem, concordam e internalizam as exposições feitas pelos professores durante a reunião. Depreendemos que são manifestações com conotações negativas, são apreciações que não apontam condições ou superações das dificuldades dos estudantes (MARIN, 2006).
Ponderamos ainda que, mesmo as que têm um tom positivo, são considerações genéricas e todas chamam a atenção pela ausência de referências propriamente ditas sobre o processo de ensinar e de aprender, de práticas pedagógicas e avaliativas na perspectiva defendida por Freire (1996). São raros os docentes que avançam nessa análise, centram-se mais no que os estudantes não fizeram e nas “chances” dadas pelo educador que os discentes perderam; raros são os relatos que problematizam como esses estudantes avançaram no processo educativo.
Marin (2006) alerta também que essas avaliações tratam de
[...] denúncias estereotipadas, transmitidas de uma geração de professores a outra [...]. E se referem fundamentalmente a qualidades morais ou condições pessoais em detrimento dos
saberes dos alunos, dos saberes escolares e do domínio técnico de sua condição cognitiva [...] (MARIN, 2006, p. 292-293).
Uma última leitura possível a respeito desses encontros retoma experiências e processos de formação vividos na relação pedagógica entre gestores, educadores e educandos, levando-nos a reafirmar a potência dessas reuniões uma vez que temos constatado que
contribuem para a afirmação do direito que têm jovens e adultos ao conhecimento; b) possibilitam compreender o contexto em que os alunos vivem; c) atendem às condições intelectuais e sociopedagógicas dos estudantes; d) produzem nexos e sentidos;
e) permitem o exercício de uma pedagogia problematizadora e crítica por parte dos docentes e f) privilegiem o aprofundamento e a ampliação do conhecimento do discente (SCOPEL et al, 2012, p. 161).
Com efeito, esses encontros pedagógios contituem-se em espaços – tempos que mobilizam saberes e experiências dos sujeitos do Proeja – estudantes e professores e permitem vislumbrar as possibilidades do diálogo interdisciplinar para concretização e materialização da integração curricular, conforme preconiza o Documento Base do Programa (BRASIL, 2007) e explorado por Scopel (2017).
O percurso das lutas pela afirmação da educação de jovens e adultos como direito tem se caracterizado nas práticas cotidianas do Campus Vitória como um exercício de permanente vigilância epistemológica (TELLO, 2012), na defesa dos princípios ético-políticos que fundamentam a proposição do ensino médio integrado do qual a EJA compartilha pelo Proeja, como fruto de conquistas no âmbito do direito à escolarização pelos trabalhadores. Essa proposição, caracterizada pela defesa de uma formação humana plena e pelo trabalho como princípio educativo, segue em disputa, com vistas a superar a dualidade da formação para o trabalho manual e para o trabalho intelectual, o que se confronta com o retrocesso que caracteriza a contrarreforma do ensino médio (à qual os Institutos Federais resistem) e sua perspectiva de “restrição do acesso da classe
trabalhadora à educação básica pública e de qualidade social”, como nos alerta Ramos (2017, p. 43).
Com efeito, no contexto adverso do pós Golpe de 2016, e por consequência da reafirmação e acirramento de uma nova ordem social excludente e perversa que vem se impondo como destituidora de direitos conquistados pela classe trabalhadora, nos defrontamos, mais uma vez, com a disputa de projetos societários distintos. A partir da indução dos centros hegemônicos temos a opção da classe dominante brasileira pela integração subordinada à logica do capital financeiro com suas implicações para o aumento das desigualdades que ameaçam a plena realização dos direitos sociais. Neste embate, compartilhamos das lutas por um projeto contra-hegemônico que vislumbra a construção de uma outra sociedade, fundada na justiça social, que se nutre das lutas de resistências em defesa da vida em detrimento do capital.
Nesta perspectiva, não obstante o cenário desolador que nos embaça a visão de novos horizontes, podemos dizer que os percursos e práticas de escolarização vividos, por discentes e docentes da EJA no Proeja Campus Vitória têm desencadeado práticas de resistência possibilitando o avanço da inserção orgânica da modalidade no âmbito da Instituição. A ocupação dos cursos do Proeja, pelos jovens e adultos trabalhadores no Ifes, evidencia marcas de resistência que têm sustentado a manutenção da oferta do Programa neste Campus, tendo em vista a ausência desta oferta nos demais Campi da instituição. Retomando Paulo Freire (2000) essas práticas de resistência requerem defesa permanente em favor da justiça e da ética.
A partir da escuta dos sujeitos no interior das reuniões intermediárias encontramos a relevância dessas ideias presentes nas formas de resistências expressas diariamente pelos estudantes, quando enfrentam as condições objetivas a que estão expostos no meio familiar e no cotidiano escolar, diante das quais são impulsionados a não desistir, a não se acomodar e avançar nos seus processos educacionais. Dessa forma, a resistência produzida por esses estudantes deixa de ser “[...] um movimento só de reação de autodefesa e passa a ser uma ação política ou política ofensiva” (FREIRE, 2000, p. 41)
Chama atenção na análise das produções acadêmicas o silenciamento em relação ao que significou e, no nosso entendimento continua significando a oferta
do Proeja para os jovens e adultos trabalhadores, uma vez que essa oferta resiste no contexto em que temos nos envolvido. Sua não consolidação como política pública de Estado para jovens e adultos trabalhadores, não nos impede de prosseguir nos ocupando da pesquisa sobre os efeitos desta política (MAINARDES, 2006) que se pretendeu perene, sobre a inserção orgânica da EJA nos Institutos Federais e o que se tem avançado nas proposições. Fica para nós o desafio da continuidade das pesquisas e reflexões sobre as práticas compartilhadas neste estudo, que indicam as formas de resistências no exercício coletivo em favor da luta pelo direito à educação por parte dos docentes e profissionais envolvidos.
Cabe destacar finalmente, a despeito da não assunção do Proeja pela Rede Federal, que os Institutos continuam a ser espaços de disputas e de tensionamentos para que o direito fundamental à educação dos jovens e adultos trabalhadores seja concretizado, nos contextos em que a oferta do ensino médio integrado à EJA continua sendo parte dos embates permanentes.
A questão passa pela dimensão ético-política na defesa de entender o Proeja enquanto política educativa que retoma a luta dos trabalhadores pela defesa de uma educação pública e de uma formação que intente superar as históricas dualidades, sociais e educacionais.
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Recebido em: 28 de abril de 2018. Aprovado em: 06 de junho de 2018. Publicado em: 21 de novembro de 2018.
Remi Castioni2
O presente texto contempla um estudo descritivo sobre a oferta de Educação Profissional nos estados do Acre e da Bahia. A eleição desses estados tomou como premissa a ideia de que esses guardam características diferenciadas de gestão da Educação Profissional, no âmbito dos órgãos estaduais. Para este estudo, tomaram-se, como elementos de análise, algumas variáveis que permitem conhecer a forma de gestão do programa Brasil Profissionalizado.
This text presents a descriptive study about the offer of professional education in the Brazilian states of Acre and Bahia. The choice of these states took as a premise the idea that they have different characteristics of management of professional education, within the state organs. For the analysis of this study, we considered some variables that allow us to know the form of management of the program Brasil Profissionalizado.
Na década de 1990, diversos países latino-americanos implementaram programas voltados à formação profissional de trabalhadores e oferta de novas perspectivas aos jovens, tendo como horizonte a formação para o trabalho. Os programas mais conhecidos no Brasil foram aqueles conduzidos pelo Ministério do Trabalho e Emprego (PLANFOR e PNQ), substituídos, em 2011, por meio da Lei nº 12.513/2011, pelo Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego – PRONATEC. No Chile, implementou-se o Programa Chile Joven e posteriormente, seguindo a mesma estratégia do Brasil, e quiçá inspirador do próprio Pronatec, uma vez que ele se iniciou em 2002, o Chile Califica (SANTIAGO CONSULTORES, 2009).
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i30.p10087
No entanto, os índices alarmantes de desemprego juvenil verificados nas últimas décadas passaram a vincular o sucesso de políticas de enfrentamento aos problemas da juventude ao delineamento de programas voltados para a melhoria da escolaridade e relacionados à oferta de Educação Profissional. No Brasil, ganharam projeção nacional as ações do PRONATEC e a expansão da Educação Profissional integrada ao Ensino Médio, em boa medida favorecida pela expansão da Rede Federal de Educação Profissional (VERA; CASTIONI, 2010). Assim, a política de Educação Profissional passou a ser considerada como uma das prioridades do governo brasileiro, como forma de ampliar as opções de formação do trabalhador brasileiro e oportunizar o acesso de candidatos ao mundo do trabalho, com uma formação mais próxima das demandas locais.
A implementação do Programa Brasil Profissionalizado derivou de um conjunto de ações anunciadas durante o lançamento do Plano de Desenvolvimento da Educação – PDE, em 24 de abril de 2007. Tinha como paralelo o que se pretendia com a Rede Federal – apoiar as redes estaduais de Educação Profissional e Tecnológica –, para fazer o mesmo por meio de obras de infraestrutura, equipamentos, desenvolvimento de gestão, práticas pedagógicas e formação de professores (BRASIL, 2007).
Nesse sentido, a presente reflexão oferece um panorama da gestão do Programa Brasil Profissionalizado no âmbito dos estados da Bahia e do Acre, por terem sido dois estados que tiveram desempenho acima da média. O primeiro porque desde a primeira gestão dos governos petistas, exatamente a partir de 2007, criou um modelo de gestão própria para a Educação Profissional. O estado do Acre, também por praticamente não ter trajetória na área da Educação Profissional, beneficiou-se tanto da expansão da Rede Federal no próprio estado como da criação também de uma estrutura autônoma em relação à tradicional Secretaria de Educação, com encargos diretos sobre a Educação Profissional.
As medidas adotadas nos últimos anos, particularmente com o PRONATEC e a expansão da Rede Federal, conectam-se com o ambicioso marco da educação determinado pelo Plano Nacional da Educação – PNE, na forma da Lei nº 13.005/2014, com vigência para os próximos dez anos. Essa lei propõe metas que afetam diretamente a oferta de Educação Profissional, entre elas a Meta 11, de triplicar as matrículas da Educação Profissional técnica de
nível médio, com pelo menos 50% (cinquenta por cento) da expansão no segmento público (FASOLO; CASTIONI, 2017). O PRONATEC, desde 2015, sofreu com o corte de recursos e praticamente foi descontinuado.
Pensar sobre a importância da Educação Profissional e Tecnológica no âmbito de atuação de dois estados brasileiros, considerando as constantes mudanças advindas com as novas tecnologias e as alterações nas leis trabalhistas, atrelada ao processo de precarização do mercado de trabalho, remete a uma discussão que perpassa, necessariamente, pelas relações entre capital e trabalho no Brasil e que tem como marca um sistema nada democrático de não reconhecer o conflito como algo presente nas relações de trabalho. Nesse particular, a própria construção social da formação profissional deixa de ser fruto do embate de contrários e passa a ser concebida como dádiva, seja ela como concessão operada pelo próprio Estado ou por ele outorgada (CASTIONI, 2010).
É fato que o surgimento da formação profissional, de modo institucionalizado, se deu por volta de 1809, com a criação do Colégio das Fábricas. No entanto, com a fundação das Escolas de Aprendizes Artífices, de fundo assistencialista, um século depois, essa ação se fortaleceu. Contudo, foi na década de 1930 que essas instituições passaram a ter um caráter de formação de trabalhadores e vieram integrar o ordenamento jurídico nacional. A Constituição de 1937, do Estado Novo, no seu artigo 129, com o objetivo de atender às demandas do desenvolvimento econômico no início da industrialização, acabou por consagrar a dicotomia existente no ensino. Assim, a meta do ensino secundário e normal era o de “formar as elites condutoras do país”, enquanto o ensino profissional tinha como objetivo oferecer “formação adequada aos filhos dos operários, aos desvalidos da sorte e aos menos afortunados, àqueles que necessitam ingressar precocemente na força de trabalho” (WEREBE, 1994, p. 57), quando o país passava de uma sociedade eminentemente agrária para uma sociedade industrial.
Fruto das demandas dessa nova organização social, a questão da formação dos trabalhadores passou a assumir espaço de relevância, tendo em
vista a carência de profissionais qualificados para atender esse novo panorama. Posteriormente, com base nesse contexto, foi criado em 1942 o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial; e em 1943, o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial. Essa embrionária ação deu-se notadamente nos estados do Sul, de maneira especial nos núcleos urbanos de São Paulo e Rio de Janeiro.
A partir desse contexto, a relação entre escola e mundo do trabalho passou a ganhar maior relevância no âmbito acadêmico. O debate permeia toda a história da educação e instala uma dualidade entre educação secundária/média e formação profissional – formação para a vida ou formação para o trabalho.
No que diz respeito à finalidade do Ensino Médio, previsto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), essa consiste na apropriação dos fundamentos básicos para o exercício da cidadania e para a inserção no mundo do trabalho (BRASIL, 1996). No entanto, a concretização dessa finalidade tem provocado intensos debates e confrontos, ao longo dos anos. As constantes reformas do Ensino Médio evidenciam esses embates – ora atende a um viés propedêutico, ora atende ao viés profissionalizante; e em outro dado momento, à possibilidade de articulação/integração ou não com a formação profissional (proposta vigente nos dias atuais), a partir da Lei nº 13.415/2017.
Sem querer adentrar em toda a centenária trajetória da Educação Profissional, limitação essa derivada do tema, tomaram-se como ponto de reflexão o ano de 2005, a partir das determinações do Decreto nº 5.154/2004, e o ano de 1997, quando da promulgação do Decreto nº 2.208/1997, que regulamentaram a política de EPT sob gestão dos estados.
A eleição desses dois momentos históricos se justifica, em parte, pelo fato de que, em anos anteriores, a EPT era regida pelo Decreto nº 2.208/1997, que subsidiava a oferta de cursos subsequentes, e delimitava uma formação geral dissociada da Educação Profissional. Esse decreto produziu o desaparelhamento dos estados no tocante à oferta de EPT e contribuiu para o fechamento de unidades de ensino.
O Decreto nº 5.154/2004, ao contrário, regulamentou aquela relação, ou seja, estabeleceu a Educação Profissional integrada ao Ensino Médio – modalidade de ensino que possibilita a apropriação de conhecimentos e experiências que favorecem a inserção do estudante no mundo do trabalho, bem
como o prosseguimento de estudos (BRASIL, 2005). Essa oferta é destinada a quem concluiu o Ensino Fundamental, sendo o curso planejado de modo a conduzir o aluno à habilitação profissional técnica de nível médio, na mesma instituição de ensino, contando com matrícula única para cada aluno (BRASIL, 2004).
É válido ressaltar que os demais tipos de ofertas – concomitante (concedida somente a quem já tenha concluído o Ensino Fundamental ou esteja cursando o Ensino Médio, na qual se prevê a complementariedade de estudos, de cunho profissional em outro turno/instituição, assim como a oferta subsequente, oferecida a quem concluiu o Ensino Médio – são mantidas e convivem em harmonia com a oferta integrada.
Com base nessa relação entre Ensino Médio e formação profissional, e considerando as demandas de estados e municípios, bem como uma política de expansão da EPT, o governo federal, por meio do Decreto nº 6.302/2007, instituiu o Programa Brasil Profissionalizado. Nesse caso, o programa tinha como prioridade a oferta integrada, e foi a partir dessa premissa que os estados firmaram convênios com o Ministério da Educação. Desta forma, é pertinente propor um estudo que permita avaliar a forma de gestão dos estados, considerando a finalidade precípua daquele programa, no que se refere à oferta de cursos técnicos nos dois contextos (Bahia e Acre).
Essa avaliação está pautada em algumas variáveis que permitem conhecer os elementos que impactam no tipo de oferta e no ano da oferta de cursos técnicos, levando em conta a categoria do modelo de gestão, tomando como objeto inicial o termo “gestão da educação”.
Conforme previsto na LDBEN nº 9.394/96, a gestão da educação se desenvolve por meio da organização dos sistemas de ensino federal, estadual e municipal, com competências especificas da União, dos Estados e dos Municípios. Nesse sentido, é possível conceituar “gestão da educação” como competência do Estado que abarca uma amplitude de ações e iniciativas para implementação da política de educação básica. Para tanto, demanda disponibilidade financeira, recursos humanos e outras condições materiais e imateriais.
Essa disponibilidade financeira impacta diretamente na gestão escolar. E sobre essa questão, Martins (2008, p. 3) afirma que, dentre os diferentes estudos sobre o processo de organização, gestão, constituição e exercício da autonomia escolar, o elemento comum é a distância entre as diretrizes governamentais e a efetiva operacionalização nas escolas. Isso se dá em função da ausência de sustentabilidade financeira, administrativa e pedagógica por parte das esferas executivas diante da ampliação das demandas que recaem sobre as escolas, professores e equipes de direção. Para isso, a autora sugere a realização de pesquisas que avaliem políticas de educação, a partir de outros enfoques, e permitam analisar, dentre outros aspectos, programas e projetos de governo quanto à operacionalização dos mesmos nas redes (MARTINS, 2008, p. 3).
Deste modo, esta reflexão teve por base a oferta de cursos técnicos – integrado, concomitante e subsequente – dos estados da Bahia e do Acre, em consonância com os arranjos produtivos locais (APL’s), conforme preconiza o art. 1º do Decreto nº 6.302/2007. Esses arranjos podem ser conceituados como um conjunto de fatores econômicos, políticos e sociais localizados em um mesmo território, desenvolvendo atividades econômicas correlatas e que apresentem vínculos de produção, interação, cooperação e aprendizagem (REDESIST, 2003, p. 3).
Partindo da indagação sobre como os estados da Bahia e do Acre administram a política de Educação Profissional, foi possível levantar dados em documentos oficiais, dos respectivos governos; e quanto ao tipo de oferta de cursos técnicos patrocinados pelo Brasil Profissionalizado, utilizou-se a base de dados do Sistema de Informações da Educação Profissional e Tecnológica – SISTEC, e o Sistema Integrado de Monitoramento Execução e Controle – SIMEC (indicadores públicos), ambos mantidos na página da internet do Ministério da Educação. Portanto, esse levantamento consistiu na identificação de algumas variáveis como tipo e ano da oferta dos cursos técnicos, elementos analisados com base em fontes oficiais dos estados escolhidos e do governo federal. Portanto, contemplou um processo descritivo e analítico.
A eleição dos dois contextos (Bahia e Acre) se justifica, em parte, por representarem estados com processos históricos diferenciados em relação à oferta de Educação Profissional – um (Bahia) com evidência de longa trajetória de oferta desse ensino, inclusive por ser um dos primeiros a organizar-se como estado, enquanto que o outro (Acre) evidencia uma trajetória mais recente na implementação dessa oferta de ensino. Além disso, pertencem a regiões geográficas distintas – Nordeste e Norte do país, respectivamente.
A análise dos estados em questão evidenciou resultados diferenciados, sobretudo no tocante ao modo de gestão. Constatou-se a presença de organismos gestores diferenciados na implementação da política de Educação Profissional. Para efeitos de comparação, foram identificados os últimos Relatórios de Gestão de 2013 e 2014 da SETEC/MEC, enviados aos órgãos de controle (CGU/TCU). Neles se verificou que o Programa Brasil Profissionalizado teria investido em todos os 27 estados e envolveu a ampliação, construção ou reforma de escolas (BRASIL, 2013, p. 35). As matrículas com o Brasil Profissionalizado totalizaram 70.355, em 2013, ante uma previsão de 172.321, sendo que 45% estavam concentradas nas regiões Norte e Nordeste, o que justifica a escolha dos estados a seguir apresentados. Os dados anteriores são de difícil compilação, uma vez que, em termos operacionais, os dados do Brasil Profissionalizado aparecem como uma das ações do PRONATEC. Em 2014, por exemplo, quando o programa atingiu seu ápice em todas as suas ações, são apresentados dados de que o programa contemplou 86 mil matriculas (BRASIL, 2014, p. 155).
Os dados do SIMEC, por exemplo, onde se monitora a execução dos convênios firmados, a partir da vigência do PRONATEC – entre 2012 e 2016 -, destaca que mais de três mil obras foram contratadas nos estados entre construção, ampliação e reforma de escolas. De longe, o estado da Bahia concentrou o maior volume destas ações com 357 intervenções, entre novas escolas, reformas e ampliações de unidades escolares.
O Acre é um dos mais recentes estados da federação e enfrenta, entre outros aspectos, o desafio de implementar a política de Educação Profissional em condições bastante diferenciadas de estados do Sul do País a começar pela sua localização em plena floresta amazônica. Foi criado a partir da Lei nº 4.070, de 15 de junho de 1962, como resultado de vários embates – seja no território nacional ou com o governo boliviano, uma vez que sua área foi comprada da Bolívia no início do século XX. Sua população atual é de 709.101 habitantes (IBGE, 2014).
As ações de Educação Profissional no Acre foram desenvolvidas por meio do Instituto Dom Moacyr (criado pela Lei nº 1.695/2005), como autarquia, com autonomia financeira, administrativa e pedagógica (ACRE, 2013). Esse instituto tem como responsabilidade a coordenação da política pública de Educação Profissional do estado. Para tanto, oferta cursos por meio dos Centros de Educação Profissional e Tecnológica – CEPT’s.
A partir de revisão de estudos já realizados, foi possível identificar que o estado do Acre possui uma diversidade de arranjos produtivos locais: agricultura, avicultura, castanha, cerâmica, construção civil, farinha, madeira, movelaria, pecuária de leite e produtos florestais não madeireiros (REDESIST, 2010, p. 42). Com base nessa abrangência, é possível constatar que a oferta de cursos de Educação Profissional, proposta pelo estado, está aquém dessa realidade, já que as áreas de abrangência sugeridas pela REDESIST apresentam um leque bem mais amplo. Diferentemente, os dados levantados apontam que o estado concentra ofertas de cursos na área de serviços e comércio. Essa opção está relacionada à ideia de serem cursos de baixo custo e de fácil execução.
Desta forma, é possível constatar que a proposição de cursos, pelo estado, estava aquém das demandas do público. Quanto à oferta de cursos concomitantes, esses passaram a serem ofertados posteriormente, desde 2011, pelo Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego – PRONATEC. Essa oferta se subdivide em dois tipos de ofertas: concomitante interno e concomitante externo.
A oferta de tipo interno refere-se aos cursos em que o estudante frequenta o Ensino Médio em uma escola, em um turno, e realiza a formação profissional,
no turno oposto, na mesma escola. Já o concomitante externo, diz respeito à oferta em que o estudante frequenta o Ensino Médio em uma escola regular e o curso técnico no Instituto Dom Moacyr (Acre, 2013).
Essa possibilidade de articulação com dois polos formativos – escola e IDM
– fortalece a concentração de especificidades tecnológicas, em determinados centros. Isso viabiliza o fortalecimento de áreas tecnológicas, por meio da otimização de recursos financeiros e humanos, tendo em vista que favorece a concentração de profissionais/docentes em um mesmo espaço de atuação.
Alvarez (2013) destaca o protagonismo do IDM na gestão da Educação Profissional do estado do Acre. A partir da sua criação, todas as ações que se relacionavam com Educação Profissional no estado foram por ele assumidas, antecipando, de alguma forma, o que se pretendeu introduzir, desde 2011, no plano federal, com o PRONATEC. Em particular, a autora chama a atenção para o caráter inovador no planejamento das ações, uma vez que contava com grande articulação junto à sociedade. E seus cursos eram precedidos por amplos processos de consultas e de pesquisas, como a realizada em 2008, quando interrogou, numa amostra estratificada, os jovens dos municípios acreanos com a pergunta: o que você quer para o seu futuro? (ALVAREZ, op. cit., p. 82).
O estado da Bahia foi um dos primeiros estados organizados do território brasileiro, contando hoje com população de 15,2 milhões de habitantes. Nesse sentido, apesar da larga trajetória na área de educação e sobretudo de Educação Profissional, também enfrenta um desafio em gerar oportunidades para um número populacional tão expressivo.
Revisando a história, pode-se constatar que esse estado foi um dos primeiros do país a criar o Liceu de Artes e Ofícios, que integrou as primeiras escolas criadas em 1909 pelo presidente Nilo Peçanha. Com o processo de expansão da Rede Federal, foram criados dois Institutos Federais (o Baiano e o da Bahia), há ainda importantes unidades do Sistema S, em particular, o SENAI Cimatec, que é referência na área de formação tecnológica. Entretanto, no ano posterior a publicação do Decreto nº 5.154/2004, o governo da Bahia dispunha de
uma oferta tímida de Educação Profissional, justificada, em parte, pela baixa capacidade operativa, tendo em vista a forma de gestão dessa modalidade de ensino, que estava alocada em uma coordenação da Secretaria de Educação e que tivera uma expansão de unidades na vigência do PROEP, durante os governos carlistas. Até o início de 2007, a gestão dessa modalidade de ensino esteve sob a responsabilidade da Coordenação de Educação Profissional, vinculada à Superintendência de Educação Básica, da Secretaria de Educação do Governo do Estado. Nesse período, o governo possuía uma rede de educação composta por apenas 37 unidades de ensino, chegando a ofertar, no início de 2007, cerca de 5.890 vagas de Ensino Médio integrado à Educação Profissional, distribuídas em 25 unidades de ensino, em todo o estado.
O total de vagas ofertadas de EPT, no final de 2006, era de 9.130 vagas, distribuídas em 37 unidades de ensino – 21 unidades ofertavam somente o integrado, 8 ofertavam somente o subsequente, 4 ofertavam somente o concomitante, 2 ofertavam integrado e subsequente e 2 ofertavam integrado, subsequente e concomitante (GOVERNO DO ESTADO DA BAHIA, 2007). Nessa época, o estado da Bahia foi um dos poucos a ofertar o Ensino Médio (modalidade EJA) com a Educação Profissional. Ao final de 2007, o estado já dispunha de 41 centros com oferta integrada, 28 com oferta concomitante e 36 com oferta subsequente (sem mencionar a variedade de ofertas por um mesmo centro).
Vale ressaltar que, nesse contexto, a criação do Fórum de Educação Profissional do Estado da Bahia, ocorrida no final de 2006, teve a intenção de fortalecer a política de EPT na região.
Em função da necessidade de expansão dessa rede, por ter sido considerada prioridade para o governo da época, aquela coordenação foi transformada em superintendência. Desde o ano de 2007, a oferta de Educação Profissional do governo da Bahia passou a ser gerida pela Superintendência de Educação Profissional (SUPROF), vinculada à Secretaria de Educação do Governo do Estado. O dinamismo desse novo ente foi favorecido pela presença do professor Antonio Almerico Biondi Lima, que havia ocupado o Departamento de Qualificação Profissional na Secretaria de Políticas Públicas de Emprego do Ministério do Trabalho e Emprego, no início da gestão do governo Lula, quando o
ministério era ocupado por Jaques Wagner, que depois veio a ser o governador do estado por dois mandatos. Foi nesse período que ocorreu a reformulação do PLANFOR, transformado em Plano Nacional de Qualificação Profissional (PNQ). O PNQ disciplinou o formato dos cursos e, principalmente, a carga horária dos mesmos e a criação de modalidades outras, como os Planos Setoriais e Planos Territoriais de Qualificação Profissional, respectivamente, Planos Territoriais de Qualificação (PlanTeQs), Projetos Especiais de Qualificação (ProEsQs) e Planos Setoriais de Qualificação (PlanSeQs). Muito desta engenharia desenvolvida pelo PNQ foi utilizada pela recém-criada Superintendência, que incorporou ainda um acervo de informações, baseado em levantamentos e pesquisas, e iniciou um amplo processo de capacitação do quadro técnico, com o apoio das universidades estaduais baianas (CASTIONI, 2013).
Com essa nova estrutura organizacional, a rede de EPT chegou a alcançar
33 centros territoriais de Educação Profissional, 38 centros de Educação Profissional e 92 escolas de Ensino Médio que também oferecem essa modalidade de ensino (GOVERNO DO ESTADO DA BAHIA, 2018). As vagas estão distribuídas em diferentes tipos de ofertas: integrada, subsequente e concomitante.
Desta forma, a Rede Estadual de Educação Profissional e Tecnológica da Bahia objetivou consolidar e ampliar a oferta de Educação Profissional no estado, em consonância com o desenvolvimento socioeconômico e ambiental dos territórios baianos. Assim, buscou oportunizar uma formação que promova uma maior participação dos seus egressos na vida social e no mundo do trabalho dessa região. A respeito da articulação dos cursos com os arranjos produtivos locais, é fato que no ano em questão as unidades de ensino priorizavam cursos da área de serviços, comércio e agropecuária. Os dois primeiros foram eleitos mais em função do baixo custo e facilidade de contratação docente; enquanto que o terceiro guarda uma relação direta com a vocação econômica dos municípios onde estão instaladas as unidades de EPT. Em pouco tempo, a rede baiana transformou-se na segunda maior rede do País, suplantada apenas pelo Centro Paula Sousa, do estado de São Paulo.
Considerando as ofertas de Educação Profissional dos dois estados no período em questão, é possível inferir que a política de Ensino Médio integrado
representou uma oferta tímida, haja vista a prerrogativa das normativas legais – Decreto nº 5.154/2004 e Decreto nº 6.302/2007. Entretanto, observa-se que no estado da Bahia houve rapidamente uma ampliação significativa.
Estados | Número de estabelecimentos de acordo com o tipo de oferta de cursos técnicos / ano | |||||
2005 | 2008 | |||||
Integrada | Concomitante | Subsequente | Integrada | Concomitante | Subsequente | |
ACRE | - | - | 3 | - | - | 3 |
BAHIA | 21 | 4 | 8 | 41 | 28 | 36 |
Com a criação do PRONATEC, em 2011, que passou a atuar como “guarda-chuva” dos vários programas e ofertas de EPT, o Brasil Profissionalizado foi subsumido, tendo em vista o objetivo de fomentar a ampliação da oferta de Educação Profissional em escala nacional.
Posteriormente, a partir de 2015, com a crise fiscal e o processo de impeachment, em 2016, que levou ao afastamento da presidenta Dilma Vana Rousseff, o PRONATEC veio perdendo gradativamente a importância que teve, particularmente em 2013 e 2014, quando alcançou seu auge. Nesse período, o Ministério da Educação informou ter alcançado 8 milhões de pessoas e, segundo cálculos deste autor, teria transferido R$ 10 bilhões, o dobro do valor que foi investido para a expansão da Rede Federal.
Indicadores mais recentes, contidos nos Relatórios de Gestão da SETEC, demonstram que o Brasil Profissionalizado estabilizou sua oferta de matrículas na faixa dos 90 mil, o que indica que muito provavelmente tenha alcançado seu ponto de saturação em termos de oferta de vagas. Considerando que a tendência do MEC hoje seja diferente do período em que foi concebido o Brasil Profissionalizado, é de se esperar que a oferta do Ensino Médio integrado perca
terreno para outras ofertas estimuladas pelos novos formatos de Ensino Médio previstos pela atual legislação.
Iniciativa | Indicadores PRONATEC Matrículas | |
2016 | 2017 | |
Acordo de Gratuidade | 123.419 | - |
Brasil Profissionalizado | 99.935 | 94.503 |
Bolsa-Formação (Técnico e FIC) | 86.210 | 96.317 |
E-TEC | 51.688 | 35.999 |
MédioTEC | - | 65.637 |
PRONATEC | - | 645.927 |
A análise da prática de gestão dos dois estados, no que diz respeito ao Programa Brasil Profissionalizado, evidencia dinâmicas sociais diferenciadas na forma de implementar a oferta de EPT, considerando as diretrizes desse programa.
Em relação à Bahia, o modelo de gestão foi resultante de um processo sistemático de criação de órgão colegiado (Fórum de EPT) que subsidiou a consolidação da EPT enquanto política do estado, e posteriormente, com a criação de uma superintendência específica de EPT. Esse processo corroborou para uma política de EPT, de âmbito estadual, com diversidade de ofertas – subsequente, concomitante e integrada. Aqui cabe destacar a iniciativa da oferta do PROEJA. No entanto, tal processo ainda se ressente de uma relação mais direta com os arranjos produtivos locais.
Quanto ao Acre, a criação do Instituto Dom Moacyr representou um avanço para o estado, tendo em vista a autonomia desse órgão no que diz respeito à gestão do recurso público, com possibilidade de contratação direta de professores, assim como à possibilidade de concentração de ofertas de EPT,
vinculadas a determinadas áreas tecnológicas. No entanto, nesse estado também se nota a falta de uma articulação da EPT com os arranjos produtivos locais.
A análise desses casos, em particular, aponta para a criação de uma nova solução para a governança da Educação Profissional. A esse respeito, é válido ressaltar a experiência de outros países tanto em relação à gestão da EPT quanto à participação de outros segmentos (sindicatos, conselhos regionais profissionais, empresariado, etc.). Isso sugere pensar em mecanismos de aproximação do poder público com esses segmentos, no trato dessa política – o fórum criado pelo governo da Bahia, evidencia, em parte o direcionamento para esse caminho. Nesse caso, é pertinente apontar a necessidade de maior articulação entre as ofertas do Programa Brasil Profissionalizado com a oferta do Sistema S, inclusive para suprir as demandas de escolas públicas no tocante à nova forma de organização do novo Ensino Médio.
Em boa medida, a articulação do Fórum dos Gestores Estaduais de Educação Profissional propiciou a descoberta de novas iniciativas de organização e gestão da Educação Profissional. A criação de unidades com autonomia de gestão baseou-se na experiência da própria rede Paula Sousa, em São Paulo; nos estados do Rio Grande do Sul, com a Superintendência da Educação Profissional (SUEPRO); e no estado de Alagoas, com o Instituto de Educação Profissional (INEPRO), no qual o estado do Acre se inspirou para organizar o Instituto Dom Moacyr.
Aqui cabe destacar a necessidade de implementação de estudos para o desenvolvimento de metodologias de monitoramento e acompanhamento, avaliação e supervisão da EPT (a qual, inclusive, perpassa pela otimização da plataforma do SISTEC). Também é necessária a estruturação e redefinição da oferta de PROEJA, na expectativa de atender um público maior, visando garantir maior possibilidade de acesso e equidade para jovens e adultos que buscam na educação caminhos para inserção laboral e melhoria de sua qualidade de vida, sobretudo pelo fato de se constituir em uma oferta a mais para um público cada vez mais jovem que migra para classes de adultos. E, acima de tudo, é preciso proporcionar Educação Profissional de qualidade com oferta regular pelos estados brasileiros que concentram o maior volume de matrículas de Ensino Médio no Brasil.
ACRE. Governo do Estado. Instituto de Desenvolvimento da Educação Profissional Dom Moacyr. Disponível em: ˂http://www.idep.ac.gov.br˃. Acesso em: 20 fev. 2018.
ALVAREZ, Carmem Paola Torres. Governança da Educação Profissional e Tecnológica: uma análise do contexto da Amazônia ocidental. 2014. 140f. Dissertação (Mestrado em Educação) – UnB. Brasília.
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. Decreto nº 5.154 de 23 de julho de 2004. Regulamenta o § 2º do art. 36 e os arts. 39 a 41 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004- 2006/2004/Decreto/D5154.htm˃. Acesso em: 20 fev. 2018.
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WEREBE, Maria Jose Garcia. 30 anos depois: grandezas e misérias do ensino no Brasil. São Paulo: Ática, 1994. (Série Educação em Ação).
Recebido em: 05 de março de 2018. Aprovado em: 09 de maio de 2018. Publicado em: 21 de novembro de 2018.
Nara Lidiana Silva Dias Carlos2 Ilane Ferreira Cavalcante3
Olívia Morais de Medeiros Neta4
Este trabalho é um estudo de revisão bibliográfica e documental sobre as mudanças educacionais ocorridas durante o período da ditadura civil militar (1964
- 1985). A análise documental se debruça sobre a Lei nº 5.540, de 28/11/1968, que normatizou o ensino superior nacional e a Lei nº 5.692 de 11/08/1971, que fixa diretrizes e bases para o ensino de 2º, tornando profissional toda a educação pública desse nível. Observa-se que as reformas do ensino superior e médio se entrelaçaram e foram feitas, em especial a segunda, em razão da primeira.
This paper is a bibliographical study and a documental analysis about the educational changes occurred during de military dictatorship in Brazil (1964-1985). The historical scenery and the documental analysis approaches the Law nº 5.540, from November 28, 1968; that established new rules to graduation and the Law 5.692, from August, 11, 1971, that dictates the basis to a new second degree teaching in the period. It observes that the changes in graduation and in second degree teachings were connected and influenced one another, mostly, the second degree was a consequence of the first one.
No contexto do golpe civil militar de 1964 a educação brasileira passou por grandes modificações. Algumas dessas mudanças ocorreram por causa da pressão social, por meio dos movimentos sociais da década de 1960, como é o
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i30.p10088
3 Licenciada em Letras, Doutora em Educação, Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte. E-mail: <ilanecfc@gmail.com>
4 Historiadora, Doutora em Educação, Docente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
E-mail: <olivianeta@gmail.com>
caso da reforma do ensino superior. Já outras alterações aconteceram por meio de imposição política, a exemplo da implantação da Lei nº 5.692/71, tornando a educação profissional universal e compulsória. Essa lei foi sancionada sem consulta pública e modificou todo o ensino básico brasileiro.
Antes de qualquer coisa, não devemos perder de vista a aliança feita entre o Estado Brasileiro e o capital estrangeiro. As alterações ocorridas no cenário educacional foram, em grande medida, para alimentar o capital e suprir as demandas do mercado. O Brasil estava inserido em uma conjuntura mundial, ditada pelo capital estrangeiro, numa busca desenfreada para legitimar o capitalismo e as ações do mercado, que passava pela conhecida crise de 1970, a denominada crise estrutural do capital.
Segundo Antunes (2009), foi a partir de 1970, após um grande período de acúmulo de capital, que o capitalismo passou a sinalizar um quadro crítico demonstrado por elementos como: a falência do padrão de acumulação; baixa na taxa de lucros; aumento das privatizações; a crise do Estado do bem-estar social; dentre outros elementos expostos pelo autor.
Quando o binômio produtivo taylorista/fordista se esgotou, foi necessário estabelecer um novo compromisso entre o capital e o trabalho que foi mediado pelo Estado. Este acordo assegurava ganhos sociais e de seguridade para os trabalhadores dos países do primeiro mundo, contanto que a temática do socialismo fosse esquecida, e ainda tinha como base explorar os trabalhadores do terceiro mundo que estavam excluídos do compromisso social democrata, ademais, também deveria abolir de seu território qualquer indício da ideologia socialista.
Assim, a atuação crescente da força produtiva provocou modificações na sociedade brasileira. Durante a ditadura civil militar houve um crescimento numérico da burguesia, entretanto, a classe proletária foi a que mais aumentou nos vinte e um anos do regime. Passou de 13,7% em 1960 para 31,7% na década de 1980. Germano (2011) explica que nesse contexto o capitalismo no Brasil assumiu uma identidade enormemente excludente e concentrada. Nas décadas de 1960 a 1980 houve um aumento da concentração da renda, sobretudo de 1970
a 1972, anos do milagre econômico4, no qual os 10% mais ricos tinham uma renda média 60,2 vezes maior que os 60% mais carentes. Neste mesmo período, também ocorreu o aumento da dívida externa brasileira, que cresceu devido a elevação do preço do petróleo, em 1973. É dentro dessa circunstância que o Brasil, durante as décadas de 1960 e 1970, esteve inserido e passou a reformular o ensino superior e o ensino básico.
Este artigo busca fazer uma breve retrospectiva histórica acerca das mudanças ocorridas na educação brasileira nesse contexto, observando a legislação pertinente e suas reformulações, que alteraram a educação superior e deram um caráter profissionalizante à educação básica, especificamente ao ensino de 2º grau, hoje denominado Ensino Médio.
O golpe civil militar estava em pleno recrudescimento no ano de 1968 quando foi determinada a reforma do ensino superior, mas a origem dessa reforma era anterior a esse ano e vinha sendo orientada por dois fatores, segundo Romanelli (2014): o aumento de novos empregos, com a implantação das indústrias de base na década de 1950 e o modelo de ascensão da classe média que aos poucos vinha se modificando.
Também é importante salientar que a demanda pela reforma não foi uma exigência do capital norte-americano, mas da própria sociedade brasileira, que via neste nível educacional um elemento de manutenção da estrutura social, quer fosse ela a permanência ou ascensão de classes, pois era esse nível de ensino que oportunizava as ocupações de altos graus hierárquicos tanto no setor público, quanto no privado. Havia uma cobrança da sociedade para aumentar a quantidade de vagas no ensino superior, porque a oferta de vagas era bem abaixo da procura. Sobre este aspecto, Romanelli (2014, p. 203) afirma que “a oferta, apesar de ter crescido, ficou aquém da demanda. Essa defasagem teve
4 Segundo Habert (1996, p. 13-14), o chamado milagre econômico tinha três pontos basilares: “o aprofundamento da classe trabalhadora submetida ao arrocho salarial, às mais duras condições de trabalho e à repressão política; a ação do Estado garantindo a expansão capitalista e a consolidação do grande capital nacional e internacional; e a entrada maciça de capital estrangeiro na forma de investimentos e empréstimos.” Essa expressão foi amplamente usada pela mídia no início da década de 1970, para fazer referência ao acelerado crescimento econômico brasileiro.
seu ponto alto no acúmulo sustentável dos “excedentes”, candidatos ao ensino superior que, embora aprovados nos exames vestibulares, não lograram classificação para as vagas oferecidas naquele nível”.
Essa defasagem acontecia porque durante a década de 1960 o índice de crescimento do número de matrículas do ensino médio seguia na direção oposta ao do ensino superior e do primário. Enquanto no primeiro, o crescimento das matrículas no período de 1964 a 1968 foi de 69%, o segundo aumenta apenas 52,76% e o terceiro é majorado em apenas 16%, como demonstra Romanelli (2014).
A interferência dos EUA na educação brasileira, no entanto, já existia desde o final da Segunda Guerra Mundial, e um exemplo foi o programa Aliança para o Progresso e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), que enviava recursos para a educação, inclusive para a região Nordeste. Embora essas influências norte-americanas tenham ocorrido no âmbito educacional, não podemos vê-las como elemento exclusivo da reforma universitária de 1968, pois, como esclarece Germano (2011, p. 106), “entendemos que a política educacional resulta da correlação de forças sociais existentes em determinado contexto histórico”.
Para além da crise vivida pelo Estado, o governo tinha como um de seus objetivos centrais, segundo Ghiraldelli (2001, p. 172), “a substituição da ideologia nacionalista-desenvolvimentista pela ideologia do desenvolvimento com segurança [...]”. Esses ideais justificavam a depreciação das instituições de ensino superior, pois era nesse espaço que se constituía um dos grandes polos de resistência ao regime da ditadura civil militar. É nesse contexto que o governo institui a Comissão Meira Matos no fim de 1967, guiado pela Teoria Geral da Administração de Empresas de Taylor e Fayol. O governo também criou, no início de 1968, com base no Decreto nº 62.977/68, o Grupo de Trabalho da Reforma Universitária (GTRU).
O objetivo dessas comissões era encaminhar propostas que reformassem o ensino superior, para que o governo pudesse implantá-las e restabelecer o controle social. Os resultados desses estudos foram postos em prática com a implantação da Lei nº 5.540, de 28 de novembro de 1968, que normatizou todo o ensino superior nacional. O aumento das matrículas no ensino superior ocorreu a
datar do Decreto-lei nº 405, de 31 de dezembro de 1968, conforme disposto em seu Art. 1º: “O número de vagas fixado em editais de concursos vestibulares para ingresso em cursos de ensino superior poderá ser aumentado mediante simples publicação em diário oficial ou jornal de grande circulação local, [...]”. (BRASIL, 1968).
A reforma do ensino superior de 1968 continua, claramente, a privilegiar as camadas sociais mais altas, apesar de aumentar o número das vagas neste nível de ensino, não era interesse do regime militar que as classes mais baixas ascendessem socialmente, assim, a modernização do ensino superior não favoreceu a uma verdadeira mobilidade social, uma vez que, de acordo com Germano (2011) a mudança ocorreu dentro de uma ordem, na qual se ajudaria os menos favorecidos sem modificar as estruturas sociais.
Para além dos elementos mencionados acima, o Estado também tinha um interesse no controle político e ideológico visando à inexistência da crítica social e política e adesão das diversas camadas sociais às políticas de Estado. A preocupação do governo era formar para desmobilizar os movimentos estudantis e sociais, tendo como um dos propósitos essenciais educar obedecendo às normas capitalistas. Outros principais propósitos para a educação, conforme Germano (2011), no período eram: estabelecer uma relação direta entre educação e trabalho; privatizar o ensino; estabelecer a profissionalização no ensino de 2o grau.
A reforma proposta pela Lei nº 5.540/68 se deu em resposta a diversos movimentos sociais que pediam pelo aumento de vagas nas universidades e tinha como pressuposta finalidade a modernização e democratização do ensino superior, contudo, conforme afirma Germano (2011), o que ocorreu foi a despolitização e repressão às universidades. Entretanto, esse objetivo explícito indicava, na verdade, um outro que estava implícito, o de limitar a entrada das classes desfavorecidas às universidades. Assim, já ensaiaram a reforma do ensino de 2° grau5 nesta legislação. A Lei nº 5.540/68 tem relação com a reforma
5 A Lei nº 5.692/71 adotou a nomenclatura de 1° e 2° graus. No caso do ensino de 1° grau ocorreu a fusão dos ramos do 1° ciclo, dando ênfase à educação geral e propedêutica, porém havia a sondagem vocacional e a iniciação para o trabalho já neste período. Enquanto que o 2°grau foi a fusão de todos os ramos do 2° ciclo (o ensino normal, o ensino técnico industrial, o ensino técnico comercial e o ensino agrotécnico). As escolas de ensino médio passariam, obrigatoriamente, a fornecer cursos profissionais.
do ensino médio sobre a qual discorremos adiante, posto que em seu Art. 21, parágrafo único, define como seria o concurso de vestibular a partir daquele momento:
Art. 21. O concurso vestibular, referido na lêtra a do artigo 17, abrangerá os conhecimentos comuns às diversas formas de educação do segundo grau sem ultrapassar êste nível de complexidade para avaliar a formação recebida pelos candidatos e sua aptidão intelectual para estudos superiores.
Parágrafo único. Dentro do prazo de três anos a contar da vigência desta Lei o concurso vestibular será idêntico em seu conteúdo para todos os cursos ou áreas de conhecimentos afins e unificado em sua execução, na mesma universidade ou federação de escolas ou no mesmo estabelecimento isolado de organização pluricurricular de acôrdo com os estatutos e regimentos. (BRASIL, 1968).
O parágrafo citado impõe a necessidade de vestibular para a entrada no ensino superior, o que, por si só, já é um processo seletivo que exclui uma maioria. Acrescenta ainda, que esse vestibular deveria conter todo o conteúdo das disciplinas gerais naquele e nos próximos anos consecutivos desde sua publicação.
Por fim, outro aspecto que deve ser levado em consideração é o fato da reforma de nível superior ter sido construída em consonância com os interesses do mercado de trabalho e para o desenvolvimento nacional. Os currículos e os cursos foram pensados e executados numa direção hegemônica, conforme disposto nos artigos 23 e 26 da Lei nº 5.540/68:
Art. 23. Os cursos profissionais poderão, segundo a área abrangida, apresentar modalidades diferentes quanto ao número e à duração, a fim de corresponder às condições do mercado de trabalho.
§1º Serão organizados cursos profissionais de curta duração, destinados a proporcionar habilitações intermediárias de grau superior. [...]
Art. 26. O Conselho Federal de Educação fixará o currículo mínimo e a duração mínima dos cursos superiores correspondentes a profissões reguladas em lei e de outros necessários ao desenvolvimento nacional. (BRASIL, 1968).
Nesse sentido, é possível notar que as universidades estariam formando o sujeito para que ele estivesse apto a corresponder às necessidades do mercado e do capital. A Lei trata de forma explícita essa característica do então ensino superior, quando dispõe, no citado parágrafo primeiro do artigo 23, que haverá um currículo mínimo, cursos de curta duração e habilitações intermediárias. Este entendimento de que a educação deveria suprir e atender as demandas do mercado de trabalho foi proposta pelo GTRU. Segundo esse grupo, para diminuir o problema com o número de excedentes, deveria ser aumentado o número de vagas em cursos que desenvolvessem o país econômica e socialmente, como é o caso dos cursos da área da saúde e os de engenharia.
Mesmo com as modificações ocorridas no ensino superior com início na década de 1960, por meio da Lei nº 5.540/68, esse nível de ensino continuará a cumprir seu papel de cunho capitalista e de continuidade das divisões das classes sociais. Esta reformulação não cumpre com o objetivo demandado pela coletividade civil brasileira, pois as universidades continuaram elitizadas e recebendo os sujeitos advindos das classes média e alta da sociedade. Então seria necessário fazer outras mudanças na área da educação para manter o controle social, já que o problema dos excedentes não fora realmente solucionado. Sobre essa outra reforma, que atinge a educação básica, especificamente o ensino médio, é que trataremos a seguir.
O ensino profissionalizante universal e compulsório foi a solução encontrada para desviar o foco do público jovem que se candidatava ao ensino superior, pois o alvo desde então passou a ser o mercado de trabalho. Isto ocorreu com a implantação da Lei nº 5.692/71. Com essa reforma no ensino houve uma piora tanto no preparo dos candidatos para a entrada no ensino superior, quanto no próprio ensino médio, chamado a partir de então de 2° grau. Para Cunha (2005), a produção flexível6 substitui o modelo taylorista/fordista,
6 Para Harvey (1993, p. 140) a produção flexível, denominada por ele de acumulação flexível, “[...] é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo, ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de
sendo crucial para o aparecimento de novos modelos educacionais. Isto demonstra a interferência da economia na educação.
Segundo Germano (2011), o projeto da Lei nº 5.692/71 foi recebido no congresso com uma aceitação total e foi apoiado por professores. Também não houve disputas entre o setor privado e público da educação. Romanelli (2014) esclarece a existência de dois grupos distintos para se constituir a legislação que modificaria o ensino básico brasileiro. O primeiro grupo era a Usaid, que propunha uma reformulação apenas para a educação fundamental, denominado 1° ciclo, partia do pressuposto de que a necessidade da indústria era de uma mão de obra com alguma escolaridade e algum tipo de treinamento que desse conhecimento básico ao sujeito sobre as técnicas de produção e com isto haveria o aumento da produtividade. Já o segundo grupo, composto pela Comissão Meira Matos e o GTRU, pensava em sanar o problema da crise estatal gerada pelos excedentes, assim, para eles seria mais interessante reformular o 2° ciclo, antigo ensino médio, denominado na Lei nº 5.692/71 de 2° grau.
O pensamento desse segundo seguimento era modificar o nível médio para deixá-lo de cunho profissionalizante e com caráter terminal. A terminalidade derivava da principal característica do ensino de 2° grau, pois os alunos entrariam no mercado de trabalho com uma profissão reconhecida caso tivessem concluído o ensino profissionalizante. Acreditavam que o sujeito com uma profissão, quando concluísse o ensino médio, se contentaria em ingressar no mercado de trabalho e não sentiria estímulo para cursar o ensino superior, pois o nível médio já haveria proporcionado a formação profissional que antes só se obtinha com a conclusão de um curso universitário.
Dessa maneira, concordamos com Bourdieu (2011) ao entender a escola como um elemento de conservação social, legitimadora das desigualdades sociais e isto contraria a ideia de uma escola libertadora. Para ele existe o elemento da desigualdade no acesso superior para as diferentes camadas sociais, considerando que os mecanismos do privilégio cultural são percebidos apenas quando aparecem em grosseria demasiada. Ao longo do regime militar,
fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado “setor de serviço”, bem como conjuntos industriais completamente novos [...]”.
notamos abertamente esse caráter elitista e de divisão social no sistema de educação. Enquanto uns, classes burguesa e média, poderiam e deveriam ir para o ensino superior, outros, camadas mais pobres, teriam que se contentar com lugares sem nenhum privilégio ou sem grandes possibilidades de ascensão social, corroborando o ideário de uma escola conservadora dos padrões burgueses sociais.
A concepção de educação na Lei nº 5.692/71 também é, a exemplo da legislação do ensino superior, para atender as demandas do sistema econômico. Esse modelo tem suas bases na Teoria do capital humano. Esse conceito, de cunho liberal, foi desenvolvido no final da década de 1950 e década de 1960 por economistas ingleses e norte-americanos que tinham por preocupação central tornar a educação e o desenvolvimento econômico compatíveis com a distribuição de renda, de maneira a excluir qualquer questionamento que pudesse ser projetado contra a forma de produção do capital. Dessa forma, essa teoria deve ser entendida como o investimento em educação, em especial na educação formal, que o capital humano faz para se qualificar e desenvolver suas habilidades cognitivas que passam a interferir diretamente na sua produtividade, e esta última na sua renda.
Schultz (1967) esclarece que a produção provém da instrução, investir em habilidades e conhecimentos significa ter sua renda aumentada no futuro. Nesta perspectiva, o fator econômico explica o ingresso e permanência nas escolas, assim como o rendimento escolar. Para ele “o investimento nos assuntos escolares, no treinamento realizado no trabalho, na saúde, na informação de emprego e na migração possibilitam a produtividade de valor das capacidades adquiridas do homem [...].” (SCHULTZ, 1973, p. 26). É possível perceber que tal postura conduz a uma produtividade que tanto alarga as possibilidades de renda e sucesso do trabalhador, quanto contribui para o desenvolvimento do capital. Isso ocorre porque a educação capacita o homem, que passa a produzir mais. Dessa forma, o sujeito aumenta a sua renda e por consequência o crescimento do capital da nação.
Diante disso, podemos esclarecer algumas críticas feitas à Teoria do capital humano. Conforme Lima (1980), a primeira delas é o fato dessa concepção desconsiderar as características e habilidades que o sujeito traz
consigo para dentro das instituições de ensino, fragilizando, assim, a questão das habilidades cognitivas ensinadas pelas escolas o que resultaria na mesma renda, caso a escolaridade formal fosse a mesma, pois uns tem mais habilidades para as artes, já outros para os números, dessa forma, as habilidades pessoais e individuais dos sujeitos interferem diretamente na sua produção e consequentemente na renda. Outro ponto exposto pelo autor, é o fato da mesma escola preparar pessoas de origens diversas para executarem tarefas distintas.
Conforme Bourdieu (2011), podemos destacar que o capital cultural do sujeito também interfere no êxito ou no insucesso escolar da criança, igualmente como se relaciona com o próprio nível cultural da família. Segundo o autor, as variações existem até mesmo se os pais são de origens distintas e desiguais. Partindo dessa concepção, como atribuirmos à escola todos os resultados que se obtém ao longo da vida? Além disso, e sabendo das peculiaridades existentes em cada sujeito, como generalizar e conferir ao indivíduo a responsabilidade do seu insucesso, uma vez que a escola “repassa todo o conhecimento” para desenvolver as habilidades cognitivas necessárias para desempenhar uma produtividade homogênea entre os pares?
É óbvio que tais relações e atribuições feitas ao sistema de ensino e ao indivíduo são demasiadamente incoerentes. Cada sujeito trabalha de acordo com suas aptidões individuais, se diferencia do outro até mesmo pela própria fisiologia do seu corpo. Portanto, se percebe que esta educação explicitada por Schultz (1973) não considera a complexidade do humano, apenas serve para instrumentalizar o homem com as capacidades necessárias para desenvolver tecnicamente uma determinada função. Dessa forma, além desse sistema educativo reproduzir as relações sociais de produção do capital, passa a ser um elemento que se articula com o movimento capitalista.
De conformidade com a Teoria do capital humano, podemos analisar a Lei nº 5.692/71 relacionando-a à teoria. Vertentes pedagógicas como instrumentalizar, treinar, preparar para o mercado de trabalho, em consonância com o sistema econômico, eram dos principais objetivos da reforma de 2° grau. A constituição da Lei nº 5.692/71 foi pensada baseada em uma perspectiva de desenvolvimento da economia nacional. São três seus objetivos centrais, conforme afirma Kuenzer (2000): contenção dos estudantes para ingressarem no
ensino superior; despolitização do ensino de 2° grau; preparação da força de trabalho para suprir as demandas econômicas nacionais, auxiliando dessa forma, o seu crescimento.
O primeiro artigo da Lei nº 5.692/71 dispõe os seguintes elementos: “Art. 1º O ensino de 1º e 2º graus tem por objetivo geral proporcionar ao educando a formação necessária ao desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de auto-realização, qualificação para o trabalho e preparo para o exercício consciente da cidadania” (BRASIL, 1971, grifo nosso).
São três os elementos em destaque, o primeiro deles tem por finalidade: desenvolver as potencialidades dos discentes para a autorrealização. Mas, como fazer isso se cada ser humano é único, como atingir e manter esse patamar de realização pessoal? Neste momento, é possível notar as influências da teoria da autorrealização de Maslow (1973)7, assim também como a teoria do capital humano, no que diz respeito ao desenvolvimento das potencialidades do sujeito, pois essas seriam usadas pelas indústrias para o crescimento do sistema econômico juntamente com a qualificação para o trabalho.
O segundo ponto exposto no artigo é “qualificação para o trabalho”, em que a relação entre educação e produtividade demonstra que essa proposta de ensino prepararia o aluno predominantemente para o trabalho manual, pois essa educação se preocupava em formar técnicos para ingresso no mercado de trabalho em todos os espaços da economia. Conforme situa Saviani (2007, p. 157)
[...] após o surgimento da escola, a relação entre trabalho e educação também assume uma dupla identidade. De um lado, continuamos a ter, no caso do trabalho manual, uma educação que se realizava concomitantemente ao próprio processo de trabalho. De outro lado, passamos a ter a educação de tipo escolar destinada à educação para o trabalho intelectual.
7 Essa teoria prega que o homem hierarquiza suas necessidades do nível mais baixo para o mais alto, assim sempre tentará suprir primeiramente os níveis mais elementares, para só então buscar os graus superiores para sua realização. Segundo Maslow, existem cinco níveis da necessidade humana: as fisiológicas; as necessidades de garantia; as necessidades de pertinência e de amor; as necessidades de estima; e por fim, da autorrealização.
Essa “qualificação para o trabalho” vai mais à frente remeter às necessidades do mercado e não do sujeito, como podemos observar disposto na Lei nº 5.692/71
1º Observadas as normas de cada sistema de ensino, o currículo pleno terá uma parte de educação geral e outra de formação especial, sendo organizado de modo que:
no ensino de primeiro grau, a parte de educação geral seja exclusiva nas séries iniciais e predominantes nas finais;
no ensino de segundo grau, predomine a parte de formação especial.
2º A parte de formação especial de currículo:
terá o objetivo de sondagem de aptidões e iniciação para o trabalho, no ensino de 1º grau, e de habilitação profissional, no ensino de 2º grau;
será fixada, quando se destina a iniciação e habilitação profissional, em consonância com as necessidades do mercado de trabalho local ou regional, à vista de levantamentos periodicamente renovados. (BRASIL, 1971, grifo nosso).
Os trechos destacados acima, no texto da lei, evidenciam duas características do ensino de 2° grau. A primeira é a relação economia/educação, ao abordar que a iniciação para a habilitação profissional suprirá as necessidades do mercado trabalho e não as do trabalhador. Verificamos, de forma clara, que essa proposta pedagógica condiz com a Teoria do capital humano, pois os investimentos educacionais no sujeito desaguariam para o crescimento da economia nacional. Já a segunda característica, diz respeito à fragmentação do processo de ensino-aprendizagem, uma vez que separa as disciplinas do currículo geral das disciplinas técnicas.
Apesar do ensino de 1º grau elencar como prioridade a educação geral, seu objetivo era a sondagem das aptidões e iniciação para o trabalho, ou seja, apesar de tratar o currículo propedêutico durante os oito anos de duração, o ensino de 1° grau teria como direção sondar as aptidões laborais dos discentes, assim facilitando seu ingresso no 2º grau de maneira direcionada para determinada área do conhecimento, ou ainda, colocando o aluno já no mercado. Notamos, dessa forma, a convergência entre esses níveis de ensino e a sua relação com o sistema econômico, pois os alunos não tinham muitas possibilidades ou escolhas, devido ao ensino, principalmente na esfera estadual, sofrer com ausência de recursos materiais e humanos. Cunha (2005) chama a
atenção para os estados e municípios terem dado ênfase ao quantitativo da reforma, devido à carência dos elementos materiais e humanos. Sobre a antecipação para o trabalho, a Lei nº 5.692/71 dispõe da seguinte maneira: “Art.
76. A iniciação para o trabalho e a habilitação profissional poderão ser antecipadas [...]”. (BRASIL, 1971).
O Art. 76 regulamenta a inserção antecipada no mercado de trabalho sob a justificativa da necessidade do próprio indivíduo ou pela ausência de recursos do Estado. O objetivo do ensino de 1º grau também era a iniciação para o trabalho e a sondagem das aptidões, que de certa maneira concorda com a Teoria do capital Humano, pois essa sondagem levaria o aluno para uma determinada área profissional que os professores acreditassem ser mais adequada. Já no ensino de 2º grau, quem regularia a parte diversificada do conteúdo seriam as necessidades do mercado de trabalho, esse norte seria conduzido pelos levantamentos periódicos regulamentados pela Lei nº 5.692/71.
O último elemento trazido pelo artigo primeiro da Lei nº 5.692/71 expressa que a educação profissionalizante também deveria preparar o discente para o “exercício consciente da cidadania” que, neste momento, talvez significasse obedecer aos preceitos e as bases ideológicas do regime militar, regidas pela Doutrina de Segurança Nacional.8
Para Borges (2007, p. 30), “[...] não resta a menor dúvida de que a Doutrina põe em risco a defesa dos direitos humanos, pois exclui os pressupostos mínimos da cidadania”. Explica ainda que, quando não é possível detectar os inimigos do Estado ou que atividades podem ser concretizadas, todos os cidadãos são considerados suspeitos e culpados até provar sua inocência. Dessa forma, podemos entender que a escola deveria preparar o sujeito para obedecer ao Estado militar sem questionamentos ou manifestações contrárias ao seu querer.
Como afirmou Gamboa (2001), o sistema educativo desde a década de 1970 produziu o capital humano sob uma ótica pedagógica de eficiência
8 A Doutrina de Segurança Nacional foi criada durante a Guerra Fria e provê informações para se implementar e manter um Estado forte ou uma ordem social estipulada, tendo por base quatro conceitos: os objetivos nacionais; o poder nacional; a estratégia nacional; e a segurança nacional. Segundo Borges (2007, p. 24) “objetivamente, a Doutrina de Segurança Nacional é a manifestação de uma ideologia que repousa sobre uma concepção de guerra permanente e total entre o comunismo e os países ocidentais”. O autor explica ainda que a sua essência “[...] reside no enquadramento da sociedade nas exigências de uma guerra interna, física e psicológica, de característica antissubversiva contra o inimigo comum.” (BORGES, 2007, p. 29).
instrumental, os objetivos do ensino-aprendizagem foram reduzidos ao adestramento. A legislação que compõe a reforma do ensino básico brasileiro segue esse modelo. A educação separou o trabalho manual do trabalho intelectual. Esse modelo educativo majorou ainda mais o grande fosso entre as camadas sociais e aumentou a dualidade já existente nos sistemas de ensino brasileiro.
Aparentemente, a implantação do 2º grau, com a promulgação da Lei nº 5.692/71, não foi como esperado. Os estados não estavam prontos para cumprir com as exigências do ensino profissional, havia escassez de professores para atuar nas diversas áreas de conhecimento, os cursos postos em prática geralmente eram em áreas que não tivessem necessidades de laboratórios ou bibliotecas com materiais específicos para a continuidade das habilitações, como por exemplo: Técnico de contabilidade ou Auxiliar de Contabilidade, Técnico em Administração, Magistério, dentre outros. No tópico seguinte iremos abordar alguns desses entraves e como isso influenciou a sociedade brasileira.
A implantação da Lei nº 5.692/71 foi prevista para acontecer de maneira gradual, de acordo com a disponibilidade dos recursos materiais, humanos e didáticos, pois já antevia que seus objetivos não seriam alcançados em curto prazo devido à escassez desses recursos, na prática, a reforma priorizou a extensão escolar obrigatória, considerando apenas o núcleo comum do currículo (Comunicação e Expressão, Estudos Sociais e Ciências).
A Lei nº 5.692/71 normatizou tanto o ensino regular quanto o supletivo. O ensino regular era composto pelos sistemas de ensino municipais e estaduais de 1° e 2° graus e o ensino superior federal. Já o supletivo abarcava o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL), o Projeto Minerva (educação pelo rádio), televisões educativas, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) e Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC), dentre outros. O ensino supletivo era destinado aos maiores de 14 anos que não haviam concluído os estudos na faixa etária regular ou aqueles que haviam completado o 1° grau, mas não haviam cursado ou completado o 2° grau e também oferecia o ensino de educação profissional.
No que diz respeito ao 1° grau, Germano (2011) expõe que ocorreu a expansão de 40% das matrículas nas escolas entre 1973 e 1985, apesar de 15%
do público entre 7 e 14 anos nunca ter tido acesso à escola, conforme dados de 1985. A rede pública concentrava mais de 80% das matrículas no ensino de 1º grau nesse período. Esta ampliação se caracteriza pela diminuição da quantidade de tempo na escola e o aumento dos turnos. Também houve aumento na quantidade de professores leigos no 1° grau, principalmente no Nordeste.
São dois os elementos problemáticos expostos anteriormente. O primeiro deles foi a necessidade de diminuir o tempo na escola para ampliar as quantidades de séries. A ampliação das séries exigia uma mudança profunda na estrutura da educação de 1º grau, nesta perspectiva, fica uma indagação: até que ponto realmente foi positiva essa mudança para a estrutura de ensino? Entendemos como ponto positivo a elevação da escolaridade de 4 para 8 anos e a eliminação dos exames de admissão que eram exigidos para a passagem do primário ao ginásio. Muitos alunos não avançavam para as séries superiores devido a essa avaliação. Com a Lei nº 5.692/71, esse exame foi eliminado.
Entretanto, Frigotto (2010a) destaca que o alongamento da escolaridade é necessário ao capital, pois a escola será um lugar que ocupa cada vez mais um número maior de pessoas em tempos ainda igualmente longos. A instituição de ensino não produz a mais-valia, entretanto, é necessária ao capitalismo para realizá-la. A escola deve pensar o trabalho como princípio educativo e, para se resolver esta questão educacional, Frigotto (2010a, p. 220) explica:
é pelo trabalho que o homem – e todo homem – encontra sua forma própria de produzir-se em relação aos outros homens. [...] não há razões de outra espécie, a não ser históricas, que justifiquem relações sociais de produção da existência humana onde haja proprietários dos meios e instrumentos de produção, e aqueles que têm apenas a posse relativa de sua força de trabalho.
Nessa perspectiva, segundo os princípios de Gramsci (1979), a escola não deve ser desinteressada, mas formar e desenvolver as capacidades humanas tanto intelectuais como manuais. A escola deve ser única e ter o trabalho como princípio educativo, constituindo, assim, na práxis educativa uma relação dialética entre a política e a técnica.
A segunda questão diz respeito ao fato do aumento de professores sem a habilitação necessária para atuar em sala de aula, já que se elevou o número de profissionais com apenas o 1º grau e a Lei nº 5.692/71 previa, em seu Art. 30,
formação mínima para atuar “ a) no ensino de 1º grau, da 1ª à 4ª séries, habilitação específica de 2º grau; b) no ensino de 1º grau, da 1ª à 8ª séries, habilitação específica de grau superior, ao nível de graduação, representada por licenciatura de 1º grau obtida em curso de curta duração;” (BRASIL, 1971).
No que tange ao ensino de 2° grau houve, de acordo com Cunha (2005), a elaboração dos currículos pela Universidade do Trabalho de Minas Gerais (Utramig), que se transformou, desde 1971, no Laboratório de Currículo do Departamento do Ensino Médio. Dos 52 currículos produzidos, 32 eram para a indústria. A escolha das disciplinas da parte especial para cada sistema de ensino ficaria a cargo do Conselho Estadual de Educação (CEE), contudo as escolas poderiam escolher quais disciplinas fariam parte do currículo diversificado.
Houve diversas campanhas de enaltecimento do ensino profissionalizante, na tentativa de diminuir a valoração dada ao ensino superior quando relacionado ao ensino profissional. Uma dessas campanhas resultou no Caderno de Profissões, convergindo para um discurso de reconhecimento do ensino técnico- profissionalizante. Germano (2011) afirma que, apesar do discurso das autoridades irem no sentido de uma busca pela equidade social, o que realmente importava nessa política educacional era a manutenção da desigualdade social ao constituir relação direta com a produção capitalista.
Frigotto (2010b) esclarece que a partir da década de 1970, quando o economicismo passou a se relacionar mais diretamente com a educação e foi reforçado pelos ideais do regime militar, houve diversos resultados negativos. O primeiro deles é o fato de ter sido enfatizada a ideia da educação como negócio; o segundo diz respeito ao dualismo educacional entre a classe trabalhadora e a classe dominante; o terceiro foi a fragmentação do processo de conhecimento.
Assim, este modelo educativo acabou por aumentar ainda mais a dualidade educacional do país à época, uma vez que levou a uma migração da classe média para as escolas privadas, pois não havia interesse, por parte desse grupo, em uma educação para o trabalho manual, mas em ingressar nas universidades do país, como já foi esclarecido anteriormente. A classe mais pobre teve que se contentar com o ensino técnico-profissionalizante.
Moura (2007) destaca que a Lei n° 5.692/71, ao tornar a profissionalização compulsória, deveria ter extinguido a dualidade já existente na educação brasileira, mas ocorreu o contrário “[...] na prática, a compulsoriedade se restringiu ao âmbito público, notadamente nos sistemas de ensino dos estados e no federal. Enquanto isso, as escolas privadas continuaram, em sua absoluta maioria, com os currículos propedêuticos [...] visando o atendimento às elites.” (MOURA, 2007, p. 12).
Dessa maneira, a burguesia cumpriria o outro papel, ocupando as funções intelectuais do mundo capitalista. Isso decorre do fato das escolas privadas não terem sido obrigadas a aderir ao ensino de cunho profissional. A burguesia, apoiando-se na Lei nº 5.692/71 e na sua interpretação ambígua, desconsidera a Educação Profissional e continua promovendo para seus filhos um ensino propedêutico e preparatório ao exame de vestibular, à época composto por disciplinas gerais, conforme disposto na Lei nº 5.692/71. Já as escolas públicas, estaduais e municipais, não tinham material didático e humano suficiente para efetivarem uma educação de qualidade. Conforme afirma Germano (2011, p.190), “A reforma educacional do Regime foi particularmente perversa com o ensino de 2º grau público. Destruiu o seu caráter propedêutico ao ensino superior, elitizando ainda mais o acesso às universidades públicas. Ao mesmo tempo, a profissionalização foi um fracasso”.
É nesta diferenciação entre ensino público e privado que se baseia a dualidade do sistema de ensino brasileiro no período estudado, entretanto, é preciso esclarecer que as escolas técnicas federais não se incluíam nesta educação precária, pois dispunham do aparato necessário para pôr em prática de maneira efetiva o ensino profissional de 2° grau. Todavia, essa política educacional sobrecarregou as escolas técnicas federais, pois muitos alunos das redes municipal e estaduais faziam apenas as disciplinas de caráter profissional nas escolas federais, aumentando o número de alunos atendidos por essa rede de ensino, conforme afirma Cunha (2005).
A manutenção do sistema para que cada indivíduo ocupasse, na esfera social, o papel que foi determinado em consequência do seu nascimento, ficou ainda mais intensa. Uma vez implantado o ensino técnico-profissionalizante, houve uma diferenciação não apenas no quesito qualidade de ensino, mas essa
diferença passou a atingir o próprio modelo educacional, sendo um padrão praticado nas escolas privadas e para sua elite e outro destinado à instituição pública e para os pobres.
Assim, podemos afirmar que um dos interesses da reforma do ensino superior foi atingida, o de manter as universidades públicas com uma oferta menor do que o necessário e manter essas vagas ocupadas pelas classes médias e altas da sociedade. Os pobres que quisessem cursar uma universidade teriam que migrar para o ensino privado, pois não lhes eram proporcionadas condições didáticas, de conhecimentos necessários para disputar igualmente com os que haviam estudado o ensino de 2° grau nas escolas particulares. Conforme Freitag (2005, p. 142), “o fortalecimento do ensino particular tem de ser visto como uma barreira socioeconômica, legalizada e sancionada por lei, que prejudicará as classes economicamente desfavorecidas”.
Além dessas dificuldades expostas, os alunos das escolas públicas também enfrentaram outros problemas referentes à precarização do ensino de 2° grau. Cunha (2005) elenca algumas das razões desses problemas: o ensino de 2° grau sofreu pela ausência de recursos humanos e materiais; os prédios eram adaptados; os espaços muitas vezes não estavam disponíveis; alguns administradores escolares passaram a cobrar taxas, pois esse nível de ensino não estava posto legalmente como gratuito até então. Somando-se a esses pontos, Germano (2011) expõe o fato das escolas não formarem nem mesmo para os requisitos industriais, pois o ensino não preparava realmente para as necessidades das indústrias.
Diante dessas fragilidades, algumas resistências passaram a acontecer: os alunos não aceitaram de forma passiva a reforma do ensino profissionalizante, pois esta diminuía a carga horária das disciplinas gerais de interesse de todos para entrada no ensino superior; também se manifestaram contrários às taxas cobradas nas escolas públicas para financiamento do ensino técnico- profissionalizante – essas críticas foram veiculadas em meios diversos como jornais e festas de formaturas –; os diretores das escolas, especialistas em educação, criticavam a viabilidade do ensino profissionalizante universal e compulsório no 2° grau; e as escolas privadas combateram a reforma, devido seus altos custos. Dessa maneira, para conter a oposição e a opinião pública, o
governo militar inicia, já em 1972, algumas medidas para assegurar a implantação da reforma de 1° e 2° graus.
O Parecer nº 45/72, apresentado por Valnir Chagas, tomou por fundamento as análises da Utramig, e foi composto por sete tópicos, sendo que trataremos especificamente do primeiro deles, que traz considerações acerca da filosofia educacional da época (tecnologia versus humanismo). Ele também dispõe sobre as habilitações profissionais, seus currículos e o mínimo exigido para cada capacitação.
As considerações trazidas no primeiro item do Parecer nº 45/72 são para reforçar a ideia de que o humanismo e a tecnologia não são opostos, mas se complementam, assim como o humanismo forma para a cultura acadêmica, a tecnologia também o faz. O Parecer desmistifica a concepção de que o cristianismo é contrário às tecnologias, colocando o humanismo ou o renascimento clássico, até certa medida, como anticristão, ao mesmo tempo em que glorifica o trabalho manual do homem, usando como exemplo o fato de Cristo ter sido carpinteiro.
É notória, no Parecer nº 45/72, a exaltação ao trabalho manual e aos benefícios que as tecnologias trariam para o sujeito que optasse por uma educação de cunho tecnológico. Essa necessidade de majorar a educação profissional advém da desvalorização do trabalho manual. A associação constituída com o cristianismo é pertinente, pois induzindo o sujeito por meio de sua religiosidade, apela para o emocional e descarta o racional. Como o Brasil sempre foi um país de maioria cristã, essa técnica foi adequada, se considerarmos que tal ação persuadiu grande número de devotos.
Cunha (2005) indica que, com o objetivo de conter a entrada no ensino superior, esse Parecer também evidencia a possibilidade de poder antecipar a formação especial para ingressar no mercado de trabalho, mas o ensino propedêutico não poderia ser abreviado em função da entrada no ensino superior. Podemos analisar, nesse sentido, que este é um, dentre os vários paradoxos ou ambiguidades expressos na legislação que reformulou o ensino básico brasileiro no período da ditadura civil militar.
Já o Parecer nº 76 de 23 de janeiro de 1975, também expedido pelo Conselho (CFE), relatado por Terezinha Saraiva, reorientou a política educacional
expondo não ser viável que todas as escolas se transformassem em técnicas, conforme expresso em seu texto, “O equívoco, a nosso ver, está no entendimento de que toda escola de 2° grau deve ser equipada para oferecer ensino técnico e profissional. A lei não diz, em nenhum momento, que a escola de 2° grau deve ser profissionalizante e sim, que o ensino de 2° grau é que o deve ser.” (BRASIL, 1975, grifo do documento).
Neste sentido, não seria necessária uma substituição do ensino geral pelo profissional no espaço físico da própria escola, mas poderia haver uma parceria entre os sistemas de ensino estaduais e federais, entre empresas e entidades que já ofereciam o ensino técnico. Essa nova instrução desobriga as escolas particulares de implantar o ensino profissional, permitindo que a parte profissionalizante do currículo acontecesse em parceria com outras instituições de ensino.
Ao mesmo tempo, o Parecer nº 76/75 também modifica o entendimento de ensino profissionalizante trazido pela Lei nº 5.692/71. Ao invés de ser um conhecimento técnico e limitado, o Parecer passa a defender o ensino profissionalizante como orientação ao jovem para o domínio de atividades científicas, aplicação de tecnologia dos conhecimentos abstratos. Ao invés de uma educação profissionalizante específica, passou a ser básica e geral. Acompanhemos essa disposição do Parecer nº 76/75:
A educação profissionalizante não se limita, porém, à transmissão de um conhecimento técnico limitado e pouco flexível muito menos de atividades. Não se pretende de outro lado que todas nossas escolas se transformem em escolas técnicas, o que seria desnecessário e economicamente inviável. [...]. Através da educação profissionalizante o que se pretende é tornar o jovem consciente do domínio que deve ter as bases científicas que orientam uma profissão e levá-lo à aplicação da tecnologia dos conhecimentos meramente abstratos transmitidos até então, pela escola. (BRASIL, 1975).
O texto deixa claro que a educação específica seria fornecida pelo ensino superior e o ensino de 2° grau ofereceria uma formação básica e de caráter geral. Além desses pontos já expostos, o Parecer nº 76/75 considera algumas disciplinas da parte geral como sendo componentes do conjunto de conteúdos da
parte especial, que também seriam base para habilitar o sujeito para a profissionalização.
Com essa nova perspectiva de que o ensino profissional não seria mais universal e compulsório, ficava mais difícil ainda mantê-lo nos moldes iniciais. Com base nessas divergências e questionamentos é que se editam os Pareceres nº 860/81 e nº 177/82. Esses dois pareceres partem do mesmo pressuposto: era necessário alterar a Lei nº 5.692/71 e consequentemente o ensino técnico- profissionalizante de 2° grau.
O Parecer nº 177, aprovado em 31 de março de 1982, foi resultado dos relatórios elaborados pelos dois Grupos de Trabalho do Ministério de Educação (MEC) e CFE, sua relatora foi Anna Bernardes da Silveira. A principal mudança que esse parecer editou foi o fato de manter a capacitação profissional para o 2° grau, porém, iria predominar a parte geral ou a especial, ou ainda iria ocorrer uma proporcionalidade entre esses dois currículos, a depender de cada escola.
O Parecer nº 177/82 sugere a substituição da palavra qualificação por preparação, ficando o texto da Lei nº 5.692/71 disposto da seguinte forma: “Art. 1º
— O ensino de 1º e 2º graus tem por objetivo geral proporcionar ao educando a formação necessária ao desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de auto-realização, preparação [...].” (BRASIL, 1971, grifo nosso). Assim, fica claro que a preparação para o trabalho deveria fazer parte da formação integral do aluno, independente do mesmo optar por uma habilitação profissional ou não.
Esses vários dispositivos postos em pauta desde a promulgação da Lei nº 5.692/71 culminaram na Lei nº 7.044 de 18 de outubro de 1982. As alterações produzidas por esse dispositivo legal apenas regulamentaram as propostas trazidas pelos Pareceres nº 860/81 e o nº 177/82. A Lei nº 5.692/71 continuava válida quase integralmente, pois sofrera algumas modificações trazidas pela Lei nº 7.044/82. Uma das principais mudanças foi a substituição do termo qualificação por preparação, como foi já exposto anteriormente. Sobre os currículos para o 1° e 2° graus, a Lei nº 7.044/82 dispõe da seguinte forma:
§ 1º - A preparação para o trabalho, como elemento de formação integral do aluno, será obrigatória no ensino de 1º e 2º graus e constará dos planos curriculares dos estabelecimentos de ensino.
§ 2º - À preparação para o trabalho, no ensino de 2º grau, poderá ensejar habilitação profissional, a critério do estabelecimento de ensino. (BRASIL, 1982, grifo nosso).
O parágrafo primeiro deixa claro que a formação integral do aluno acarreta obrigatoriamente a preparação para o trabalho, no entanto, o parágrafo segundo esclarece que essa preparação poderia ou não habilitar para uma profissão no ensino de 2° grau, ou seja, nesta nova perspectiva, preparar para o trabalho não significava necessariamente obter uma profissão ao final do ensino de segundo grau, entretanto, esses alunos deveriam sair do nível básico de ensino preparados para atuar no mercado de trabalho. A começar daí o ensino profissional ficava a cargo das instituições escolares, não sendo mais compulsório e obrigatório.
Outro ponto bastante relevante trazido pela Lei nº 7.044/82 é a exclusão da sondagem das aptidões para o trabalho no ensino de 1° grau, porém a nova legislação não traz nenhum novo objetivo para este grau de ensino a não ser o já exposto: preparar para o trabalho. Mais uma mudança importante foi o fato do mercado de trabalho deixar de regular o currículo da parte especial no 2° grau de acordo com suas necessidades, por meio de levantamentos periódicos. A regulamentação trazida pela Lei nº 7.044/82 estabeleceu que “b) as matérias que comporão a parte diversificada do currículo de cada estabelecimento serão escolhidas com base em relação elaborada pelos Conselhos de Educação, para os respectivos sistemas de ensino;” (BRASIL, 1982).
Essas são as alterações mais importantes sob o nosso ponto de vista, porém, outras mudanças também foram impostas pela Lei nº 7.044/82. Como já foi dito, a Lei nº 5.692/71 continuava valendo. Cunha (2005) explica que os cursos de tecnólogos vieram para suprir o fracasso do ensino profissionalizante, pois não houve diminuição da demanda dos cursos superiores em função do ensino profissionalizante. Os exames vestibulares tiveram algumas modificações devido a essas reformulações trazidas pela Lei nº 7.044/82. Os sistemas de ensino brasileiro só voltariam a passar por modificações estruturais posteriormente, com a constituição da Lei de Diretrizes e Bases de 1996.
Diante dos fatos até aqui expostos, podemos dizer que as reformas do ensino superior e médio se entrelaçaram e foram feitas, em especial a segunda, em razão da primeira. Uma seria condicionante da outra, porém, o que regeu as duas reformulações em um sentido mais amplo foi a economia e as necessidades do mercado. O sistema econômico brasileiro vinha passando por diversas mudanças desde o processo de internacionalização do mercado, quando os bens de consumo duráveis passaram a ser produzidos dentro do país.
Ao assumirem o poder, em 1964, os militares fortificaram esse modelo hegemônico, tendo como os grandes consumidores desses produtos a burguesia nacional e alguns setores da classe média, enquanto a classe subalterna foi excluída desse movimento político e econômico. A fonte de controle que o Estado militar usava para dominar essa camada social mais pobre eram as políticas educacionais, que passam a servir aos interesses da economia desde as reformulações de ensino e viabilizando sua funcionalidade. Neste sentido, Freitag (2005, p. 61) explica que “a escola contribui, pois, de duas formas, para o processo de reprodução da formação social do capitalismo: por um lado reproduzindo forças produtivas, por outro lado, as relações de produção existentes”.
Não obstante, o que importa chamar a atenção é o fato da reforma de ensino superior já legislar sobre o aspecto do conteúdo geral para o exame dos vestibulares e logo em seguida, três anos depois, promulgarem uma legislação que, ao invés de sanar o problema da crise social – oportunizando o ingresso de todos nas universidades – aumentaria ainda mais o fosso da desigualdade social existente à época. Assim, Aranha (1996) nos faz refletir, indicando quem entraria nas melhores universidades e, quem, ao fim, ocuparia as elevadas posições na sociedade brasileira.
Para Cunha (2005), o grupo que reformulou o ensino superior já o fez baseado em conclusões que se referenciavam de forma direta ou indireta ao ensino de 2º grau. Este grupo estabeleceu os seguintes princípios: os recursos para o ensino superior não deveriam ser ilimitados para não prejudicar o acolhimento demandado do ensino primário e médio; e deveria haver um
crescimento equilibrado entre os três níveis de ensino: primário, médio e superior. Nesse equilíbrio, os dois primeiros níveis atenderiam a quase toda a população enquanto as universidades seriam para quem quisesse e pudesse. Esses princípios eram contrários à demanda social pelo aumento de vagas no ensino superior. A expansão seria controlada e levaria em conta o aumento demográfico e social.
Notamos, dessa forma, que o ensino técnico-profissionalizante só perde espaço já no processo de abertura do governo militar. É importante percebermos que a esfera social, a política e a econômica influenciaram as políticas educacionais durante todo o regime militar e essas influências não morreram com o tempo, continuam tendo sua força até os dias atuais.
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Recebido em: 18 de abril de 2018. Aprovado em: 09 de junho de 2018. Publicado em: 21 de novembro de 2018.
Rafael de Lima Bilio3 Sonia Maria Rummert4
Este artigo trata, à luz do materialismo histórico, do programa denominado ProJovem Urbano (PJU), que visa atender jovens com idade entre 18 e 29 anos, alfabetizados, mas que não concluíram o 9ª ano do Ensino Fundamental. Nesse contexto, evidenciamos que o PJU está inscrito em um processo de intensificação das políticas focais de gestão da pobreza e de invisibilidade da classe trabalhadora, a partir de uma miríade de programas compensatórios de atenuação do desemprego e amortização de conflitos sociais na sociedade brasileira. Para as finalidades desse artigo, utilizaremos o relatório de gestores que contém a análise de cento e oitenta e um questionários aplicados aos gestores do programa que estavam exercendo ou haviam exercido o referido cargo.
Este artículo trata del programa denominado ProJovem Urbano (PJU), que busca atender a jóvenes con edad entre 18 y 29 años, alfabetizados, pero que no concluyeron el 9º año de la Enseñanza Fundamental, a la luz del materialismo histórico. En este contexto, evidenciamos que el PJU está inscrito en un proceso de intensificación de las políticas focales de gestión de la pobreza y de invisibilidad de la clase trabajadora, a partir de una miríada de programas compensatorios de atenuación del desempleo y amortización de conflictos sociales en la sociedad brasileña. Para los fines de este artículo, utilizaremos el informe de gestores que contiene el análisis de ciento ochenta y un cuestionarios aplicados a los gestores del programa que estaban ejerciendo o habían ejercido dicho cargo.
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i30.p10089
2 Este artigo está baseado, sobretudo, em Bilio, R. de L. (2017) na tese intitulada “O PROGRAMA NACIONAL DE INCLUSÃO DE JOVENS-URBANO (PROJOVEM URBANO): A CONSTRUÇÃO DO PRECARIADO E A HEGEMONIA DA PEQUENA POLÍTICA”.
3 Doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense. Graduado em Pedagogia pela UNIRIO. Atuou como supervisor do ProJovem e ProJovem Urbano no Sistema de Monitoramento e Avaliação do Programa.
4 Professora associada da Universidade Federal Fluminense atuando no Programa de Pós-
Graduação em Educação.
Este artigo aborda questão relevante no cenário social e político que a sociedade brasileira vem vivenciando nas últimas três décadas: a educação da classe trabalhadora. Trataremos, aqui, particularmente, de um programa que, apresentado à sociedade brasileira como emergencial e transitório, constitui expressão da lógica que, ao longo da história do país, prevalece nas propostas e ações empreendidas pela classe dominante, visando, nesse caso particular, à (con)formação da parcela mais destituída de direitos da juventude brasileira.
O Programa Nacional de Inclusão de Jovens (ProJovem), objeto da presente análise, em particular o ProJovem Urbano (PJU) será aqui abordado enquanto elemento de mediação histórica dos fenômenos da relação Trabalho- Educação. Como parte de um todo complexo, marcado por continuidades e rupturas, o PJU encontra-se inscrito em um período de intensas ações governamentais de criação de programas de formação, no âmbito da Educação de Jovens e Adultos. Trazendo as marcas do aligeiramento e do reducionismo da educação ao plano da assistência social, constitui expressão recente do caráter de dualidade do sistema educacional brasileiro sob suas atuais configurações.
Acreditamos que a consideração da particularidade histórica do PJU pode indicar caminhos para a compreensão da miríade contemporânea de programas educacionais fundamentados na política de “invisibilidade da classe trabalhadora” (RUMMERT, 2009), tal como explicitado, ainda no ano de 2007, pela Agência Estado, ao afirmar que o ProJovem constituía uma oportunidade para que “as pessoas que necessitam de amparo a assistência social possam sobreviver às próprias custas e, assim, ser responsáveis e tomar conta de si mesmas” (2007, Diário de Tarde, apud. RUMMERT, idem, p.215-216).
O “tomar conta de si mesmas” respalda-se numa dupla lógica, que não se fundamenta no princípio do direito: por um lado, objetiva desonerar o Estado no âmbito dos gastos públicos, por outro visa, sobremaneira, o controle social. Essa lógica, que acompanha os diferentes estágios de expansão e consolidação do modo de produção capitalista, fica muito clara ao analisarmos as proposições dos organismos multilaterais de financiamento, como por exemplo, o Banco Mundial. Conforme assinalava Leher, ainda no final da década de 1990, a forte preocupação com a pobreza e com suas consequências políticas é visível nos
documentos e nas declarações dos dirigentes (1999) como, por exemplo, no caso do então presidente do referido banco: “as pessoas pobres do mundo devem ser ajudadas, senão elas ficam zangadas” (CAUFIELD, 1996, p. 315, apud. LEHER, 1999, p.24).
Considerando-se serem os chamados pobres4 aqueles que “no momento presente se acham excluídos do nosso sistema econômico, por acaso, infortúnio ou falta de competência”, como advogava Galbraith (1961, Apud GEREMEK, 1995, p. 09), justificam-se as ações de caráter educativo destinadas, supostamente, a reverter o quadro individual/familiar, favorecendo acesso precário a fragmentos de conhecimento que irão possibilitar a incorporação periférica e precária nas franjas do processo produtivo.
Na verdade, as políticas de governo, no âmbito da educação, são aqui compreendidas basicamente como uma das expressões da forma como o Estado capitalista administra a correlação das forças sociais, preservando os interesses dominantes, mas contemplando, também, de forma subordinada, as demandas das classes subalternizadas, objetivando a mediação de interesses em conflito e, em decorrência, a manutenção da hegemonia e das condições de controle social.
Assim, ao analisarmos a materialidade das políticas para a educação básica e profissional da classe trabalhadora, constituída pelos instrumentos legais bem como pelas ações implementadas ou induzidas pelo Governo Federal, estaremos apreendendo o conteúdo das características que assume, no atual momento histórico, o conflito estrutural entre Capital e Trabalho. A apreensão das formas assumidas por esse conflito constitui chave para compreender, por exemplo, dados divulgados pelo IBGE, na Síntese de Indicadores Sociais, publicada em dezembro de 2017.
A análise dos dados evidencia o fato de que a mobilidade social, no Brasil, permanece marcada pela injustiça e pela concentração de renda, típicas do capitalismo dependente (FERNANDES, 1973) e das formas como o
4 Em detido estudo sobre a miséria na Europa, desde a Idade Média, Geremek, ao abordar as relações entre o mundo contemporâneo e a miséria, afirma: “A criação de possibilidades de trabalho constitui uma forma de assistência social e, ao mesmo tempo, de luta contra a decadência moral social. Nas visões utópicas de reformação social que proliferam na literatura da Europa moderna, o trabalho aparece como uma panaceia quer contra a miséria, quer contra a delinquência. Aos olhos do homem moderno, a degradação moral causada pela pobreza anda a par com a depravação nascida de uma vida ociosa às custas da sociedade” (1995, p.276).
desenvolvimento desigual e combinado5 se materializam no país. Desde os primeiros estudos acerca da questão, dentre os quais se destaca o de Pastore (1979), se evidencia o fato de que nas frações de classe situadas na base da pirâmide social, massivamente constituída pelos trabalhadores sem qualificação, verifica-se, sobretudo, o que é tecnicamente denominado como “mobilidade de curta distância”. Já ao final da década de 2010, a mais recente pesquisa do IBGE, informa que entre os estratos mais baixos de classificação adotada pelo órgão, a mobilidade permanece com as mesmas características verificando-se que a transição, no mundo do trabalho, permanece circunscrita às possibilidades do trabalho simples, tal como formulado por Marx no volume 1 de O Capital, de 1987 (MARX, 1988). Assim, por exemplo, os filhos de trabalhadores rurais deslocam- se, predominantemente para outras ocupações que envolvem também o trabalho simples, como serventes ou empregados domésticos caracterizados por requerimentos de baixa qualificação.
Neste cenário de preservação da desigualdade social, é evidente a necessidade de ações que concorram, minimamente, para que os pobres não fiquem zangados, como ensinado pelo Banco Mundial. Abre-se, assim, um largo espaço para as ações de assistência social, muitas vezes revestidas de roupagens de caráter educacional, como no caso do ProJovem, como veremos adiante. A relevância dada à assistência social no Brasil, em detrimento do respeito aos direitos objetivos e subjetivos da classe trabalhadora, pode ser percebida, na atualidade, por exemplo, pela quase equivalência que os gastos da União em relação às despesas totais líquidas apresentam, se comparamos o destinado à educação e à assistência social.
Segundo estudo de Gustavo Machado, baseado nas séries históricas do Tesouro Nacional, no período de 2010 a 2016 (ILEASE, 2017, p.23), foi gasto um total aproximado de oitenta e quatro bilhões em Educação e, em Assistência Social, setenta e sete bilhões, aproximadamente. Cremos que a diferença de sete bilhões entre as duas rubricas evidencia, de forma eloquente, o grau de prioridade efetivamente atribuído à educação, em específico a da classe trabalhadora, sobretudo se comparada à relevância das funções de controle inerentes à
5 Desenvolvida por Trotsky e incorporada por Florestan Fernandes à análise da realidade brasileira.
Assistência Social que tem por alvo, especificamente, as frações da classe trabalhadora mais destituídas de direitos.
É, precisamente aos jovens dessas frações de classe que se destina o ProJovem, desde 2005, como será explicitado adiante. Para empreender a análise, apresentaremos, inicialmente, uma breve reconstrução histórica de sua implementação, com ênfase no ProJovem Urbano.
O histórico analítico do ProJovem foi objeto de vários estudos já publicados. Entre eles, podemos destacar: Cabral, M; Cêa, G.; Silva, S. (2017), e Viriato; Cêa; Cavalcante (2007). Também deve ser destacado, especialmente, o trabalho de BILIO (2017) e a produção de Rummert, S.; BILIO, R. e Gaspar, L. (2017); Silva, J.P. (2011) que analisaram a implementação nacional6 e regional do programa com fontes primárias, dados e fatos pouco acessíveis. Em decorrência, neste artigo, serão feitas referências apenas a aspectos pertinentes à argumentação desenvolvida.
Em 2004, o governo federal constituiu um Grupo Interministerial da Juventude, coordenado pela Secretaria Geral da Presidência da República (SGPR) e composto por dezenove de seus ministérios, com o objetivo de formular uma Política Nacional de Juventude para população com faixa etária de 15 a 29 anos com baixa escolaridade, baseando-se na Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD/2003) e nas propostas dos movimentos de juventude (BRASIL,2010a).
Com a finalidade de “gerar a oportunidade para esses jovens recuperarem e continuarem seus estudos, ampliando, assim, suas perspectivas de inclusão no mercado de trabalho e na sociedade em geral” (BRASIL, 2010a, p. 9), o ProJovem foi instituído por meio da Medida Provisória nº 238/2005 (BRASIL, 2005c), transformada na Lei nº 11.129/2005 (BRASIL, 2005b) e regulamentada pelo Decreto nº 5.557/2005 (BRASIL, 2005a). Concomitante a isso, ocorreu o
6 A tese de Bilio, R.L. (2017) reconstitui a criação do PJU a partir de 2007, como ambiente de experimentação sociopolítica e analisa os aspectos teórico-metodológicos que respaldam as ações formativas da qualificação profissional do PJU, considerando como campo empírico o período referente à 6ª entrada do programa (2010) e os dados do Sistema de Monitoramento e Avaliação (SMA).
lançamento da Secretaria Nacional de Juventude (SNJ) e do Conselho Nacional de Juventude (CNJ) (BRASIL, 2010a).
O ProJovem obteve da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação o Parecer CNE/CEB nº 2/2005 (BRASIL, 2005d), com a designação de curso experimental, o que possibilitou a certificação dos alunos. Entretanto, apenas em 2006, com o Parecer CNE/CEB nº 37/2006 (BRASIL, 2006), foram aprovadas as diretrizes e os procedimentos técnico-pedagógicos para a implementação do Programa (BRASIL, 2008a).
O ProJovem foi apresentado como programa emergencial e gerido pela Coordenação Nacional do PJU, vinculado à SNJ articulando o Ensino Fundamental, a Qualificação Profissional (QP) e a Ação Comunitária em um Projeto Pedagógico Integrado (PPI). O ProJovem Original7, destinava-se aos jovens entre 18 e 24 anos, estruturando-se inicialmente da seguinte maneira: Formação Básica, desenvolvida em oitocentas horas, trezentos e cinquenta de QP, cinquenta horas presenciais de Ação Comunitária, perfazendo um total de mil e duzentas horas presenciais e quatrocentas horas não presenciais, distribuídas em doze meses. Os alunos matriculados no programa receberiam um auxílio financeiro mensal de R$ 100,00, condicionado à frequência mínima de 75% e à entrega dos trabalhos obrigatórios do mês (ibid.).
Durante o período de funcionamento, o ProJovem Original atendeu “241.235 alunos distribuídos em 57 capitais e regiões metropolitanas pelo país [...]. Desse total de matrículas, 146.451, de fato, chegaram a cursar o programa, e
106.504 o concluíram” (BRASIL, 2010a, p. 10).
Além dos critérios de acesso baseados na idade e na exigência de escolaridade, o parâmetro mais contraditório da política nacional de inclusão de jovens foi a exigência de o aluno não possuir vínculo formal de trabalho. O início do ProJovem como Programa Nacional de Inclusão de Jovens foi marcado pela relação do não acesso daqueles que possuíam vínculos formais de trabalho. Esse ponto foi objeto constante de discussões, que culminou no reconhecimento do próprio programa, em seu relatório final de gestão, quanto ao “[...] perfil dos jovens atendidos, [que] revela ser necessário evitar obstáculos à sua inserção no
7 A denominação “ProJovem Original” refere-se à nomenclatura utilizada pelos órgãos governamentais para diferenciar o precursor do PJU no campo das políticas públicas de juventude.
Programa, tais como as exigências de conclusão da 4ª série do Ensino Fundamental e de não existência de vínculo formal de trabalho” (BRASIL, 2008a,
p. 16). Ficou notório que: “Em alguns casos, a própria obtenção de emprego com carteira assinada foi indicada como causa de evasão do Programa” (ibid., p. 17).
Os demais problemas observados nos relatórios de avaliação do programa consistiam na demora ou na ausência da construção dos laboratórios de informática. Em alguns municípios, a falta de computadores, a carência de merenda ou sua péssima qualidade, atraso nos salários dos professores, a falta de aulas práticas de QP foram fatores que desestimularam os alunos.
A partir da experiência do ProJovem Original e com o argumento de articular as ações voltadas para os jovens, em 2007, o governo federal reuniu um grupo de trabalho denominado “GT Juventude”, composto de representantes da Secretaria-Geral da Presidência da República, da Casa Civil e dos Ministérios da Educação, do Desenvolvimento Social, do Trabalho e Emprego, da Cultura, do Esporte [...]” (BRASIL, 2010c, p. 8). Concomitantemente ao trabalho do GT Juventude, nesse mesmo ano, foram realizados estudos para “[...] definir o público potencial do PJU, a Coordenação Nacional do PJU, juntamente com a equipe técnica do Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação CAEd/UFJF” (ibid., p. 51). Para definição do público potencial considerou-se o estudo populacional baseado nos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), nas séries históricas do Censo Populacional e das Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD-2005 e 2006), além da Estimativa 2006, do Sistema IBGE de Recuperação Automática (SIDRA) e da Contagem Populacional 2006 (ibid.).
Sob a alegação de ampliar a Política Nacional de Juventude, foi lançado o ProJovem Integrado, pela Medida Provisória nº 411/2007 (BRASIL, 2007) – posteriormente regulamentada pela Lei nº 11.692/2008 (BRASIL, 2008a) –, que foi estruturado em quatro programas: ProJovem Urbano (objeto deste artigo); ProJovem Adolescente8, ProJovem Campo9 e ProJovem Trabalhador10.
8 Objetiva complementar a proteção social básica à família e gerar as condições de acesso do jovem no sistema educacional. Executada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS).
9 Objetiva oferecer qualificação profissional e escolarização aos jovens agricultores familiares de 18 a 29 anos que não concluíam o ensino fundamental. Único dos quatro que, naquele período sob a efetiva responsabilidade do Ministério da Educação (MEC).
Desse modo, os quatro novos programas – mantiveram, em grande parte, as orientações sociopolíticas e culturais de caráter emergencial e voltados para grupos específicos – com as mais variadas durações. A experiência transitória e experimental do ProJovem Original ganhou um espaço maior como política de juventude, com a criação do ProJovem Integrado, no qual ampliou-se e prolongou-se a faixa etária das políticas de juventude para os vinte e nove anos. Essa política de juventude foi alicerçada pela reeleição do presidente Luis Inácio Lula da Silva.
No entanto, os quatro programas que compõe o ProJovem Integrado apostaram de distintas formas de ensino – predominantemente na Qualificação Profissional, prevista pelo Decreto nº 5.154/2004 (BRASIL, 2004) –, mas foram incapazes de reverter a desvalorização sociocultural desse modelo, que, no plano histórico, sempre foi relegado às frações mais expropriadas da classe trabalhadora.
Destaca-se, porém, que, apesar de ter o ProJovem Original como modelo de implementação e de desenvolvimento, o PJU também ampliou sua carga horária para duas mil horas e sua duração para dezoito meses, mas manteve os três pilares do PPI, a saber:
Formação Básica – desenvolvida em mil e noventa e duas horas, com o objetivo de garantir aprendizagens determinadas nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental, e baseada na Qualificação Profissional bem como na Participação Cidadã;
Qualificação Profissional Inicial – desenvolvida em trezentos e noventa horas, com o objetivo de preparar os jovens para atuar no mundo do trabalho por meio da Formação Técnica Geral (FTG) e dos Arcos Ocupacionais11;
Participação Cidadã – desenvolvida em setenta e oito horas presenciais e quatrocentos e quarenta horas não presenciais, com o
10 Objetiva a oferta de qualificação profissional para preparar o jovem para inserção no mercado de trabalho. Executada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
11 Conjuntos de ocupações com “base técnica comum, que podem abranger as esferas da
produção e da circulação (indústria, comércio, prestação de serviços)”, aumentando as possibilidades de “inserção ocupacional do/a jovem trabalhador/a (assalariamento, auto emprego e economia solidária)” (BRASIL, 2010a p. 15).
objetivo de garantir aprendizagens sobre direitos sociais e buscar a mobilização do jovem no desenvolvimento de ações comunitárias.
A assinalar, ainda, que com o propósito de aumentar o número de matrículas, passou-se a exigir somente que o aluno soubesse ler e escrever, devendo a matrícula ser realizada de modo descentralizado pelos estados/municípios por meio de sistema informatizado. Os trabalhadores com carteira assinada passaram a ter direito à matrícula, ao contrário do que ocorria no ProJovem Original.
O programa seguiu uma estrutura de implementação segundo a qual os governos estaduais atenderiam os jovens residentes em municípios com população inferior a 200 mil habitantes, e as prefeituras seriam as executoras nos municípios com população superior a esse número (BRASIL, 2010c). Durante a execução do PJU pela coordenação nacional, vinculado à SNJ ocorreram seis entradas12 no país. A primeira entrada do programa ocorreu em setembro de 2008; a 2ª, em abril de 2009; a 3ª, em junho de 2009; a 4ª, em agosto de 2009 (sendo exclusiva em unidades prisionais); a 5ª, em outubro de 2009; e, por último, a 6ª, em maio de 2010 (BRASIL, 2011a). De 2008 a 2010, o PJU registrou um total de “491.500 jovens matriculados [...], tendo a participação de 118 entes federados que aderiram ao programa, 96 Municípios e 22 Estados” (BRASIL, 2010c, p.52). Além de previstas pelos “estudos de demanda”, as seis entradas cumpriram um papel de afirmação político-institucional das políticas de juventude antes de o programa ser transferido para o Ministério da Educação e Cultura (MEC) em 2012.
O aspecto crucial a destacar reside no fato de que as políticas de juventude, no período, vão paulatinamente assumindo um caráter orgânico referente à sua institucionalização como política pública nas esferas governamentais, articulando, de modo fragmentado e deturpado, reivindicações dos movimentos de juventude referentes à necessidade de programas específicos de elevação da escolarização articulados com a educação profissional. Apesar de funcionar como aparente reconhecimento da agenda dos movimentos de
12 O termo “entrada” designa a criação nacional de novas turmas – autorizada pela Coordenação Nacional do ProJovem Urbano – e o efetivo momento do início das aulas.
juventude, a forma como foi implementado o Programa, realimentou, na verdade, a política estigmatizante para os “desvalidos de sorte” do século XXI.
Nesse sentido, o PJU compõe uma rede paralela de escolas13, nas quais os destinatários seriam os “novos-velhos” desfavorecidos de sorte ou de fortuna do século XXI, preservando e retomando o critério de miserabilidade característico do Decreto nº 7.566/190914 (BRASIL, 1909). Ao reatualizar, no campo da juventude, a noção de desvalidos de sorte ou de fortuna, – crianças e jovens abandonados, órfãos que não que não encontravam meios de garantir sua subsistência – PJU se configurou como nova panaceia quer contra a miséria, quer contra a delinquência, como assinalado por Geremek (op. cit.).
Os elementos que evidenciam uma forte marca social do PJU na construção de uma invisibilidade da classe trabalhadora consistem na construção de um tipo de escola específica para cada grupo social, perpetuando as desigualdades socioeconômicas e socioculturais com o processo de negação- conservação explicitados por Gramsci (2006).
Nesse sentido, constroem-se narrativas para adquirir o consenso da classe trabalhadora, pregando a necessidade “[...] de experiências educacionais diferenciadas, que considerem as características particulares da juventude brasileira, a fim de reedificar o seu vínculo com a escola [e] [...] com intervenções pedagógicas planejadas” (BRASIL, 2011c, p. 11). Essa é a narrativa institucional do PJU, que legitima o aligeiramento e a superficialidade dos conhecimentos construídos historicamente: “Assim sendo, durante 18 meses, os jovens têm acesso a uma formação em que a Educação Básica, a educação para o trabalho e a ação comunitária estão interligadas numa dinâmica intensa e veloz” [grifo nosso] (ibid., p. 15).
13 Para viabilizar o PJU, porém, no mais das vezes, precisou-se recorrer à estrutura das redes públicas de ensino, principalmente aquelas que tinham a EJA em funcionamento. No plano de implementação do programa, havia a obrigatoriedade de o PJU ser aberto em escolas da rede pública de ensino (BRASIL, 2008b, p. 9). Estamos mencionando que a rede paralela apesar de funcionar no espaço escolar institucionalizado, tinha uma série de diferenças sócio-políticas no seu interior (em muitos locais, o espaço reservado ao ProJovem era discriminatório em pequenas ações que atingiam professores e alunos).
14 O decreto 7.566 de 23 de setembro, cria as Escolas de Aprendizes Artífices, inicialmente em
diferentes Estados sob a jurisdição do Ministério dos Negócios da Agricultura, Indústria e Comércio, destinadas ao ensino profissional, primário e gratuito.
A argumentação do PJU expressa e dissimula, ao mesmo tempo, o elemento ideológico de manutenção das classes hegemônicas pela busca do consenso, combinando uma formação aligeirada e de coerção para fixar novos comportamentos e novas atitudes. Nessas intervenções públicas, exemplificadas pelo PJU, expressa-se o desenvolvimento de programas de educação com viés assistencialista e de fiador do “amortecedor social das classes potencialmente conflitivas” (PETRAS, 1999, p. 44).
O PJU está inscrito em um processo sócio-histórico que permeou a marca social de uma concepção de assistência social na educação remodelada pelo discurso da falta de qualificação e de comportamentos sociais como mal social15 dos jovens.
Para as finalidades desse artigo, utilizaremos o relatório de gestores (BRASIL,2011b) abrangendo a análise de questionários aplicados aos gestores do programa (da 3ª a 6ª entrada) em novembro de 2010, que haviam exercido ou estavam exercendo16 o referido cargo e que eram os responsáveis pela implementação e pelo desenvolvimento do programa na esfera municipal ou estadual. Foram aplicados cento e oitenta e um questionários ao conjunto de coordenadores executivos e pedagógicos (gestores locais)17, sendo cento e cinquenta gestores municipais, e trinta e um gestores vinculados à coordenação estadual conforme o plano amostral presente nos cadernos temáticos18 do PJU no relatório dos gestores (BRASIL, 2011b, p. 78-82).
Dos 31 Coordenadores Estaduais pesquisados, 48% são Coordenadores Executivos e 48% Coordenadores Pedagógicos.
15 Vieira Pinto (2010, p. 92) ressalta que esse discurso de mal social para algumas formas do modo de ser do homem demarca um caráter patológico. Ao desconsiderar as condições de existências do indivíduo, “[...] o defeito desta concepção está em quem converte a educação em terapêutica”. Há, também, a questão do controle social e a influência da Teoria do Capital Humano.
16 Também havia uma rotatividade entre os gestores do programa (coordenadores executivos e pedagógicos), o que permitia, muitas vezes, uma mudança na equipe pelas influências políticas ou
referentes às lacunas de seu funcionamento. O reflexo consiste em que “grande parte dos coordenadores entrevistados (46%) que ingressaram no programa apresentaram uma taxa de permanência de 1 ano e 1 mês a 2 anos” e os gestores que trabalharam no ProJovem Original não chegaram a atingir 10% dos entrevistados que continuavam trabalhando no PJU (BRASIL,2011b, p. 42.).
17 “Como se tratava de um universo relativamente pequeno, e dado os objetivos do estudo, optou-
se por trabalhar com todos os coordenadores em vez de se escolher uma amostra aleatória” (BRASIL,2011b, p.13).
18 O modelo de questionário aplicado consta no referido relatório (BRASIL, 2011b, p. 85-100).
Já dos 150 Coordenadores Municipais, 47% desempenharam a função de Coordenadores Executivos e 48% de Coordenadores Pedagógicos. (BRASIL, 2011b, p. 38).
Dessa forma, a importância de resgatar alguns dados sobre o perfil dos gestores e de suas concepções19 acerca do programa permite visualizarmos a concepção de mera política de assistência social conforme o gráfico a seguir:
Adaptado de: Brasil, 2011c, p.67
Portanto, para 25% dos gestores, trata-se de assistência social de forma explícita, aos quais se somam outros 12% que concebem o PJU como um como uma forma de “ajuda aos jovens”. Não conseguimos categorizar o segmento Outros, porque há lacunas nas informações apresentadas no relatório. Por isso, só expusemos os dados que estavam inteligíveis (cf. id., 2011b, p. 67). Entretanto, há uma forte vinculação do PJU com o entendimento de que seja uma política de educação. Percebe-se, assim, uma significativa marca social que aproxima o PJU de um sistema público de socorros e oficinas de caridade remanescentes das poor laws inglesas20. O aspecto mais evidente é a perpetuação da concepção da educação:
19 No PJU havia um Formação Inicial e Continuada para formação dos gestores locais (coordenadores e pessoal de apoio) de 56 horas que envolvia as principais concepções do programa, gestão inter-setorial e aspectos administrativos.
20 Esse discurso remonta aos elementos sócio-históricos das referências às poor laws inglesas
como oficinas de caridade que abrangeram oportunidades de trabalho locais, mas que visaram a
[...] como dever moral da fração adulta, educada e dirigente da sociedade. Esta ingenuidade é grave, porque converte a educação em ato caritativo e transfere para o plano dos valores éticos (inteiramente alheios a este problema) a essência, o significado e a valoração eminentemente sociais da educação. (VIEIRA PINTO, 2010, p. 64).
A lógica presente na percepção dos gestores é expressão da lógica mais ampla que levou à localização institucional do programa nas secretarias municipais ou estaduais de assistência social, o que representou um grave retrocesso no que se refere à transferência de ações de caráter educacional para órgãos de assistência social, como foi, principalmente, o caso observado no gráfico a seguir:
Gráfico 2: Declaração dos gestores do PJU21 sobre quais as secretarias ou órgão públicos que o Projovem já se articulou
Fonte: Brasil, 2011c, p. 67.
Ao serem indagados sobre a que secretarias, desde a 1ª entrada, o PJU22 já se articulou a maioria das respostas dos gestores citava as Secretarias de
um espectro mais amplo de pessoas – em princípio ao conjunto dos jovens da classe trabalhadora mais pauperizada que não conseguiam se inserir no mundo do trabalho na Inglaterra nas primeiras décadas do século XIX (CASTEL, 2008).
21 Procuramos manter os mesmos títulos dos gráficos apresentados no relatório de gestores (BRASIL,2011b).
Educação e Assistência Social. Foi constatado, ainda, que apenas 28% dos gestores responderam23 que o programa já se articulou à Secretaria de Educação, enquanto 27% mencionaram a Secretaria de Assistência Social ou outros setores. Verifica-se, assim, que, majoritariamente, em seus primeiros anos, o programa foi intencionalmente deslocado da alçada da educação. É importante assinalar, ainda, que o próprio Projeto Pedagógico Integrado (PPI) do PJU propiciava tal procedimento, como podemos constatar, por exemplo, na seguinte passagem:
Cada Estado, Município ou DF integrante do ProJovem Urbano contará com: (a) um Comitê Gestor Local, formado por representantes das secretarias estaduais, municipais ou do DF, responsáveis pelas áreas de juventude, educação, desenvolvimento/assistência social e trabalho. Outras secretarias também poderão fazer parte desse Comitê como forma de potencializar as ações do ProJovem Urbano; [grifo nosso] [...]. (BRASIL, 2008a, p. 25).
Como podemos depreender, o PJU poderia estar inserido em qualquer secretaria que tivesse “alguma responsabilidade” com a área de juventude, apesar de ser proclamado como um programa de educação. No ProJovem Original, esse fenômeno era mais agudo quando se considerava o vínculo “orgânico” da coordenação municipal do programa pelas Secretarias de Assistência Social24. Entretanto, no PJU, o vínculo direto com as Secretarias de Assistência Social vai paulatinamente sendo reduzido no período que antecede a transferência do programa para o MEC, principalmente a partir do final de 2010. Entretanto, deve-se registrar que por quase meia década, não foi considerado o fato de que o PJU é um programa de educação, não sendo, portanto, aceitável alocá-lo em outras esferas, em particular, nas Secretarias de Assistência Social.
A pesquisa em que se baseia este artigo foi realizada na fase final do PJU, quando o programa estava atrelado à Coordenação Nacional no momento
22 Não conseguimos os dados referentes ao ProJovem Original, mas o número de Secretarias de Assistência Social que gerenciavam o programa era significativamente maior no período de 2005 até o início de 2007.
23 Importante assinalar que quase 10% dos pesquisados não sabiam informar ou não responderam à questão (BRASIL,2011b, p.66).
24 Lembramos que no PJU, as Organizações Não Governamentais (ONGs) exerceram um papel significativo no processo de gerenciamento e de implementação – inclusive algumas eram
contratadas para as ofertas dos Arcos Ocupacionais da Qualificação Profissional, e para a contratação e o pagamento dos professores do PJU.
precedente a transferência para o MEC. Nesse período, observamos a redução do número de Secretarias de Assistência Social, que veio acompanhada do correspondente deslocamento para as Secretarias de Educação, conforme as novas diretrizes do MEC; ainda assim, o quantitativo das Secretarias de Assistência Social continuou expressivo.
A partir do momento em que o programa foi transferido para o MEC, em 2012, haveria alguns dispositivos de responsabilização das Secretarias de Educação quanto a seu desenvolvimento e a sua implementação. Assim, as respostas referidas no Gráfico 2, sobre a qual secretaria (ou outro órgão público) o PJU já se articulou, indica a gradual migração para as Secretarias Municipais e Estaduais de Educação e predominância dessa vinculação (69%). Entretanto, a vinculação às Secretarias Municipais e Estaduais de Assistência Social manteve na faixa de 14% e nas incipientes secretarias de juventude com 7% (BRASIL,2011b, p.66).
Cabe ressaltar, porém, que a vinculação do programa às Secretarias de Educação não representou a solução dos problemas relativos ao Programa, oriundos de concepções originais equivocadas que, como já assinalado, constituem uma expressão das funções de controle social em detrimento da concepção de educação.
Entretanto, existia outra contradição
[...] quando são analisados os depoimentos dos gestores locais. Quando estes se referem ao conceito do ProJovem demonstram que não está presente a compreensão da vinculação do Programa à política de juventude. Uma possível explicação para tal situação pode ser atribuída ao fato de que os gestores locais conforme os relatos, não tem participação em movimentos ligados à juventude (63,37%). (BRASIL, 2011b, p.28).
Ora, a inquietação já é grande ao depararmos com a concepção do programa vinculado a esfera da assistência social, mas torna-se totalmente contraditório quando os gestores responsáveis pela implementação do Programa Nacional de Inclusão de Jovens, não o identificam com as políticas de juventude. Será uma simples falta de participação dos gestores nos movimentos de juventude? Será um incompreensão teórico-metodológica dos gestores? Esse ponto é apenas uma das muitas contradições presentes no programa.
Ademais, o programa fortaleceu o estigma da criminalidade potencial dos jovens das frações mais pauperizadas, consideradas classes perigosas (cf. RUMMERT, 2007), ao remodelar o discurso do mito da marginalidade, quando afirmava-se, por exemplo, que:
O baixo nível de renda acessado pelos jovens no mercado de trabalho constitui-se em mais um fator de desinteresse – ou até mesmo para o desalento – de parte desses jovens em ingressar nesse mercado. Além disso, devido a fatores socioeconômicos e à idade, aliados à grande oferta da força de trabalho jovem e problemas na demanda relativa devido à baixa qualificação [grifo nosso], as dificuldades de ingresso na vida profissional e a obtenção dos recursos esperados podem conduzir os jovens a catarem vias não convencionais para atingirem o padrão de vida almejado, muitas vezes envolvendo a ilegalidade e a marginalidade [grifo nosso]. (BRASIL, 2010a, p. 29).
O ProJovem Urbano muitas vezes acabou configurando-se como um espaço para o jovem não se desvirtuar, não ceder às tentações do mundo do crime, solidificando a formulação do programa como casas de correção da potencial marginalidade da classe trabalhadora juvenil revelando, explicitamente, o dualismo escolar e a destinação do ensino profissional para os mais pobres. Essas influências trouxeram ao PJU o estigma de uma modalidade de ensino pobre, destinada aos pobres, desfavorecidos e esquecidos pela sociedade – uma espécie de ensino pré-vocacional que os tiraria das ruas e evitaria um possível desvio de caminho (CUNHA, 2005).
A identificação dos pressupostos e das características do PJU constituiu importante mediação para o reconhecimento das contradições internas dos aparelhos privados de hegemonia, que se apresentaram como instrumento social de construção moral e psicofísica da classe trabalhadora, servindo para polarizar a noção de competências – sobretudo no plano comportamental – como fundamento de suas ações formativas, mantendo modelos vigentes no padrão taylorista-fordista.
O PJU surgiu na sequência de criação de uma série de programas criticados pela aligeiramento na formação, pela ineficácia na diminuição do
desemprego, pelo caráter ultrafocalizado do público-alvo e pelas conhecidas condições de acesso ao programa devido à pauperização socioeconômica. A marca social da assistência social em detrimento da política educacional pode ser vislumbrada nos gráficos, a partir das respostas dos gestores que eram os responsáveis pela implementação do PJU nos municípios e estados. Portanto, trata-se de visualizar a materialidade político-pedagógica dos mediadores da dessa política aligeirada e compensatória do PJU.
Um dos objetivos do PJU consistiu na melhoria dos dados relativos ao fluxo de matrículas de alunos da rede escolar, valendo-se de um discurso democratizante, preocupado com a inserção da força de trabalho juvenil, que podia amenizar (e não superar) o pauperismo. Apesar disso, o PJU revelou-se como um poderoso instrumento de construção do consenso pelo processo de inserção precária desses jovens no mundo do trabalho. Nesse sentido, o programa desempenhou um papel de construção de redes de sociabilidade entre alunos que viviam a mesma realidade, mas secundarizou o acesso aos conhecimentos construídos historicamente pela humanidade.
Na verdade, o programa reduziu-se a uma das muitas iniciativas implementadas por diferentes instrumentos legais orientados para a formação da força de trabalho simples com um alcance planejado junto aos jovens e voltado, basicamente, para a adaptação psicofísica, a fim de moldar novos comportamentos exigidos pela fase da acumulação flexível, que não abdica das marcas sociais da assistência social arraigadas nas políticas educacionais como uma das principais formas de gestão da pobreza para não deixar “os pobres zangados” diminuindo possíveis conflitos sociais.
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Recebido em: 21 de fevereiro de 2018. Aprovado em: 03 de maio de 2018. Publicado em: 21 de novembro de 2018.
Ricardo Afonso Ferreira de Vasconcelos2
Mário Lopes Amorim3
Este artigo pretende realizar uma reflexão sobre a relação entre o ciclo de expansão econômica neodesenvolvimentista dos governos petistas de Lula e Dilma Rousseff e a redefinição da oferta de cursos de qualificação profissional por intermédio da criação e implementação do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC), criado no primeiro governo de Dilma, através da Lei nº 12.513/2011, cujo objetivo seria garantir a expansão da formação profissional massiva de trabalhadores, atendendo as demandas de um suposto “apagão” de mão de obra qualificada. Prioriza-se a discussão envolvendo o perfil de qualificação presente nos cursos do PRONATEC.
Este artículo pretende realizar una reflexión sobre la relación entre el ciclo de expansión económica del nuevo desarrollo de los gobiernos petistas de Lula y Dilma Rousseff y la redefinición de la oferta de cursos de cualificación profesional por intermedio de la creación y implementación del Programa Nacional de Acceso a la Enseñanza Técnica y Empleo (PRONATEC), creado en el primer gobierno de Dilma, a través de la Ley nº 12.513 / 2011, cuyo objetivo sería garantizar la expansión de la formación profesional masiva de trabajadores atendiendo las demandas de una supuesta escasez de mano de obra cualificada. Se prioriza la discusión envolviendo el perfil de calificación presente en los cursos del PRONATEC.
Este artigo pretende contribuir para a análise e avaliação do PRONATEC - Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego, abordando os
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i30.p10090
2 Doutor em Tecnologia e Sociedade (UTFPR). Docente do Instituto Federal do Pará (IFPA)- Campus Belém. afonsoricardo2@hotmail.com
3 Doutor em Educação pela USP. Docente do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE) da UTFPR. marioamorim@utfpr.edu.br
aspectos relacionados à sua gênese, estruturação e concepção. Considera-se o PRONATEC como uma alternativa formulada pelo Governo Federal para o atendimento da demanda de ampliação dos cursos de qualificação profissional dos trabalhadores, logo inserido no debate das políticas públicas de Educação Profissional.
O governo Lula ensejou uma importante mudança no modelo de relação entre a educação básica e a educação profissional, a partir do Decreto nº 5.154/2004. Este decreto possibilitou a sobrevivência da forma concomitante na Educação Profissional, e a partir da referida legislação foi concebido o PRONATEC no início do governo de Dilma Rousseff, como uma alternativa para o atendimento das demandas de força de trabalho exigidas pela nova fase de expansão econômica desenvolvimentista, desencadeada na gestão presidencial de Lula (2003-2010).
O texto inicia-se com uma caracterização do neodesenvolvimentismo nos governos petistas (2003-2016). Em seguida, relacionam-se os princípios norteadores do PRONATEC com os ditames das políticas neoliberais e da economia globalizada. Posteriormente, será analisado o PRONATEC enquanto programa de qualificação de trabalhadores, baseado na lógica da empregabilidade. Por fim, encerra-se o texto com as Considerações Finais.
O Ministro da Fazenda Antônio Palocci, pertencente à corrente dos moderados do PT e com boa aceitação no meio empresarial e financeiro, tomou as seguintes medidas econômicas no início do primeiro governo Lula:
Nomeou para o cargo de presidente do Banco Central o ex- presidente mundial do Bank Boston, Henrique Meirelles, mantendo, inicialmente, todo o restante da Diretoria anterior, em claro sinal de continuidade.
Anunciou as metas de inflação para 2003 e 2004, de 8,5% e 5,5%, respectivamente, que implicavam um forte declínio em relação à taxa efetivamente observada em 2002, reforçando a política anti-inflacionária.
Elevou a taxa de juros básica (Selic) nas reuniões do Comitê de Política Monetária (Copom), mostrando que isso não era mais um “tabu” para o PT.
Definiu um aperto da meta de superávit primário, que passou de 3,75% para 4,25% do PIB em 2003.
Ordenou cortes do gasto público, para viabilizar o objetivo fiscal, deixando de lado antigas promessas de incremento do gasto [...] (GIAMBIAGI, 2011, p. 206-207).
Resumidamente, durante a gestão de Palocci no Ministério da Fazenda, prevaleceram as diretrizes de continuidade do processo de estabilização fiscal e monetária vigentes no governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Todavia, a substituição de Antônio Palocci por Guido Mantega em 2006 no comando do Ministério da Fazenda representou uma importante mudança na condução dos rumos da economia do país, pois, segundo Giambiagi (2011, p. 215):
[...] a taxa de variação real do gasto público teve um aumento expressivo em relação à média dos dois primeiros anos de governo [...];
[...] observou-se uma tendência a um afrouxamento dos superávits primários;
[...] o Ministério da Fazenda passou a divergir claramente em várias ocasiões do Banco Central acerca da condução da política monetária;
[...] foram abandonados os estudos que a área econômica vinha fazendo desde 2005, destinados a elaborar um plano de longo prazo visando maior contenção do crescimento da despesa, para atacar de modo mais vigoroso o desequilíbrio fiscal;
[...] houve um aumento substancial da importância e do papel do BNDES na economia [...].
Porém, a grande mudança ocorrida durante a gestão de Guido Mantega se refere a intensificação da política de transferência de renda via programas governamentais, aliado ao forte estímulo ao consumo das famílias. Consequentemente, o “[...] consumo maior tornou-se a base do evidente sentimento de bem-estar da maioria da população e, por extensão, do eleitorado” (GIAMBIAGI, 2011, p. 221).
Efetivamente, durante o governo de Lula ocorreu uma recuperação do crescimento econômico e do investimento, proporcionando crescimento do emprego. Também o ajuste monetário e fiscal diminuiu a dívida líquida do setor público, e no plano externo “[...] as reservas atingiram 290 bilhões de dólares em 2010 e a dívida externa tornou-se negativa” (GIAMBIAGI, 2011, p. 229). Este novo cenário estimulou a crença de que o país estava retomando o caminho do crescimento econômico, fomentando o início do ciclo neodesenvolvimentista.
Avaliando o ciclo neodesenvolvimentista lulo-petista, Bresser-Pereira (2015) considera que o governo do PT representou uma decepção, uma vez que não conseguiu concretizar a retomada do crescimento, apesar de ter propiciado a inclusão social e a redução do histórico processo de desigualdade social:
Abria-se a oportunidade para que o desenvolvimento econômico fosse retomado, mas não foi isso que aconteceu. O governo do PT foi social-desenvolvimentista, mas, afinal, esse desenvolvimentismo malogrou: não logrou a retomada do desenvolvimento, nem logrou constituir uma coalizão de classes desenvolvimentista associando a burguesia industrial aos trabalhadores e à burocracia pública. Seu grande mérito foi o da inclusão social, que ocorreu graças ao forte crescimento do salário mínimo e à ampliação da política de transferência de renda; foi haver logrado a transferência de uma importante parcela da população para o consumo de massas, e, assim, reduzir a desigualdade existente no país (BRESSER-PEREIRA, 2015, p. 103).
O referido insucesso se deveu primeiramente a não resolução do problema do câmbio, uma vez que, “o governo Lula recebeu do governo anterior uma taxa de câmbio altamente depreciada (o que é uma benção), mas foi irresponsável ao deixar que ela se apreciasse nos oito anos de seu governo” (BRESSER- PEREIRA, 2015, p. 103). O segundo motivo do malogrado desenvolvimentismo lulo-petista diz respeito ao crescimento vinculado à valorização das commodities, uma vez que:
Em seu governo houve um breve período de bom crescimento empurrado pelo aumento do preço das commodities exportadas (um boom), mas assim que os exportadores de manufaturados se organizaram para importar (o que demora em média três anos), as indústrias, que haviam deixado exportar no governo, mas ainda conservavam o mercado interno, o perderam para os importadores (BRESSER-PEREIRA, 2015, p. 104).
Apesar da retomada do crescimento econômico durante o governo Lula, ancorado especialmente pela expansão do setor de commodities, o estudo de Gonçalves (2013) sustenta a tese de que o processo de expansão econômica deste período correspondeu a uma modalidade de “nacional-desenvolvimentismo com sinal trocado”, também denominado de “nacional-desenvolvimentismo às avessas”, visto que a conduta do governo, o desempenho da economia e as
estruturas de produção, comércio exterior e propriedade, caminharam no sentido contrário do modelo nacional-desenvolvimentista. Para Gonçalves (2013, p. 109), “[...] dentre os méritos ou pontos fortes do Governo Lula, não se encontram grandes transformações, reversão de tendências estruturais e políticas desenvolvimentistas”. Ou seja, o NADA (Nacional-Desenvolvimentismo às Avessas) do referido governo manteve a desindustrialização, dessubstituição das importações, reprimarização, maior dependência tecnológica, desnacionalização, perda de competitividade internacional, crescente vulnerabilidade externa estrutural, maior concentração de capital e dominação financeira. Mas talvez o mais importante elemento componente desse desenvolvimentismo às avessas, segundo o referido autor, seja a tendência futura de maior vulnerabilidade da economia do país em relação ao contexto mais geral do capitalismo global:
Na medida em que o Governo Lula implementou o MLP3, ou seja, o ND4 com sinal trocado, reduziu-se a capacidade estrutural do Brasil de resistir às pressões, fatores desestabilizadores e choques externos [...]. Em consequência, lançou-se o país em trajetória de longo prazo de instabilidade e crise no contexto de crescente globalização econômica. Durante o governo Lula foram cometidos erros estratégicos que comprometem estruturalmente o desenvolvimento do país no longo prazo (GONÇALVES, 2013, p. 110).
O estudo de Alves (2014) a respeito do significado sócio histórico do neodesenvolvimentismo lulista considera-o como um novo padrão de expansão capitalista. Para Alves (2014) o ciclo neodesenvolvimentista da década de 2000, foi a expressão de uma modernidade hipertardia que substituiu o governo de tendência neoliberal de Fernando Henrique. Logo, a “eleição de Lula da Silva pelo PT significou a necessidade de construção de um modelo de desenvolvimento capitalista, não mais orientado pelos parâmetros neoliberais” (ALVES, 2014, p. 130-131). No entanto, na avaliação de Alves o governo de Lula foi incapaz de romper com o núcleo duro da economia neoliberal, e por isso manteve seus pilares, sinalizando já na época da campanha eleitoral de 2002, através da Carta aos Brasileiros, que se manteria alinhado com o bloco hegemônico no mercado mundial. Para este autor, “o objetivo do novo governo pós-neoliberal era
3 Modelo Liberal Periférico.
4 Nacional-Desenvolvimentismo.
reorganizar o capitalismo no Brasil e não aboli-lo. Enfim, promover um choque de capitalismo nos moldes pós-neoliberais” (ALVES, 2014, p. 131).
Ainda segundo Alves (2014, p. 140), o neodesenvolvimentismo lulo-petista se apresentou como uma alternativa de projeto reformista hipertardio, no qual ocorreu o “amesquinhamento irremediável da ideologia socialdemocrata”. Pragmaticamente tal neodesenvolvimentismo representou uma modalidade de reformismo fraco que promoveu um choque de capitalismo, buscando conciliar elementos de inclusão e exclusão inerentes ao desenvolvimento capitalista em nosso país:
[...] o neodesenvolvimentismo como reformismo fraco que impulsiona o choque de capitalismo, não deixa de conter o seu tom farsesco, uma dimensão trágica – ele impulsiona à exaustão, contradições vivas do desenvolvimento capitalista no Brasil. Por um lado, assume a tarefa histórica de combater a pobreza extrema e promover a inclusão do subproletariado no mercado de trabalho formal, realizando, deste modo, o sonho do consumo dos trabalhadores da massa marginal; por outro lado, preserva os pilares do modo de desenvolvimento social excludente do capitalismo histórico no Brasil incentivando a centralização e concentração do capital oligopólico na condição histórico-mundial da senilidade capitalista como modo de desenvolvimento civilizatório (ALVES, 2014, p. 140).
Em resumo, é possível afirmar que o modelo neodesenvolvimentista dos governos Lula e Dilma, apesar da retomada do crescimento econômico, constituiu-se numa espécie de “desenvolvimentismo às avessas”, uma vez que não representou uma ruptura decisiva e efetiva em relação ao modelo neoliberal herdado dos governos de FHC.
Quando examinamos as motivações econômico-sociais, político- ideológicas e institucionais que contribuíram para a concepção do PRONATEC, percebemos que, além das demandas por mão de obra qualificada ligada à fase de expansão econômica neodesenvolvimentista iniciada no governo Lula, concorreu para a concepção e implementação da referida política educacional as vinculações desta com a lógica hegemônica da globalização e dos princípios do
Estado neoliberal. Logo, torna-se necessária a discussão em torno desses dois elementos reguladores das políticas públicas a partir de seus paradigmas.
As últimas décadas do século XX viram surgir uma nova realidade socioeconômica no cenário mundial – a sociedade global. Com a globalização, ocorreram mudanças estruturais que afetaram diretamente o papel do Estado e também os paradigmas que nortearam a estruturação das políticas públicas de educação:
O Estado-Nação perde importância, novos espaços são desenhados, novas redes de poder são articuladas, novas racionalizações elaboradas, novas dialéticas surgem: o nacional, o regional, o local são colocados a serviço do novo modelo econômico global transnacional e transcultural (GAMBOA, 2009, p. 95-96).
O estudo de Gamboa (2009, p. 96) argumenta que a Globalização, ao mesmo tempo em que provoca o processo de esvaecimento do Estado-Nação, inversamente estimula o surgimento de “[...] um poderoso Proto-Estado-Global que representa os interesses da nova divisão de classes da sociedade global”. Esta nova instância de poder no nível internacional apresenta elementos constitutivos tais como, “[...] o Conselho de Seguridade, O Grupo G-7, a OTAN5, o GATT6, o FMI7, o BM8 etc.” (STEFAN, 1995 apud GAMBOA, 2009, p. 96).
O fortalecimento do referido Proto-Estado-Global também se deu à custa da quebra das fronteiras nacionais. Neste novo cenário, “o dinheiro volátil ficou livre”, bem como, o “[...] sistema financeiro internacional e o fluxo de capital financeiro emanciparam-se do controle dos bancos nacionais” (GAMBOA, 2009, p. 97.
O estudo de Teodoro (2011), focado essencialmente no tema da educação na atual fase da globalização de feição neoliberal, argumenta que os sistemas de educação de massa, iniciados na transição do século XVIII para o século XIX, ensejaram o perfil de uma escola que se tornou um espaço de “integração social e de formação para o trabalho” (TEODORO, 2011, p. 11). Sendo assim, surgiu o processo de massificação dos sistemas de educação, que conduziu a uma
5 Organização do Tratado do Atlântico Norte.
6 General Agreement on Tariffs and Trade. Em português: Acordo Geral de Tarifas e Comércio.
7 Fundo Monetário Internacional.
8 Banco Mundial.
mudança na forma de escola, no sentido de escolarizar os jovens com dificuldades sociais ou de aprendizagem, o qual o referido autor denomina de “a escola para todos” (TEODORO, 2011, p.11-12).
Não obstante tenha representado um avanço no contexto das sociedades democráticas, o paradigma do sistema de educação de massas experimenta, na atualidade, uma dupla crise, que Teodoro (2011, p. 12) define como sendo:
[…] de regulação, porque não cumpre, em muitas situações, o seu papel de integração social e de formação para as novas exigências da “economia do conhecimento”; e de emancipação, porque não produz a mobilidade social aguardada por diversas camadas sociais para quem do status alcançado a frequência da escola, sobretudo nos seus níveis superiores, constituía o melhor meio de ascensão social, ou de reprodução.
O estudo de Teodoro (2011, p. 12) também indica que esta crise da escola envolve “baixos resultados escolares, deficiente inserção profissional e fraca capacidade de socialização” desembocando naquilo que o referido autor denomina de verdadeira “epidemia política” (BALL, 2000 apud TEODORO, 2011), qual seja: as reformas da educação, fenômeno que atingiu diversos países e governos, impulsionado por poderosos agentes econômicos, como por exemplo, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Essas reformas da educação “[...] tornaram-se uma obsessão dos governos. Três palavras chaves passaram a dominar esse discurso reformador a partir dos anos 1990: competitividade, accountibility (prestação de contas) e performatividade” (TEODORO, 2011, p. 13).
A crise da escola, inserida no contexto da Globalização, remete à questão do papel que esta desempenha na nova divisão social do trabalho. Gamboa (2009, p. 98) sustenta que: “A educação, atrelada que está aos interesses dominantes na sociedade global, parece redefinir seu papel de formulador do homo faber para essa nova fase do capitalismo”. Para tanto, é frequentemente reeditada a Teoria do Capital Humano.
A Teoria do Capital Humano, elaborada por Becker e Schultz no final da década de 1950, tornou-se uma ferramenta que serviu para ampliar o debate em torno da relação entre Escola e Capitalismo nas últimas décadas. Os teóricos
ligados ao Capital Humano advogam a ideia de que investimentos em educação dão retorno em forma de benefícios individuais e sociais:
De acordo com a teoria do capital humano (SCHULTZ, 1962; 1973), o trabalho qualificado passa a ser capital acumulado e sua contribuição no processo produtivo é remunerada de forma correspondente àquela atribuída ao capital que participa do processo produtivo sob a forma de máquinas, equipamentos etc. assim, um trabalhador qualificado recebe mais, porque a sua remuneração, relativamente ao trabalhador não-qualificado, representa também o pagamento à contribuição do capital humano que o trabalho qualificado incorpora [...] Ao assumir uma suposta correlação direta e positiva entre desenvolvimento de salários e inversão em educação, a teoria do capital humano colocou em destaque a importância dos investimentos em educação e capacitação [...] (LIMA FILHO, 2003, p. 69).
Concernente ao vínculo entre educação, capacidade de trabalho e de produção, Frigotto (2003, p. 41) explicita de forma mais detalhada a lógica de fundamentação da Teoria do Capital Humano:
A ideia-chave é de que a um acréscimo marginal de instrução, treinamento e educação, corresponde a um acréscimo marginal de capacidade de produção. Ou seja, a ideia de capital humano é uma “quantidade” ou um grau de educação e de qualificação, tomado como indicativo de um determinado volume de conhecimentos, habilidades e atitudes adquiridas, que funcionam como potencializadoras da capacidade de trabalho e de produção. Desta suposição deriva-se que o investimento em capital humano é um dos mais rentáveis, tanto no plano geral do desenvolvimento das nações, quanto no plano da mobilidade individual.
Frigotto (2003, p. 41) sustenta também que a “[...] disseminação da Teoria do Capital Humano, como panaceia da solução das desigualdades entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos […] foi rápida nos países latino-americanos e de Terceiro Mundo”. Isto se explica pela ação de organismos internacionais, como por exemplo, BID, OIT, UNESCO, FMI, e também de organismos regionais, como o caso da CEPAL, sendo que tais organismos representam claramente a visão e os interesses do grande capital.
No Brasil, a Teoria do Capital Humano influenciou intelectuais da área econômica, tais como Mário Henrique Simonsen e Carlos Langoni. No caso de Simonsen, Frigotto (2003, p. 42) afirma que este “[…] pregava ao mundo que o Brasil tinha encontrado seu caminho para o desenvolvimento e eliminação das
desigualdades […] pela equalização do acesso à escola e pelo alto investimento em educação”. Frigotto (2003) exemplifica o caso do MOBRAL, que foi a obra criada e deixada como legado de Simonsen.
No caso de Carlos Langoni, Lima Filho (2003, p. 70) destaca o estudo deste economista publicado em 1974, sob o título As causas do crescimento econômico do Brasil, no qual o referido autor “[...] analisa a correlação entre o nível de qualificação da força de trabalho e o crescimento econômico nacional no período entre 1940 e 1970 concluindo pela consistência dos pressupostos da teoria do capital humano […]”.
No que se refere à relação Estado-Neoliberalismo-Globalização, Teodoro (2011) elaborou o perfil do Estado Neoliberal a partir da análise feita por Harvey (2005), considerando que o neoliberalismo se assenta sobre as seguintes bases:
a) favorecimento do direito de propriedade; b) estímulo ao livre funcionamento dos mercados e do comércio livre; c) defesa da propriedade privada. Teodoro (2011) também argumenta que os teóricos do neoliberalismo nutrem uma desconfiança em relação à democracia, preferindo formas de organização de governo mais elitistas e restritivas de ampla base popular:
Em geral, preferem formas de governo conduzidas por elites e tecnocratas, baseadas em executivos fortes e em instituições autônomas da decisão democrática dos parlamentos, como o banco central e as instituições reguladoras. O direito e a lei, quando estão conformes seus interesses, têm um papel central na teoria neoliberal. Todas as soluções e remédios devem ser procurados, individualmente, no sistema legal (TEODORO, 2011, p. 63-64).
O estudo de Castanho (2009, p. 28), por sua vez, identifica posturas inerentes ao neoliberalismo, diretamente vinculadas ao advento do capitalismo de feição monopolista, “[...] pós-industrial, de hegemonia financeira e de globalização em escala transnacional”. Tais posturas, identificadas pelo referido autor, se referem especificamente ao papel do Estado, ao controle dos gastos e controle da moeda, à relação Estado-sindicatos e ao estímulo à taxa de lucros das empresas:
restrição ao poder ‘excessivo’ do movimento operário e do sindicalismo, pressionando as empresas por salários e o Estado por políticas sociais; b) manutenção do Estado forte apenas para conter os sindicatos e controlar a moeda; c) no mais, minimização
do Estado quanto a investimentos na economia e em política social; d) disciplina orçamentária; e) restauração da taxa ‘natural’ de desemprego e recriação do ‘exército de reserva’ de trabalhadores; f) estabilidade monetária; g) restauração da taxa de lucro das empresas restituídas à competitividade via produtividade (CASTANHO, 2009, p. 28).
Castanho (2009), por conseguinte, aponta para o redimensionamento do papel do Estado a partir dos ajustes neoliberais e do avanço do processo de Globalização, atingindo os países centrais e a periferia do capitalismo, como no caso da América Latina.
No caso do estudo de Rodriguez (2009), que trata da questão do processo de Globalização das políticas públicas no âmbito da América Latina, observa-se que as políticas educativas e reformas nos sistemas nacionais de educação, sob a influência do projeto político globalizante e neoliberal, passaram a desempenhar um papel relevante no sentido de legitimar a nova função e configuração subsidiária do Estado, num contexto de expansão dos setores privatistas, que passaram a ter maior participação na área educacional. Disso resultou a incorporação de novos paradigmas, que passaram a ser aplicados nos sistemas educacionais, oriundos da prática de gerenciamento empresarial e do setor privado.
A década de 1990 caracteriza-se por uma tendência de modernizar a gestão dos sistemas de educação pública, oferecer iguais oportunidades de acesso a uma educação de “qualidade com ‘equidade” e “eficiência” para todos, fortalecer a profissão docente, aumentar os investimentos em educação e adequar os sistemas nacionais de educação pública às necessidades do mercado (RODRIGUEZ, 2009, p. 220).
A referida autora destaca que essas “[...] reformas educacionais têm-se apoiado em quatro eixos fundamentais: a gestão, a equidade e qualidade, a capacitação dos professores e o financiamento”. (GAJARDO, 1999 apud RODRIGUEZ, 2009, p. 220).
No caso específico dos países da América Latina, o estudo de Rodriguez (2009, p. 221) mostra a expansão das reformas educacionais em consonância com o avanço do ideário neoliberal nesta região:
A maioria dos países da América Latina modificou as leis de educação, objetivando “reorganizar o sistema educativo” e torna-lo coerente com o projeto neoliberal global. Por exemplo, a Argentina promulgou em 1993 a Lei Federal de Educação. Do mesmo modo, o Chile – que muito cedo emoldou o sistema educativo aos “tempos modernos” – sancionou em 1990 a Lei Orgânica Constitucional; o México, em 1993, sancionou a Lei Geral de educação; a Colômbia, em 1994, sancionou a Lei Geral de Educação; também o Brasil promulgou uma Lei de Diretrizes e Bases (LDB), em 1996, entre outros.
Por recomendação dos organismos internacionais, os governos dos diversos países da região procuraram melhorar a cobertura dos sistemas educacionais, especialmente no que se refere “[...] ao aumento da matrícula escolar para o ensino fundamental” (RODRIGUEZ, 2009, p. 221). Estes organismos internacionais preconizam o desenvolvimento econômico para a região a partir de sua relação com a globalização.
As recomendações dos documentos dos organismos internacionais têm focalizado a necessidade de oferecer condições materiais para assegurar o processo de democratização no continente e evitar o aumento do número de pobres e excluídos como consequência da radicalização da “globalização” econômica, o que aponta a importância do desenvolvimento econômico na construção de uma sociedade com equidade (RODRIGUEZ, 2009, p. 221).
A questão da equidade aparece frequentemente como conceito nas legislações de reformas educacionais ocorridas nos países da região (Argentina, México, Colômbia, Brasil). Tal conceito surgiu nas reformas dos anos de 1990, em substituição ao conceito de igualdade:
Em verdade, até a década de 1980 as lutas sociais eram pela defesa da igualdade e gratuidade na educação. Entretanto, os reformadores dos anos de 1990 assumiram uma retórica que substituiu a noção de igualdade pela equidade, sendo que este conceito só serve como meio para justificar as desigualdades, dado que permite a introdução de regras utilitárias de conduta que correspondem à desregulação do Direito, possibilitando o tratamento diferenciado para os diferentes setores sociais (RODRIGUEZ, 2009, p. 223).
A qualidade da prestação do serviço educacional tornou-se outro importante eixo das reformas educacionais implementadas na América Latina tendo vinculação direta com a política de descentralização:
A “descentralização, a desregulação e a privatização dos serviços sociais” foram os instrumentos principais para melhorar a qualidade da prestação, mas também representaram um recurso de caráter econômico e político. As diferentes administrações centrais iniciaram uma redução de gastos e passaram a responsabilidade do setor educacional para os demais entes federados, deixando muitas vezes, de financiar adequadamente esse processo (RODRIGUEZ, 2009, p. 224).
Outro eixo fundamental relacionado às reformas educacionais ocorridas nos países da América Latina, diz respeito à questão da avaliação. As “[…] reformas educacionais nesses países apontam como eixos a qualidade e a avaliação, para assegurar a inserção dos sujeitos na sociedade e no mundo do trabalho de forma mais eficiente” (RODRIGUEZ, 2009, p. 225). Logo, manifesta- se um padrão geral dessas legislações educacionais no que se refere ao eixo da avaliação:
[...] a avaliação dos sistemas nacionais de ensino tem um objetivo de caráter punitório e classificatório. As instituições educativas são hierarquizadas, seguindo critérios eficienticistas, apesar de a avaliação ser apresentada como uma estratégia de melhoramento da qualidade de ensino (RODRIGUEZ, 2009, p. 226).
Convém ainda lembrar o aspecto da capacitação dos professores inserido no eixo avaliação. Nesse sentido, Rodriguez (2009, p. 226) ressalta esforços no sentido de medir a competitividade, tanto do sistema educacional, quanto de seus membros, incluindo aí mecanismos avaliativos tais como, “provas periódicas de idoneidade acadêmica e atualização pedagógica e profissional para os educadores”, como ocorre no Sistema Nacional de Avaliação da Educação, em funcionamento na Lei Geral de Educação colombiana.
Em termos de avaliação dos ganhos e perdas da educação na América Latina sob a hegemonia dos ajustes econômicos neoliberais, o estudo de Rodriguez (2009, p. 227) aponta para a permanência do atraso e da exclusão:
Durante a década de 1990, as reformas do Estado (econômicas, educativas, previdenciárias, trabalhistas, institucionais, entre outras) foram apresentadas especialmente pelos governos e organismos internacionais, como panaceias para todos os males. [...] Apesar dos avanços obtidos, os sistemas educacionais ainda não conseguem superar o atraso, tanto no rendimento escolar quanto na oferta de maiores oportunidades para amplos setores da sociedade latino-americana. Enfim, o setor educativo ainda é altamente excludente, já que 40% dos alunos abandonaram a escola antes de finalizar a educação básica.
No caso específico do Brasil, as reformas educacionais inspiradas nas diretrizes do projeto político global e no ajuste neoliberal ocorreram de forma mais sistemática ao longo dos dois governos de Fernando Henrique Cardoso.
Tratava-se de efetivar o ajuste recomendado pelos organismos internacionais mediante as políticas de desregulamentação, descentralização e privatização. Para isso era preciso reformar o Estado, definindo como sua função básica dar garantias às exorbitantes taxas de lucro do capital, internacional e nacional a ele associado, e, como consequência, mutilar os direitos sociais. Manteve, durante os oito anos de mandato o mesmo ministro da Fazenda, Pedro Malan – um competente quadro técnico brasileiro, até então trabalhando nos organismos internacionais (FRIGOTTO, 2006, p. 44).
Inspirado na lógica do mercado e disseminada pelos organismos internacionais, verifica-se a reafirmação e consolidação, na esfera das políticas públicas educacionais, do ideário do Estado Gerencialista, que se guia pelos princípios de racionalização e gestão de recursos, produtividade, avaliação, metas e objetivos.
Os discursos internacionais repetiam incansavelmente dois bordões: a) a importância da educação básica (no Brasil, reduzida à escola fundamental) para o novo padrão de desenvolvimento dos países periféricos e b) a necessidade de o Estado tornar-se menos provedor de financiamento e mais indutor de qualidade, por meio de diversos mecanismos de controle, tais como avaliações externas do sistema e a convocação dos pais e da sociedade para participação tanto do financiamento quanto da gestão escolar [...] Na verdade, o projeto visava a transformar as relações entre os sujeitos da cena escolar de forma que os pais e alunos se tornassem clientes e os professores e gestores assumissem o papel de prestadores de serviços, inserindo, assim, na escola a lógica do mercado (ZIBAS, 2005, p. 1070).
Em síntese, sob a inspiração dos paradigmas do neoliberalismo e do capitalismo mundializado, é possível depreender que noções como capital humano, descentralização, equidade, avaliação, empregabilidade e gerencialismo, foram introduzidas na concepção e operacionalização das políticas públicas de Educação e de qualificação profissional, como no caso específico do PRONATEC.
O ciclo do novo desenvolvimentismo dos governos petistas contribuiu para criar novas demandas relacionadas à formação profissional para o atendimento do setor produtivo nacional. Logo, a justificativa para a criação do PRONATEC, além do interesse político governamental, veio do setor empresarial, uma vez que o discurso a respeito da carência de mão de obra qualificada ganhou força no país:
Legitimou-se o Programa para o enfrentamento de um “problema” brasileiro, disseminado pelos meios empresariais, reforçado pelo governo e aceito por parte da sociedade civil: o da falta de mão de obra qualificada, como uma das causas principais do desemprego, desviando-se do real problema da baixa escolaridade dos trabalhadores brasileiros (SALDANHA, 2016, p. 187).
De acordo com Frigotto (2009), de tempos em tempos produz-se um vozerio reclamando do sistema educacional e de seus professores pela falta de profissionais qualificados, sendo que o mais recente surgiu ao final de 2007, em torno do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), cuja meta é o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) em aproximadamente 5% ao ano. Daí surgiu a expressão apagão educacional, “para se referir ao déficit de trabalhadores qualificados demandados nessa conjuntura.” (FRIGOTTO, 2009, p. 74-75).
Lançado no início do governo Dilma, o PRONATEC (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego) pretendeu ofertar “milhões de vagas até 2014 para a qualificação técnica e profissional de trabalhadores e de alunos do ensino médio, intensificando a expansão e interiorização das redes federal, estadual e privada [...]” (SALDANHA, 2012, p. 6).
Para a análise da dinâmica de concepção e implementação do PRONATEC, enquanto programa de massificação da qualificação profissional, observa-se que, mesmo tendo sido concebido em um período de crescimento econômico e de retomada da expansão da oferta de emprego, diretamente vinculado ao Neodesenvolvimentismo Lulo-petista, é possível identificar neste programa governamental uma nítida tendência: a qualificação para a empregabilidade. Por conseguinte, torna-se necessário discutir a relação sócio histórica entre empregabilidade e expansão do modo de organização toyotista.
O estudo de Alves (2007, p. 245) compreende o “[...] conceito de empregabilidade enquanto elemento ideológico disseminado pelo espírito do toyotismo”. Por sua vez, o referido autor, caracteriza o toyotismo como sendo:
[...] o modo de organização do trabalho e da produção capitalista adequado à era das novas máquinas da automação flexível, que constituem uma nova base técnica para o sistema do capital, e da crise estrutural de superprodução, com seus mercados restritos” (ALVES, 2007, p. 246).
Caracterizado como um modo de organização do trabalho, o toyotismo tende a exigir para o seu desenvolvimento, como a nova lógica da produção capitalista, “novas qualificações do trabalho que articulam habilidades cognitivas e habilidades comportamentais” (ALVES, 2007, p. 248).
Alves (2007, p. 248), com base na classificação proposta por Teixeira (1998), esquematiza essas novas qualificações do trabalho subdividindo-as em: “novos conhecimentos práticos e teóricos; capacidade de abstração, decisão e comunicação; e qualidades relativas à responsabilidade, atenção e interesse pelo trabalho”.
A análise de Alves (2007) considera que a noção de empregabilidade surgiu no cenário de transformações vinculadas a consolidação e desenvolvimento do toyotismo, tornando-se o centro de referência das diretrizes de formação profissional:
O conceito de empregabilidade é um dos conceitos significativos da lógica do toyotismo determinando o âmago das políticas de formação profissional. Ele tende a tornar-se um senso-comum nas ideologias de formação profissional no capitalismo global. Diz Pablo Gentili: “A empregabilidade se incorpora no senso comum
como significado que contribui a estruturar, orientar e definir as opções (ou a falta de opções) dos indivíduos no campo educacional e no mercado de trabalho, tornando-se também ‘a’ referência norteadora, o ‘dever ser’ dos programas de formação profissional e, inclusive, das próprias políticas educacionais” (GENTILI, 1998 apud ALVES, p. 250).
Da mesma forma, a empregabilidade tornou-se uma importante peça na engrenagem de funcionamento do capital global e das diretrizes ideológicas dos diversos governos de tendência ideológica neoliberal e da socialdemocracia:
É por isso que a mundialização do capital tende a disseminar, como eixo estruturador de sua política de formação profissional, o conceito de empregabilidade, que aparece, com relativo consenso, nos discursos de neoliberais ou socialdemocratas, como requisito básico para superar a crise do desemprego (ALVES, 2007, p. 251).
O estudo de Alves (2007) também considera que o conceito de empregabilidade pode ser também traduzido como um novo redimensionamento da lógica do Capital Humano, adaptada ao novo ambiente do capitalismo mundializado (globalizado):
A nova lógica da mundialização do capital significaria não o abandono da teoria do capital humano, que se disseminou na “época de ouro” do capitalismo, tendo em vista que sua concepção individualista ainda é adequada à hegemonia neoliberal, mas uma nova tradução da teoria do capital humano. É o conceito de empregabilidade que irá apresentar a nova tradução da teoria do capital humano sob o capitalismo global: a educação ou a aquisição (consumo) de novos saberes, competências e credenciais apenas habilitam o indivíduo para a competição num mercado de trabalho cada vez mais restrito, não garantindo, portanto, sua integração sistêmica plena (e permanente) à vida moderna. Enfim, a mera posse de novas qualificações não garante ao indivíduo um emprego no mundo do trabalho (ALVES, 2007, p. 253).
Alves (2007) conclui a sua análise desmistificando a ideia de que a expansão da formação profissional, com vistas à qualificação do trabalhador, pode garantir emprego no contexto da economia mundializada e neoliberal:
A ampliação de novas qualificações, por meio da extensão massiva da formação profissional, ao invés de garantir emprego a todos e a todas, cria, por um lado, a possibilidade do capital
afirmar (e perpetuar) a existência de homens e mulheres como instrumentalidades para si (como é o caso da lógica do treinamento profissional). Mas por outro lado, explicitar, de modo candente, as contradições do sistema sócio metabólico do capital (ALVES, 2007, p. 255-256).
No Brasil, o processo de reestruturação produtiva e a expansão do modo de organização toyotista ganharam impulso com a expansão do neoliberalismo no governo de FHC. No entanto, foi durante a década de 2000, sob efeito do neodesenvolvimentismo do governo de Lula, e apesar do crescimento das taxas de emprego, que a reestruturação produtiva avançou junto com o processo de precarização do trabalho e do emprego. Neste sentido, Alves (2014, p. 166) afirma que:
Apesar da redução do desemprego e aumento da formalização no mercado de trabalho, preserva-se no Brasil neodesenvolvimentista, profundos traços de precariedade salarial historicamente estrutural no país, como, por exemplo, as altas taxas de rotatividade e crescimento das terceirizações (por exemplo, em 2000, o Brasil tinha cerca de 3 milhões de trabalhadores terceirizados; em 2013, tem cerca de 15 milhões e, segundo estimativas, em 2020, terá cerca de 20 milhões.
Assim, mesmo considerando que houve crescimento do emprego formal durante o governo de Lula, há que se considerar o fato de que o avanço da reestruturação produtiva em nosso país, ao longo da década de 2000, expandiu a forma de organização/produção toyotista. Da mesma forma, o perfil do mercado de trabalho nacional foi afetado pelo avanço da precariedade e das terceirizações. E qual o reflexo dessa deterioração e precarização do emprego/trabalho sobre as políticas de qualificação profissional, como no caso do PRONATEC?
Nesses tempos de Globalização e de reestruturação produtiva, segundo Del Pino (2002, p. 79), difunde-se no imaginário das classes trabalhadores a crença de que “[...] mediante as diferentes modalidades […] de formação, todos se tornarão empregáveis. É ingênuo acreditar que é possível corrigir as distorções do mercado em função da qualificação dos trabalhadores e trabalhadoras”. Sendo assim, para este autor a relação entre escola e qualificação funciona sob outra lógica:
Não é a escola que define o posto que o homem ou a mulher irão ocupar na produção. Ao contrário, muitas vezes o lugar que a família do aluno ou da aluna ocupa na produção é que acaba levando o/a aluno/a para um determinado tipo de escola. Portanto, não é possível resolver a crise de emprego dentro da escola (DEL PINO, 2002, p. 79).
Dentro da lógica dominante do capital global/neoliberal, “[...] os desempregados é que ficam com a responsabilidade de buscar requalificação e reconversão profissional, a fim de tornarem-se empregáveis” (DEL PINO, 2002, p. 80). Na dinâmica da reestruturação produtiva, a escola assume o papel de disseminadora do discurso da empregabilidade:
No interior da escola e dos cursos de requalificação têm de ser desenvolvidas as relações que permitem fazer com que alunos/as e professores/as pensem e sintam que todos se tornarão empregáveis. O discurso da empregabilidade afirma que a requalificação pode gerar as condições de se chegar ao emprego (DEL PINO, 2002, p. 80).
A questão fundamental por trás do discurso da empregabilidade é que, no contexto da produção enxuta, com trabalho flexível e polivalente, inerentes à organização toyotista, não há emprego para todos os trabalhadores. Por isso, reforça-se a ideia da competitividade, pela qual “nem todos serão vencedores” no cenário de um mercado de trabalho competitivo, cabendo à escola a função de selecionar para o emprego (DEL PINO, 2002, p. 80-81).
Para Gentili (2013, p. 89), o aumento da pobreza, da desigualdade social e do desemprego, ligado às décadas de crise global, puseram fim à ideia de se pensar “[...] no mercado de trabalho, como uma esfera de expansão ilimitada, simplesmente porque nele não poderia haver espaço para todos”. Consequentemente:
Educar para o emprego levou ao reconhecimento (trágico para alguns, natural para outros) de que se deveria formar também para o desemprego, numa lógica de desenvolvimento que transformava a dupla “trabalho/ausência de trabalho num matrimônio inseparável” (GENTILI, 2013, p. 89).
Para este autor, as décadas de crise global também produziram uma nova esperança diante da “[...] natureza estruturalmente excludente dos novos tempos:
a empregabilidade” (GENTILI, 2013, p. 89). E a esperança da empregabilidade redimensionou o propósito das políticas educacionais:
Mais do que pensar a integração dos trabalhadores ao mercado de trabalho, o desenho das políticas educacionais deveria orientar-se para garantir a transmissão diferenciada de competências flexíveis que habilitem os indivíduos a lutar nos exigentes mercados laborais pelos poucos empregos disponíveis (GENTILI, 2013, p 89).
A ideia da empregabilidade também redimensiona o papel da escola, reduzindo-a a função de viabilizar e instrumentalizar a preparação da competência empregatícia dos alunos, que devem ser qualificados para o cenário de limitada inserção que o mercado oferece:
Na era do fim dos empregos, só a competência empregatícia flexível do indivíduo pode garantir acesso no mundo das relações laborais (RIFKIN, 1996). E essa competência deverá ser procurada na escola, embora não exclusivamente. Uma escola esvaziada de funções sociais, onde a produtividade institucional possa ser reconhecida nas habilidades que os seus clientes- alunos disponham para responder aos novos desafios de um mercado altamente seletivo impõe (GENTILI, 2013, p. 89-90).
O que se observa nos programas de qualificação/requalificação profissional, tal qual o PRONATEC, é que tendem a formar para a empregabilidade, o que não garante o emprego e direciona para a informalidade e para funções e postos de trabalho precarizados.
No caso do PRONATEC, a sua criação foi justificada a partir da premissa de se promover a aproximação entre o processo de formação profissional e o mundo do trabalho. Por isso, na primeira versão do Guia PRONATEC FIC apresentada no Portal PRONATEC, foram disponibilizados “[...] 518 opções de cursos, distribuídos em 13 eixos tecnológicos, conforme suas características científicas e tecnológicas” (PORTAL PRONATEC, 2016). Também na referida apresentação, é anunciado que o MEC considera como finalidade/objetivo do Guia PRONATEC, contribuir “[...] para a consolidação de uma política pública que tem como objetivo principal aproximar o mundo do trabalho do universo da Educação” (PORTAL PRONATEC, 2016).
O discurso governamental de Dilma Rousseff, durante a cerimônia de lançamento do PRONATEC, justificou a expansão da oferta de formação profissional, objetivando atender às demandas de crescimento da economia:
Estamos, hoje, próximos do pleno emprego e enfrentamos grande demanda de mão de obra qualificada. Demanda, muitas vezes, assimétrica porque, em alguns casos, falta mão de obra qualificada, em outros, sobra mão de obra sem a qualificação necessária derivada das nossas necessidades, da indústria, do comércio, dos serviços, enfim, do sistema produtivo [...]. Nesse sentido, eu lanço hoje aqui o Pronatec [...] (BLOG DO PLANALTO, 28/04/2011).
O esforço do Governo Federal seria no sentido de tornar o PRONATEC uma eficiente ponte de ligação entre a capacitação profissional da massa trabalhadora e os interesses do mercado capitalista de trabalho.
O Pronatec vai, portanto, ser um fator de organização da oferta de formação e capacitação profissional para todos os brasileiros e brasileiras. Esse programa, ele vai além da esfera do ensino médio e inclui diferentes vertentes de aprimoramento dos trabalhadores ativos e de articulação com o mercado de trabalho. (BLOG DO PLANALTO, 28/04/2011).
Não obstante o interesse governamental no sentido de garantir a eficiência da capacitação profissional via cursos do PRONATEC, devem ser considerados três princípios elementares desse programa governamental que comprometem a qualidade e o rendimento dos cursos ofertados: a) a noção de qualificação com foco nas competências; b) a predominância de cursos na modalidade concomitante; c) a predominância de cursos de curta duração.
O primeiro desses princípios tem a ver com a noção de qualificação com foco no desenvolvimento de competências. Consequentemente, a qualificação volta-se para a finalidade de garantir a empregabilidade:
A qualificação enquanto competência, se apresenta como proposta de formação para o desemprego. Uma qualificação que promove a criação de exército de trabalhadores de reserva, ao mesmo tempo que fomenta um novo mercado de consumo, por meio de cursos de qualificação técnica. A qualificação fragmentada dimensionalmente, foi reduzida apenas a uma dimensão técnica quando travestida pela noção de competências. Perdeu a sua dimensão social ao ser incorporada pela sociedade
apenas como aquisição de noções técnicas (GERALDINO, 2015, p. 154).
Dessa forma, é possível afirmar que a predominância de cursos de 100, 200, 240 horas, presente no Guia PRONATEC de cursos FIC, segue a lógica de priorizar a aquisição de conhecimentos ou desenvolvimento de competências voltadas essencialmente para o “saber executar”. Portanto, isso significa “[...] que além de diminuir os conhecimentos, é preciso apresentá-los de forma operacional, ou seja, que tenham um sentido imediato, isto é, que sejam úteis e práticos” (MAUÉS, 2009, p. 301). Ressalta-se que a maioria desses cursos FIC PRONATEC ofertados se vincula ao setor de prestação de serviços, notadamente em expansão nos tempos atuais de reestruturação produtiva, com significativa utilização de mão-de-obra flexível e terceirizada.
Quanto à manutenção da dualidade no ensino e da fragmentação por meio de cursos concomitantes, condensados no Guia PRONATEC de Cursos FIC, deve-se considerar que a concomitância tende a reforçar na prática cotidiana a dualidade, ensejando a fragmentação entre conhecimento geral e conhecimento específico:
A oferta de cursos técnicos na forma concomitante é considerada como articulada ao Ensino Médio: os alunos realizam este em um estabelecimento de ensino público em determinado turno, mediante uma matrícula e, em outro turno e geralmente em instituição de ensino diferenciada, outra matrícula é efetuada para o curso técnico. A legislação educacional prevê convênio ou acordos de intercomplementaridade com planejamento e desenvolvimento de projeto pedagógico unificado para o EM e os cursos técnicos concomitantes. No entanto, de uma forma geral, o trabalho pedagógico conjunto não se desenvolve em torno de um projeto unificado, mas de currículos separados, realizados de forma que o conhecimento geral e o específico não se integram (GERALDINO, 2015, p. 185).
A predominância no PRONATEC de cursos sob o regime de concomitância é complementada pela disseminação, via Guia PRONATEC FIC, de cursos de curta duração. “A ênfase dada aos cursos de curta duração (Formação Inicial e Continuada) é, portanto, quase três vezes maior do que a quantidade de cursos de nível técnico” (JUNG; SILVA, 2014, p. 16). Por conseguinte, a qualidade desses cursos pode ser considera como duvidosa, servindo a outros interesses situados no campo da ideologia:
A quase totalidade dos cursos de curta duração suscita a dúvida sobre o tipo de formação que está sendo oferecida para esse público em tão diminuta carga horária. Como é possível observar, o público-alvo dos cursos de curta duração são os jovens e os trabalhadores pouco escolarizados, uma vez que para cursar o nível técnico é preciso estar cursando ou concluído o ensino médio. Depreende-se disso que a formação oferecida para esse público aproxima-se mais de uma estratégia de manutenção do consenso em torno da ideologia dominante do que de fato, uma educação que vise superar as contradições de classe até aqui apontadas (JUNG; SILVA, 2014, p. 17).
No contexto de consenso mencionado pelas autoras em torno da ideologia dominante, poderíamos situar também os interesses empresariais no aumento do exército de reserva, com base na aquisição de trabalhadores minimamente treinados e adaptados aos postos de trabalho, nos quais são requeridas atitudes comportamentais pautadas em novos saberes e competências.
Ainda em relação à preferência dada aos cursos de curta duração, Costa (2015) considera o aspecto da formação essencialmente voltada para o treinamento, bem como para o atendimento da demanda específica por habilidades relacionadas à produção de bens e consumo. Em contrapartida, a porcentagem de cursos com carga horária mais elevada corresponde a menos de um terço do total de cursos ofertados no PRONATEC:
O que se verifica, no período de 2011 e 2013, é a oferta de 3.957.759 vagas na modalidade FIC (ver tabela 7), que têm como característica a sua curta duração, que varia de 160 a 400 horas. Assim, é possível afirmar que proposta do PRONATEC de concentrar a oferta de vagas em cursos de curta duração se opõe aos interesses da classe trabalhadora por desenvolver atividades centradas no treinamento. Esta, no entanto, é uma tendência que se deveu a generalização do emprego diretamente produtivo da ciência, razão pela qual são estimuladas “atividades de formação técnico-profissional que visam ao desenvolvimento de habilidades específicas voltadas para sua aplicação direta na produção de bens e, mais contemporaneamente, de serviços” (NEVES e PRONKO, p. 28, 2008) […]. Em termos percentuais, considerando o total de vagas do PRONATEC previstas para o período de 2011 a 2013, constata-se que 70,05% destas concentraram-se em cursos na modalidade FIC […]. Por ouro lado, foram ofertadas apenas 29,95% ou 1.665.478 vagas em cursos técnicos, cuja duração mínima é de pelo menos 800 horas (COSTA, 2015, p. 95).
No mesmo sentido, Saldanha (2016) anuncia que a preferência de investimentos por parte do Governo Federal recai sobre os cursos da modalidade FIC, no geral de curta duração e de formatação concomitante, majoritariamente oferecidos pelo Sistema S em prejuízo da oferta de cursos técnicos por parte da rede federal de ensino:
[…] a oferta inicial dos cursos técnicos no PRONATEC correspondeu a menos de um terço em relação ao total dos cursos de qualificação, os denominados cursos de Formação Inicial e Continuada (FIC). Quase metade destes foi ofertada pelo Sistema S, voltados para a formação de mão de obra para o mercado. A expansão real do Programa, até 2014, deu-se nos cursos FIC, que correspondem ao dobro das matrículas dos cursos técnicos (BRASIL/MEC/SIMEC/SETEC, 2014), dando a continuidade à tendência histórica de formação para o trabalho simples no Brasil […] (SALDANHA, 2016, p. 292).
Há que se ressaltar a ostensiva presença das instituições que compõem o Sistema S como ofertantes de vagas no PRONATEC, tanto na transferência de recursos públicos para a iniciativa privada para formar a classe trabalhadora quanto na definição da concepção de formação proporcionada aos estudantes, ancorada na narrativa da empregabilidade e na teoria do capital humano.
Essa dinâmica de funcionamento do PRONATEC, de participação crescente do setor privado e com base na formatação de cursos concomitantes e de curta duração, faz parte de uma lógica maior e mais generalizante das políticas públicas e programas governamentais dos dias atuais, voltados para a reprodução da empregabilidade e da precariedade dos postos de trabalho, reproduzindo preceitos do neoliberalismo e das tendências hegemônicas do capitalismo global.
É possível afirmar que o PRONATEC, inserido no contexto de predominância do modelo de acumulação flexível, de reestruturação produtiva e de mundialização/globalização do capital e de hegemonia neoliberal, foi concebido como alternativa imediatista de resposta às novas demandas do ciclo de expansão econômica neodesenvolvimentista, iniciado no governo Lula, e que entrou em crise no final do primeiro governo de Dilma Rousseff. Também se deve
considerar que o PRONATEC representa a reafirmação do receituário neoliberal, já que reproduz, em sua dinâmica de concepção e funcionamento, os preceitos de empregabilidade e de dualidade no ensino, por meio da estruturação de cursos sob o regime de concomitância. Sendo assim, prioriza a oferta de cursos de curta duração, que tendem a fornecer formação precária para postos de trabalho precarizados, reduzindo as perspectivas de formação de cidadãos críticos, bem como o acesso democrático ao amplo conhecimento. Em contrapartida, privilegia essencialmente a geração e reprodução de uma grande massa de produtores- consumidores, para que se encaixem no modelo vigente de organização toyotista e de capitalismo neoliberal.
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Recebido em: 27 de fevereiro de 2018. Aprovado em: 23 de abril de 2018. Publicado em: 21 de novembro de 2018.
Jaqueline Pereira Ventura2 Ludmila Lustosa Lessa3 Samantha Castro V. de Souza4
Este estudo objetiva analisar o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), especialmente a sua iniciativa Bolsa-Formação, tomando por base os documentos oficiais do programa no período entre 2011 e 2013. Apresenta o que é e como está estruturado o Pronatec, bem como sua amplitude e seu alcance. Discute, também, as implicações políticas do tipo de qualificação profissional priorizada nesse programa com o esforço de análise de seus limites e suas contradições. O texto conclui que as ações do Pronatec intensificam o processo de privatização da formação do trabalhador.
Este estudio busca analizar el Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), en especial su iniciativa Bolsa-Formação, con base en los documentos oficiales del programa en el período desde 2011 hasta 2013. Esta producción presenta qué es y cómo se estructura el Pronatec, así como su extensión y su alcance. Se discuten, también, las implicaciones políticas del tipo de calificación profesional que se prioriza en ese programa con un esfuerzo de análisis de sus límites y sus contradicciones. El texto concluye que las acciones del Pronatec intensifican el proceso de privatización de la formación del trabajador.
A história da educação, nos países capitalistas, é caracterizada pela dualidade estrutural da educação, que traça trajetórias escolares diferenciadas
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i30.p10091
2 Doutora em Educação. Professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós- Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF).
3 Pedagoga. Professora da rede pública municipal de São Gonçalo/RJ. Mestranda em Educação pela Universidade Federal Fluminense na Linha Trabalho e Educação.
4 Mestre em Educação. Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Pará na Linha Políticas Públicas Educacionais.
segundo a classe social. No Brasil, essa dualidade se caracterizou por uma formação mais acadêmica e intelectual, destinada às elites, e uma formação mais profissional voltada aos trabalhadores, ainda que em níveis diferenciados de preparação da força de trabalho4.
Na implementação de qualquer projeto educacional (abrangente ou restrito, local ou nacional), a disputa entre projetos antagônicos de sociedade está presente, e o seu desenrolar depende da correlação de forças do Estado ampliado5.
As reformas da educação básica na década de 1990 são um marco na implantação e na implementação das políticas neoliberais no Brasil. Essas políticas foram conduzidas no país sob o engodo do caminho único para a inserção competitiva na economia mundial globalizada. Na realidade, elas restabeleceram, sob novos marcos, a relação de subordinação do país ao capital- imperialismo. E, internamente, construíram e fortaleceram uma sociabilidade fundada num critério único de eficiência, os ditames do mercado: abertura econômica, competitividade e lucratividade.
Com o objetivo de (con)formar atitudes, capacidades, habilidades e competências no conjunto da força de trabalho brasileira, duas características centrais marcaram as reformas educacionais conduzidas pelo viés neoliberal desses organismos multilaterais6: a educação dirigida à formação para o trabalho simples e a educação dirigida à gestão da pobreza (OLIVEIRA, 2000).
4 O presente texto é constituído por parte de ideias desenvolvidas em VENTURA; LESSA; SOUZA, 2017.
5 Gramsci conceitua o Estado em sentido amplo, composto de duas esferas principais: a
sociedade política (conjunto dos mecanismos através dos quais a classe dominante detém o monopólio legal do controle e da execução das leis) e sociedade civil (conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e difusão de concepções de mundo). Nessa noção geral de Estado "seria possível dizer, de que Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção" (GRAMSCI, 2007, p. 244). Não havendo, portanto, oposição entre essas esferas já que elas se complementam, sem que o Estado perca o seu caráter de classe. Assim, “Enquanto existir o Estado classe não pode existir a sociedade regulada […] permanece exato o conceito [...] de que não pode existir igualdade política completa e perfeita sem igualdade econômica” (GRAMSCI, 2007, p. 223-224). Na sociedade capitalista, não há espaço para a igualdade política, a não ser do ponto de vista formal e, em consequência do primeiro enunciado, não se estabelecem relações entre iguais, mas sim entre classes sociais fundamentais, desiguais, com interesses antagônicos.
6 Os organismos multilaterais são instituições internacionais que influenciam nas políticas econômicas e sociais de países de capitalismo dependente como, por exemplo, Fundo Monetário
Internacional (FMI), Banco Mundial (BIRD) e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
Aliás, muitas das ofertas educacionais de qualificação para o trabalho compõem o emaranhado de ações das políticas de “alívio por gotejamento” (FONTES, 2010, p. 339). Nesse sentido, as disputas incidem diretamente sobre os contornos que deve ter a educação profissional e seus possíveis vínculos com a educação básica.
Desde então, as reformas da educação seguem os interesses do capital de elevar a qualificação da força de trabalho simples, desenvolvendo nela a suposta capacidade competitiva através da empregabilidade7 e a flexibilidade de exercer qualquer trabalho independentemente do momento e do lugar (reinventando o trabalhador constantemente). Eles implementam, recorrentemente, precárias políticas focalizadas, financiadas por agências públicas, geridas e executadas por instituições privadas.
Segundo a perspectiva do discurso hegemônico, um dos meios para superar a suposta carência de formação da força de trabalho brasileira, considerada responsável pela não competitividade do Brasil a nível mundial, é a expansão acelerada da qualificação, bem como o acesso a diferentes níveis de certificação.
Essa diretriz tem criado um lucrativo mercado de transferência de recursos públicos para instituições privadas ao expandir as vias formativas de caráter precário e aligeirado na rede privada e ampliar as possibilidades de certificação, realizadas, em sua maioria, com negação do direito ao conhecimento.
Nesse aspecto, ganha centralidade o protagonismo do empresariado na gestão e na execução dessas novas vias formativas, principalmente através da política de parcerias público-privadas com seus programas, projetos e planos em todos os níveis da formação. Aqui, iremos nos debruçar sobre um exemplo que materializa esse processo: o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec).
O Pronatec, iniciativa adotada pelo Governo Federal referente à educação profissional voltada para jovens e adultos da classe trabalhadora, oferece vagas em cursos de qualificação em todo o país, sob o discurso de que seus cursos
7 A promessa de empregabilidade “encobre o agravamento das desigualdades do capitalismo contemporâneo, deslocando a produção dessa desigualdade da forma que assumem as relações sociais de produção para o plano do fracasso do indivíduo” (FRIGOTTO, 2011, p. 116-117).
aumentariam a qualificação do brasileiro, especialmente da juventude. Embora não se autodenomine assim, o Pronatec tem um caráter emergencial, com ações focais voltadas para uma suposta inclusão social através do aumento das chances de emprego via qualificação profissional.
Nesse sentido, o programa vincula, de forma direta, a política educacional ao desenvolvimento econômico do país e ao acesso à renda para os indivíduos. Reeditando, assim, a teoria do Capital Humano8 e a formação humana rebaixada da classe trabalhadora. Essa atuação revela a estratégia dos setores dominantes para (con)formar a classe trabalhadora através de programas educacionais, como o Pronatec.
Esse movimento restringe a educação às necessidades do campo econômico. Tal vínculo, carregado de conteúdo ideológico, consolida um novo tipo de dualidade, no qual o Estado amplia as vias formativas de caráter precário, sob o suposto signo da igualdade de oportunidades.
Desse modo, a nova configuração da dualidade educacional no país refere- se às “novas formas de destituição do direito de acesso universal às bases do conhecimento científico e tecnológico” (RUMMERT; ALGEBAILE; VENTURA, 2013, p. 722).
Essa expansão da educação vem sendo realizada de forma desigual e combinada, pois não garante o acesso igualitário às bases do conhecimento científico e tecnológico. Essa forma de “dualidade educacional de novo tipo” (RUMMERT; ALGEBAILE; VENTURA, 2013, p. 724) materializa-se nas diferenças entre as diversas redes de ensino público, bem como entre as variadas modalidades e padrões de ofertas na rede privada.
A grande diversificação de ofertas educacionais em formas desiguais e combinadas produz “uma miríade de ofertas de elevação de escolaridade/formação profissional/certificação, fortalecendo as estratégias de subalternidade no contexto da atual fase de desenvolvimento do capitalismo brasileiro” (RUMMERT; ALGEBAILE; VENTURA, 2013, p. 724).
O que marca essa nova dualidade é justamente a produção de uma multiplicidade de oportunidades educativas, porém, de forma subordinada,
8 A análise crítica da Teoria do Capital Humano nos é apresentada por Frigotto (1993).
ampliando o acesso a todos os níveis de certificação sem universalizar padrões socialmente referenciados.
O foco desta análise é o desvelamento das contradições presentes no programa, assim como a sua intenção em priorizar a oferta de vagas em cursos de curta duração, oferecidos majoritariamente pela rede privada. Situação que converge com a intensificação do processo de privatização da educação profissional.
Organizamos o estudo em duas seções. Na primeira, O que é o Pronatec: definição e caracterização do Programa, compilamos o amplo conjunto de documentos relacionados ao programa. Nesse percurso, tomamos por base seus documentos oficiais, apresentando o que é e como está estruturado o Pronatec, bem como sua amplitude e alcance atual.
Na segunda seção, Limites do Pronatec: fragmentação e privatização do Programa, revelamos as implicações políticas e os limites do tipo de qualificação profissional que é priorizada nesse programa. Pretendemos demonstrar, assim, que o Pronatec, principalmente através da modalidade Bolsa-Formação, acentua a fragmentação e a privatização, por meio do apoio à oferta de cursos no âmbito privado.
O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) foi criado com a implementação da lei nº 12.513, de 26 de outubro de 2011. Seus principais objetivos são: expandir, interiorizar e democratizar a educação profissional, ampliando o número de vagas nos cursos de educação profissional técnica de nível médio presencial e a distância e de cursos de formação inicial e continuada ou qualificação profissional; promover a expansão da rede física da educação profissional e tecnológica; contribuir para a melhoria da qualidade do Ensino Médio, por meio da articulação com a educação profissional; ampliar as oportunidades educacionais dos trabalhadores com o incremento da formação e da qualificação profissional; e apoiar a oferta de cursos de educação profissional e tecnológica com estímulo à produção de recursos pedagógicos (BRASIL, 2011).
Esse programa atende, prioritariamente, estudantes ou egressos do Ensino Médio público que tenham sido bolsistas integrais na rede privada, no regular e na modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA). E, também, trabalhadores do campo (agricultores familiares, silvicultores, aquicultores, extrativistas e pescadores), desempregados, beneficiários dos programas de transferência de renda do Governo Federal, povos indígenas, quilombolas, adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas (em regime aberto, semiaberto ou fechado) e pessoas com deficiência, garantindo as condições de acessibilidade aos recursos pedagógicos e à estrutura física do local (BRASIL, 2011).
Para alcançar seus objetivos e seu público-alvo, o Pronatec oferece 864 opções de cursos. São 220 na modalidade técnica de nível médio, com durações que variam de 800 a 1.200 horas, e 644 na modalidade de formação inicial e continuada, que variam de 160 a 400 horas de duração. Ambos são divididos em 13 eixos tecnológicos9 de acordo com o Catálogo Nacional de Cursos Técnicos de Nível Médio e o Guia Pronatec de Cursos FIC.
Os cursos técnicos de nível médio devem ocorrer de forma articulada com o Ensino Médio, seguindo as orientações dispostas no decreto 5.154/200410 (BRASIL, 2004). Eles podem ser integrados ao Ensino Médio, ou seja, na mesma instituição de ensino, em matrícula única, correspondendo ao Ensino Médio e ao curso técnico; concomitantes, podendo ser oferecidos pela mesma instituição ou por outra, diferente daquela que esteja oferecendo o Ensino Médio – nesse caso, o aluno terá duas matrículas –; ou subsequentes, oferecidos somente a quem já tenha concluído o Ensino Médio.
Os Cursos de Formação Inicial e Continuada (FIC) destinam-se à qualificação profissional ou à formação de habilidades iniciais, especialmente para aqueles jovens e adultos trabalhadores que ainda não terminaram a educação básica. Têm como principais objetivos proporcionar o desenvolvimento de
9 Os 13 eixos tecnológicos dos cursos do Pronatec são: Ambiente e Saúde; Controle e Processos Industriais; Desenvolvimento Educacional e Social; Gestão e Negócios; Informação e Comunicação; Infraestrutura; Militar; Produção Alimentícia; Produção Cultural e Design; Produção Industrial; Recursos Naturais; Segurança; Turismo, Hospitalidade e Lazer. Disponível em:
<http://Pronatec.mec.gov.br/>. Acesso em: 23 fev. 2018.
10 “Decreto nº 5.154, de 23 de julho de 2004, regulamenta o § 2º do art. 36 e os arts. 39 a 41 da lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional e dá outras providências” (BRASIL, 2004).
aptidões para a vida produtiva e social, promovendo a capacitação, o aperfeiçoamento e a especialização em determinada área.
É importante ressaltar que a lei nº 12.513/2011 (BRASIL, 2011), que instituiu o Pronatec, efetivou quatro grandes alterações em leis anteriores. A primeira alteração dispõe sobre a lei nº 7.998, de 11 de janeiro de 1990, que regula o Programa Seguro Desemprego, o Abono Salarial e institui o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) (BRASIL, 1990).
Com a criação do Pronatec, o recebimento do seguro-desemprego tornou- se condicionado à matrícula e à frequência num curso de qualificação com carga horária mínima de 160 horas, oferecido pelo Pronatec gratuitamente aos trabalhadores dispensados sem justa causa. Em caso de recusa em matricular- se, o trabalhador terá seu benefício cancelado (BRASIL, 2011).
Entretanto, a obrigatoriedade de participação no Pronatec em cursos de qualificação não contribui efetivamente para a reinserção desses profissionais no mercado de trabalho, sobretudo, quando eles realizam um curso numa área diferente daquela em que tiveram suas experiências profissionais.
A segunda alteração refere-se ao art. 28 da lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, que dispõe sobre a organização da Seguridade Social e institui o Plano de Custeio, incidindo sobre o Salário-de-Contribuição (BRASIL, 1991).
A referida lei permitia que os trabalhadores financiassem sua qualificação profissional através de um empréstimo chamado Plano Educacional, desde que o curso de formação estivesse vinculado às atividades desenvolvidas pela empresa. Em contrapartida, o trabalhador deveria pagar uma parcela mensal (não superior a 5%), a ser descontada de sua remuneração.
Com a instituição do Pronatec, além do Plano Educacional, abre-se a possibilidade de essa qualificação profissional ser realizada por meio de bolsas de estudos que podem ser financiadas pela empresa. Cabe ressaltar que os valores relativos ao Plano Educacional ou às Bolsas não integram o Salário-de- Contribuição, por isso eles não são repassados à Previdência Social e não podem ser requeridos em caso de incapacidade provisória ou permanente do trabalhador (BRASIL, 2011).
A terceira alteração incide sobre a lei nº 10.260, de 12 de julho de 2001, que regulamenta o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior.
(BRASIL, 2001). Com a criação do Pronatec, a destinação da concessão do financiamento foi estendida aos cursos de formação inicial e continuada ou de qualificação profissional e aos cursos de educação profissional técnica de nível médio, passando a denominar-se apenas Fundo de Financiamento Estudantil (Fies).
O Fies é dividido em duas modalidades: Fies-Técnico, correspondente ao financiamento individual concedido ao estudante para custear cursos de nível superior e/ou cursos de educação profissional; e Fies-Empresa, financiamento concedido às empresas para custearem os cursos de qualificação de seus funcionários na rede privada ou no próprio local de trabalho por meio de parcerias com outras empresas (BRASIL, 2011). Esse financiamento poderá chegar a 100% dos valores cobrados aos estudantes e empresários, ambos com a taxa de juros de 3,4% ao ano (BRASIL, 2001).
Quanto a essa questão, além das vantagens já citadas, também constatamos que os empresários se beneficiam triplamente com os recursos públicos. Primeiro, por terem, por parte do Estado, o abatimento do investimento efetuado em programas de treinamento que já realizavam. Segundo, por utilizarem o financiamento para pagar a qualificação dos seus próprios empregados. Terceiro, pelo incentivo à oferta da educação-mercadoria11. O Estado contribui, dessa forma, para a intensificação do mercado da educação.
A última alteração foi realizada sobre a lei nº 11.129, de 30 de junho de 2005, que instituiu o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem) (BRASIL, 2005). As alterações efetivadas nesse programa referem-se à inclusão do Programa de Bolsas para a Educação pelo Trabalho, destinado aos estudantes de educação superior, prioritariamente com idade inferior a 29 anos, e aos trabalhadores da área da saúde.
Tendo em vista a ampliação da sua proposta original, das estratégias de execução e dos recursos empreendidos, organizamos a análise do programa em
11 Para Rodrigues (2007), existem duas formas básicas de os empresários encararem esse mercado educacional. A primeira, educação-mercadoria, ocorre quando o capital empresarial cresce através da venda de serviços educacionais. Nesse caso, os apropriadores desse capital são os empresários do comércio educacional. A segunda forma se efetiva quando a educação e o conhecimento são tidos como insumos necessários e indispensáveis à produção de novas mercadorias. Nesse caso, são os empresários industriais que se apropriam da mercadoria- educação para ampliar seus capitais.
três aspectos: 1.1. As ações, 1.2. Os Agentes e 1.3. As Modalidades de Demandas. Nesse percurso de análise, tomando por base os documentos oficiais do programa, iremos apresentá-lo intentando evidenciar sua amplitude e alcance.
O Pronatec está vinculado à Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (SETEC), é estruturado pelo Ministério da Educação (MEC) e articula-se com o Sistema Nacional de Emprego (SINE) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), com a finalidade de desenvolver nove ações.
Contudo, os relatórios disponibilizados pela SETEC evidenciam apenas seis ações, são elas: fortalecimento e expansão da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (REPCT); Rede e-TEC Brasil (expansão da educação profissional na modalidade a distância); Brasil Profissionalizado (fomenta a expansão da educação profissional integrada ao ensino médio nas redes estaduais de educação).
Também: Fundo de Financiamento Estudantil (Fies técnico e empresa, que visa financiar cursos de nível superior e profissional em escolas privadas, no Sistema S ou no próprio local de trabalho, por meio de parcerias com as empresas); Acordo Gratuidade com o Sistema S (prevê a conversão da contribuição compulsória dessas instituições em cursos gratuitos). E, ainda, Bolsa Formação (Estudante e Trabalhador, que é um recurso utilizado para custear as matrículas e as despesas com alimentação e transporte dos alunos), um dos principais eixos de sustentação para desenvolvimento do programa, conforme será visto na segunda seção deste trabalho.
Participam como agentes das ações do Pronatec a Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (SETEC), o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e os parceiros ofertantes e demandantes dos cursos do programa.
A SETEC é responsável por coordenar e avaliar as políticas de educação profissional em geral e a oferta da Bolsa-Formação. É ela quem solicita ao FNDE12 o repasse de recursos para os parceiros ofertantes das Bolsas.
Os parceiros ofertantes são todas as redes de ensino (privadas e públicas) que queiram participar da gestão do programa, sendo responsáveis pela oferta dos cursos, mediante uma atuação conjunta com os parceiros demandantes.
As instituições privadas passaram a integrar o rol das instituições ofertantes dos cursos após a aprovação da medida provisória 593, de 05 de dezembro de 2012 (BRASIL, 2012a), posteriormente transformada na lei nº 12.816, de 05 de junho de 2013, que “amplia o rol de beneficiários e de ofertantes do Bolsa-Formação Estudante no âmbito do Pronatec” (BRASIL, 2013b).
Com relação à parceria público-privada, no §1º do art. 6-A, a referida lei autoriza a abertura de cursos do programa na rede privada de Ensino Superior e de educação profissional técnica de nível médio, por meio de um termo de adesão realizado entre a SETEC e as instituições ofertantes (BRASIL, 2013b).
Faz-se necessário esclarecer que esse termo de adesão não estabelece critérios, normas ou qualquer tipo de padrão de qualidade dos serviços, “não há prazos de vigência para cumprimento do termo nem cláusulas estabelecendo punições” (BRASIL, 2013e, p. 31), as instituições só precisam garantir aos beneficiários do programa o acesso às vagas gratuitas, com o compromisso de prestar contas das matrículas realizadas.
Nessa direção, cabe ressaltar, ainda, que o Pronatec concedeu autonomia pedagógica de criação de cursos a todas as unidades ofertantes. Integrou os serviços nacionais de aprendizagem ao sistema federal de ensino, sob a disciplina dos critérios do MEC, conferindo autonomia às unidades dos serviços nacionais sociais para ofertarem cursos de
educação profissional técnica de nível médio e educação de jovens e adultos integrada à educação profissional, desde que em articulação direta com os serviços nacionais de aprendizagem, observada a competência de supervisão e avaliação dos Estados. (BRASIL, 2013b).
12 O FNDE é o órgão responsável pelo repasse dos recursos financeiros às instituições ofertantes dos cursos. O repasse é concedido no valor do custo total do curso por estudante de acordo com o número de alunos matriculados e a carga horária por curso ministrado (BRASIL, 2013d).
Os demandantes são os entes públicos (ministérios, secretarias estaduais e órgãos públicos da Casa Civil) responsáveis por identificar a demanda, bem como o curso de qualificação profissional que atenda ao público-alvo de suas ações, assim como a divulgação, a inscrição, a seleção e as pré-matrículas de seus beneficiários.
Os cursos são classificados por modalidades de demandas pela SETEC como uma forma de facilitar a seleção do público-alvo de acordo com a especificidade de cada demandante. É importante ressaltar que, quando o demandante define um público-alvo como prioridade, assume a responsabilidade de criar mecanismos que favoreçam a sua seleção.
Segundo o Relatório de Auditoria Anual de Contas, foi registrada, em 2013, a participação de 55 parceiros demandantes, entre eles, 13 ministérios, 6 secretarias vinculadas à União e 26 secretarias estaduais de educação, além do Distrito Federal. Juntos, oferecem 41 modalidades de demandas13 no âmbito da Bolsa-Formação Estudante e Trabalhador. Realizada por meio de uma parceria entre o MEC e diferentes ministérios e secretarias, a parceria teve como objetivo atender a diversos grupos sociais.
Devido às variações de estrutura e de níveis de conhecimento, a organização do Pronatec com suas diversas modalidades contribui para produzir uma nova dualidade entre as instituições participantes e seus parceiros demandantes.
Isso acarretou a fragmentação do programa em variados tipos de estrutura física, currículo e processo de seleção, em função dos diferentes perfis de público e de instituições participantes como: Organizações Não Governamentais (ONGs); instituições públicas de ensino de formação inicial e continuada, técnico e tecnológico; instituições privadas de ensino; e Sistema S.
13 O termo modalidade(s) é utilizado pelo MEC para referir-se aos cursos, às Bolsas-Formação e aos subprogramas ofertados pelo Pronatec. No que tange aos cursos, eles se dividem em modalidade técnica de nível médio e modalidade de formação inicial e continuada. Quanto às Bolsas-Formação, elas se organizam nas modalidades da Bolsa-Formação Estudante e da Bolsa- Formação Trabalhador. Utilizaremos, aqui, o termo subprogramas como sinônimo do termo modalidades de demandas.
Assim sendo, além dos parceiros ofertantes, os parceiros demandantes também passam a ter autonomia para criar, coordenar e administrar financeiramente suas respectivas modalidades do programa. A nosso ver, essa forma de gestão acaba por beneficiar e fortalecer especialmente a iniciativa privada, que passa a ter autonomia para criar e ofertar o modelo de formação que atenda aos seus interesses imediatos.
Até aqui, discorremos sobre os ordenamentos legais do programa, sua estrutura organizativa, seus objetivos, suas ações, seus agentes e suas modalidades de demandas. Na próxima seção, submeteremos à crítica o Pronatec, última política de expansão da educação profissional adotada durante o governo Dilma Rousseff.
O Pronatec, assim como os demais programas, surge sob a justificativa da necessidade de expansão das vias formativas e das possibilidades de acesso a todos os níveis de certificação. A principal ênfase desses programas está nos cursos de formação inicial e continuada, cursos de curta duração, em detrimento daqueles de formação técnica de nível médio que possuem maior duração.
O Pronatec aparece como resposta a uma suposta deficiência de força de trabalho qualificada – discurso hegemônico que atribui à educação a responsabilidade das dificuldades encontradas pela economia brasileira em desenvolver sua competitividade a nível mundial.
Esse movimento impõe à educação um vínculo restrito com as necessidades do campo econômico, em conformidade com a função social que a educação assume para as classes dominantes: a de produzir ganhos adicionais ao capital.
Nesse cenário, a crise de empregos torna-se um problema individual. E essa contradição abre, por um lado, cada vez mais canais de empresariamento da educação, já que a procura por qualificação se eleva; por outro lado, escamoteia o fato de que não há, efetivamente, empregos para todos, pois o desemprego é um problema inerente ao capital.
Numa análise superficial dos ordenamentos legais do Pronatec, poderíamos dizer que as críticas realizadas sobre o aligeiramento da qualificação dos jovens e adultos trabalhadores podem ser ou foram superadas. Aparentemente, o Pronatec se diferencia dos demais programas por ofertar também cursos técnicos de longa duração (800 a 1200 horas) em comparação aos cursos FIC (160 a 400 horas), especialmente pela possibilidade de esses cursos técnicos serem realizados de forma integrada ao Ensino Médio.
No entanto, de acordo com os dados divulgados pela SETEC em novembro de 2014, o programa já teria formado, até agosto do mesmo ano, mais de 8 milhões de jovens e adultos trabalhadores por todo o Brasil. Sendo 5,8 milhões nos cursos de formação inicial e continuada e 2,3 milhões nos cursos técnicos de nível médio (BRASIL, 2015).
Com bases nos mesmo dados da SETEC/2014 apresentados no parágrafo anterior, podemos concluir que, dos oito milhões de matrículas realizadas pelo Pronatec, houve uma predominância delas nos cursos FIC, ou seja, mais de 70% do total das matrículas foram realizadas em cursos de curta duração, dos quais 58% possuem duração mínima de 160 horas.
Para Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005, p. 1098), “limitar a carga horária a um ‘máximo’ é, na verdade, admitir que aos jovens e adultos trabalhadores se pode proporcionar uma formação ‘mínima’”. Apesar de o Pronatec ofertar cursos FIC com carga horária de até 400 horas, duração bem superior se comparada com a dos programas de qualificação profissional dos governos anteriores, esse modelo de formação, por não exigir uma qualificação complexa14, faz com que os jovens e adultos trabalhadores “não estejam preparados nem para as exigências profissionais, nem para o exercício autônomo da cidadania” (FRIGOTTO, 2007, p. 1140).
Essa lógica ainda é mais crítica quando se observa, nos cursos técnicos de nível médio, a predominância de matrículas na modalidade concomitante realizadas por instituições privadas e pelo Serviço Nacional de Aprendizagem
14 Dos 644 cursos, 420 exigem apenas o Ensino Fundamental incompleto, isso equivale a 65,22% do total da oferta de vagas. Desse quantitativo, 47% determinam que se tenha no mínimo o Ensino Fundamental I incompleto, enquanto 18% da oferta exige a conclusão mínima de um ano de estudo no Ensino Fundamental I. Comprovadamente, os cursos que requisitam o Ensino Médio completo representam apenas 0,8% do total da oferta (BRASIL, 2013c).
(SNA). A concomitância resulta na redução das possibilidades de os jovens e adultos trabalhadores realizarem esses cursos, pois implica assumir a responsabilidade por uma tripla jornada (Ensino Médio/curso técnico/trabalho) (MELO; MOURA, 2016).
Através do número de matrículas, pode-se perceber que os cursos FIC encontram grande receptividade por parte dos jovens e adultos trabalhadores. A predominância dessa modalidade pode ser explicada, por exemplo, por questões como: I) a possibilidade do recebimento de uma assistência estudantil realizada por meio da Bolsa-Formação; II) o condicionamento do Programa Seguro Desemprego ao programa; III) a baixa ou a quase inexistência de exigências de escolaridade para a realização dos cursos; IV) a grande diversidade de opções de cursos; V) os cursos de curta duração; e VI) a possibilidade de (re)inserção no mercado de trabalho e de mobilidade social por meio da ampliação individual da qualificação.
Contudo, entre as questões citadas, iremos nos deter, nesta seção, aos limites do tipo de qualificação profissional que é priorizada pelo programa por meio da modalidade Bolsa-Formação.
A peculiaridade do Pronatec é a Bolsa-Formação, regulamentada pela portaria nº 168, de 07 de março de 2013. Tem a finalidade de contribuir para a expansão da oferta da educação profissional, por meio da compra de vagas presenciais e a distância em instituições vinculadas às Redes Federal, Estadual e Municipal, às unidades dos Sistemas Nacionais de Aprendizagem (SNA) e à Rede Privada (escolas técnicas de nível médio e instituições de Ensino Superior) (BRASIL, 2013d).
Nesse documento, são apresentadas duas modalidades de Bolsa. A primeira, intitulada Bolsa-Formação Estudante, está vinculada à oferta de cursos técnicos de educação profissional em nível médio. Essa Bolsa pode ser ofertada de forma concomitante aos estudantes em idade própria, regularmente matriculados no Ensino Médio, e de forma concomitante ou integrada aos estudantes com idade igual ou superior a 18 anos e àqueles pertencentes à modalidade de Educação de Jovens e Adultos que não tenham concluído o Ensino Médio. Além da forma subsequente aos concluintes, desde que tenham
cursado o Ensino Médio completamente na rede pública ou como bolsistas integrais em instituições privadas.
A segunda modalidade é a Bolsa-Formação Trabalhador, que tem como iniciativa “a oferta gratuita de cursos de formação inicial e continuada ou qualificação profissional destinados a trabalhadores de diferentes perfis e beneficiários de programas federais de transferência de renda e estudantes de Ensino Médio das redes públicas” (BRASIL, 2012b, p. 8). Segundo a portaria nº 185/2012, também poderá ser concedida a Bolsa-Formação Trabalhador aos estudantes do Ensino Médio público inseridos nos cursos FIC (BRASIL, 2012c).
Os valores repassados por meio da Bolsa-Formação aos parceiros demandantes deverão financiar todas as despesas com vagas, materiais didáticos e assistência estudantil para os alunos custearem seu transporte e sua alimentação.
Os valores recebidos pelos estudantes por meio da assistência estudantil serão garantidos pelo fornecimento direto do parceiro ofertante ou por terceiros que tenham sido contratados. Cabe ressaltar que esse benefício estudantil aplica- se somente aos cursos de formação inicial e continuada, aos cursos técnicos na forma integrada, na modalidade EJA, concomitante, não contemplando a forma subsequente, conforme a portaria nº 114, de 7 de fevereiro de 2014 (BRASIL, 2014).
A Bolsa-Formação “consiste na combinação de oferta educacional com a contrapartida de um ‘benefício’ em dinheiro. Entendida como forma de manter o aluno no curso, paradoxalmente, a bolsa funciona como forma de atrair o aluno para o curso” (SILVA, L., 2014, p. 189). Apesar de esta ser uma ação particular do Pronatec, a iniciativa da oferta de bolsas no âmbito da política educacional mantém características assistencialistas vinculadas às políticas sociais.
A possibilidade de receber o auxílio estudantil por meio da bolsa influencia os jovens e adultos da classe trabalhadora a realizarem uma infinidade de cursos aligeirados, em áreas diferentes daquelas em que adquiriram sua experiência profissional. Tudo isso com uma expectativa de inserção ou retorno ao mercado de trabalho.
Como forma de controlar a oferta e o recebimento desse auxílio, cada beneficiário poderá realizar até três matrículas por ano, sendo apenas uma
matrícula na modalidade técnico de nível médio, não podendo ser realizada de forma concomitante (SILVA, M., 2015). Assim, o auxílio financeiro funciona como um potencializador da conformação social da classe trabalhadora ao gerar uma expectativa de emprego futuro e de inclusão social por meio do aumento da qualificação profissional.
O tipo de curso e o número de vagas ofertados nas modalidades da Bolsa- Formação são definidos pelos parceiros ofertantes e demandantes controlados pelo Sistema Nacional de Informação da Educação Profissional e Tecnológico (SISTEC), órgão responsável por registrar as informações sobre a educação profissional no país.
O sistema exige dos parceiros ofertantes um cadastro do portfólio dos cursos FIC e Técnico que estejam aptos a ofertar, além disso, a SISTEC classificou as Bolsas-Formação por tipo de modalidade de demanda, com o objetivo de identificar os demandantes de acordo com a característica do público- alvo.
Através desse sistema, os parceiros demandantes realizam o processo de ocupação, seleção e pré-matrículas das vagas nos cursos FIC e Técnico concomitante, ofertados aos jovens e adultos trabalhadores por eles selecionados.
Para obter acesso às vagas gratuitas dos cursos técnicos na forma subsequente do Pronatec, os interessados devem participar do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). A seleção do estudante é realizada mediante o resultado dessa avaliação. Ele deve se inscrever no curso da instituição que desejar, através do Sistema de Seleção Unificada da Educação Profissional e Tecnológica (SISUTEC).
A definição de quais cursos técnicos e de formação inicial e continuada serão ofertados pelo programa é elaborada a partir de um mapeamento realizado pelos parceiros demandantes sobre um levantamento do perfil socioeconômico local, que indica o tipo de curso e o perfil dos interessados que seja compatível com as demandas do setor empresarial (SANTOS, 2014).
O status prioritário do setor empresarial pode ser observado para além das suas demandas com mão de obra qualificada, pois foi um beneficiário dos
recursos públicos recebidos por meio da oferta de cursos na modalidade Bolsa- Formação no período de 2011 a maio de 2014 (ver quadro 1).
Ranking | Parceiros Ofertantes | Natureza das Redes Ofertantes | Cursos FIC | Cursos Técnicos | Total Geral | Valores recebidos por rede de ensino | % |
1º | SNA | Privada | 1.975.193 | 253.034 | 2.228.227 | 4.528.266.363,68 | 70,15 |
2º | Rede Federal | Pública | 425.482 | 21.831 | 447.313 | 1.315.043.126,95 | 20,3 |
3º | Rede Estadual | Pública | 99.038 | 54.277 | 153.315 | 404.523.150,00 | 6,2 |
4º | Instituições Privadas | Privada | - | 292.550 | 292.550 | 189.794.626,64 | 3 |
5º | Rede Municipal | Pública | - | 462 | 462 | 18.061.000,00 | 0,35 |
TOTAL GERAL | 2.499.713 | 622.145 | 3.121.867 | 6.455.688.267,27 | 100 |
Fonte: Souza, 2017.
Foram registrados mais de três milhões de beneficiários da Bolsa- Formação. Do total das bolsas ofertadas, os cursos FIC contemplaram 2.499.713 bolsistas (80%), um quantitativo bem superior se comparado ao dos cursos técnicos, que concederam 622.145 bolsas (20%).
Salta-nos aos olhos a majoritária participação das instituições da rede privada. Juntas, elas receberam 2.520.777 bolsas, aproximadamente 81%, enquanto a rede pública (federal, estadual e municipal) recebeu apenas 19% do total da oferta da Bolsa-Formação.
Quanto aos valores investidos de 2011 a maio de 2014, o FNDE transferiu mais de seis bilhões de reais, com destaque para a rede privada, que recebeu 73% das vagas, ou seja, 4,7 bilhões de reais, enquanto a rede pública recebeu apenas 1,7 bilhão de reais. Levando em consideração apenas a Bolsa-Formação, é possível afirmar que o SNA foi a unidade que mais recebeu os recursos do programa, mais de 70%, o equivalente a aproximadamente R$ 4,5 bilhões de reais.
Também é importante registrar que, de 2011 a maio de 2014, a rede privada e as unidades do Sistema S foram responsáveis por 87,7% das matrículas, enquanto a rede pública (federal, estadual e municipal) efetuou apenas 12,3% do total das matrículas dos cursos técnicos.
Cabe destacar, ainda, que uma das nove ações do Pronatec é o “incentivo à ampliação de vagas e à expansão da rede física de atendimento dos serviços nacionais de aprendizagem” (BRASIL, 2011)15. Essa ampliação vem sendo realizada com fontes de financiamento vindas do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Neste estudo, examinamos esse programa demonstrando seus limites. Dentre eles, o seu caráter privatista ao adotar o formato de parceria com instituições ofertantes do Pronatec/Bolsa-formação. Cabe, ainda, considerar que
além do Sistema S, as empresas privadas que atuam no ensino encontram no Pronatec o alento para a manutenção dos seus negócios, mediante financiamento dos cursos a serem ofertados aos trabalhadores e estudantes, desde que habilitadas pela comissão avaliadora constituída em cada instituto federal de educação, ciência e tecnologia. Para melhor perceber a dimensão desse tipo de financiamento, vale registrar o fato de que, somente no ano de 2012, de acordo com o relatório da gestão do MEC, foram habilitadas 339 unidades de ensino, sendo que 85 são privadas e 254 do Sistema S. (OLIVEIRA; MENEZES, 2016, p. 231).
Apesar de o Pronatec oferecer cursos técnicos de nível médio, 70% do total das vagas ofertadas privilegiam os cursos FIC, modelo de formação aligeirada que não exige uma qualificação complexa. O que significa dizer que o Pronatec, por meio da política de parcerias, transfere os recursos públicos e privilegia as instituições privadas, especialmente o Sistema S, responsável por 70% das matrículas nos cursos FIC e 40% nos cursos técnicos.
A priorização num modelo de qualificação profissional de curta duração, que restringe o acesso às bases mais amplas do conhecimento científico e tecnológico, é uma das principais continuidades dos programas Programa Intensivo de Preparação de Mão de Obra (PIPMO), Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador (Planfor) e Programa Nacional de Qualificação Social e Profissional (PNQ)16 em relação ao Pronatec. Em suma, ele “veste o presente
15 Sublinhamos que a participação do Sistema S na oferta de cursos voltados para a Educação Profissional não é exclusividade do Pronatec. Isso ocorre desde a década de 1960, em que o Sistema S participou da execução do Programa Intensivo de Preparação da Mão de Obra (PIPMO) de 1963 a 1982.
16 Em vigência de 2003 a 2007.
com roupagens emprestadas de um passado no qual engendraram determinações regressivas à extensão do direito à educação para os jovens e adultos trabalhadores” (MACHADO; GARCIA, 2013, p. 3).
Além da Bolsa-Formação, o SNA ainda recebe recursos do Acordo Gratuidade e do Fies. Os documentos oficiais não apresentam um detalhamento dos recursos recebidos por essas ações, o que dificulta uma análise crítica das especificidades de cada um deles e dos valores reais transferidos às redes pública e privada.
A Bolsa-Formação foi a única ação que teve a prestação de contas disponibilizada pela SETEC no Relatório de Auditoria Anual de Contas de 2013 (BRASIL, 2013a). Limitamo-nos, por esse motivo, a apresentar informações particulares apenas dessa modalidade.
Grosso modo, é possível afirmar que a expansão da educação profissional por meio do Pronatec vem ocorrendo sob a lógica da privatização, em que o Governo Federal transfere, por meio de recursos públicos, as responsabilidades pela oferta pública e gratuita às instituições privadas, sendo o principal exemplo desse tipo de privatização o Serviço Nacional de Aprendizagem.
Essa forma de gestão e execução deve ser questionada, assim como o modelo de formação ofertado aos jovens e adultos trabalhadores, já que o programa prioriza a oferta de cursos FIC e de cursos técnicos na modalidade concomitante e subsequente. Essa conformação inviabiliza o fortalecimento do ensino integrado e da formação humana integral, retomando a proposta original do decreto nº 2.208/97 (BRASIL, 1997), que instituiu a separação entre a educação básica e a educação profissional (LIMA, 2012).
A efetivação de cursos técnicos integrados nas redes públicas demandaria maiores investimentos com estrutura física, material didático, contratação de professores e de outros profissionais. Dessa forma, é mais vantajoso, de certo modo, para a sociedade civil e para a sociedade política17, expandir a qualificação profissional por meio da ampliação de vagas na rede privada do que expandir a estrutura física da rede pública. A compra de vagas na rede privada pelo Governo
17 Considerando que, para Gramsci (2007, p. 244), “na noção geral do Estado entram elementos que devem ser remetidos à noção de sociedade civil” e é através dele que a classe dirigente justifica e mantém o seu domínio.
Federal ocorre por meio da transferência de recursos públicos através da Bolsa- Formação, do Acordo Gratuidade Sistema S e do Fies Técnico e Empresa.
Além disso, a formação aligeirada também propicia um menor custo, o que legitima o aumento da oferta de cursos FIC em relação aos cursos técnicos no programa, favorecendo o processo de privatização do bem público e o financiamento do empresariado na formação dos seus empregados.
Em suma, o Pronatec se configurou como uma política de qualificação desqualificadora que serviu mais aos ofertantes dos cursos em disputa pelos vultosos fundos públicos do que aos demandantes destes, ou seja, aos trabalhadores e suas necessidades de acesso à educação e à inserção profissional.
O estudo empreendido nos possibilita afirmar que o Pronatec, enquanto uma política de qualificação da classe trabalhadora que não pretende viabilizar o acesso aos níveis mais elevados de escolarização, desenvolve-se a partir do papel subordinado do país na divisão internacional do trabalho.
É importante registrar que a análise não deixa dúvidas quanto aos limites desse programa, tanto em elevar os níveis de escolarização da classe trabalhadora quanto em contribuir para a melhoria da qualidade do Ensino Médio; bem como em ampliar as oportunidades de acesso à qualificação e ao emprego; e, ainda, em estimular a articulação entre a política de educação profissional e tecnológica e as políticas de geração de trabalho, emprego e renda.
Na tentativa de explicitar esses limites, nossa exposição dividiu-se em duas partes. Na primeira, procuramos descrever com densidade a proposta do Pronatec, salientando sua formulação oficial e os dados sobre sua execução. Além de fazer o registro histórico de mais um programa federal, buscamos, de forma crítica, evidenciar a intrincada engenharia desse programa guarda-chuva, que abriga, atualmente, quase todos os programas e projetos anteriores, reagrupados gradativamente por ele.
Na segunda parte, a análise permitiu afirmar que, na oferta da qualificação profissional do Pronatec, por um lado, predomina a formação para o trabalho
simples – como a expressiva oferta de cursos FIC evidencia – e, por outro, a ampliação da privatização da educação profissional, no tratamento dado à qualificação como serviço e como mercadoria.
A expansão da qualificação profissional realizada pelo Pronatec, com ênfase na realização de cursos FIC por instituições privadas, não deixa dúvidas de que esse programa, inspirado nos preceitos neoliberais, ao renovar a dualidade estrutural da educação brasileira, não só estimulou a expansão do mercado educacional, como também se adequou às demandas do capital na renovada subalternidade do país nas relações econômicas internacionais.
Sob o discurso inclusivo, o Pronatec reedita o modelo de qualificação restrita à adaptação para e pelo mercado, em que a educação profissional é vista como uma mercadoria a ser vendida e consumida pela classe trabalhadora como condição de acesso ao emprego.
Assinalamos, pois, o quanto ele representa, por um lado, a continuidade de uma visão de que a educação possa ser feita por meio de programas contingentes e, por outro, a ampliação dos mecanismos de destinação de recursos financeiros públicos para apoiar a oferta de cursos no âmbito das instituições privadas.
Essa atuação revela que o Pronatec atua na (con)formação da classe trabalhadora em tempos neoliberais. Reiteramos, portanto, que a expansão aligeirada e fragmentada da qualificação profissional para o emprego realizada pelo Pronatec vem se constituindo como um importante instrumento de legitimação da sociabilidade neoliberal, que subordina a formação humana aos estreitos nexos da concepção mercantilista de educação.
Tal processo não é recente. Desde meados da década de 1990, recorrentemente, sob o discurso de ampliação das oportunidades educacionais, são oferecidos programas educacionais aligeirados, de caráter compensatório e emergencial. Eles apresentam como características comuns: cursos que exigem baixos níveis de escolarização, oferta fragmentada, descontinuidade e pulverização de recursos via parcerias do público com o privado.
Assim como os anteriores, o Planfor, o PNQ, o Projovem e o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na
Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (Proeja)18, o Pronatec reitera a perspectiva que relaciona a educação ao desenvolvimento e à competitividade do país e atribui à educação a função de promover a equidade e a contenção social, de ensinar e difundir o empreendedorismo, marcas da perspectiva economicista de educação. Afirmamos, portanto, que o Pronatec – que tem um papel central na política de educação profissional atualmente – nada mais é do que uma continuidade piorada dos programas anteriores. Nas palavras de Lima (2016, p.115):
no decorrer do governo Dilma (2010-2014), percebe-se com a emergência do Pronatec, o esvaziamento da pedagogia do PROJOVEM e do PNQ e a pequena oferta do PROEJA FIC e, mesmo, do PROEJA Técnico um processo de desintegração curricular que tem resultado num afastamento ainda maior entre as políticas de educação de jovens e adultos e de qualificação profissional.
Esse movimento da realidade da educação profissional representa um recuo em relação aos programas citados (PROJOVEM, PNQ, PROEJA FIC E PROEJA Técnico) que apesar de suas deficiências constituíam um avanço em relação à política do decreto nº 2208 de 1997 e à pedagogia do Planfor.
Evidenciamos, também, o caráter privatista do programa que, ao adotar o formato de parceria com instituições ofertantes do Pronatec/Bolsa-formação, vem transferindo, regularmente, recursos públicos para instituições privadas e intensificando o processo de privatização da educação profissional, com especial destaque para o Sistema S.
Por fim, a última consideração diz respeito a um ponto ainda pouco debatido criticamente, que, talvez, ajude-nos a aprofundar nossa compreensão sobre a dinâmica das contradições do real no caso do Pronatec: a potencialidade que o programa tem de alterar positivamente as chances dos jovens e adultos na luta pela sobrevivência material imediata.
Apesar dos seus limites, o programa é importante para uma parcela significativa dos jovens e adultos trabalhadores. Justo porque alimenta esperança, porque potencializa, ainda que precariamente, a entrada no mundo do trabalho
18 O Proeja foi criado no ano de 2005.
em uma posição menos perversa do que aquela em que o indivíduo já se encontra e porque pode garantir a migração para programas assistenciais de renda mínima. O que, em muitos momentos, é crucial para que essas pessoas continuem sobrevivendo com o mínimo de dignidade.
Fato é que o Pronatec, ao ter como público-alvo prioritário as pessoas em situação de vulnerabilidade e risco social, apresenta-se para essas frações da classe trabalhadora – sobre as quais ainda incidem diversas outras formas de exploração e opressão – como uma oportunidade, às vezes a única, de acesso a algum tipo de certificação profissional. Mesmo sem pretender viabilizar o acesso aos níveis mais elevados de escolarização, o Pronatec expandiu a possibilidade de uma grande parcela da população obter alguma qualificação com certificação profissional.
No bojo dessas contradições, reafirmamos que esse movimento precisa ser problematizado. Ainda que haja a clareza de que a formação da classe trabalhadora executada dessa maneira reitera, através do Pronatec, o velho discurso da qualificação como potencializadora de acesso à educação e ao emprego que, ao mesmo tempo, amplia significativamente o repasse de recursos públicos às instituições privadas.
Por tudo isso, o cenário exige que se reafirme a concepção de formação humana integral. Como dizem Melo e Moura (2016, p. 117), é “na disputa por uma concepção de formação humana e de expansão da EP [Educação Profissional] diferentes das que estão postas no Pronatec que se poderá questioná-lo e, em alguma medida, contribuir para sua ressignificação”.
Exige, também, que pleiteemos uma educação fundamentalmente distinta da que vivemos hoje. Uma educação pensada a partir das perspectivas dos trabalhadores; ofertada e garantida pelo Estado de forma gratuita, pública, unitária e desinteressada.
Refletir sobre a qualificação do ponto de vista dos trabalhadores, a nosso ver, é afirmar a educação, em todas as suas dimensões e espaços, como um processo social formador de todas as dimensões do ser humano. Um processo social voltado para a necessidade de uma escola de natureza científico- tecnológica para todos, em todos os níveis e ramos de ensino, a partir do horizonte da educação emancipadora.
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Recebido em: 05 de março de 2018. Aprovado em: 09 de maio de 2018. Publicado em: 21 de novembro de 2018.
Danilma de Medeiros Silva2 Dante Henrique Moura3 Lincoln Moraes de Souza4
Resumo
As reflexões aqui apresentadas fazem parte das discussões desenvolvidas no âmbito mais geral sobre o Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e ao Emprego). Esta atividade contempla várias dissertações e teses e busca compreender o sentido, o papel do Programa e as contradições que se apresentam com a implementação e as transformações no decorrer da sua trajetória. Assim, levantamos que, no atual momento, o Pronatec encontra-se aliado à Reforma do Ensino Médio e em coerência com as políticas de educação profissional a nível mundial. Portanto, evidenciamos uma maior consolidação da dualidade estrutural da educação.
Abstract
The reflections presented here are part of the discussions carried out in the more general context about Pronatec (National Program for Access to Technical Education and Employment). This activity contemplates several dissertations and theses and seeks to understand the meaning, the role of the Program and the contradictions that are presented with the implementation and the transformations in the course of its trajectory. Thus, we believe that in the present moment Pronatec is allied to the Reform of the Secondary Education and in coherence with the policies of professional education at world-wide level. Therefore, we show a greater consolidation of the structural duality of education.
Keywords: Vocational education policy; Pronatec; Reform of secondary education.
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i30.p10092
2 Assistente Social do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN), doutoranda em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail: danilma_medeiros@hotmail.com;
3 Professor do IFRN, coordenou o processo de elaboração da proposta de criação do Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional do IFRN - mestrado acadêmico (PPGEP). È Professor
colaborador do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEP) na UFRN, na linha de pesquisa educação, política e práxis educativas. E-mail: dantemoura2014@gmail.com;
4 Professor da UFRN, do Departamento de Ciências Sociais e do Centro de Ciências Humanas,
letras e artes (CCHLA), um dos coordenadores do Grupo de Avaliação de Políticas Públicas (GIAPP) da UFRN. Email: lincolnmoraes03@gmail.com.
Introdução
O Pronatec foi criado pela Lei n° no 12.513/2011 com o intuito, anunciado formalmente, de expandir a oferta de educação profissional e melhorar a qualidade do ensino médio. Apesar de isso aparecer, à primeira vista, uma ação interessante para a democratização da educação profissional brasileira, constatamos que o Programa está mais vinculado ao cumprimento de duas funções necessárias para a manutenção do Estado Capitalista, que são a de acumulação (ligada a manter ou criar as condições para acumulação do capital e para o desenvolvimento das empresas privadas) e de legitimação (voltada para manutenção da chamada harmonia social). Para tanto, fundamentamo-nos em O’Connor (1977).
Para compreendermos o sentido atribuído a essas funções, é importante que situemos rapidamente que a política de educação, assim com as demais políticas públicas, é permeada pelas lutas de classes e por disputas de interesses, como diria Dourado (2011).
A problemática que envolve as discussões diz respeito, em grande parte, à dualidade histórica que marca a política educacional brasileira, considerando que o Estado ofereceu diferentes modelos de educação, a depender do grupo a que se destinou, a saber: formação técnica para os filhos da classe trabalhadora com o intuito de garantir-lhes a sobrevivência e também para o atendimento à urgência do capital por força de trabalho com menor custo e, aos filhos da classe dominante, era-lhes dada a oportunidade de continuidade dos estudos para posteriormente ocupar os espaços de direção da sociedade. Essa dualidade é uma manifestação inerente ao modo de produção capitalista. Neste sentido, convém destacar a funcionalidade da educação diante do modelo de desenvolvimento econômico (RAMOS, 2004). Além disso, essa dualidade educacional manifestou-se em maior ou menor grau a depender do processo de correlação de forças em disputa.
No que se refere ao aporte teórico-metodológico, temos trabalhado predominantemente com três tipos de literatura. Do ponto de vista do método, fundamentamo-nos em elementos do método dialético marxista. No tocante ao campo de estudo, situamos o Pronatec nas políticas públicas, particularmente na
política de educação profissional. Por fim, temos utilizado a fundamentação teórica da avaliação de processo de políticas públicas.
Avaliar, segundo o referencial teórico de avaliação de políticas públicas, significa atribuir valor e, com base em Barry e Rae (1975), pode-se dizer que avaliar consiste em dizer se as políticas públicas são boas ou ruins, e, portanto, as avaliações de políticas e programas respondem geralmente a objetivos distintos, como podemos encontrar em Weiss (1978) e em Draibe (2001). Comumente registram-se, na literatura que trata de avaliação de políticas públicas, as seguintes modalidades de avaliação: a avaliação política, a avaliação de processo, a avaliação de impacto e a meta-avaliação.
Sobre a avaliação política de políticas públicas, afirmamos, com base em Figueiredo e Figueiredo (1986), que esse tipo de avaliação pode ser considerada como um outro momento das demais avaliações e, no caso do nosso objeto de estudo, que é o Pronatec, realizamos uma avaliação política do Programa (SILVA, 2015). Nessa avaliação, no fundamental, apontamos a sua ideologia, as suas teorias e os seus objetivos explícitos e implícitos, seguindo o enfoque metodológico desenvolvido por Souza (2014). Assim foi possível constatar que o Programa contribui para o cumprimento das funções de legitimação e acumulação, como explicitamos anteriormente.
A partir da avaliação política do Pronatec, elucidamos a necessidade de desenvolver uma avaliação da implementação do referido Programa, como forma de continuidade da investigação, considerando que a avaliação de processo possibilita aferir se o programa está sendo (ou foi) implementado de acordo com as diretrizes concebidas para a sua execução e se tem atendido as metas oficialmente desejadas ou explicitadas nos documentos governamentais.
Draibe (2001), assim como outros autores, traz elementos metodológicos importantes para avaliação de processo, por meio dos quais temos direcionado a pesquisa para a trajetória de implementação do Pronatec. Esta mesma autora também expõe que, na avaliação de processo, a questão norteadora está baseada nos condicionamentos que levam a êxito ou a fracasso de determinada política pública ou programa.
Para Costa e Castanhar (2003), a aplicação da avaliação de processo requer os desenhos dos fluxos e processos de programa, o que nos remete a
pensarmos na trajetória de implementação do Pronatec. Esses autores citam Scheirer (1994) para colocar que a avaliação de processo “pode ser definida como a maneira de identificar o verdadeiro conteúdo de um programa público, se ele está sendo realizado como previsto” (SCHEIRER, 1994, p. 983). Também, com base na mesma autora, afirmam a necessidade de, na avaliação de processo, desenvolverem-se métodos para buscar os motivos de existirem diferenças entre os objetivos (e intenções) do programa e os que são realmente realizados.
Figueiredo e Figueiredo (1986), por sua vez, direcionam a avaliação de processo para aferição da eficácia que está diretamente ligada ao alcance das metas. Apresentam o conceito de eficácia objetiva que, para eles, diz respeito a avaliar “se as metas atingidas são iguais, superiores ou inferiores às metas propostas”, (FIGUEIREDO E FIGUEIREDO, 1986, p. 112). É importante também destacarmos que, nesse mesmo texto, os autores discutem a avaliação política de políticas públicas sob “a análise e elucidação do critério ou critérios que fundamentam determinada política: as razões que a tornam preferível a qualquer outra” (p. 108). Assim, ao estarmos desenvolvendo uma avaliação de processo do Pronatec, por meio da avaliação política que realizamos, nos coloca para avaliarmos as metas do Programa com base nos seus objetivos não só explícitos, mas principalmente implícitos.
Por meio dessas questões, consideramos, inicialmente, que a trajetória do Pronatec tem se dado em três momentos. O primeiro, que vai da criação do programa em 2011 às eleições presidenciais de 2014, em que se destaca a contribuição para cumprimento da função de legitimação do Estado Capitalista por meio dos cursos de Formação Inicial e Continuada de Trabalhadores (FIC); o segundo, registrado após a reeleição da Presidenta Dilma até o momento do impeachment4 (2015-2016), em que se registra um declínio na oferta do Programa; e o terceiro momento, de 2017 em diante, com ênfase para Reforma do ensino médio e oferta do Mediotec (cursos técnicos) como base de
4 Sobre o impeachment da Presidenta Dilma ressaltamos que esse processo foi “conturbado e carregado de dúvidas sobre sua legalidade e legitimidade que o levou a ser chamado de golpe”, como destacam Ferreti e Silva (2017, p. 386). Sobre o golpe, Moura e Lima Filho (2017) discutem que o impeachment de Dilma fez parte de um contexto mais amplo de “radicalização do neoliberalismo, que visa perpetrar um golpe contra a classe trabalhadora mais pobre do País” (p.111).
implementação da Reforma, em que é possível pressupor uma maior contribuição para função de acumulação do Estado Capitalista.
Sobre a chamada Reforma do Ensino Médio, esse processo esteve em curso pouco tempo depois da criação do Pronatec, quando foi montada, na Câmara dos Deputados, em 2012, uma Comissão Especial destinada a promover estudos sobre a Reformulação do Ensino médio (CEENSI). A CEENSI apresentou o Projeto de Lei (PL) 6840/2013, propondo alterações na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9394/1996), principalmente no que diz respeito ao ensino Médio. Esse PL sofreu várias críticas de estudiosos da área da educação e também dos movimentos sociais que defendem uma educação pública e de qualidade social referenciada. Todavia o processo de aprovação dessa reforma foi aligeirada após o impeachment da Presidente Dilma, pois, antes mesmo de completar um mês da posse do Presidente Michel Temer, ele emitiu a Medida Provisória (MP) 746, que aprovou tal reformulação de maneira autoritária5 e que, logo após, transformou-se na Lei n° 13.415/2016.
Como forma de uma melhor compreensão sobre a temática em tela, apresentaremos alguns pontos gerais sobre as transformações do capitalismo, para, a partir daí, discutir sobre alguns elementos que configuram a política de educação profissional mundial. Com base nisso, refletiremos sobre os fundamentos do Pronatec e os seus possíveis vínculos com a Reforma do Ensino Médio, sobretudo no momento atual de oferta do Programa. As análises aqui apresentadas, como já ressaltamos, ainda são preliminares e fazem parte das discussões sobre o tema.
No sentido de avaliarmos o Pronatec, é importante não perdermos de vista alguns aspectos que envolvem a macropolítica do desenvolvimento do capitalismo e questões que pressupomos estar na base da existência do Programa e nas suas diferenças e semelhanças com ações da educação profissional de outros países e que vinculam a existência do Programa com a
5 Isso por ter instituído as alterações via Medida Provisória, instrumento incomum na Política de Educação até na Ditadura Militar.
Reforma do Ensino Médio, ao passo que a política de educação recebe orientação dos chamados organismos internacionais (CEPAL, Banco Mundial, UNESCO, entre outros).
No que toca aos aspectos de transformações do capitalismo, no contexto neoliberal, os que mais se vinculam com o nosso tema são os seguintes:
Assiste-se a uma generalização mais intensiva e extensiva da mercadorização, ou seja, amplia-se, com uma grande velocidade e em maiores áreas e espaços, a transformação crescente das atividades e outras dimensões da vida em mercadoria. O meio ambiente, a saúde, o lazer e a educação, por exemplo, passam simplesmente a ser considerados como algo a ser vendido e comprado, seja diretamente ou travestido de serviços direcionados a clientes e consumidores.
Como base ideológica das mudanças do capitalismo atual, o neoliberalismo passa a ser predominante, inclusive esvaziando e subordinando outras ideologias anteriormente dominantes, como o antigo conservadorismo, a centralidade na família e outras. O individualismo levado a extremo, o mercado capitalista como instância central e o Estado máximo para os dominantes e mínimo para as classes populares passam a ser o núcleo ideológico por excelência.
A dimensão pública é cada vez mais esvaziada e divulgada como uma coisa desprovida de importância ou carente de sentido para a vida. O que é público é considerado como algo inferior ou mesmo prejudicial e não moderno, como se a negatividade fosse uma característica intrínseca do espaço público, e a dimensão privada, especialmente das atividades econômicas, trouxesse no seu bojo o melhor da vida.
A dimensão econômica ou economicismo assume ares de referência central da vida, e mesmo a política, a economia, a cultura e outros níveis de nossa existência passam a ser vistos por meio da lente da economia capitalista e de seu mercado.
A ciência integra-se cada vez mais com a atividade econômica e com o capital. Neste sentido, o conhecimento torna-se cada vez mais um elemento do processo produtivo ou da circulação de mercadorias e consumo. Daí, a educação vai perdendo sua condição de transmissão de conhecimento ou direito da
população e é rebaixada, em muitos casos, a uma mera transmissão de informações aligeiradas e de aplicação parcial e imediata ou diluída na chamada capacitação ou treinamento.
O Estado reduz sua centralidade no plano nacional, dilui-se em parte no plano local e é localizado progressivamente no circuito mais amplo da internacionalização do capital. É como se estivesse sendo produzido um Estado supranacional do capital (SOUZA; 2015), hegemonizado pelos Estados Unidos e formado por vários aparelhos estatais como o Banco Mundial, o BID, a OMC, a ONU entre outros, chamados candidamente de agências internacionais.
Além dessas questões, é imprescindível atentarmos para o que autores, a exemplo de Chesnais (1996), conceituam como mundialização do capital e outros autores conceituam como globalização, a exemplo de Jameson (2001).
De maneira mais geral, a mundialização do capital diz respeito à internacionalizaçãodo capital que corresponde à intensificação do desenvolvimento do capitalismo e apresenta características próprias e particulares em relação aos outros momentos. Não é forçoso situarmos rapidamente, a partir dos escritos de Chesnais (1996), que esse processo é marcado pela crise dos anos de 1970, quando as instâncias políticas dos Estados capitalistas mais poderosos adotam uma série de medidas que contribuíram para a mundialização do capital. O autor destaca, portanto, a ofensiva do capital na produção (a reestruturação produtiva) e da ofensiva do capital na política (o neoliberalismo) como elementos centrais que marcam a mundialização do capital. É igualmente importante apreendermos que a chamada mundialização do capital não se caracteriza pela mundialização das trocas de mercadorias e serviços, conforme Chesnais (1996) destaca ao afirmar que, nos anos de 1980 e 1990, houve um crescimento bastante inferior aos dos anos de 1960 e 1974,
diante da mundialização das operações do capital.
Esse aspecto pode ser mais bem compreendido a partir do que Jameson (2001) expõe sobre a globalização, enfatizando a necessidade de compreensão para além do nível econômico, e apresenta outros níveis igualmente importantes, a saber: tecnológico, político, cultural e social. Isso remete para as influências culturais, sociais e políticas de países hegemônicos sobre os chamados países subdesenvolvidos e a forma como os organismos internacionais, a exemplo da
CEPAL, Banco Mundial, UNESCO, entre outros, financiam e ditam a política de educação.
Nesse mesmo sentido, em Harvey (1993), podemos refletir sobre os modos de produção capitalista que deram sustentabilidade às formas de pensar e agir das sociedades submetidas ao capitalismo e como a política de educação esteve e ainda está correlacionada aos modos de produção.
A título de ilustração, entretanto de maneira superficial e espelhando-nos em Harvey (1993), podemos dizer que no Fordismo e Taylorismo o formato de profissional exigido teve por base a produção rígida, produção em massa e controlada que impôs um modelo de educação voltada para técnica, em que se aprendia um ofício e o trabalhador, ao longo da sua vida, desempenhava a mesma função.
Em tempos de reestruturação produtiva, o Toyotismo intensifica as relações de produção e a base passa a ser o profissional polivalente, agregando conhecimentos em outros serviços e remodelando a estrutura das empresas através das técnicas organizacionais. Nessa ordem, os chamados avanços tecnológicos e as interações entre diversos países com a mundialização do capital são as principais estratégias de reprodução do capitalismo.
No contexto da reestruturação produtiva, Araújo (1999, p.19) assinala que o perfil exigido dos trabalhadores centra-se em exigências baseadas em um leque de características pessoais:
iniciativa, espírito de equipe, capacidade de comunicação, sociabilidade, criatividade, disposição para aprender, curiosidade, disciplina, motivação, atenção, responsabilidade, estabilidade, confiança, autonomia, capacidade de cooperação, lealdade, comprometimento, competitividade, habilidade de negociação, capacidade de pensar, de decidir etc.
Além disso, Araújo (1999) aponta que em cada contexto histórico, e cada forma de organização da produção, foram exigidos modos específicos de se colocar diante da produção da vida. Entretanto, no contexto da reestruturação produtiva - toyotista - as “características pessoais” exigidas dos trabalhadores sofrem uma readequação, para se manterem funcionais à lógica do capital.
Sobre essas questões Gamboa (2001) apresenta que é preciso driblar os desafios da reestruturação produtiva em que o avanço da tecnologia tem feito surgir novas problemáticas para educação, sem que se tenha vencido as demandas mais elementares de acesso da população à leitura e à escrita. Assim, o autor propõe um olhar crítico para desmascarar o projeto da chamada sociedade global e das relações que o capital impõe para educação.
Na verdade, a educação, ao invés de uma atividade ligada à produção e difusão do conhecimento, baseada em valores de ordem moral e ética ou um direito a que toda a população pudesse ter acesso, vai ser rebaixada a uma atividade como outra qualquer e susceptível de ser vendida e comprada no mercado capitalista. Na linguagem mais em voga na visão capitalista, deve ser considerada como um simples serviço que uma parte (Estado ou empresas privadas) oferecem aos clientes ou consumidores ou consumidoras. Não por acaso, vai ser no centro do capitalismo, no caso os Estados Unidos, que esta mudança vai assumir ares de normalidade e de natural e de atividades supostamente novas e originais como mostra Ravitch (2011) de modo crítico.
Para ampliarmos a nossa compreensão sobre esse processo, no contexto atual, elaboramos o quadro a seguir com as principais características da educação profissional em alguns países: Estados Unidos, Japão, Alemanha, Inglaterra, França (que fazem parte do chamado G7)6 e o Brasil.
Nesse intuito, e para desvelarmos o real sentido posto para a educação profissional no mundo globalizado, parafraseando Gamboa (2001), tomamos por referência um documento elaborado pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) em 2015, intitulado por “Panorama Mundial da educação profissional: desafios e respostas”7. Também, evidenciamos a realidade portuguesa, por termos dados empíricos da realidade desse país8, deixando claro
6 O G7 é composto pela Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido. Esses países são considerados as sete economias mais avançadas do mundo de acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI). No entanto a União Europeia também está representada no G7. Da União Européia nos debruçamos acerca do Ensino Profissional Português.
7 Disponível em:
http://tracegp.senai.br/bitstream/uniepro/190/1/Panorama%20Mundial%20da%20Educacao%20Pr ofissional_SENAI.pdf, acesso em 18 de setembro de 2017.
8 Danilma de Medeiros Silva realizou Estágio Científico Avançado de Doutoramento, na Universidade do Minho, em Portugal, Instituto de Educação, Departamento de Ciências Sociais da Educação, na especialidade de Política Educativa, com financiamento da Capes, pelo Programa de Doutorado Sanduíche (PDSE), de abril a julho de 2017.
que não objetivamos tecer comparações sistemáticas entre realidades distintas, mas, sim, analisarmos os aspectos mais gerais que talvez estejam na base da mundialização do capital.
Países | Alguns destaques históricos | Atual configuração |
Estados Unidos | - Tradição de promover a educação profissional desde o século XIX; |
condição essencial para a empregabilidade. |
Alemanha | Sistema dual, com inspiração das guildas medievais, corporações de ofício dos artesãos e artistas; |
-Estabeleceram-se possibilidades para que o egresso da educação profissional, prossiga os seus estudos na educação superior, que é diversificada e flexível, composta de universidades, escolas politécnicas, universidades tecnológicas e faculdades profissionais. Todavia, os egressos dos cursos acadêmicos ou de educação geral, possuem uma formação superior com maior amplitude. |
Japão | Tradição de preparo escolar, forte influência estatal e modesta procura pela educação profissional (separação entre trabalho e educação?); | - A educação e treinamento estão em grande parte separados, a primeira no Ministério da Educação e o último no Ministério do Trabalho. |
França | - Desenvolveu uma das matrizes históricas da educação profissional, que teve amplas repercussões no mundo, inclusive no Brasil. Este modelo é centralizado, estatal e incorporado ao sistema educacional, com raízes nas reformas napoleônicas e outras. |
|
Reino Unido: Foco na Inglaterra | - Defrontado com os desafios da economia globalizada e da competitividade, o Reino Unido e, em particular, a Inglaterra deram grandes passos para a melhoria da educação profissional desde os anos 1980. |
|
Brasil | - A educação e a formação profissional no Brasil têm duas fontes: a escolar pública francesa, cuja semente está nas escolas de aprendizes do início do século XX, e a educação não formal, representada majoritariamente pelos sistemas paraestatais, criados a partir da Segunda Guerra Mundial (Sistema S). | Em 2011 se estabeleceu marco significativo: foi criado o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego – PRONATEC, com recursos do MEC, Fundo de Amparo ao Trabalhador, BNDES e outros; |
Conforme o que consta no documento do SENAI e foi apresentado no quadro acima, elencamos que, no geral, a educação profissional nesses países apresenta os seguintes aspectos: dualidade educacional, sistema flexível de quase mercado, direcionamento para educação profissional a partir da classe social, educação profissional como acesso para empregabilidade. Tais aspectos
nos remetem à própria organização do modo de produção capitalista, no que concerne à divisão social de trabalho, que cinde a sociedade entre ocupações, cada qual apropriada a certo ramo de produção (BRAVERMAN,1977).
Além disso, é importante ressaltar que a divisão do trabalho, com a intensificação do capitalismo, também fica explícita fora das unidades de produção, por meio da forma como os processos de qualificação da força de trabalho acontecem ao passo que se são ofertados modelos de qualificação que direcionarão os que irão ocupar os trabalhos manuais e os trabalhos intelectuais. E a educação profissional, como se configura nos países apresentados no quadro, geralmente assume uma qualificação voltada para os mais pobres.
Nesse sentido, é importante nos voltarmos ao que apresenta Braverman (1977) ao dizer que é indesejável para o capitalista a distribuição generalizada do conhecimento do processo produtivo. Por esta razão, a base da dualidade educacional é necessária para manutenção do sistema capitalista.
Sobre a realidade do ensino profissional português, foi possível observar a presença marcante da separação entre educação propedêutica e educação profissional, e historicamente esta última foi destinada aos estudantes com insucesso escolar. Por isso, prevalece um estigma em relação aos cursos profissionais, mesmo havendo uma ampliação das instituições que ofertam esses cursos de 1994 em diante, quando outrora os cursos profissionais eram ofertados apenas pelas chamadas escolas profissionais. Nos últimos anos, o governo português tem aumentado substancialmente a oferta de educação profissional, o que, para alguns estudiosos, esse processo é entendido como se o ensino profissional houvesse saído da “periferia para o centro” da política de educação (Azevedo, 2014) voltada para formação do ensino secundário dos adolescentes (nosso ensino médio aqui no Brasil). Entretanto, os cursos profissionais possuem procura menor do que os cursos científicos e ainda são vistos como cursos voltados para estudantes com insucesso escolar. Por outro lado, mesmo com a baixa procura por esses cursos, o Estado português sinaliza aumentar a oferta de educação profissional.
No que se refere à continuidade dos estudos, há pouca inserção dos estudantes advindos dos cursos profissionais portugueses no ensino superior: “[...] Em 2014/15, 79% dos que concluíram os cursos gerais ingressaram no
ensino superior. No caso dos cursos profissionais, foram 14,6%, sendo que apenas 5% entraram numa licenciatura. Os restantes inscreveram-se em Cursos de Especialização Tecnológica, entretanto substituídos pelos Cursos Técnicos Superiores Profissionais. Apesar de serem dados em institutos politécnicos, não dão direito a grau académico, ainda que permitam depois a transição para uma licenciatura”. (notícia apresentada no Jornal Expresso, em 03/06/2017, p. 19).
Essas questões, que apresentamos sobre exemplos da política de educação nos países citados, ajudam-nos a refletir sobre o contexto da política de educação profissional brasileira, no sentido de que a expressa dualidade entre educação profissional e educação propedêutica é acentuada com a implementação do Pronatec e será reforçada ainda mais com a Reforma do Ensino Médio, aprovada pela Lei Federal nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017.
Tal reforma reproduz o formato do ensino secundário implementado em Portugal e em outros países europeus, a exemplo da França, porém as condições socioeconômicas do Brasil estabelecem um contexto ainda mais perverso aos estudantes inseridos no ensino profissional exclusivamente técnico.
No próximo tópico, procuramos refletir sobre os fundamentos do Pronatec e as vinculações com a Reforma do Ensino Médio, ao elencar os aspectos na trajetória do Programa que tem contribuído para dualidade educacional e para o cumprimento das funções de legitimação e acumulação do Estado Capitalista.
Passados 6 anos da criação do Pronatec, é possível observar os diversos momentos vivenciados a partir da trajetória do Programa. No geral, pressupomos que o Programa pode ser situado em três momentos históricos, como apresentamos na introdução desse texto.
A ideia de trajetória, que temos adotado para avaliar a implementação do Pronatec, parte do que foi teorizado por Bourdieu (1996), em seu texto intitulado “A Ilusão Biográfica” e que é aplicado pelo grupo de avaliação de Políticas Públicas da Universidade Federal do Ceará (UFC). E, como já explicitamos, nosso aporte teórico tem amparo nos escritos de Costa e Castanhar (2003), Draibe (2001), Scheirer (1994), Figueiredo e Figueiredo (1986), entre outros.
Nessa linha de pensamento, é que não buscamos interpretar a trajetória do Pronatec como um conjunto coerente, mas como algo que se desloca no espaço social (BOURDIEU, 1996), que nosso entendimento, com base no método dialético, tem variações a partir de cada contexto social e político, e, portanto, é repleto de contradições. Assim, a trajetória atravessa diversos momentos (não etapas ou fases) e requer critérios e parâmetros metodológicos para definição dos momentos históricos, sendo o passo inicial desses parâmetros os fundamentos do Pronatec, na busca de identificar o seu verdadeiro conteúdo e confrontar se o Programa está sendo realizado como previsto (Scheirer 1994).
Por isto, é importante discutir sobre a trajetória do Pronatec e trazer reflexões sobre as vinculações do Programa com o contexto da chamada reforma do ensino médio, para explicitarmos, por meio dos fundamentos expressos nas legislações, como esse caminho vem sendo construído.
A lei criadora do Pronatec, Lei n° 12.513/2011, no seu artigo 1°, estabeleceu como objetivos, entre outros: “expandir, interiorizar e democratizar a oferta de cursos de educação profissional técnica de nível médio presencial e a distância e de cursos e programas de formação inicial e continuada ou qualificação profissional; Contribuir para a melhoria da qualidade do ensino médio público, por meio da articulação com a educação profissional; estimular a articulação entre a política de educação profissional e tecnológica e as políticas de geração de trabalho, emprego e renda” .
É possível observar, considerando esses objetivos, a relação direta do Pronatec com o ensino médio público, a partir da oferta por meio de cursos concomitantes. Vejamos como foram declaradas as modalidades do Pronatec:
Art. 5o Para os fins desta Lei, são consideradas modalidades de educação profissional e tecnológica os cursos:
I - de formação inicial e continuada ou qualificação profissional; e II - de educação profissional técnica de nível médio; e
III - de formação de professores em nível médio na modalidade normal.
§ 1o Os cursos referidos no inciso I serão relacionados pelo Ministério da Educação, devendo contar com carga horária mínima de 160 (cento e sessenta) horas.
§ 2o Os cursos referidos no inciso II submetem-se às diretrizes curriculares nacionais definidas pelo Conselho Nacional de Educação, bem como às demais condições estabelecidas na legislação aplicável, devendo constar do Catálogo Nacional de
Cursos Técnicos, organizado pelo Ministério da Educação (BRASIL, 2011, n.p.).
A meta que foi anunciada para implementação desses cursos, logo após a criação do Programa, foi de formar mais de 8 milhões de brasileiros, no período de 2011 a 2014. À primeira vista, essa meta pode apresentar-se como uma perspectiva muito interessante de possibilitar o acesso da população brasileira à qualificação profissional, todavia o que precisa ser refletido é o significado de se oferecer cursos FIC de 160 e técnicos concomitantes, ao invés de se ampliar o acesso à educação profissional integrada à educação propedêutica. Cabe aqui amparar-nos em Barry e Rae (1975), ao exporem que, na avaliação de uma política pública ou, no caso Programa, deve-se voltar para análise de se questionar a intenção de uma política ser preferível à outra.
Conforme apresentamos na introdução, a política de educação profissional no Brasil esteve, ao longo dos anos, permeada por dois projetos em disputas, como enfatiza Ramos (2004), sendo um voltado a um modelo de educação baseado na formação técnica para os filhos da classe trabalhadora, outro de formação propedêutica para os filhos das elites brasileira e outro defendido pelos movimentos sociais por uma educação pública, cuja formação deve integrar trabalho, ciência, tecnologia e cultura. No Governo Lula, com a revogação do Decreto 2.208/97 (esse Decreto proibia terminantemente a integração entre educação propedêutica e educação profissional), houve alguns avanços numa declarada intenção em se construir uma política de educação profissional que atendesse em alguma medida as reivindicações históricas da classe trabalhadora. Apresentamos que o Pronatec, ao propor os cursos FIC e o médio técnico concomitantemente, explicitamente figura-se como um Programa que mostra, como fundamentação, o oferecimento de formação meramente técnica para a classe trabalhadora. Com isso, reafirma a dualidade estrutural, tendo em vista que se direciona a formação técnica aos filhos da classe trabalhadora e aos sujeitos que vivenciam situações de vulnerabilidade social, que é parte integrante do
processo de exploração capitalista. Vejamos a quem se destina o programa:
Art. 2o O Pronatec atenderá prioritariamente:
- estudantes do ensino médio da rede pública, inclusive da educação de jovens e adultos;
- trabalhadores;
- beneficiários dos programas federais de transferência de renda; e
- estudante que tenha cursado o ensino médio completo em escola da rede pública ou em instituições privadas na condição de bolsista integral, nos termos do regulamento (BRASIL, 2011, n.p.).
Ao se voltar a atender prioritariamente estudantes da rede pública de ensino, trabalhadores e beneficiários dos programas federais de transferência de renda, o Pronatec assume o que foi posto ao longo da história da educação brasileira: educação técnico-instrumental destinada à classe trabalhadora, cujo discurso principal é “atender as demandas do setor produtivo”. Dessa maneira, o Pronatec caminha na contramão da perspectiva de formação politécnica.
Em relação à oferta do Pronatec, os cursos técnicos, na forma concomitante, estão ligados à bolsa-formação estudante9 e os cursos FIC estão relacionados à bolsa-formação trabalhador e apresentam como características e objetivos:
Art. 17. São objetivos e características da Bolsa-Formação Estudante:
- formar profissionais para atender às demandas do setor produtivo e do desenvolvimento socioeconômico e ambiental do País;
- contribuir para a melhoria da qualidade do ensino médio público, por meio da articulação com a educação profissional; e
- ampliar e diversificar as oportunidades educacionais aos estudantes, por meio do incremento da formação técnica de nível médio.
[...]
Art. 38. São objetivos e características da Bolsa-Formação Trabalhador:
- formar profissionais para atender às demandas do setor produtivo e do desenvolvimento socioeconômico e ambiental do País;
- ampliar as oportunidades educacionais por meio da educação profissional e tecnológica com a oferta de cursos de formação profissional inicial e continuada;
- incentivar a elevação de escolaridade; e
- integrar ações entre órgãos e entidades da administração pública federal e entes federados para a ampliação da educação profissional e tecnológica [...] (MEC, 2013, n.p., grifos nossos).
9 Tanto a bolsa- formação estudante quanto a bolsa-formação trabalhador foi a forma encontrada pelo Governo para repasse de recursos financeiros do Programa a própria Rede de Educação profissional e tecnológica, como principalmente a manobra jurídica para destinação de verbas públicas para o Sistema S e demais empresas privadas.
No que se refere aos objetivos expostos no documento citado (Portaria n° 168/2013), fica claro que a intenção declarada do Pronatec é “formar profissionais para atender às demandas do chamado setor produtivo e do desenvolvimento socioeconômico e ambiental do País”. Este objetivo aparece tanto na bolsa- formação estudante (cursos técnicos) como na bolsa-formação trabalhador (cursos FIC). Isso também foi posto no documento que enviou o Projeto de Lei do Pronatec à Presidência da República, justificando-se com o chamado “apagão de mão de obra”. Vale relembrar que essa ligação que se propaga da educação com o desenvolvimento econômico segue uma tendência mundial, como apontamos anteriormente.
Em relação à formação, para o atendimento das demandas do setor produtivo por meio dos cursos FIC, com carga horária de 160 horas, como se propõe o Pronatec na Bolsa-formação trabalhador, é pertinente atentar que esses cursos, na maioria das vezes, não formam para o mercado de trabalho. Pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-2010)10, realizada em 2010, demonstra que a incidência dos cursos FIC11, para inserção no mercado de trabalho, fica bastante aquém, em comparação com os cursos técnicos de nível médio e principalmente no que se refere aos cursos superiores.
Moura (2012), ao analisar o Pronatec, faz referência aos estudos da FGV e afirma que a pesquisa, por mais que tenha sido patrocinada para atender aos interesses dos capitalistas, põe em evidência que a execução dos cursos de curta duração no Pronatec volta-se para “contenção social por meio do qual proporciona educação pobre para os pobres” (MOURA, 2012, p. 26). Assim, é que vinculamos a oferta dos cursos FIC mais diretamente à contribuição do cumprimento da função de legitimação do Estado capitalista.
Outro objetivo levantado para a Bolsa-formação Estudante foi o de “contribuir para a melhoria da qualidade do ensino médio público, por meio da articulação com a educação profissional” (MEC, Portaria 168, art. 17, inciso II).
Refletindo sobre essa pretensa perspectiva de melhoria da qualidade do ensino médio público, por meio do Pronatec com os cursos técnicos concomitantes, é que percebemos vinculações direta dessa oferta com o que foi
10 Disponível em: http://cps.fgv.br/VOT2, acesso em: setembro de 2014.
11 Qualificação profissional é o termo utilizado na pesquisa para os cursos FIC.
posto na Lei Nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, que reformulou o ensino médio brasileiro. Além disso, também compreendemos que o formato traçado para a política de educação, tanto com o Pronatec como com a Reforma do Ensino Médio, atende prontamente ao contexto mundial de mercadorização da educação e de fragmentação do conhecimento. Percebe-se que a política de educação é organizada para atender os processos de reprodução do sistema capitalista, dentro da lógica da divisão social do trabalho.
Nessa linha de reflexão, Kuenzer (2005) argumenta que, para reprodução do capital, é necessário que a força de trabalho esteja qualificada de forma desigual para ocupação dos postos de trabalho, enfatizando-se, portanto, o papel fundamental dos cursos de baixa qualificação.
Os fundamentos da Lei Nº 13.415/2017, que reformulou o ensino médio, retomam claramente a separação entre educação propedêutica e educação profissional. Isso porque fragmenta o ensino médio por área de conhecimento por meio de cinco arranjos curriculares que são: I - linguagens e suas tecnologias; II - matemática e suas tecnologias; III - ciências da natureza e suas tecnologias; IV - ciências humanas e sociais aplicadas; V - formação técnica e profissional.
Convém apresentar que essa Lei alterou não apenas artigos da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), mas também da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), do FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), revogou uma lei que tornava obrigatório o ensino do Espanhol e instituiu a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral.
Uma das justificativas apresentada para o Governo Temer instituir a Reforma do Ensino médio, por meio da Medida Provisória (MP 746/2016), instrumento incomum na Política de Educação até na Ditadura Militar, foi a de possibilitar a flexibilização do currículo, a partir da suposta escolha dos estudantes do seu itinerário acadêmico (frente às cinco áreas dos arranjos curriculares). Entretanto a própria Lei Nº 13.415/2017, no seu artigo 4º, estabelece que a organização das áreas de conhecimento ficará a cargo de cada sistema de ensino. Isso quer dizer que nem todos os itinerários formativos serão ofertados por cada estabelecimento de ensino e que, assim, em determinados municípios ou regiões próximas das suas residências, os estudantes não terão
condições de escolherem que área seguir. Outra situação que mascara a suposta escolha dos estudantes é que o currículo do Ensino Médio será composto pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e pelo itinerário formativo, no entanto o processo seletivo para acesso ao ensino superior considerará apenas as competências e as habilidades definidas na BNCC (Art. 5º, Lei Nº 13.415/2017).
Em que pese aos aspectos problemáticos da BNCC12, no que se refere principalmente à visão fragmentada do conhecimento, bem como por invisibilizar as questões de gênero e orientação sexual e enfatizar o ensino religioso, muitos estudiosos da área da educação enfatizam veementemente que tal base aumentará ainda mais as discrepâncias entre o ensino público e privado. Assim, ao considerar apenas a BNCC para o processo seletivo de acesso ao ensino superior, a Lei Nº 13.415/2017 beneficia os estudantes das escolas privadas, considerando que o objetivo central dessas escolas é o acesso ao ensino superior e não há nenhuma restrição na oferta exclusiva das competências e habilidades da Base Nacional Comum Curricular. Pelo contrário, o artigo 4º, § 3°, dessa Lei prevê que, a critério dos sistemas de ensino, poderá ser composto itinerário formativo integrado, que se traduz na composição de componentes curriculares da BNCC e dos itinerários formativos. Isso pode ser aplicado pelas escolas privadas para atender a necessidade de preparar os estudantes para o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), principal porta de acesso ao ensino superior na atualidade.
No que diz respeito à oferta do itinerário da formação técnica e profissional, a lei que reformulou o ensino médio estabelece as chamadas parcerias para ofertada dos cursos, vejamos:
Art. 4º: § 6o A critério dos sistemas de ensino, a oferta de formação com ênfase técnica e profissional considerará:
I - a inclusão de vivências práticas de trabalho no setor produtivo ou em ambientes de simulação, estabelecendo parcerias e fazendo uso, quando aplicável, de instrumentos estabelecidos pela legislação sobre aprendizagem profissional;
§ 8º A oferta de formação técnica e profissional a que se refere o inciso V do caput, realizada na própria instituição ou em parceria com outras instituições, deverá ser aprovada previamente pelo
12 Aprovada no dia 15 de dezembro de 2017, pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) por 20 votos favoráveis e três contrários.
Conselho Estadual de Educação, homologada pelo Secretário Estadual de Educação e certificada pelos sistemas de ensino.
§ 11.º Para efeito de cumprimento das exigências curriculares do ensino médio, os sistemas de ensino poderão reconhecer competências e firmar convênios com instituições de educação a distância com notório reconhecimento, mediante as seguintes formas de comprovação (BRASIL,2017, destaques nossos).
Essa perspectiva de denominadas parcerias para oferta da educação profissional já está em curso com o Pronatec, na sua versão do MedioTec, cujo vínculo com a reforma do ensino médio é apresentada em página eletrônica oficial do Governo13:
O MedioTec é uma das novas ações do Governo Federal que funciona como uma forma de braço direito do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec). A intenção do MedioTec 2017 é disponibilizar uma formação profissional e técnica de forma integrada aos ensinos básicos de ensino médio em tempo integral O plano inicial é que o programa forneça um total de 82 mil vagas em todo o Brasil, de acordo com palavras do ministro da Educação e do presidente Michel Temer. O MedioTec nasce como uma tentativa de também acelerar o processo de mudanças que está em vigor na Medida Provisória 746/2016 – medida esta que tem como objetivo uma reforma do ensino, principalmente médio, no país inteiro. A formação integrada, portanto, é uma tentativa de viabilizar exclusivamente para jovens alunos do ensino médio uma dupla certificação através dessa integração com o Pronatec 2017.
A meta do MedioTec para 2017, no que refere a atender 82 mil vagas, vem se a integralizar por meio de parcerias com as instituições privadas, institutos federais e o Sistema S, conforme apresentado na página eletrônica anteriormente citada.
É importante resgatarmos que, nessa dimensão da parceria público- privada, que caminha no sentido da privatização da educação, boa parte dos documentos publicados no Pronatec está relacionada à transferência de recursos para as instituições privadas.
Com isso, observamos que, no atual momento o Pronatec, por meio da oferta dos cursos técnicos com o MedioTec, ao invés da centralidade nos cursos FIC, o Programa está mais direcionado a beneficiar as empresas privadas,
13 Disponível em: http://mediotec.pro.br/, acesso em: 15 de dezembro de 2017.
pressupondo uma contribuição mais direta com a função de acumulação do Estado Capitalista. Constatamos isso tanto pela transferência dos recursos públicos para instituições que ofertam o MedioTec, como também pela natureza dos cursos técnicos estarem mais relacionados ao atendimento dos setores produtivos, do que os cursos FIC.
Como a pesquisa ainda está em andamento, entendemos que os dados da implementação do Programa, no que se refere principalmente às Instituições que ofertam o MedioTec e a base curricular dos cursos, fornecer-nos-ão respostas para as nossas hipóteses.
Não é forçoso enfatizar que a configuração, que vem assumindo a política de educação profissional no Brasil, com o Pronatec e com a Reforma do Ensino Médio, atende a lógica do contexto mundial, em que a educação, bem como os outros níveis ou dimensões da vida numa sociedade capitalista também termina sendo tratada, predominantemente, como uma mercadoria.
A título de considerações gerais, no que se refere ao apresentado pela Lei Nº 13.415/2017, refletimos que a separação por área de conhecimento não possibilita a formação integral dos estudantes, sobretudo na realidade brasileira em que a primeira etapa da educação básica é bastante frágil. Para além disso, a definição dos itinerários, a cargo dos sistemas de ensino, impossibilitará que os estudantes possam escolher a área de formação (ideia que foi vendida para justificar a reforma). O congelamento dos recursos públicos, por meio da Emenda Constitucional 95 (15/12/2016), que limita por 20 anos os gastos públicos, inviabilizam o funcionamento de escolas em tempo integral e também da ideia de melhoria da qualidade do ensino médio.
A Lei Nº 13.415/2017 apresenta vários caminhos para privatização do ensino profissional e gestão privada das escolas. Outros descompassos também são apresentados, mas não foram objeto de discussão nossa nesse momento, a exemplo de se estabelecer que profissionais com notório saber possam ministrar conteúdos de áreas afins à sua formação ou experiência profissional, além do envolvimento de Instituições a distância com notório conhecimento.
Os fundamentos da Reforma do Ensino Médio são ancorados nas bases do Pronatec, e não é à toa que o Programa, com o MedioTec, está sendo anunciado pelo Governo como como uma tentativa de se acelerar o processo de mudanças da Lei Nº 13.415/2017.
Em suma, tanto o Pronatec como a Reforma do Ensino médio têm um projeto bem definido de contribuição para reprodução do sistema capitalista. A principal manifestação de cunho ideológico assenta-se no economicismo, a evidenciar o que aparece nos documentos e discursos oficiais da vinculação direta entre a política educacional e o desenvolvimento econômico. Desse modo, a concepção de educação é centrada na formação exclusivamente técnica em detrimento de uma formação capaz de possibilitar formação ampla, por meio da integração entre educação, trabalho, ciência e tecnologia. Portanto, evidenciamos uma maior acirramento da dualidade estrutural da educação nessa trajetória atual do programa.
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Recebido em: 28 de fevereiro de 2018. Aprovado em: 01 de junho de 2018. Publicado em: 21 de novembro de 2018.
Rafael Márcio Kreutzer2 Adriana D’Agostini3
Resumo
Trata-se de jovens de escolas rurais e urbanas, problematizando sua condição de trabalho, educação e perspectivas de futuro. A pesquisa de campo foi através de questionários e grupos focais. Os dados evidenciaram mais semelhanças do que divergências entre a condição dos jovens urbanos e rurais. A maioria dos jovens são trabalhadores desde muito cedo e para muitos a educação aparece como alternativa para o mercado de trabalho capitalista, além de tenderem a rejeitar a autoridade da instituição escolar e do Estado. Os jovens procuram na escola espaços de cultura, esporte e sociabilidade.
Palavras-chave: Juventude. Trabalho. Educação.
Resumen
Trata de jóvenes de escuelas rurales y urbanas, problematizar su condición de trabajo, educación y perspectivas de futuro. La investigación de campo fue a través de cuestionarios y grupos focales. Los datos evidenciaron más similitudes que divergencias entre los jóvenes rurales y urbanos. La mayoría de los jóvenes son trabajadores desde muy temprano y para muchos la educación es alternativa para el mercado de trabajo capitalista, además de tender a rechazar la autoridad de la institución escolar y del Estado. Los jóvenes buscan en la escuela espacios de cultura, deporte y sociabilidad.
Palabras clave: Jóvenes; Trabajar; Educación.
Introdução
Este artigo é um desdobramento de duas outras pesquisas: uma delas, a maior, vem sendo realizada em dez escolas, que atendem os jovens da região periférica do centro de Florianópolis, buscando as relações que estes jovens fazem entre a escola, o trabalho e a cultura de onde vivem3. A segunda pesquisa
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i30.p10093
4 O projeto de pesquisa mencionado se chama Juventude pobre e escolarização: relações com a
escola e a cultura em territórios de precariedade, coordenado pela Prof.ª Drª Luciana Pedrosa
está vinculada à primeira e tem como objetivo traçar as semelhanças e as diferenças entre a juventude do campo e da cidade quanto às suas perspectivas diante do trabalho, da educação e do futuro4.
Mudanças econômicas, tecnológicas, demográficas, sociais e culturais, a nível mundial a partir da segunda metade do século XX, aprofundaram uma fissura entre a jovem geração que surgia a partir da década de 1950 e a geração de seus pais (HOBSBAWM, 1995). A crise econômica que se iniciou na década de 1970; o acirramento do desemprego crônico (MÉSZÁROS, 2002) e as reformulações de propostas educativas liberais (ALGEBAILE; RUMMERT; VENTURA, 2011) evidenciaram a reestruturação do capital e já apontavam para os obstáculos que enfrentaria a juventude do século XXI.
O objetivo desta pesquisa é analisar quais as condições em que se encontram os jovens do campo e da cidade no que se refere ao trabalho, à educação e ao futuro, e quais as expectativas que estes jovens têm quanto a estes três elementos.
Para a coleta de dados desta pesquisa estivemos em quatro escolas públicas de Santa Catarina. Duas do campo: EEM Paulo Freire e EEM Semente da Conquista, situadas em assentamentos da reforma agrária, em Abelardo Luz. E duas da cidade: EEB Getúlio Vargas e Instituto Estadual de Educação, situadas no centro de Florianópolis, na região do entorno do Maciço do Morro da Cruz, um complexo montanhoso situado na zona central de Florianópolis onde se concentram dezenas de comunidades em condição de vulnerabilidade socioeconômica. Os sujeitos da pesquisa foram 319 jovens estudantes da cidade e 152 jovens estudantes do campo, totalizando 471 jovens5 – a maioria entre 15 e
Marcassa, docente do departamento de Metodologia de Ensino, na Universidade Federal de Santa Catarina.
4 O projeto de pesquisa mencionado se chama Juventude do campo e da cidade: relação trabalho, educação e perspectivas de futuro, coordenado pela Prof.ª Drª Adriana D’Agostini, docente do departamento de Estudos Especializados em Educação, na Universidade Federal de Santa Catarina.
5 A diferença entre o número de jovens pesquisados nas escolas da cidade e nas escolas do
campo é um indicativo e uma problematização sobre o êxodo rural jovem e a pouca oferta de Ensino Médio no campo, questões que orientam as condições de existência em um lugar, porém estes aspectos serão tratados mais a frente neste artigo.
18 anos. Como dados para a análise trabalhamos 471 questionários6 respondidos pelos jovens, três grupos focais (entrevistas coletivas)7 realizadas com os jovens das escolas urbanas, uma roda de conversa realizada com jovens do MST8, em que participavam alguns jovens dos assentamentos de Abelardo Luz, e um diário de campo. Para a análise, devido à proximidade da temática e poucas pesquisas referentes aos jovens do campo, nos apoiamos também nos depoimentos frutos das entrevistas contidas na tese de doutorado da professora e pesquisadora Janata (2012), realizadas com jovens do Assentamento Marcos Freire (MST), situado em Rio Bonito do Iguaçu, Paraná.
Os dados apresentaram mais semelhanças do que divergências entre a condição dos jovens urbanos e campesinos. Foi possível perceber que a grande maioria dos jovens, tanto do campo quanto da cidade, são trabalhadores desde muito cedo e que para muitos deles a educação aparece como alternativa para o mercado de trabalho capitalista, embora não saibam ao certo que tipo de trabalho buscam nesse mercado. Boa parte dos jovens não apresentou projetos sólidos, seguros ou esperançosos para as suas vidas, mas por outro lado demonstraram, em certa medida, rejeição à autoridade da instituição escolar e do Estado e, ainda, procuraram na escola aquilo que ela não se propõe: espaços de cultura, esporte e sociabilidade. Partindo do percurso histórico que apontávamos, percebemos a juventude imersa em incertezas de um contexto de convenções sociais e culturais esfaceladas, do desemprego crescente e do comprometimento das políticas educacionais com a lógica da economia liberal. Esses jovens quase sempre demonstraram conformismo e alienação diante desta situação, mas por outro lado há indícios de negação desse contexto, reivindicando, quase nunca de forma consciente e tampouco organizada, algo mais que a vida reduzida reservada a eles pelo capital.
6 Os questionários apresentavam 36 perguntas fechadas e uma aberta. Estivemos presentes em sala enquanto os jovens respondiam e os instruímos para que assinalassem apenas uma alternativa por questão. Algumas questões tinham a alternativa “outro”, onde poderiam dar uma resposta mais específica. O tratamento estatístico foi realizado pelo programa de estatística descritiva chamado de software MODALISA 7, Licence Educátion et Récherche.
7 Os grupos focais eram feitos de acordo com a disponibilidade dos estudantes e da escola, variando entre cerca de 4 a 15 participantes.
8 A roda de conversa com os estudantes do campo foi possível devido a um trabalho dos autores
em um curso de formação para jovens do MST, onde ocorreu uma roda de debates sobre a juventude do campo.
O jovem trabalhador estudante
Quanto à categoria trabalho, buscamos conceituá-la segundo a teoria marxiana desde os apontamentos de Manacorda em sua obra Marx e a Pedagogia Moderna (MANACORDA, 2010). Assim, conforme indica o autor, levamos em consideração o caráter unilateral, empobrecido e predatório do trabalho sob a sociedade capitalista assentada sobre a divisão do trabalho, ao mesmo tempo em que percebemos a possibilidade da humanização dos indivíduos por meio do enriquecimento e ampliação dos significados do trabalho, podendo o indivíduo tornar-se omnilateral, ou seja, um indivíduo de múltiplas e integrais capacidades técnicas e intelectuais.
Em Marx e a Pedagogia Moderna buscamos também os fundamentos para a categoria educação, compreendendo que na sociedade capitalista a divisão entre trabalho prático e intelectual leva, por consequência, à unilaterialidade do ensino, tanto àquele voltado para a classe trabalhadora, puramente prático, quanto àquele voltado para a classe dominante, puramente abstrato (MANACORDA, 2010).
Para a categoria juventude, levamos em consideração as contribuições de Marialice Foracchi, que situa a juventude para além de questões estritamente biológicas e/ou geracionais, conferindo a esses conceitos também um caráter social na medida em que os jovens refletem de maneira especial as contradições do sistema capitalista (1972, p. 22). Dessa forma, a autora busca compreender o comportamento dos jovens como um acontecimento sócio-histórico. A partir dessa perspectiva9, pensamos a delimitação etária da juventude. Como atesta Suáres (2013), na sociedade moderna, a juventude passa a fazer parte de um ciclo de vida segmentado, especializado e instrumentalizado, e que, a partir desses pressupostos, passa a ser submetida a uma hierarquia de valores entre as gerações. O autor coloca que “a divisão etária da sociedade se potencializa
9 As categorias idade e geração são compreendidas por nós, a partir da perspectiva social de Foracchi (1972), que não faz uma cisão entre social, cultural e biológico e sim tenta demonstrar que a idade, a geração e as atividades direcionadas ao desenvolvimento em cada fase da vida são conduzidas pelas vivências e experiências sociais das pessoas. Assim, tem importância para o desenvolvimento humano as funções biológicas e cronológicas que tomaram diferentes formas de acordo com suas relações sociais ao longo dos tempos. Exemplo disso é a mudança conceitual da faixa etária que a juventude compreende, extremamente social e contextualizada, aumentou de 18 anos para 24 anos, depois para 29 anos e em alguns casos (Itália) para 39 anos, implicando a dependência econômica, de moradia, emprego, anos de escolarização.
consideravelmente quando se articula com a divisão social do trabalho, dos gêneros e do conhecimento”10 (SUÁRES, 2013, p. 17). Assim, de acordo com os estudos sobre a juventude e considerando uma delimitação sócio-histórica de idade, para esta pesquisa compreende-se juventude entre 12 e 29 anos.
Em relação aos jovens de nossa pesquisa, percebeu-se que é um mito dizer que a vida no campo e na cidade são opostas, romantizando, geralmente, um dos lados. Há os que dizem da suposta salubridade de viver no campo, já outros que dizem das “grandes” oportunidades de se ter uma vida de sucesso na cidade. Porém, ambos os espaços são parte do mesmo processo sócio-histórico do contexto capitalista e sofrem das principais contradições deste sistema. Os nossos dados não negam essa tendência, percebemos mais convergências do que divergências entre jovens do campo e da cidade, salvo algumas especificidades.
Começando pela condição financeira familiar, as respostas dos questionários nos mostram que a grande maioria dos jovens desta pesquisa são de famílias cuja renda mensal gira em torno de 1 a 4 salários mínimos, estando o contexto do campo um pouco mais precarizado11. Além disso, para o caso da cidade, alguns dos jovens, durante um dos grupos focais, relataram ajudar com as despesas da família. Um deles falava: “Eu dava cento e [inaudível] reais. Eu ganhava R$ 900,00 e o resto ficava para mim”1213. Enquanto que o outro complementa: “[Eu] dava uma quantia, uns 200 pila [reais] para minha mãe”14. No caso dos jovens do campo, Janata aponta, em sua tese, a participação dos jovens para a contribuição na economia doméstica “ajudando os pais nos serviços que envolvem o cuidado no lote” (JANATA, 2012, p. 110).
O trabalho é bastante presente na vida de grande parte dos jovens pesquisados, daqueles que vivem na cidade, 46% afirmaram já ter trabalhado ou ainda trabalhar, 51,9% disseram nunca ter trabalhado e 2,2% não responderam. A situação dos jovens do campo é ainda mais agravante, 70,3% afirmaram já ter trabalhado ou trabalhar, 28,3% afirmaram nunca ter trabalhado e 0,7% não
10 Tradução livre do espanhol para o português.
11 O salário mínimo na época em que foram aplicados os questionários estava no valor de R$ 724,00.
12 Optaremos por dar uma numeração aos jovens para não os expor.
13 Jovem 1 (Grupo Focal realizado em 04/11/2015).
14 Jovem 2 (Grupo Focal realizado em 04/11/2015).
responderam15.
E ainda, se considerarmos o trabalho doméstico ou trabalho informal, o número daqueles que já trabalharam e/ou trabalham aumentam. O trabalho doméstico como extensão do trabalho fora de casa fica evidenciado na fala de um dos jovens urbanos durante os grupos focais: “Eu sempre ajudei em casa […]. Os meus pais ficam o dia todo fora e então eu faço as coisas em casa e para mim”16.
Sobre trabalhar e estudar ao mesmo tempo, um dos jovens comentava: “No primeiro mês fiquei cansadão, tinha que vir para o colégio de manhã e ia pro banco [onde trabalhava como estagiário] de tarde, chegava em casa à noite e dormia cansado. Mas depois fui acostumando, né?”17. Nessa mesma entrevista os jovens comentam que ajudam com as atividades domésticas limpando a casa e contribuindo na hora de cozinhar.
Os trabalhos fora de casa a que os jovens se referem nas falas supracitadas são respectivamente um cargo de estágio em uma agência bancária e um trabalho informal (sem carteira assinada) como pedreiro. O crescente desemprego18 é parcialmente diluído em forma de trabalhos informais e/ou precarizados, de carga horária fragmentada e vínculos volúveis como estágios e contratos que dificilmente passam dos três meses. O desemprego estrutural do capitalismo impõe novas nomenclaturas e conceitos sobre o que é estar empregado a partir da lógica da “flexibilização” de contratos – para os que ainda possuem contratos – e impõe a informalidade para outra numerosa parte de trabalhadores, principalmente aos jovens estudantes/trabalhadores em busca de seu primeiro trabalho.
O trabalho informal parece permear a vida dos jovens pesquisados de uma
15 Este contraste entre jovens do campo e da cidade quanto à iniciação no trabalho pode ser apenas aparente, uma vez que para os jovens do campo a conexão entre o trabalho na lavoura e o trabalho em casa é bem mais expressa que no caso dos jovens da cidade, que nem sempre percebem o trabalho doméstico conectado a jornada fora de casa.
16 Jovem 3 (Grupo Focal realizado em 30/11/2015).
17 Jovem 1 (Grupo Focal realizado em 04/11/2015).
18 No Brasil, os últimos índices de desemprego apontam para 16% da população brasileira
desempregada, sendo deste percentual 15% de desemprego entre jovens. Nos países considerados desenvolvidos, os índices de desemprego também crescem: 24,4% na Grécia; 20,9% na Espanha; 12,2% em Portugal e 10,3% na França. É importante ressaltar que estes índices consideram um amplo significado para empregabilidade, levando em conta uma série de empregos informais, bem como fragmentos de jornada de trabalho – um sujeito que trabalhe uma vez por semana pode ser considerado não desempregado. Dados relativos aos meses de dezembro de 2015 e fevereiro de 2016 – Disponível em: <http://pt.tradingeconomics.com/country- list/unemployment- rate>> Acesso em 24 out. 2016.
maneira muito perversa. Percebemos, por meio dos nossos dados, que muitos dos jovens urbanos têm sua vida atravessada pelo narcotráfico de forma direta e/ou indireta. As respostas que obtivemos dos jovens urbanos para a questão “Por que você acha que os jovens desistem da escola?”, nos dão algumas pistas sobre o envolvimento de alguns deles com drogas e narcotráfico. Quase metade dos respondentes da cidade apontou que as desistências são por desânimo e desmotivação para os estudos (44,7%). Em seguida, vem a questão da necessidade de trabalhar, com 16,6%, e depois, com 13,1%, vem a resposta “se envolvem com álcool e/ou drogas”.
Tendemos a crer que quando os jovens citadinos apontam o envolvimento com drogas como motivo de desistência escolar, o apontam não só pelas mazelas do uso dessas drogas, mas pelo fato de trabalharem com o narcotráfico ou pelo fato de terem suas vidas, de algum modo, atravessada pelos desdobramentos dessa atividade. Estas evidências foram identificadas principalmente nas questões abertas dos questionários, onde os jovens escreviam pareceres sem se identificar, o assunto das drogas e do tráfico foi recorrente várias vezes.
O trabalho, a ausência do trabalho ou a precarização extrema do trabalho atravessam a vida de parte relevante dos jovens desta pesquisa, sendo essa categoria indispensável para entendermos as perspectivas dos mesmos.
A escola e as perspectivas de futuro
De acordo com os questionários aplicados, o trabalho ou a necessidade de trabalhar é uma realidade para mais de 60% dos jovens urbanos e para mais de 80% dos jovens do campo. Podemos pensar que aqueles que não trabalham, mas que dizem precisar trabalhar, não o fazem por opção, pois decidem terminar os estudos primeiro ou, o que é mais provável, porque mesmo querendo não encontram emprego. Esta última alternativa é a mais provável, pois, como vimos, a condição econômica das famílias de onde vêm esses jovens não lhes deixa muitas alternativas. Sobre esse ponto Janata (2012, p. 110) expressa,
Empregar-se tardiamente, aliado à permanência nos estudos, não é um contexto colocado a grande parte dos jovens da classe trabalhadora. […] Como afirma Frigotto (2004), [os jovens] associam constantemente trabalho e estudo. Quando não o
fazem, não ocorre pelo fato de ser uma opção, e sim uma falta dela (JANATA, 2012, p. 110).
Podemos pensar ainda que, na impossibilidade de encontrar trabalho ou não se submetendo a qualquer tipo de trabalho, buscam na escola o meio de formação para um melhor desempenho profissional.
A relação dos jovens com a escola nos coloca uma série de reflexões a serem consideradas. Vamos tentar trabalhar algumas que julgamos as mais relevantes, a começar pela escolarização como formação para o trabalho.
Vimos até aqui que os jovens abordados nessa pesquisa têm sua condição social e suas expectativas enviesadas pelo trabalho – pela presença ou ausência dele – e a escola, naturalmente, não fica fora dessas expectativas. Dentre as utilidades da escola, os estudantes apontam a oportunidade de melhor inserção no trabalho, ou, ainda, a única chance de inserção no trabalho, já que sem escolarização, considerando os altos níveis de desemprego, não há oportunidades de trabalhar ou restam os subempregos e empregos informais.
Em um dos grupos focais, um estudante dizia que desejava fazer um supletivo para então trabalhar19. Mostrando, portanto, de forma bastante direta qual objetivo dava para os estudos. Outro estudante dizia que necessitava estudar “pelo menos até o segundo ano do ensino médio. […] Tipo, hoje [em dia], na COMCAP20 pede o segundo ano do ensino médio. É um dos serviços que ganham bem. Na COMCAP ganha mil e pouquinho [reais]”21. Evidenciando mais uma vez a relação que fazem entre educação e trabalho. Já a perspectiva de futuro está em pequenos sonhos, delineados “entre “plano b” e “saídas de emergência”” (Silva, 2015), como ser empregável, por exemplo.
No caso dos jovens campesinos, Janata constatou em sua pesquisa que dentre os 138 jovens que acabaram o Ensino Médio na escola do assentamento em Rio Bonito do Iguaçu – PR, permaneceram lá apenas 42, o que corresponde a 32%. Dentre os motivos, a autora destaca a busca de trabalho, uma vez que a produção no lote muitas vezes não é suficiente para a sobrevivência da família (JANATA, 2012, p. 115). A autora traz alguns depoimentos em sua pesquisa: “Saí
19 Jovem 2 (Grupo Focal realizado em 04/11/2015).
20 A Companhia de Melhoramento da Capital (Comcap) é a empresa responsável pela coleta do lixo e pela limpeza de Florianópolis.
21 Jovem 1 (Grupo Focal realizado em 04/11/2015).
assim para... Como eu posso dizer? Ali não tinha muito serviço, tipo, no lote do pai o que eles fazem, trabalham, eles se viram sozinhos. Mas eu lá ia estar sobrando, não fazia muita coisa. Então achei que devia sair pra trabalhar.”
Relatos parecidos foram trazidos por jovens de Santa Catarina em roda de conversa durante um seminário de formação efetuado com jovens camponeses de diversas regiões do Estado. Esses jovens comentavam sobre a dificuldade em compartilhar o lote com os pais, dizendo não ter um espaço para sua produção autônoma, sendo assim, o que podiam fazer era ajudar os pais, às vezes podendo opinar, às vezes não, na produção, que em última instância era coordenada pelo patriarca.
Devem servir ainda de pista sobre as motivações de evasão rural dos recém-formados jovens do campo, os comentários de alguns professores e gestores das escolas envolvidas nesse trabalho, dizendo que era comum jovens se escolarizarem para então trabalhar fora do assentamento, em grandes empresas de alimentos como a Aurora e a Perdigão22.
No questionário, fizemos a pergunta: “Por que você vem à escola?”. O retorno com maior incidência, para a juventude de ambas as regiões, foi: “para adquirir conhecimento”, com 45,3% para os jovens da cidade e 55,3% para os campesinos. Em segundo lugar, veio a resposta: “porque desejo melhorar meu futuro e de minha família”, respectivamente com 25,6% e 28,3%.
Esta resposta, consideramos ter um sentido bastante pragmático e diretamente relacionado ao trabalho, ou seja, os jovens vão à escola para conseguir um bom emprego e melhorar o seu futuro e de sua família. Quanto à primeira resposta, aquela com maior incidência, é de significado ambíguo e demanda um pouco mais de atenção. O que querem dizer com “conhecimento”? Esta foi exatamente a pergunta que fizemos em um grupo focal. Os jovens colocaram o seguinte:
Jovem 1: o que tem utilidade.
Jovem 2: o que se pode levar para o futuro.
Jovem 3: penso que a escola tem que nos preparar para o mundo lá fora. Qualquer escola está preparando a gente para agir lá fora, sempre tem muita competição, tem amizade. Porque lá fora a gente vai ter que conversar, que se envolver com o trabalho de outras pessoas (Jovem 4: e pedir ajuda) é. Porque a final de
22 Informações obtidas no diário de campo.
contas sem conhecimento a gente não chega em lugar nenhum. Jovem 2: tem que ter conhecimento para a vida toda, lá fora tudo exige conhecimento. Conhecimento é futuro.
O futuro com o qual estão lidando em suas falas, não é um futuro histórico, social, aberto a transformações radicais, mas um futuro pragmático, imediato, que diz respeito a sua sobrevivência no mercado de trabalho.
O que querem dizer com “conhecimento que tenha utilidade para o futuro” aparece mais nítido na continuação das falas. Sobre a importância do conhecimento contido no conteúdo das disciplinas um dos jovens comentou que depende “do que a pessoa quer na sua carreira […]”. Ou seja, há uma associação direta entre conhecimento e trabalho. O mesmo jovem, ao responder sobre as possibilidades de inserção no mercado de trabalho, disse que “depois dos estudos e de tudo que tens que aprender, tens que ir para o mercado de trabalho e aí tu vais aprender com os teus acertos e com os teus erros. […]”.
Em outra fala temos ainda:
Porque, tipo, o mercado de trabalho escolhe as pessoas que tiram as melhores notas, que tem os melhores currículos. Então a gente tem que se preparar para ter as melhores notas, os melhores currículos, para quando chegar lá na frente, a gente ter a oportunidade de trabalhar naquilo que a gente se formou. Não simplesmente pegar qualquer emprego.23
São relatos bastante esclarecedores quanto à ideia que têm de “conhecimento”. Algo diretamente relacionado às oportunidades de trabalho no mundo capitalista.
Na mesma direção dos dados da presente pesquisa, Guimarães, ao pesquisar escolas na periferia do Rio de Janeiro, sintetiza o caráter da escola como ponte para melhores oportunidades de emprego. Vejamos:
Pode-se perceber, ainda, entre os estudantes das escolas pesquisadas, a visão da escola como fonte de instrumentalização para inserção na vida social e cultural através da apropriação mínima dos códigos de acesso à cultura letrada ou, ainda, pela via dos certificados escolares como estratégia de fuga de precárias condições de vida diante da elevação da exigência de credenciais educacionais para inserção no mercado de trabalho […]
23 Jovem 4 (Grupo Focal realizado em 11/11/2015).
(GUIMARÃES, 1998, p. 216).
Esta autora ainda expõe que
A visão restritiva do papel que pode ser desempenhado pela escola como possibilidade de melhoria de suas condições de vida e de trabalho não se origina, assim, apenas das novas condições econômicas e de emprego a que estão submetidos os jovens das camadas sociais menos favorecidas economicamente. Está contida na própria construção que se fez dessa escola. (GUIMARÃES, 1998, p. 215).
É dizer que além das condições econômicas dos jovens, também influencia em sua visão sobre a escola aquilo que historicamente é colocado sobre ela e aquilo que recentemente também vem se propagandeando.
A escola moderna surge no contexto capitalista e com o objetivo de domesticar moralmente e tecnicamente as massas para o trabalho explorado e para a vida alienada24. Desde seu surgimento até os dias atuais a escola moderna passa por transformações, mas nunca em sua estrutura essencial, mantendo sempre seu objetivo de manutenção da estrutura socioeconômica capitalista.
Com a reestruturação do capital frente à crise econômica iniciada na década de 1970, à financeirização da economia, ao crescimento do Terceiro Setor25, à reprimarização da economia brasileira e à diminuição da industrialização, consequentemente aumentou o desemprego e impulsionou outro modelo educacional necessário ao desenvolvimento do capital, ou seja, o modelo pedagógico das competências. A reconfiguração do trabalho leva a reconfiguração no plano pedagógico. De acordo com a nova perspectiva educacional capitalista, não mais é importante o ensino centrado nos conhecimentos disciplinares, mas sim competências específicas voltadas para objetivos determinados do mercado de trabalho. A Pedagogia da Competência é
24 Autores como Thompson (2002) e Enguita (1989) possuem trabalhos bastante especiais sobre o tema e os tomamos como referência.
25 Terceiro setor é formado por associações e entidades sem fins lucrativos, e é classificado como terceiro setor, em sociologia. O termo é de origem americana, Third Sector, muito utilizado nos
Estados Unidos, e o Brasil utiliza a mesma classificação. A sociedade civil é dividida em três setores, primeiro, segundo e terceiro. O primeiro setor é formado pelo Governo, o segundo setor é formado pelas empresas privadas, e o terceiro setor são as associações sem fins lucrativos. O terceiro setor tem se ampliado e se apropriado do fundo público de forma gerencial e privada através das parcerias entre público-privado, atuação de ONGs, OCIPs, OSs contribuindo para a precarização e terceirização dos serviços público (Montaño, 2002).
essencialmente pragmática: para qualquer aprendizagem que se pretenda é necessário já haver um fim. Autoras como Rummert, Algebaile e Ventura (2011) atentam para o fato de no Brasil esses esforços já serem correntes desde a década de 1990. São exemplos disso os constantes ataques à escola pública, na mira de todos os instrumentos que o capitalismo dispõe, desde o sucateamento e a precarização do ambiente escolar, de seus recursos e de seus funcionários, até o ataque ideológico, notadamente por parte dos aparatos midiáticos, e, ainda, por meio da imposição de diretrizes educacionais pautadas por organismos internacionais.
Vejamos as respostas dos jovens sobre o que pretendem após terminar o ensino básico e sobre quais são seus projetos profissionais. A começar pelos jovens do campo: 31,6% respondeu “fazer uma faculdade e trabalhar” e 22,4% respondeu “fazer um curso técnico profissionalizante e arrumar um emprego”. Ou seja, mais de 50% dos jovens do campo pretendem dar continuidade aos estudos relacionando-os ao trabalho.
A resposta sobre o que querem estudar está ainda um pouco imprecisa. Na questão que deveriam responder se possuem um projeto profissional, dos jovens campesinos, 36,8% responderam que não tinham nenhum projeto profissional naquele momento, outros 23% responderam “um projeto que me realize profissionalmente” e 17,8% responderam “qualquer um porque dependerá das oportunidades”. Se considerarmos esta última resposta e a primeira como uma só, teremos mais da metade dos jovens sem projeto profissional, e se arriscarmos interpretar “um projeto que me realize profissionalmente” como um não-projeto, teremos quase a totalidade nesta situação.
O caso dos jovens urbanos não muda muito: 35% pretendem fazer uma faculdade ao mesmo tempo em que trabalham, outros 15,3% pretendem estudar para o vestibular e/ou ENEM, e 12,8% pretendem fazer um curso técnico profissionalizante e arrumar um emprego. Vemos, então, mais da metade dos jovens com intenções de continuar os estudos, sendo que quase a metade pensa nos estudos vinculados ao trabalho.
Porém, novamente vemos um grande número de jovens sem projeto profissional. “Um projeto que me realize profissionalmente” foi a resposta mais procurada, com 35%; em seguida vem “fazer um concurso público”, com 19,1%;
outros 14,7% responderam não ter um projeto profissional no momento; e apenas 9,7% apontaram projetos específicos. Se novamente considerarmos as respostas “Um projeto que me realize profissionalmente” e “não tenho um projeto profissional no momento”, teremos praticamente 50% de jovens sem projeto profissional.
A fala de um jovem citadino entrevistado talvez esboce bastante do que seria um projeto que realize profissionalmente: “uma profissão que eu goste, que eu possa me realizar, que me dê dinheiro, mas não só isso, mas fazer o que eu gosto.”26 Mas o que gostam, poucos arriscam dizer. Via de regra, os projetos são imediatistas, o que se almeja é a melhor maneira de sobreviver.
Esta perspectiva nos parece muito adequada à nova ordem econômica de que falávamos, bem como suas correspondentes propostas para a educação, ou seja, uma educação de caráter comportamental, flexível, assistencialista, segregada, meritocrática, moldada de acordo com as necessidades atuais do sistema, a saber: pluriatividade; rebaixamento salarial; retirada de direitos; destruição de forças produtivas; migrações forçadas; terceirização e precarização da força de trabalho, através da ampliação das expropriações e exploração dos trabalhadores. Nesse sentido, é coerente que os jovens queiram dar continuidade aos estudos, buscando melhor inserção no mundo do trabalho, mas que ao mesmo tempo não saibam o que necessitam para melhor se prepararem. O próprio sistema não lhes exige esta certeza, o bom mesmo é que estejam em constante “formação”, adquirindo competências para “o que der e vier”.
No entanto, apesar do forte vínculo que esses jovens fazem entre educação para o mercado de trabalho como perspectiva de futuro, vemos, ao mesmo tempo, algumas pistas de negação do sistema escolar vigente.
Indicativos de negação do formato escolar tradicional
Começamos encontrando um dos indicativos de negação do formato escolar tradicional quando os jovens dessa pesquisa demonstraram reprovar a estrutura física da escola e, além disso, demonstraram estar conscientes do papel do Estado nesta negligência. Um indicativo disso está nas respostas à pergunta
26 Jovem 5 (Grupo focal realizado em 30/11/2015).
“O que mudariam na escola?”, os jovens de ambas as localidades geográficas majoritariamente responderam a “estrutura física (salas de aula, laboratórios, quadras, biblioteca)”, com 34,4% para os citadinos e 38,8% para os campesinos. E se trouxermos os dados da questão sobre o que os jovens pensam serem os principais problemas da escola, teremos com maior incidência a resposta que aponta para “a falta de investimento do governo”, com 27% de peso sobre as respostas do campo e 20,9% sobre as da cidade. É importante ressaltar, para esta última questão, que, quando os jovens indicam a falta de investimento do governo como problema, podem estar indicando mais do que problemas da estrutura física da escola. Por exemplo, nas questões abertas dos questionários, um dos jovens campesinos expressou estar ciente das dificuldades da profissão de professor, dizendo que “pelo trabalho que fazem, os professores deveriam receber um salário melhor”.
A desaprovação dos jovens quanto à estrutura física da escola pode indicar apenas que querem melhores condições estruturais no sentido de preparo para a inserção no mercado, mas os dados que seguem nos apontam para além disso. A reprovação dos jovens diante da estrutura escolar não se dá apenas em relação ao seu aspecto físico, mas também com relação à forma como socialmente e ideologicamente está estruturada a escola.
A começar pelos jovens da cidade, ainda sobre a pergunta “O que mudariam na escola?”, a segunda resposta com maior incidência (15,6%) foi “direção”. O que ficou claro nos grupos focais é que essa rejeição significa uma resistência à estrutura hierárquica, autoritária e unilateral, como geralmente são conduzidas as escolas. Essa interpretação se fortalece quando observamos a mesma questão respondida pelos jovens do campo.
Neste caso, “a direção” aparece como a opção menos procurada, com 0,7%. E se checarmos outra questão, sobre o aspecto mais positivo da escola, em primeiro lugar, com 19,1%, os jovens campesinos responderam “direção”. Ou seja, o ponto de vista dos jovens do campo em relação à direção é contrário ao dos jovens urbanos. Mas por que pensamos ser este um fator de reafirmação do descontentamento dos jovens urbanos pela estrutura autoritária e hierárquica?
Temos, para as escolas do MST, um contexto peculiar, onde a cogestão é possível e frequentemente as lutas e greves por melhorias nas escolas e por
melhorias de condições de trabalho para os professores, em muitos casos, acontecem de forma conjunta entre gestão, professores e estudantes. Janata afirma que no ambiente de luta pela terra por parte dos trabalhadores do MST, “a escola passa a configurar-se num importante espaço formativo. Essa tem sido uma característica que vem acompanhando a trajetória da educação e da escola no MST […]” (JANATA, 2012, p. 135). Normalmente, a construção da escola no assentamento é garantida por meio de lutas acirradas, no caso específico das duas escolas de assentamento que analisamos aqui, além de os diretores serem (na época em que realizamos a pesquisa) militantes do Movimento, houve tentativas de implementar outras formas de organização escolar que não a tradicional27. Parte dos jovens pesquisados vivenciam na prática formas de ensino e organização escolar que prezam pela formação integral do estudante, bem como uma tentativa de organização escolar mais horizontal, coletiva, visando a participação conjunta entre gestão, professores e estudantes28. Nesse sentido, a aprovação dos jovens do campo quanto as gestões de suas escolas evidenciam um apreço por formas diferenciadas de organização escolar, confirmando os motivos pelos quais os jovens urbanos não gostam da direção de suas escolas29.
Seguindo com a análise dos dados, vemos ainda outros indicativos quanto à desaprovação dos jovens diante do formato escolar. Percebemos uma resistência desses jovens em aceitar a forma como os professores ensinam. E aqui vemos convergir novamente os pareceres dos jovens de ambos os espaços geográficos. Começando pelos jovens da cidade, na pergunta do questionário sobre o que dificulta seus estudos dentro da escola, colocaram: “a forma como os professores ensinam”, totalizando 18,1% das respostas; “dificuldade de aprendizagem (concentração, memorização, entendimento)”, com 17,5%; “o ambiente escolar (barulho, indisciplina, brigas)”, com 15,9%; “não tenho dificuldades”, com 15,9%; “estrutura, os materiais e recursos da escola”, com
27 Uma das escolas estava realizando estudos e reformulação curricular fundamentado na pedagogia social de Pistrak (2003), que organiza o currículo a partir de complexo de estudos, escolhidos a partir da análise da realidade, além de ter como elemento fundamental a auto- organização dos estudantes e a autogestão.
28 Informações obtidas no diário de campo.
29 Não queremos dizer com isso que as escolas do MST sejam radicalmente diferentes de outras escolas. Vimos até aqui que os jovens do campo e da cidade apontaram mais convergências que
divergências quanto sua relação com a escola. Além disso, as escolas do Movimento, por fazerem parte do sistema público de ensino e se situarem em uma sociedade capitalista, inevitavelmente carregam consigo as contradições dessa condição, mesmo experimentando novas situações pedagógicas.
10,3%.
Para os jovens campesinos, temos um contexto semelhante. Em ordem de maior incidência ficou: “não tenho dificuldades”, com 23%; em seguida, “a forma como os professores ensinam”, com 20,4%; depois vem “o ambiente escolar (barulho, indisciplina, brigas)”, com 15,8%; a relação com os colegas da turma, 14,5%; “dificuldade de aprendizagem (concentração, memorização, entendimento)”, com 11,8%; “estrutura, os materiais e recursos da escola”, 7,9%.
Nos grupos focais, vimos que os métodos de ensino dos professores parecem incomodar muitos dos estudantes. Eles se queixaram da maneira tradicional de tratar os conteúdos e até mesmo do autoritarismo. Um dos jovens do campo, na opção “outros” da questão sobre os motivos pelos quais os jovens desistem da escola respondeu o seguinte: “Ao tirar notas baixas os jovens têm vontade de parar”. Podemos pensar que nessa rejeição ao método avaliativo tradicional está contida uma rejeição ao formato tradicional de ensinar.
Temos ainda como exemplo algumas falas obtidas nos grupos focais. Quando perguntamos “o que é uma educação de qualidade”, os estudantes se opuseram aos métodos de ensino dos professores:
Jovem 6: […] Não adianta o professor vir e ficar falando: os portugueses vieram aqui e descobriram o Brasil. Na Física Delta = q.f.i, entendeu?
Jovem 5: Fazer a gente interagir, na atualidade tem muita gente que não está nem aí para o que está aprendendo, na minha sala muitas vezes eu não gosto do assunto porque a forma como o professor tenta ensinar aquilo é de uma maneira que eu não entendo e nem pedindo ajuda eu consigo entender e que eu vá conseguir levar para o futuro.
Jovem 8: A gente tem aqueles professores que passam a aula inteira passando o conteúdo e aí se passa a aula inteira e você não entendeu nada do que ele falou […]
Jovem 9: As vezes é muito monótono. Autoritários.
Jovem 3: No primeiro ano nós tivemos um projeto que eles tentavam fazer umas aulas diferenciadas, mas depois voltou tudo como sempre foi.30
Ainda na questão sobre as dificuldades dentro do ambiente escolar, é curioso que 15,9% e 23% dos jovens, cidade e campo respectivamente, tenham apontado não ter dificuldades com os estudos, enquanto temos visto até aqui
todas as dificuldades colocadas pela sua situação econômica, ambiente de violência, etc. Podemos pensar talvez que não reconheçam suas dificuldades, ou que estejam conformados com sua situação. Talvez não reconheçam a escola dentro de sua formalidade, talvez seus objetivos para com a escola sejam outros, e nisso se sentem contemplados, sem nenhuma dificuldade.
Um jovem campesino respondeu na opção “outros” da questão que lhe perguntava “por que estudava naquela escola”, que o fazia para “fugir do serviço”. Outro jovem, agora de uma escola urbana, ao falar no grupo focal sobre o que achava a respeito do que era ser um bom aluno, mostrou-se bastante seguro sobre a forma que encontrou de vivenciar o formato escolar.
Entrevistador: O que é ser um bom aluno? Jovem 2: Tirar nota boa.
Entrevistador: E para tirar nota boa tu fazes o quê? […]
Jovem 2: Colo.31
Vemos então muitos jovens, tanto do campo quanto da cidade, apontarem que a escolarização institucional não faz sentido para eles. Vimos aparecer em suas respostas a falta de interesse dos estudantes pela escola, a indisciplina, o barulho e as brigas no ambiente escolar. Já vimos também nas questões anteriores que os jovens apontam como principal motivo de desistência da escola o “desânimo e a desmotivação para os estudos”, com 44,7% e 40,1%, cidade e campo.
Os jovens demonstraram que percebem os estudos como forma de inserção no mundo do trabalho capitalista, e, por outro lado dão pistas claras de que a escolarização tal como prevista institucionalmente não tem significado para eles. Aqui é importante considerar duas situações possíveis: uma delas seria interpretar que os jovens rejeitam a organização escolar tradicional, mas em favor de uma ideia liberal mais atualizada, como a das competências, tal como pareciam defender alguns jovens, segundo os relatos que trouxemos anteriormente. Outra situação seria de fato uma descrença nas promessas de ascensão social do sistema capitalista vigente.
Guimarães diz o seguinte sobre a relação dos jovens com as escolas que
pesquisou em sua tese:
[Os estudantes] estabelecem com a escola uma relação ambígua. A escolaridade não representa, para esses jovens, uma possibilidade real de mudança em suas vidas, de modo a projetar no futuro uma utilidade ampla e um sentido para os estudos. Mesmo os que afirmam desejar uma profissão futura que, teoricamente, pressuponha um nível mais alto de escolaridade, como engenharia, advocacia, fisioterapia, não relacionam os estudos com a profissão almejada e afirmam não estudar. (GUIMARÃES, 1998, p. 215).
Podemos pensar então que se por vezes os jovens associam-se ao discurso ideológico da adaptação necessária à reestruturação do sistema capitalista, aderindo às prerrogativas da pedagogia das competências, vemos ao mesmo tempo esses jovens darem sinais de que percebem os limites das instituições escolares como instrumento de sucesso profissional.
Guimarães nos leva ainda a outra questão:
A imagem de escola construída pelos estudantes é o espelho do que ela de fato proporciona a esses seguimentos da população. Não é estranho, então, que a vejam como lugar de encontro social, de encontrar colegas, de fazer bagunça, de zoar, […] de evitar a família ou evitar ficar em casa lavando um tanque de roupa. A estratégia pela qual se concebe a escola parece operar através de um mecanismo de inversão, onde os elementos valorizados se caracterizam por aquilo que ela não se propõe como tarefa ou por atividades que, por princípio, ela excluí. (GUIMARÃES, 1998, p. 217).
A escola está afastada da realidade dos jovens e estes, por sua vez, negam o modelo escolar convencional. Mas não simplesmente a rechaçam, a ressignificam também, fazendo dela uma extensão de sua realidade, e/ou, mesmo, conseguem dela aquilo que não possuem no seu dia a dia, como espaços de lazer, esporte e sociabilidade.
Veremos, em seguida, alguns elementos que apontam para a reapropriação da escola por parte dos jovens. Dados que, ao mesmo tempo em que indicam as carências desses jovens no que diz respeito a uma vida plena de humanidade, colocam também a necessidade e o esforço desses jovens por buscar recursos formativos para além daqueles que o Estado capitalista lhes oferece.
Uma possibilidade de reapropriação da escola
Diante dos dados dessa pesquisa, nos chamou a atenção a reduzida fração de tempo que os jovens compartilham entre si e seu empenho na busca por esses momentos.
Ao perguntar a respeito do que os jovens mais faziam quando não estavam na escola, mais da metade dos jovens campesinos responderam que ajudam em casa (52,6%), e outros 15,1% responderam que trabalham. Considerando as duas opções como trabalho, teremos um total de 67,7% de jovens campesinos que passam o tempo ‘fora da escola’ trabalhando. Apenas 3,3% disseram passar o tempo com os amigos.
Quanto aos jovens urbanos, a maioria revela empenhar seu tempo não escolar navegando na Internet (24,7%); em seguida, vêm empatadas as respostas de que ajudam em casa e trabalham (cada uma com 10,6%), competindo com “passo o tempo com meus amigos” (10,3%). Juntando “trabalho” com “ajudo em casa”, teremos 21,2% dos jovens que passam seu tempo ‘fora da escola’ trabalhando. Aparentemente, temos aqui um contraste entre jovens do campo e da cidade, onde a maioria dos campesinos afirmam passar o tempo trabalhando, já os citadinos supostamente despendem mais tempo na internet do que trabalhando.
Temos visto que a internet é utilizada entre os jovens principalmente para “socializar” com outras pessoas e para o “lazer”. É raro os jovens a utilizarem para fazer pesquisas, ler notícias, etc. Os jovens normalmente estão conectados a redes sociais como o Facebook, WhatsApp, Twitter, Instagram, Tinder, etc. Além disso, a Internet é utilizada também para entretenimento, é onde os jovens buscam vídeos, filmes, videoclipes e jogos. Os motivos pelos quais os jovens buscam os meios eletrônicos para sociabilizar e se entreter têm sido uma questão amplamente discutida, na qual não nos aprofundaremos. No entanto, temos alguns indicativos para o caso de nossos jovens.
Esta competição que aparece para os jovens urbanos entre tempo empenhado para navegar na Internet e tempo empenhado no trabalho pode ser ilusória. Embora apenas 10,6% tenham apontado o trabalho como atividade que
mais se empenham fora da escola, ao lado de 24,7% que apontam para a Internet nesta mesma pergunta, vimos no começo deste artigo que para os jovens urbanos, ao responderem a pergunta sobre qual era sua situação de estudante, cerca de 30% apontaram trabalhar e estudar ao mesmo tempo. Ou seja, sabemos que são mais de 10,6% os que gastam seu tempo fora da escola trabalhando. Nossa hipótese para este impasse é que diante do fato de que a Internet vem sendo nestes últimos anos facilmente acessada por eletrônicos móveis como o celular – alguns dados apontam para a existência de mais celulares do que pessoas no Brasil – os jovens, por sua vez, frente a exaustivas horas de trabalho e frente a necessidade de se relacionar com seus coetâneos e de ter acesso à cultura (indústria cultural), acabam encontrando na Internet uma saída. Por meio de seus celulares, os jovens se entretêm e “socializam” enquanto estão no ônibus, durante o trajeto de ida e vinda para o trabalho; enquanto estão no intervalo do almoço; ou mesmo durante o próprio período de trabalho ou de aula. Ou seja, os jovens trabalham e estudam ao mesmo tempo em que “sociabilizam”.
Além disso, ainda que os jovens tenham algum tempo para se encontrar pessoalmente com os amigos com a finalidade de socializar e se entreter – por exemplo, os jovens desempregados, considerando que não estejam buscando ganhar a vida em atividades informais –, como e onde o fariam? O acesso à cidade é limitado, o transporte coletivo não é de fácil acesso, são poucas linhas nos finais de semana, sobretudo nos bairros periféricos, e, sendo poucas linhas, os ônibus contornam dezenas de ruas, para dar conta de inúmeros bairros antes de chegar ao seu destino final. Tudo isso por um preço nada acessível, sobretudo para famílias cuja renda mal alcança quatro salários mínimos.
Supondo ainda que o transporte fosse acessível a todos – uma hipótese longe de ser verdade – que espaços os jovens teriam para se encontrar? Os teatros, cinemas, casas de música, estádios de futebol são caros, poucos e de difícil acesso. Os eventos culturais públicos são extremamente raros, as praças, quadras de futebol, basquete e vôlei (para não falar das outras modalidades de esporte) são poucas, precarizadas e sem manutenção. A cidade segue a lógica individualista, segregadora, desumana e alienadora do capital. Para os jovens campesinos esta situação se agrava, uma vez que o transporte coletivo é inexistente e os espaços de lazer são ainda mais escassos.
Diante dessa situação, os jovens têm seus espaços de sociabilidade limitados ao círculo familiar, à Internet (no caso dos jovens urbanos) e à escola. Seus meios de entretenimento são a televisão, também a Internet e de certa forma a escola. Diante disto, não surpreende que quando questionados sobre onde e com quem se sentem mais felizes, a maioria dos jovens, do campo e da cidade, responderam “em casa” (45,4% e 41,6%, respectivamente) e “com a família” (55,3% e 36,3%).
E para outra pergunta do questionário, sobre se os jovens participavam de algum grupo como grupo de jovens, igreja, partidos políticos, ONGs, movimentos sociais, movimentos culturais, associação de futebol, etc., a grande maioria respondeu não participar de nenhum grupo: 74,2% dos jovens urbanos e 50% dos jovens campesinos. E a segunda resposta com maior incidência foi “igreja” e “grupo de jovens”, sendo que muitas vezes os grupos de jovens são vinculados à igreja. Dos citadinos, 10,3% dos jovens responderam participar da igreja e 6,3% dos grupos de jovens, totalizando 16,6%. No caso dos campesinos, 18,4% dos jovens participam da igreja e 9,2% do grupo de jovens, totalizando 27,6%. Para os campesinos ainda temos 5,9% que dizem participar de movimento cultural e 3,9% que dizem participar de movimento social, totalizando 9,8%.
Por outro lado, vemos, ainda nas duas questões sobre onde e com quem se sentem mais felizes, os jovens valorizarem a escola e os amigos. No caso dos jovens citadinos, para além daqueles que responderam se sentirem melhor e mais felizes “em casa” (41,6%), houve também (em ordem de maior incidência) a resposta “nas festas e baladas”, com 11,6%, e “na escola”, com 9,7%. Estes dois últimos podemos considerar como espaços de socialização entre coetâneos, tendo então uma porcentagem de 21,3% daqueles que se sentem melhor e mais felizes em espaços onde podem encontrar pessoas de sua faixa etária, contra 41,8% daqueles que responderam estar melhor em casa. Considerando ainda que ‘estar em casa’ pode significar ‘estar na Internet com os amigos coetâneos’.
Para os campesinos, temos um arranjo parecido de 45,4% que responderam “em casa”, 21,1% que responderam “na escola” e 11,2% que apontaram “nas festas e baladas”. Estas duas últimas somando um total de 32,3%.
Sobre com quem se sentem mais felizes, para os jovens citadinos, as
respostas mais comuns, depois de família, foram “com meus amigos” (15,6%) e “com o(a) namorado(a)” (14,7%). Se pensarmos ambos os casos como convivência entre pessoas da mesma idade, teremos um total de 30,3% de jovens que se sentem felizes entre seus coetâneos, competindo em porcentagem com aqueles que dizem se sentir felizes com a família (36,3%). Dos jovens do campo, 13,2% disseram sentir-se melhor e mais feliz com os amigos e 3,9% responderam “com o(a) namorado(a)”. Somando uma porcentagem bastante baixa, de 17,1%, perto daqueles que responderam “com a família”, 55,3%. Consideremos, no entanto, a maior dificuldade com que os jovens do campo têm acesso à Internet e ainda a distância geográfica entre as casas e espaços de encontro.
Podemos pensar que são poucos os jovens que se atraem pelo seu grupo etário, ou, por outro lado, podemos pensar que apesar dos impedimentos para estarem juntos, os jovens mesmo assim se atraem por sua geração. Temos reafirmada, dessa forma, a colocação de Foracchi (1972) sobre a busca dos jovens por seus grupos etários à medida em que as instituições lhes negam ser jovens. A escola acaba sendo o espaço onde isto mais acontece, já que lá passam grande parte de seu tempo por longos anos. Vimos anteriormente que a escola, para inúmeros jovens, não lhes parece atrair pelo formato institucional, nem pelo seu conteúdo. Muitos estudantes reclamaram da forma como se ensina na escola, da sua estrutura física e organizativa e dos conteúdos que se mostram distantes da realidade. Mas agora a escola aparece dentre os lugares que os jovens se sentem melhor e mais felizes. Que parte das escolas lhes atrai?
Se voltarmos à questão sobre qual o aspecto mais positivo da escola, teremos 17,8% dos jovens urbanos apontando para os “estudantes”, com incidência menor apenas que aqueles que apontaram para os “professores” (24,7%). No caso dos jovens campesinos, temos 11,8% das respostas apontado para os “estudantes” como aspecto mais positivo na escola, atrás de “direção” (19,1%), “estrutura física” (16,4%) e “professores” (15,1%). Mas no caso das escolas do campo vimos os motivos pelos quais esses pontos aparecem em destaque: a escola como um todo lhes dá maiores possibilidades de sociabilidade se comparada às escolas urbanas. É importante ainda considerar a existência da rádio comunitária e da sala de computação (também conquistada pelo Movimento) que fica ao lado de uma das escolas, mantendo trabalhos
conjuntos32.
Vale refletir também sobre o que pensam os jovens quando apontam os professores ou a estrutura escolar como aspectos positivos. A ideia que fazem da estrutura física da escola, bem como daqueles que a compõem, fica mais clara com as falas de um grupo focal feito em uma das escolas urbanas. Perguntamos o que fariam se tivessem que defender a escola e um deles respondeu: “proteger a escola, eu protegeria. Mais as pessoas que estão dentro dela do que o edifício”. O “edifício” arriscamos considerar como a instituição escolar representada em seu aparato físico e organizativo. Sendo assim, os jovens demostram apreciar mais as relações sociais que podem desempenhar dentro da escola do que a que ela formalmente se propõe.
Este apreço para as relações sociais oportunizadas pela escola aparece também quando outro jovem, ao responder esta mesma pergunta, diz: “defenderia os colegas que fiz aqui e os professores que posso chamar de amigo, não a escola em si”33. Além de afirmar novamente o desprezo pela instituição escolar e enaltecer a relação com os colegas, aparece também a valorização do professor como amigo, não sendo mencionados os seus métodos educativos, nem sua autoridade.
Na opção “outros” da questão que perguntava sobre o aspecto mais positivo da escola, aparecem mais alguns exemplos do que estes jovens buscam no ambiente escolar. Além do esporte, que aparece repetidas vezes, estão como aspectos positivos também a paquera, a diversidade de pessoas, o grêmio estudantil, a aula de música e a rádio da escola. Ou seja, todos aspectos culturais e de sociabilidade.
Janata, em sua tese, traz a fala de uma estudante do Colégio Iraci que coloca a importância destes aspectos para a sua formação:
O coral contribuiu bastante. Eu era um pouco tímida, aí desinibiu um pouco, questiona mais, vai procurar saber melhor. […] Era um momento de diversão, era muito bom. A gente cantava, se divertia, ria, fazia teatro, saía cantar em outros lugares. […] E as amizades. Amigos, assim, era bem importante e mexia com uma coisa de sentimento. A professora era bem querida e tem coisas que levo até hoje. As viagens, que a gente saia, se divertia
32 Informações registradas no diário de campo.
33 Jovem 6 (Grupo focal realizado em 30/11/2015).
bastante. Eu nunca fui de sair muito, na comunidade não tinha muito lazer. Então, quando ia na escola é que achava isso. Lá na escola tinha o coral, tinha o teatro, tinha a música, tinha a banda. Então era um monte de coisa que a escola proporcionava, pela escolha. Nós escolhemos o coral porque me indicava. Eu depois ajudei a coordenar o coral por um período. […]. (JANATA, 2012, p. 176, depoimento).
A valorização que os jovens dão para estes elementos nos aponta à carência em seu cotidiano de momentos de amizade, diversão, cultura do corpo. A escola passa a ser um dos poucos lugares onde ainda podem contar com isso, mesmo com todos os seus limites quanto à abertura para essas demandas.
Considerações finais
Campo e cidade fazem parte de um mesmo contexto capitalista de exploração e precarização da vida dos trabalhadores, sendo assim, a juventude trabalhadora urbana e campesina se encontra em situações e questionamentos muito parecidos. A escola, tanto do campo quanto da cidade, uma vez que submetida às diretrizes e legislações nacionais que, por sua vez estão influenciadas pelas políticas liberais internacionais para a educação, carregam em si as demandas do capital. Uma parte relevante dos jovens do campo e da cidade agarram as oportunidades de educação existente para sobreviver às condições impostas pelo sistema capitalista, busca na educação a promessa de melhor se situar no mundo do trabalho. Mas ao mesmo tempo, a juventude de ambos os espaços geográficos dá sinais de que percebem as limitações do capital.
É bastante significativa a relação dos jovens com as mais diferentes formas de trabalho, seja ajuda doméstica, trabalho formal, informal, estágio. Esse elemento ocupa um tempo e espaço elevado na vida dos jovens, que cientes da situação de desemprego aderem ao discurso liberal de qualificação profissional, inovação, empreendedorismo, construindo o “pequeno sonho” da empregabilidade.
Os dados da pesquisa demonstraram que os jovens buscam na escola objetivos diversos e controversos, como a certificação para o mundo do trabalho, o conhecimento de forma pragmática, os espaços de socialização proporcionados pelo jogo, o esporte, a música, a arte, o teatro, a interação coetânea, a amizade.
Buscam espaços que possam exercer sua humanidade para além das balizas de um sistema que demonstra, por meio da ineficácia de suas instituições, estar falido. Os jovens buscam seu grupo geracional para compartilhar suas ideias, suas aflições, suas alegrias, suas utopias e neste sentido a escola, ao mesmo tempo em que sofre uma rejeição de sua forma institucional, é valorizada por ser hoje o locus que proporciona o encontro com jovens e adultos para além do convívio familiar.
Diante do exposto neste artigo é mister repensar a escola em sua totalidade, sua organização institucional e pedagógica, a fim de viabilizar uma educação voltada para o futuro, ou seja, para o pensamento crítico e criativo em relação a realidade social e capaz de auxiliar/apoiar a auto-organização de jovens frente às transformações sociais necessárias para a sobrevivência do planeta. Temos indicativos de experiências pedagógicas nessa perspectiva nas próprias escolas pesquisadas, pois as escolas de assentamento de reforma agrária, com auxílio do MST, têm desenvolvido com êxito uma organização pautada na cogestão, participação, descentralização, ressignificação curricular frente aos desafios da realidade, buscando tempos e espaços pedagógicos que contemplem as diversas dimensões humanas, ou seja, uma formação omnilateral que de acordo com os dados de nossa pesquisa, a partir das respostas dos jovens, podem resultar numa escola que contemple suas expectativas frente à relação trabalho e educação.
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Recebido em: 14 de março de 2018. Aprovado em: 10 de maio de 2018. Publicado em: 21 de novembro de 2018.
Angelita de Oliveira Almeida3 Inara Barbosa Leão4
Este artigo tem por objetivo demonstrar como as atividades do Programa do Jovem Aprendiz tiveram influências na escola regular. Uma das condições para que o aprendiz participe do Programa, é estar matriculado no ensino fundamental, médio ou técnico, o que implica em uma tripla jornada diária. Neste estudo optamos pelo referencial teórico metodológico do materialismo histórico dialético, por oferecer subsídios para pensar a sociedade e os meios de produção em sua totalidade, pelas suas contradições e historicidade. Procuramos abarcar os mecanismos que fizeram e fazem com que esta formação se mostre como difusora da ideologia que garante a reprodução de uma classe social subordinada ao capital.
Este artículo tiene por objetivo demostrar cómo las actividades del Programa del Joven Aprendiz tuvieron influencias en la escuela regular. Una de las condiciones para que el aprendiz participe del Programa, es estar matriculado en la enseñanza fundamental, media o técnica, lo que implica una triple jornada diaria. En este estudio optamos por el referencial teórico metodológico del materialismo histórico dialéctico, por ofrecer subsidios para pensar la sociedad y los medios de producción en su totalidad, por sus contradicciones e historicidad. Buscamos abarcar los mecanismos que hicieron y hacen que esta formación se muestre como difusora de la ideología que garantiza la reproducción de una clase social subordinada al capital.
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i30.p10094
2 Este artigo é parte da pesquisa obtida para obtenção do título de mestre, no Programa de Pós- Graduação em Educação, na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, no ano de 2011.
3 Professora Adjunta I da Universidade Federal do Tocantins. Graduada em Administração pela UFV. Mestre em Educação pela UFMS. Doutoranda em Educação pela UFU. Pesquisadora na área sobre Trabalho, Sociedade e Educação. E-mail: angelita.almeida@uft.edu.br
4 Professora titular da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Graduada em Psicologia pela
Faculdade Dom Aquino de Filosofia de Ciências e Letras. Mestre em Educação pela UFMS. Doutora em Psicologia Social pela PUC/SP. Pesquisadora na área sobre Aspectos psicossociais da educação e do trabalho. E-mail: inarableao@hotmail.com
Tratamos durante este estudo o fato de presenciarmos desde o final do século XX e início deste século XXI, um aumento de programas/projetos de formação e/ou qualificação profissional direcionados aos jovens brasileiros, filhos (as) da classe trabalhadora. Isto por causa do processo de redemocratização do Estado brasileiro na década de 1980, quando tivemos o advento de uma nova Constituição Federal, em 1988, que, de acordo com Sposito (2003) instaurou um novo ordenamento social voltado para uma consciência de direitos e cidadania.
Entre os anos de 1995 a 2005, foram implementados com abrangência nacional, para os jovens de 14 a 29 anos de idade, o Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador (PLANFOR), Projeto Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano, Projeto Soldado Cidadão, Programa Escola de Fábrica, Programa Nacional de Inclusão de Jovem (PROJOVEM) e Programa do Jovem Aprendiz. Estes buscam viabilizar através da formação e/ou qualificação profissional o acesso ao mercado de trabalho.
Pode-se dizer que as formas de execução dessas políticas públicas educacionais por meio desses programas e projetos aqui mencionados, partem do pressuposto de que a dificuldade para encontrar o primeiro emprego ou se reinserir no mercado está na falta de experiência, na baixa escolaridade, na falta de qualificação ou formação profissional dos jovens. Diante disso, apresentam duas vertentes de ações: aquelas que em médio prazo visam ao aumento da escolaridade do jovem, e a outra, que em curto prazo, por meio da qualificação e/ou formação profissional, promovam a inserção dos jovens no mercado de trabalho.
É preciso considerar algumas características desses programas e projetos, como a focalização, isto é, a prioridade no atendimento de jovens pobres como aqueles pertencentes às famílias com baixa renda per capita (de até meio salário ou um salário mínimo), a baixa escolaridade, a persistente fragmentação e desarticulação entre os programas e projetos, pois a maioria deles apresenta público-alvo e objetivos semelhantes, além de serem executados na mesma área territorial. Também, o caráter descentralizado de execução e a forte participação de ONGs no processo de educação e a descontinuidade dos programas, pois
estes não preveem o encaminhamento nem de parcelas dos participantes ao mercado de trabalho quando do término de seu período de participação nas atividades do Programa.
Assim, este artigo tem por objetivo demonstrar ao longo deste estudo como as atividades da formação profissional dada pelo Programa do Jovem Aprendiz tiveram influências na escola regular. Isto porque uma das condições dadas como pré-requisitos para que o Jovem Aprendiz, filhos (as) da classe trabalhadora, participem do Programa sob a condição de aprendizagem, é de estarem matriculados no ensino fundamental, médio ou em curso de formação técnica.
Ao ser contrato como Aprendiz pela empresa, os Jovens acabam por desenvolver uma tripla jornada diária, ou seja, se comprometem em participar das aulas teóricas do Programa, de cumprir seu horário de atividade prática estabelecido pela empresa contratante e de frequentar o ensino regular ou técnico. Assumem precocemente responsabilidades de um adulto, o que acabam por abdicar do lazer, dos esportes e de outras atividades essenciais a sua vida, além de prejudicar o rendimento escolar deles.
Conforme a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996, a faixa etária de 15 a 18 anos deveria estar regularmente matriculada na etapa final da educação básica. Desta forma, estariam se preparando para a vida adulta, e posteriormente, após concluírem seus estudos, é que estariam preparados para ingressar no mundo do trabalho. Assim, indagamos: Por que investir precocemente na formação profissional desses Jovens ao invés de primeiramente investir na Educação geral para depois prepará-los para enfrentar o mundo adulto? Por que saltar as fases que deveriam ser contempladas para o desenvolvimento psicossocial e profissional dos Jovens, para dotá-los de compromissos e responsabilidades de um adulto? Por que investir nesta política de formação profissional se ela causa impactos não positivos no ensino regular ou técnico destes Aprendizes?
Portanto, o que nos instiga a esta investigação é que aparentemente o Estado investe nesta formação para demonstrar para a sociedade de que está cumprindo com sua função social em propor políticas educacionais para os jovens objetivando formá-los para o mercado de trabalho. De tal modo, o Estado,
ideologicamente, enfatiza de que a formação profissional dada pelo Programa propicia o ingresso e/ou manutenção destes no mercado de trabalho, e desta forma assegura por meio desta estratégia a manutenção do ideário neoliberal nas relações de aprendizagem e de produção, mesmo que esta prática educativa tenha impactos negativos para a vida social e educacional dos Jovens.
Metodologicamente, o objeto de estudo foi situado historicamente de acordo com os princípios e fundamentos do materialismo histórico dialético, levando em consideração a superestrutura do sistema capitalista e as condições com que esta política educacional foi sendo produzida e reproduzida pelo Estado em favor da hegemonia do sistema capitalista. Para tanto, priorizou-se uma abordagem qualitativa, utilizando como instrumentos entrevista semiestruturada por intermédio de um grupo focal, desenvolvidas com os Jovens Aprendizes. Estes foram os que tiveram o SENAC/MS como entidade responsável por lhes oferecer a formação teórica profissional, no período de 2007 a 2009 e que foram contratados (efetivados) nas empresas no ano de 2008 a 2010. Participaram deste estudo onze Jovens Aprendizes, sendo quatro homens e sete mulheres, que tiveram sua formação prática em três empresas distintas. No momento da realização dessa técnica foi assinado pelos entrevistados um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, garantindo a privacidade e a confidencialidade das informações coletadas para a análise e publicação final do resultado da entrevista. Serão utilizados a terminologia Aprendiz 1, Aprendiz 2, Aprendiz 3, sucessivamente, quando nos referirmos aos Jovens, e nome fictício para designar as empresas, como: empresa Alfa, Beta e Gama. Os dados foram analisados a partir da técnica da análise do discurso, fazendo surgir às categorias que foram trabalhadas a partir das temáticas discutidas como instrumento de apreender como os Jovens Aprendizes, diante do contexto vivenciado por meio das atividades teóricas e práticas do Programa, conseguiam lidar e sustentar seu processo de aprendizagem no ensino regular de nível fundamental, médio ou técnico.
Visando atender o objetivo e as necessidades de exposição desta pesquisa, a seguir serão apresentados os conteúdos que fundamentam as seções da estrutura deste estudo e como serão tratados como partes integrantes do processo de investigação.
Na seção I, faremos uma exposição sobre o que é e como se estrutura o Programa do Jovem Aprendiz com base na Lei nº 10.097/2000 e no Decreto nº 5.598/2005, legislações que regulamentam tal Programa. Buscaremos demonstrar quem são os Jovens Aprendizes, como se estabelece o Programa nas empresas, como se processa as atividades teóricas e práticas que os jovens devem desenvolver e quais os direitos e obrigações dos aprendizes com as atividades teóricas e práticas do Programa. Na seção II, discutiremos sobre o trabalho precoce, educação e qualificação profissional, tendo por intuito demonstrar como o tratamento dado pelo Estado, principalmente a partir do final do século XX e início deste século XXI, sofreu as determinações do marco histórico do ideário neoliberal da atual conjuntura da sociedade capitalista em que a reestruturação produtiva e a flexibilização das relações sociais de trabalho se fazem presente. E na seção III, iremos demonstrar e analisar as implicações positivas e/ou negativas que as atividades teóricas e práticas do Programa do Jovem Aprendiz tiveram para os Aprendizes com relação à escola regular, no sentido de produzir e reproduzir através de suas falas e ações a ideologia que está por trás do processo de formação profissional posto pelo Estado para esta classe social.
Contudo, esperamos que os resultados apresentados neste estudo sejam relevantes para contribuir e subsidiar discussões entre pesquisadores e profissionais que lidam com a formação/qualificação profissional de jovens, e que possibilitem reflexões sobre as políticas públicas colocadas pelo Estado e como estas vem se manifestando diante das contradições engendradas na sociedade pelo capital.
Para um melhor entendimento sobre a estrutura do Programa do Jovem Aprendiz e como este vem sendo desenvolvido, convém ressaltar que o art. 2º do Decreto nº 5.598/2005 determina que “o aprendiz é o maior de quatorze anos e menor de vinte e quatro anos que celebra contrato de aprendizagem, nos termos do art. 428 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT”. Esse decreto ampliou a idade do aprendiz para a participação no Programa, uma vez que antes, pela Lei nº 10.097/2000, era considerado aprendiz o adolescente de 14 a 18 anos. O
referido Programa apresenta como pré-requisito que os candidatos ao trabalho sob a condição de aprendizagem, devem estar matriculados no Ensino Fundamental, Médio ou em um curso de formação técnica. Também, não podem ter tido nenhum tipo de registro em sua carteira de trabalho, ou seja, a participação nesse processo de aprendizagem deverá ser a sua primeira experiência profissional. O contrato de aprendizagem é celebrado entre a empresa e o aprendiz, e, de acordo com o art.8º desse Decreto, entende-se que este:
[...] é o contrato de trabalho especial, ajustado por escrito e por prazo determinado não superior a dois anos, em que o empregador se compromete a assegurar ao aprendiz, inscrito em programa de aprendizagem, formação técnico-profissional metódica compatível com o seu desenvolvimento físico, moral e psicológico, e o aprendiz se compromete a executar com zelo e diligência as tarefas necessárias a essa formação (BRASIL, 2005, art. 8º).
Conforme as exigências da CLT, especificamente no que se refere ao trabalho do aprendiz, esse contrato de aprendizagem deve conter, expressamente, qual o curso de formação profissional que o aprendiz está matriculado, a jornada de trabalho diária ou semanal, a definição da quantidade de aulas teóricas, as horas de trabalho que fazem na empresa, a remuneração mensal e o início e término do contrato.
Por se tratar de um programa de formação técnico-profissional metódica, o art. 6º do Decreto nº 5.598/2005, que regulamenta tal programa, define por “formação técnico-profissional metódica para os efeitos do contrato de aprendizagem as atividades teóricas e práticas, metodicamente organizadas em tarefas de complexidade progressiva desenvolvidas no ambiente de trabalho”. Ou seja, o processo educacional e metodológico é caracterizado concomitantemente entre atividades teóricas e práticas, dentro de um começo, meio e fim, visando à profissionalização do aprendiz como um meio de proporcionar a sua continuidade no mercado de trabalho. Porém, geralmente não é isto o que vem acontecendo, pois os aprendizes exercem suas atividades na empresa de acordo com o que os demais funcionários querem que eles façam. Tal justificativa se dá em função das entrevistas realizadas com os Jovens Aprendizes, sendo esta uma condição para que eles venham a ser contratados como funcionários da empresa.
Para a empresa a obrigação é que abra vagas para contratação dos aprendizes na proporção de 5% a 15% do total de trabalhadores empregados, em funções que demandem formação profissional. De acordo com o art. 10 do Decreto nº 5.598/05, deverá ser consultada a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), elaborada pelo Ministério do Trabalho e Emprego para saber quais são estas funções. Porém o § 1º do mencionado artigo, relata que ficam excluídas as funções que demandem formação profissional, a habilitação profissional de nível técnico ou superior, e as funções de gerência, cargos de direção e de confiança. Observamos que as funções que demandam formação profissional estão voltadas para o trabalho técnico, e assim, é neste contexto que os aprendizes serão formados dentro da empresa, para executarem funções específicas e rotineiras.
O Jovem Aprendiz participará do programa por um período de no máximo dois anos, para aprender uma profissão e ter uma oportunidade de emprego e renda. Essa formação técnico-profissional deve ser oferecida por concomitância entre as atividades teóricas e práticas, organizadas em tarefas de complexidade progressiva. Sendo que as atividades práticas são exercidas dentro da empresa que contratou o jovem como aprendiz e a formação teórica fica sob a responsabilidade das instituições pertencentes ao Serviço Nacional de Aprendizagem, sendo estes o SENAI, SENAC, SENAR, SENAT e o SESCOOP; além das escolas técnicas federais de educação e ONGs, sendo que essas últimas devem estar devidamente registradas no Conselho Municipal de Desenvolvimento da Criança e do Adolescente, conforme prevê a legislação.
Quando da contratação do Jovem Aprendiz pela empresa, é celebrado um contrato especial de trabalho por tempo determinado entre ele e a empresa contratante, pelo qual é garantido ao contratado o salário mínimo hora. Esse Programa é implementado pelo Ministério do Trabalho e Emprego e compete às Superintendências Regionais do Trabalho e Emprego a orientação e fiscalização nos Estados.
Ao ser contratado como aprendiz pela empresa, o jovem deve se comprometer com as atividades propostas pelo programa, ou seja, tanto participar das aulas teóricas, quanto cumprir seu horário de atividade prática estabelecido pela empresa contratante. A duração do trabalho do Jovem Aprendiz não poderá
exceder a seis horas diárias, já computadas as horas teóricas das aulas e as atividades práticas desenvolvidas na empresa que o contratou, conforme os arts. 18º e 20º do Decreto nº 5.598/2005. Porém, o art. 18º, em seu § 1º menciona que: “o limite previsto no caput deste artigo poderá ser de até oito horas diárias para os aprendizes que já tenham concluído o ensino fundamental, se nelas forem computadas as horas destinadas à aprendizagem teórica”.
Para tanto, é celebrado um contrato especial de trabalho entre a empresa contratante e o Jovem Aprendiz, e a este será garantido todos os direitos trabalhistas no que se refere ao trabalho do aprendiz, como vale-transporte, salário mínimo-hora (computadas as horas das aulas teóricas), descanso semanal remunerado e feriados, ter suas férias coincididas com as férias escolares (apenas para os menores de 18 anos), afastamento por ocasião de licença maternidade ou acidente de trabalho, e recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). No entanto, esse recolhimento corresponde a 2% da remuneração paga ou devida ao aprendiz, de acordo com o art. 24 do Decreto 5.598/2005, no qual se aplica o artigo 15, § 7º da Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990, relatando que “os contratos de aprendizagem terão a alíquota a que se refere o caput deste artigo reduzido para dois por cento”. Diante deste exposto, observamos que essa alíquota no recolhimento de 2% no FGTS do Jovem Aprendiz é uma forma de o Estado incentivar as empresas a cumprir com a quota estabelecida na Lei do Jovem Aprendiz, e, desta forma, o Estado continua a favorecer a dinamização do capital, já que quem lucra com essa redução é o próprio empresário, e quem sai prejudicado é o jovem trabalhador aprendiz, filhos (as) da classe trabalhadora.
Percebemos que os Jovens Aprendizes possuem os mesmos direitos trabalhistas e previdenciários dos demais empregados, porém com uma redução na alíquota de recolhimento do FGTS, e o seu horário de trabalho é especial, para não prejudicar os estudos. Desta forma, os jovens que estudam pela manhã devem ter a parte teórica do programa à tarde e a prática, à noite, ou parte prática à tarde e parte teórica à noite. Como a oferta de trabalho na empresa é geralmente nos períodos da manhã e tarde, a maioria dos aprendizes acabam sendo obrigados a estudarem à noite, o que acaba por causar implicações com o
processo de aprendizagem na escola regular, conforme averiguado nos discursos dos jovens.
Iniciamos esta discussão sobre trabalho precoce e formação/qualificação profissional voltada para os jovens pobres, pela atual conjuntura da sociedade capitalista, com a intenção de mostrarmos como o tratamento dado pelo Estado ao ensino profissional, no final do século XX e início deste, século XXI, sofreu as determinações do marco histórico do ideário neoliberal desta atual fase da sociedade capitalista, marcada pelo crescimento do setor de serviços, pela reestruturação produtiva e flexibilização das relações de trabalho.
A década de 1980 foi palco de significativas mudanças no sistema político brasileiro, em função da redemocratização do Estado em 1985, na medida em que iniciamos a construção de um Estado civil e democrático. Isto porque saímos de um longo período de ditadura militar, centrado em um Estado autoritário, cujas ações coercitivas das forças militares, estavam voltadas para atender a burguesia industrial nacional e internacional.
No entanto, percebe-se que a transição desse governo ditatorial para um governo democrático, se deu de maneira lenta e gradual, em detrimento das lutas e dos movimentos sociais voltados para a reinstauração da liberdade democrática de forma rápida. Ao tanto que nos primeiros três anos do regime político democrático, foi promulgada em 1988, pelo Presidente da República, José Sarney, a Constituição Federal da República, e esta trouxe mudanças com relação à Educação, definindo-a como competência da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios de “proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência” (Constituição Federal de 1988, art.23, V).
Em seu Capítulo II, que trata Dos Direitos Sociais, o artigo 6º, assegura que “São direitos sociais, a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção a maternidade e a infância, a assistências aos desamparados, na forma desta Constituição”. Observa-se que no que se refere à educação e ao trabalho, assegurados pela referida Constituição, bem como o dever do Estado garantir o acesso da sociedade a
estes direitos, resultou, aproximadamente, doze anos após a promulgação desta Constituição Federal, na implementação do Programa do Jovem Aprendiz, objeto deste estudo.
Através deste programa o governo proporciona a uma pequena parcela de jovens da classe trabalhadora, já que o programa não consegue abarcar a toda população de jovens brasileiros, com idade entre 14 a 24 anos, a participar por um determinado período de tempo de uma formação profissional como forma de prepará-lo para o ingresso no mercado de trabalho. É relevante destacar que esta formação está direcionada, praticamente, para atender ao setor terciário da economia, que engloba as atividades de prestação de serviços e comercialização de produtos, em função deste ser o setor que mais cresce na economia brasileira desde o final dos anos de 1980 (POCHMANN, 2002).
Porém, no que se refere à educação, estes jovens deveriam estar devidamente matriculados no ensino regular, conforme prevê a LDB de 1996, mas não é isto que se revela, pois muitos deles, que deveriam estar dentro da escola, se encontram fora dela. Outro aspecto a ser considerado com relação ao Programa do Jovem Aprendiz, é que os jovens que participam desta formação profissional, deveriam estar devidamente matriculados no ensino fundamental e médio e após a conclusão deste, prosseguir seus estudos para a educação de nível superior, para posteriormente entrar para o mundo do trabalho. Portanto, através deste contexto, notamos que o Estado ainda não conseguiu assegurar os direitos dos jovens, especialmente, no que se refere à educação e ao trabalho, conforme garantido na Constituição Federal.
Retornando ao marco histórico desta Constituição, destacamos que dois anos após a sua promulgação foi também promulgado pelo Estado, em 1990, na gestão do Presidente da República Fernando Collor, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Este, além de garantir direitos e proteção aos jovens, tratou também da educação, em especial da educação profissional, conforme o título I, artigo 4º:
É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (ECA, 1990, art. 4º).
No que se refere à Educação, o Capítulo IV, artigo 53, deste estatuto, assegura que “a criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho [...]”. E no que se refere à idade para o trabalho, o Capítulo V, que trata do Direito à Profissionalização e à Proteção no Trabalho, art. 60, adverte que “É proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz”. Compreendemos então, que o trabalho destes jovens, filhos (as) da classe trabalhadora, que participam destas formações/capacitações deveria ter um caráter substancialmente educativo e de formação humana, como referido no § 1º do art.68, deste mesmo Capítulo, que “entende-se por trabalho educativo a atividade laboral em que as exigências pedagógicas relativas ao desenvolvimento pessoal e social do educando prevalecem sobre o aspecto produtivo”.
Com base no exposto, abarcamos a importância com que o Estado tratou a questão da formação/capacitação profissional, bem como favoreceu meios de proteger e garantir direitos aos jovens brasileiros, destacados pela CF de 1988 e pelo ECA de 1990. Porém, estes ainda foram insuficientes para proporcionar uma educação pelo trabalho e para a vida, direcionados para o desenvolvimento de uma consciência crítica do educando. Isto, em função desta educação está sendo sempre reestruturada em conformidade com os interesses do capital, e, portanto, submetida ao ideário do estado neoliberal e a reestruturação produtiva já que “[...] o capital constituiu uma poderosíssima estrutura totalizante de organização e controle do metabolismo societal, à qual todos, inclusive os seres humanos, devem se adaptar” (ANTUNES, 2009, p. 25).
Assim, a qualificação profissional posta pelo Estado para os jovens, filhos (as) da classe trabalhadora, não contempla uma formação ampla e sistemática com o desenvolvimento de uma consciência social crítica do educando, no intuito de lhes proporcionar que sejam sujeitos que compreendem o sentido real do trabalho que desenvolvem, bem como as transformações relacionadas a este. Reduz a uma formação direcionada para que os jovens aprendam a serem trabalhadores multifuncionais e com capacidade de se adaptarem rapidamente e constantemente a qualquer condição de realização do trabalho, já que “a
produção se estrutura num processo produtivo flexível, que possibilita ao operário operar simultaneamente várias máquinas, alterando-se a relação homem/máquina na qual se baseava o taylorismo/fordismo” (ANTUNES, 2009, p. 56).
A predominância destes interesses capitalistas na educação profissional, não é um fenômeno recente nas questões políticas e econômicas da agenda governamental, pois, historicamente, o Estado sempre atuou e vem atuando a favor da classe detentora dos meios de produção, ou seja, a favor do capital. E, conforme o movimento dialético do marxismo: negação, conservação e ascensão, compreendemos que ainda não aconteceu a completude deste movimento, já que o capital nunca foi negado, mas sim, sempre conservado e reorganizado pelo favorecimento político e econômico do Estado (KRAPIVINE, 1986).
Como a base ideológica que permeia a sociedade capitalista foi conservada, pois nada foi alterado na materialidade, o que vimos experimentando são mudanças nos meios e recursos empregados para a expansão do capital. Desta forma, a formação para o trabalho continua voltada para treinar e formar o jovem especificamente para atender as exigências da reestruturação dos meios de produção, que vão se reorganizando para preservar a conservação material da estrutura capitalista na sociedade. Para Krapivine (1986) esta concepção deve ser entendida enquanto um processo de estruturação, no qual os fatos devem ser racionalmente compreendidos a partir do lugar e das relações que ocupam e que se estabelece com o todo, pois a totalidade aparece como categoria de análise do real, significando que o “[...] conhecimento de fatos e conjunto de fatos vem a ser conhecimento do lugar que eles ocupam na totalidade do próprio real” (KOSIK, 1995, p. 41).
Para superar os reducionismos das concepções empiristas e idealistas presentes na sociedade de classe, há necessidade de articular dialeticamente os aspectos externos com os internos, levando em consideração a relação do sujeito com a sociedade no qual está inserido. O que nos revela o fato que estes ao produzirem e reproduzirem a sua realidade social, são também e ao mesmo tempo, produzidos e reproduzidos por esta realidade, conservando assim, a hegemonia que o capital vai estabelecendo.
Com base no exposto, convém ressaltar que concomitantemente ao processo de redemocratização do Estado Brasileiro na década de 1980, o mundo
capitalista, principalmente os países que controlam a economia mundial, como por exemplo, os Estados Unidos, Inglaterra, Japão, França, estavam incrementando a globalização de suas economias. Esta se deveu ao desenvolvimento da tecnologia, que propiciou a interligação e a movimentação do capital financeiro de suas empresas para qualquer parte do mundo, dando início a Terceira Revolução Industrial e Tecnológica. Ideologicamente esta vem sendo caracterizada como uma nova sociedade, na qual as principais exigências para o trabalhador são o domínio da informação e do conhecimento de acordo com as necessidades do mercado. Destas condições decorreram medidas de liberalização e desregulamentação das economias nacionais, conforme destaca Ianni (2008), ampliando a mobilidade do capital e do trabalho no cenário econômico mundial, o que levou à transformação do mundo em um só mercado. Com estas transformações econômicas tornando o mundo em um só mercado, abriu-se um período de incertezas e questionamentos sobre o padrão sistêmico de integração social, que vem se materializando com o Estado neoliberal. De acordo com Frigotto (1995):
A tese neoliberal postula a retirada do estado da economia – a ideia do Estado Mínimo -; a restrição dos ganhos de produtividade e garantias de emprego e estabilidade de emprego; a volta das leis de mercado sem restrições; o aumento das taxas de juros para aumentar a poupança e arrefecer o consumo; a diminuição dos impostos sobre o capital e a diminuição dos gastos com receitas públicas e, consequentemente, dos investimentos em políticas sociais. (FRIGOTTO, 1995, p.80-81).
Desse modo, o Estado assume a responsabilidade de preparar os jovens para atender o mercado de trabalho através dos programas e projetos de formação, capacitação e requalificação profissional. Estes foram institucionalizados por meio das reformas educacionais, realizadas pelo Estado Brasileiro, principalmente a partir do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), para atender a necessidade da flexibilização do trabalho que o capital impunha.
A política de educação profissional do governo de FHC não se resumiu ao ensino técnico. Ela abrangeu ações voltadas para a qualificação e a requalificação profissional, desviando a atenção da sociedade das causas reais do desemprego para a
responsabilidade dos próprios trabalhadores pela condição de desempregados ou vulneráveis ao desemprego. Esse ideário teve nas noções de ‘empregabilidade’ e ‘competências’ um importante aporte ideológico, justificando, dentre outras iniciativas, projetos fragmentados e aligeirados de formação profissional, associados aos princípios de flexibilidade dos currículos e da própria formação. (FRIGOTTO, CIAVATTA, RAMOS, 2005, p.13).
Nestas circunstâncias, a educação assume um papel fundamental dentro da dimensão ideológica, ajustando-se para transmitir os conhecimentos necessários para a conservação do sistema capitalista, através da qualificação e requalificação profissional apresentada como um mecanismo para garantir a empregabilidade. A educação acaba por se reduzir em diplomas para balizarem a disputa por uma vaga de emprego, onde quem tem mais capital humano, tem a vantagem sobre os concorrentes. A formação para o trabalho com as novas tecnologias e equipamentos cada vez mais sofisticados tem se tornado objeto de negociação entre o capital e o Estado, e de acordo com Neves (2007) “a política educacional neoliberal focaliza a ação direta do Estado [...] de sua participação nos programas de formação profissional [...]” (NEVES, 2007, p.213).
Compreendemos a atuação do Estado com relação aos programas de formação e qualificação profissional. Porém, comprovamos que este seu dever de legislar e oferecer a educação, não contempla a promoção do desenvolvimento da consciência individual e/ou de classe para os jovens, e nem se preocupa com as implicações que têm ou poderão ter no processo de aprendizagem do ensino regular ou técnico que os Jovens Aprendizes estão matriculados.
Corrobora a nossa argumentação o fato de que a formação proposta pelos programas e projetos de educação profissional para os jovens se destinarem ao desenvolvimento de habilidades específicas, ou seja, os Jovens Aprendizes são formados para desenvolverem trabalhos com baixo requisito técnico e sem domínio da ciência ou das condições de trabalho ou produção, e desta maneira, continuam contribuindo, através da venda da sua força de trabalho, para o fortalecimento e a conservação do capital, pois toda venda de força de trabalho, seja para trabalho técnico ou complexo, contribui para a expansão do sistema capitalista.
Além disto, os programas e projetos de formação/capacitação profissional estão voltados para a preparação precoce para o trabalho, o que torna a
formação, além de aligeirada e fragmentada, preleções ideológicas de que esta propiciará conhecimentos para que os Jovens estejam aptos para ingressarem no mercado de trabalho. Sob tais condições, o Estado aliado ao capital, difunde-se as ideias neoliberais, o que acaba por dificultar a busca pela educação geral, já que conforme veremos nos discursos abaixo, há implicações não positivas na vida escolar e particular dos Jovens, já que estes desenvolvem uma tripla jornada diariamente, o que prejudica o seu processo de aprendizagem no ensino regular.
Nesta categoria analisaremos as influências positivas e/ou negativas que os jovens tiveram na escola após entrarem para o Programa do Jovem Aprendiz, pois conforme já evidenciado, além de participarem das atividades teóricas e práticas requeridas pelo programa, é pré-requisito que esses jovens estejam matriculados no ensino fundamental, médio ou em um curso de formação técnica.
Quando questionamos aos jovens se houve alguma influência positiva no seu rendimento escolar após entrarem para o Programa, tivemos os seguintes relatos:
Para mim melhorou a ter mais organização com as coisas, dar prioridade, ter disciplina. (Aprendiz 1- empresa Alfa).
A gente aprende a usar melhor o tempo né?! Trabalhando. Porque, às vezes, quando você estudava de manhã, você chegava em casa, você ia estudar, lógico que não, ia dormir, [...] então assim, usar melhor o tempo. Eu não tive nenhum problema não de rendimento escolar durante o Programa. Minhas notas todas foram boas. Final de semana e, também, tinha final de semana para estudar, então não tinha problema não! Nenhum problema. (Aprendiz 2- empresa Alfa).
Eu acho que raciocina mais rápido. Assim né?! Porque você não tem mais o tempo que você tinha para estudar. Então você presta mais atenção na aula, porque aquele é o tempo que você tem, porque você não vai ter um tempo a tarde, a noite para você conseguir ler depois. Para mim, eu não posso falar que em nada influenciou na escola por causa do programa. Eu sempre dava um jeito de estudar final de semana ou na escola mesmo, quando não tava tendo aula muito importante, estudava para outra, né!? (Aprendiz 3 – empresa Alfa).
No começo foi muito difícil negociar escola, trabalho, tudo. A rotina muda completamente. [...] a gente fica com receio de fazer as coisas. Será que vai dar certo? Será que não? Mas, Graças a Deus, eu não tive problema nenhum quanto a isso. (Aprendiz 4- empresa Alfa).
Na escola continuô a mesma coisa. Como eu já falei, anteriormente eu até trabalhava, então, eu sempre estudei a noite, a partir do primeiro ano eu já estudei a noite, então pra mim, meu cotidiano não mudou nada. No colégio minhas notas continuaram altas, não mudou nada não. Não afetou nada. (Aprendiz 6 – empresa Beta)
O Programa ajudô na escola. Questão de português, história, matemática [...] tinha coisa que nós aprendíamos no curso e na sala de aula não. (Aprendiz 8 – empresa Gama)
No serviço, [...] não me atrapalhou, [...] é porque se precisasse de fazer um trabalho, entendeu? É, dava um tempinho ali e fazia, [ ] tipo assim, não era uma coisa, precisa, eu ia, 5 minutinhos fazia, rapidinho, né?! (Aprendiz 10 – empresa Gama)
Pra mim, me ajudou um pouquinho na parte de escrita, foi o que mais me ajudou, a parte de texto. Até foi numa época de vestibular da Federal, ai todo ano davam tipo dissertação, argumentação, dissertativa, né?! Elaborar carta, memorando e como eu aprendi isso no curso, isso me ajudou no meu desempenho. E, em relação aqui, a escola não atrapalhou porque eu já tinha terminado, né?! (Aprendiz 11 – empresa Gama)
Com base nesses discursos, percebemos que a influência positiva que o Programa teve com a escola regular, está direcionada para a questão de planejamento, ou seja, o jovem teve que se organizar e planejar para dar conta de frequentar a escola e participar das atividades teóricas e prática do Programa, conforme destacado neste discurso:
[...] eu fazia curso na quinta, sexta e sábado à tarde. Segunda, terça e quarta eu ficava o dia todo na empresa, quinta e sexta na parte da manhã, e eu estudava a noite, então aquela correria. Ás vezes, eu nem tinha ficado com a minha mãe direito, mas, enfim, foi corrido, mas valeu a pena. (Aprendiz 10 – empresa Gama)
Constatamos que esses Jovens utilizaram estratégias, como por exemplo, usar melhor o seu tempo para não se prejudicarem nas atividades da escola. Começaram a utilizar outros instrumentos, como prestar mais atenção durante as aulas, estudarem nos finais de semana e se organizarem para darem conta de todas as suas atividades. No entanto, entendemos que os compromissos dos
jovens assumidos com o Programa do Jovem Aprendiz acabam é por dotá-los de responsabilidades como se fossem adultos, saltando fases importantes de sua vida, que deveriam, primeiramente, ser contempladas para o desenvolvimento psicossocial desse indivíduo. Acabam se abdicando do lazer e do descanso do final de semana para se dedicarem aos seus estudos, já que durante a semana estão comprometidos com as atividades do Programa, já que “o indivíduo moderno se vê num mundo logicamente planejado e programado para fazê-lo funcionar, independentemente de seus desejos e motivos pessoais” (CRUZ, 1999, p.177).
Por sua vez, ao perguntarmos aos Jovens se houve alguma influência negativa no seu rendimento escolar, tivemos as seguintes colocações:
[...] tinha professor que dava uma atividade no primeiro tempo e depois não queria de dar no segundo, mesmo sabendo que você chegou atrasado não porque você quis, porque tem um motivo, tava trabalhando como aprendiz. Tem dia que não dá para sair no horário do serviço. Eu gostava muito de ler e eu parei um pouco de ler por causa do cansaço, né!? e essa correria (Aprendiz 2- empresa Alfa).
[...] as minhas faltas aumentaram muito, devido eu estudava de manhã, então, de manhã parece que é uma rotina muito maior para você ir pra escola e aí eu mudei para noite, as minhas faltas aumentaram muito. Também porque eu já tinha trabalhado o dia todo e, às vezes, ia para casa e ficava com preguiça de voltar para escola. E chegava atrasada também. Eu dependia de carona [...] porque eu estava longe da minha casa. Mas, só em questão de faltas e chegar atrasada. Mas chegar atrasada não era uma rotina, era às vezes. Mas falta, aumentou bastante (Aprendiz 3 – empresa Alfa).
Assim, em questão das notas, algumas caíram depois que comecei como aprendiz. Sempre minha média era de sete para cima, nunca abaixo disso. Aí, depois que eu comecei trabalhar, começou a ser seis, sete, mas nunca abaixo da média, assim, eu mesmo me policiava para estudar, para não ir com seis. Tipo assim, para mim, eu não estava satisfeita que eu posso ir com seis, só de sete para cima. Às vezes, até com sete eu não ficava satisfeita. Ainda ficava meio assim. Mas a questão das faltas, também chegava muito no segundo tempo. Eu estava muito cansada, vô em casa tomar um banho, depois eu vou para escola (Aprendiz 4- empresa Alfa).
Não havia tempo pra, pra fazer trabalho, tarefas. Né?! Porque, ainda mais na recepção, não tem como, como você fazer trabalho, toda hora o telefone toca, [...] os beneficiários chega. Igual
português, tirava 7, 8, depois fui pra 5. (Aprendiz 8 - empresa Gama)
Na escola o meu cotidiano mudou. Porque eu sempre estudei durante o dia né?! Ai, então, tive que mudar pra noite e, assim, saia do serviço direto pra escola e, às vezes, tava cansada, às vezes faltava, a gente falta, entendeu? Não tinha tempo pra fazer trabalho, nem tarefa, nem nada, o tempo era curto. Quando tinha prova, às vezes, eu chegava em casa e estudava, mas nem sempre eu conseguia, ou então tentava chegar mais cedo na escola e ficava lá estudando até começar a aula. (Aprendiz 6 – empresa Beta)
Observa-se que chegar atrasado à escola foi um problema praticamente central manifestado nos discursos dos jovens, seguido de faltar aulas, perder atividades na escola, cansaço e redução de notas nas disciplinas. Abarcamos o quanto este programa influencia negativamente no rendimento escolar dos alunos, pois conciliar estudo com as obrigações do programa não é uma tarefa simples, conforme é idealizado pelo discurso neoliberal e que se manifesta nessa aprendizagem profissional, no qual os jovens devem desde cedo se qualificarem para ingressarem no mercado de trabalho. Estudar e trabalhar exige um esforço físico-mental, a julgar pelos discursos manifestados neste estudo, o que causa prejuízos com relação à escolarização do jovem, pois:
“[...] as concepções de educação e capacitação para o trabalho que residem esses programas estão impregnadas por uma lógica de formação para a subalternidade, sem romper com os lugares sociais que estão inseridos para eles” (CASSAB, 2001, p.95).
A formação profissional presente no Programa do Jovem Aprendiz se manifesta como uma educação para o trabalho, objetivando apenas a aquisição de competências para o mundo laboral, e não uma educação pelo trabalho, voltada para a concepção de trabalho como princípio educativo. E, muito menos, uma formação no qual os jovens pudessem negociar trabalho e estudo sem que fossem prejudicados. O que esperávamos é que o trabalho, conforme concebido sobre a condição de aprendizagem, que é permitido legalmente pela Lei do Jovem Aprendiz, não os prejudicasse nos estudos. No entanto, os discursos manifestados pelos jovens revelam outra realidade, pois até não sair do trabalho na hora em que termina o seu expediente e consequentemente chegar atrasado à
escola foi aparentemente explicitado por um aprendiz “Tem dia que não dá para sair no horário do serviço” (Aprendiz 2- empresa Alfa).
Convém ressaltar, o quanto o trabalho desses jovens é benéfico para a empresa no sentido da extração da mais-valia sobre o valor pago pelas horas de trabalho e a quantidade de horas trabalhadas. Também se torna benéfico no sentido da empresa formar esses aprendizes de acordo com as suas necessidades, ou seja, de encontro com as determinantes hegemônicas postas pelo mercado de trabalho, no qual exige um trabalhador flexível e multifuncional para saber lidar com as incertezas do sistema produtivo. Nesse contexto é que sobressai o Estado neoliberal, caracterizado por uma política econômica baseada na competitividade do mercado, sustentando os interesses intercapitalistas por meio da manutenção da taxa de lucro. Entende-se que “é no contexto do globalismo que o liberalismo se transfigura em neoliberalismo” (IANNI, 2008, p.217), articulando ideologicamente os interesses da classe dominante em âmbito mundial, como apreendido na inter-relação entre trabalho e educação do Programa do Jovem Aprendiz.
Por sua vez, a educação que deveria conscientizar para a vida, para transformar a realidade por meio do ideal da emancipação humana, acaba por se tornar em um objeto negociável entre os que compram e os que vendem a força de trabalho. Desse modo, deixa de ser um processo extenso por meio do qual se transmite uma cultura para quem está sendo educado, não uma cultura determinada pela sua condição de classe social, mas sim uma cultura no sentido amplo e significativo da palavra. Por isso, concordamos que a educação formal pode e deve abarcar a educação profissional, uma vez que:
[...] todas as dimensões da educação podem ser reunidas. Dessa forma, os princípios orientadores da educação formal devem ser desatados do seu tegumento da lógica do capital, de imposição de conformidade, e em vez disso mover-se em uma direção a um intercâmbio ativo e efetivo com práticas educacionais mais abrangentes [...] (MÉSZÁROS, 2005, p.58).
Os estudos e a continuidade destes pelos aprendizes, na perspectiva da Lei do Jovem Aprendiz, não parecem ter tanta relevância, poia a própria CLT que rege essa Lei, deixa transparecer tal visão, quando considera que o trabalho na condição de aprendizagem para os jovens que ainda não concluíram o Ensino
Fundamental não pode exceder seis horas diárias, computando as horas destinadas às atividades teóricas e práticas, porém, para os que já concluíram esse ensino, e estão frequentando o Ensino Médio ou um curso de formação técnica, esse limite se amplia para até oito horas diárias. Por meio dessa ampliação de horas é que compreendemos como essa aprendizagem profissional prevalece sobre a escola regular, pois ao invés de manter as mesmas horas de atividades teóricas e práticas destinadas para todos os Jovens, independente da sua escolaridade, expande as horas para os demais e estas são computadas nas atividades práticas. Desta forma, precariza a relação desse Jovem com os seus estudos, conforme manifestado pelos discursos apreendidos, como também não o proporciona que sua escolarização se expanda de maneira eficiente.
Buscamos tecer ao longo deste estudo, considerações conclusivas acerca das implicações estabelecidas entre o processo de formação profissional do Programa do Jovem Aprendiz com o processo de aprendizagem no ensino regular ou técnico dos Jovens que participam do Programa.
Considerando a totalidade em que se insere o objeto analisado, procuramos situá-los historicamente de acordo com a lógica do mercado de trabalho, da complexidade das relações de produção e do neoliberalismo. Para isto, foi necessária uma análise das relações entre trabalho e educação que constituem o processo de formação profissional do programa.
Tomamos a educação como uma instituição social que no capitalismo constitui como um conjunto de determinações e funcionalidades vitais que medeiam à reprodução do capital, ao preparar os indivíduos apenas para as relações sociais de trabalho que vão se constituindo entre a classe que vende sua força de trabalho e a que compra o trabalho desses indivíduos, sem se preocupar com as influências que esta formação tem na vida escolar e pessoal destes Jovens. Concordamos com Mészáros (2005), quando nos mostra que a educação se tornou um instrumento da sociedade capitalista, no qual o conhecimento que se transfere diz respeito às informações necessárias para o processo produtivo e para a manutenção do seu posto de trabalho.
O que se pode compreender com base na discussão realizada neste estudo, é que a formação profissional dada pelo Programa do Jovem Aprendiz contribui para a reprodução da sociedade de classe, induzindo nesse jovem uma internalização passiva das condições impostas pela hegemonia da classe dominante. Esta formação não possibilita o desenvolvimento de uma consciência crítica sobre o mundo do trabalho, se reduz a um processo, que na verdade incrementa a reprodução do capital, ao mesmo tempo, em que não possibilita uma inter-relação entre a aprendizagem do Programa com o ensino regular.
Diante dessa problemática, reconhecemos o tamanho dos problemas sociais que devem ser enfrentados no país, especialmente pelas particularidades expostas por meio desta pesquisa. Assim, o processo de formação profissional, posto pelo Estado através da Lei do Jovem Aprendiz, está longe de apontar para um caminho de transformação da relação trabalho e educação. Até porque, pelo já exposto neste estudo, a relação desse Jovem Aprendiz com a escola regular teve muito mais implicações negativas do que positivas, já que as notas das disciplinas reduziram, houve problemas com falta, chegar atrasado na escola pela incompatibilidade do horário de saída do trabalho, não entregar trabalhos, falta de tempo para estudar, mudança de turno escolar, dentre outros aspectos semelhantes.
Acreditamos que é preciso persistir na construção de um programa que proporcione aos jovens um entendimento amplo sobre a esfera do mundo do trabalho e que, ao mesmo tempo, consiga relacionar os aspectos da formação escolar com o trabalho, pois de nada adianta, termos diversos programas e ações destinadas a essa classe da população brasileira, se eles não conseguem fazer com que os jovens compreendam, historicamente, o que está por trás das verdadeiras raízes estabelecidas entre os que compram e os que vendem a força de trabalho.
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Recebido em: 30 de março de 2018. Aprovado em: 17 de maio de 2018. Publicado em: 21 de novembro de 2018.
Aline de Oliveira Costa Santos3 Avelar Luiz Bastos Mutim4
O artigo apresenta resultados de uma pesquisa que discutiu a política de educação profissional (EP) no Brasil e teve por objetivo apresentar os desafios da construção da proposta de Educação Profissional Integrada (EPI) na Rede Pública Estadual da Bahia. Foi realizada a análise da literatura pertinente e de documentos que estruturam a Rede Pública de Educação Profissional da Bahia, de 2007 a 2014, além da pesquisa de campo no Centro Territorial de Educação Profissional da Região Metropolitana de Salvador - CETEP-RMS onde se ouviu gestores, discentes e docentes. Concluiu-se que a proposta de Educação Profissional Integrada se constitui como desafio de natureza epistemológica, histórica, política e pedagógica.
El artículo presenta resultados de una investigación que discutió la política de educación profesional (EP) en Brasil y tuvo por objetivo presentar los desafíos de la construcción de la propuesta de Educação Profissional Integrada (EPI) en la Red Pública Estadual de Bahía. Se realizó el análisis de la literatura pertinente y de documentos que estructuran la Red Pública de Educación Profesional de Bahía, de 2007 a 2014, además de la investigación de campo en el Centro Territorial de Educação Profissional da Região Metropolitana de Salvador - CETEP- RMS donde se oyó gestores, discentes y docentes. Se concluyó que la propuesta de Educação Profissional Integrada se constituye como desafío de naturaleza epistemológica, histórica, política y pedagógica.
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i30.p10325
2 O artigo apresenta parte dos resultados da dissertação de mestrado “Educação Profissional Integrada na Rede Pública Estadual da Bahia: Desafios da Construção de uma proposta de educação para a classe trabalhadora”, apresentada em 2014 ao Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade Estadual da Bahia e foi apresentado originalmente na 38ª Reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
– ANPED.
2 Pedagoga e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade Estadual da Bahia. Email: olliveiracosta@gmail.com
3 Professor Titular da Universidade do Estado da Bahia. Email: mutimavelar@gmail.com
O artigo visa apresentar parte dos resultados de uma pesquisa que teve como finalidade analisar os desafios da construção de uma política de educação integral para a classe trabalhadora. Neste texto, buscamos alcançar dois objetivos básicos. O primeiro é apresentar os elementos teóricos e históricos da análise empreendida na pesquisa, que nos fez compreender que a proposta de educação profissional integrada ao ensino médio é um desafio epistemológico, histórico e político. O segundo objetivo é apresentar a experiência do Estado da Bahia no processo de reestruturação e expansão da oferta pública de educação profissional e a análise dessa política a partir da escuta dos atores que a constroem cotidianamente: gestores, professores e estudantes.
Em 2007, o Governo do Estado da Bahia criou a Superintendência de Educação Profissional – Suprof e consequentemente definiu a Educação Profissional como uma política pública prioritária de Estado. A partir de 2008, o governo expandiu de forma exponencial a oferta de cursos de educação profissional para todo estado com o apoio técnico e financeiro do Programa Brasil Profissionalizado, iniciativa do governo federal. Em 2014, a rede estadual de educação profissional da Bahia já era a segunda maior ofertante dessa modalidade de ensino no país, atrás somente do estado de São Paulo, segundo o censo escolar INEP/MEC.
Diante do exposto, a questão principal que moveu a pesquisa foi: Quais os desafios da Educação Profissional Integrada (EPI) na Rede Pública Estadual da Bahia, enquanto proposta de formação integral para a classe trabalhadora? De acordo com Ramos (2012) os programas oriundos da política de integração estão em construção e em disputa:
A análise fecunda sobre eles é uma necessidade histórica e política, e o método de análise das mesmas precisa buscar compreender o que é o Brasil hoje, os segmentos que disputam o projeto de país e as marcas históricas que o fazem como são (RAMOS, 2012, p.44).
A revisão de literatura sobre a problemática em jogo envolveu: a) a discussão sobre a ontologia do trabalho (MARX 1996; LUKÁCS 1978; FRIGOTTO 2005; SOUSA JÚNIOR 2009); b) a compreensão dos conceitos de trabalho como
princípio educativo, politecnia, educação omnilateral e educação tecnológica (GRAMSCI 2000; NOSELLA 2004; SAVIANI 2007; KUENZER 2009) e c) uma
análise sobre a historicidade da educação profissional no Brasil, seu “controvertido percurso” nos últimos anos e a proposta de educação profissional integrada (MANFREDI, 2002; FRIGOTTO; CIAVATTA E RAMOS, 2005; OLIVEIRA, 2012;
MOURA, 2012).
Para análise da execução da política implementada na Bahia foi realizada a análise de documentos oficiais e pesquisa de campo no CETEP-RMS, que incluiu visitas, observações, coleta de dados, entrevistas com a equipe gestora e aplicação de questionários com 7 docentes e 71 estudantes dos Cursos de Educação Profissional Integrada: Técnico em Segurança do Trabalho; Técnico em Controle Ambiental e Técnico em Eletromecânica.
O artigo encontra-se organizado em duas partes, a primeira apresenta os fundamentos teóricos que subsidiaram a pesquisa. E a segunda apresenta a Rede Pública Estadual de Educação Profissional da Bahia, sua estrutura física, administrativa e pedagógica e a análise da materialização da política a partir dos atores envolvidos.
A proposta de uma educação integral para a classe trabalhadora, em última análise visa restituir o vínculo entre trabalho e educação que foram historicamente cortados e “remendados” aos modos dos processos de trabalho, privando o homem de compreender a sua própria existência (FRIGOTTO, 2005; SAVIANI, 2007). Para a tradição marxista a chave para romper com essa lógica está na própria natureza do trabalho, no que tange à sua dimensão emancipadora. Sousa Junior (2010) afirma que:
No contexto das relações estranhadas, o processo longo de formação do homem encontraria possibilidade de superar as relações vigentes, erigindo uma nova ordem social, na qual seja possível viabilizar o livre desenvolvimento das potencialidades humanas. Em decorrência disso, o problema fundamental da educação, no entendimento de Marx, vai localizar-se essencialmente no processo de educação do proletariado, por ser esse o agente que sofre mais intensamente a opressão do capital e por ser ele, consequentemente, o portador das condições mais
favoráveis para conduzir o processo de superação das relações estranhadas (SOUSA JUNIOR, 2010, p.25-26).
A consciência dessa dupla face do trabalho: alienadora e emancipadora nutriu e ainda nutre a defesa de uma educação integral para a classe trabalhadora. As formulações de Marx, Engels e Gramsci se constituíram em referências conceituais, epistemológicas e metodológicas do campo Trabalho e Educação. Nota-se, nesse campo, certa convergência de posições no que tange à proposta de uma educação que tome o trabalho como referência, como fundamento e/ou como princípio educativo (MOURA, LIMA FILHO e SILVA, 2012, p.10). Por todo exposto, entendemos que a proposta da integração se apresenta primeiro como um desafio epistemológico.
A história da educação profissional no Brasil reflete a luta permanente entre duas alternativas: a implementação do assistencialismo, da aprendizagem mecânica versus a proposta da introdução dos fundamentos da técnica, das tecnologias, e do preparo intelectual (CIAVATTA, 2005, p.87). A retrospectiva desse processo mostra que a integração também se constitui como um desafio histórico. Para efeito desse trabalho, destacamos as ações do Governo de Luís Inácio Lula da Silva (2002-2010) no que tange a educação profissional, momento em que Oliveira (2012) chega a afirmar que “[...] a educação profissional assumiu uma importância jamais vista na história da educação brasileira” (p.84).
Para Ramos (2012) o Governo Lula, dispôs-se a reconstituir a política pública para a educação profissional, tendo duas ações iniciais como marco: a primeira foi a revogação do decreto 2.208/97, o que restabeleceu a possibilidade de integração curricular dos ensinos médio e técnico como propõe a Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB 9394/96, e a segunda tratou do redirecionamento dos recursos do Programa de Expansão da Educação Profissional - Proep para o setor público, que se destinavam majoritariamente a iniciativa privada. Para a autora:
A revogação do decreto 2.208/97, realizada pelo decreto 5.154/2004, buscou, fundamentalmente, restabelecer os princípios norteadores de uma política de educação profissional articulada com a educação básica, tanto como um direito das pessoas quanto como uma necessidade do país [...] (RAMOS, 2012. p.38).
O Decreto 5.154 de 23 de julho de 2004 substituiu o decreto anterior e foi o principal documento a regular a educação profissional no Brasil até 2008. Embora
posteriormente outros documentos (Decretos, Leis e Diretrizes) tenham sido fixados com a função de estabelecer normas para o campo e/ou alterar o próprio, pode-se afirmar que o referido decreto se constituiu como um marco fundamental para as transformações ocorridas na educação profissional de 2004 até os dias atuais.
Na época da aprovação do referido decreto, alguns autores o acusavam de “reiterar” os princípios do decreto 2.208/97, principalmente no que diz respeito à flexibilidade e fragmentação da oferta dos cursos de EP (RAMOS, FRIGOTTO e CIAVATTA, 2005; RODRIGUES, 2004). Outros, porém, ressaltavam que o mesmo seria de fundamental importância para o início de um processo de transformação. Moura (2012) afirmava que:
De qualquer maneira a possibilidade de integração entre ensino médio e educação profissional, constante no decreto 5.154/2004, representa uma possibilidade de avanço na direção de construir um ensino médio igualitário para todos, pois, apesar de não confundir com a politecnia, fundamenta-se em seus princípios e exigência de uma sociedade na qual a elevada desigualdade econômica que obriga grande parte dos filhos das classes populares a buscar, bem antes dos 18 anos de idade, a inserção no mundo do trabalho visando complementar a renda familiar (MOURA, 2012, p.58).
No segundo mandato do governo Lula (2007-2010), duas metas foram colocadas visando estabelecer os rumos do ensino médio e da educação profissional no país. A primeira diz respeito à continuidade da reestruturação do ensino médio. E a segunda vincula-se à ampliação do ensino técnico e tecnológico nesse mesmo período. Tais metas foram materializadas em forma de ação por meio do Programa Brasil Profissionalizado, instituído pelo Decreto nº 6.302, de 12 de dezembro de 2007, com a finalidade principal de estimular o ensino médio integrado à educação profissional (BRASIL, 2007).
O Programa previa o apoio técnico e financeiro da União para estruturação de redes estaduais e municipais de Educação Profissional. Com relação à sua execução, as dificuldades foram grandes nas redes estaduais, pois a ideia base é a de que o governo federal financiasse a infraestrutura física, principalmente a construção e a adequação de prédios, os equipamentos dos laboratórios e acervo bibliográfico. E os estados teriam responsabilidades com algumas contrapartidas,
inclusive com a garantia de formação do quadro de professores, o que não aconteceu (MOURA, 2012).
Na primeira gestão do Governo de Dilma Rousseff (2011-2014), percebemos mudanças nas diretrizes da educação profissional, principalmente pelos esforços empreendidos na oferta dos Cursos de Formação Inicial - FIC do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego - PRONATEC e o consequente arrefecimento dos investimentos na proposta de educação profissional integrada. A análise da correlação de forças que disputa a educação profissional mostrou que a proposta de integração é também um desafio político.
Com o apoio da política nacional de integração, o Governo do Estado da Bahia na gestão Jaques Wagner - PT (2007-2014) se dispôs a construir a rede estadual de educação profissional do ponto de vista físico (escolas, equipamentos) e pedagógico (concepção, atualização curricular e formação de professores). Para isso, uma das primeiras ações do Governo foi a criação da Superintendência de Educação Profissional - Suprof e o lançamento do Plano Estadual de Desenvolvimento da Educação Profissional, no qual o Governo assume a educação profissional como política pública de Estado nos seguintes termos:
Vinculada ao Desenvolvimento Sócio-Econômico-Ambiental; b) Desenvolvida nos Territórios de Identidade; c) Para atender aos alunos e egressos da Escola Pública, elevando a sua escolaridade;
d) Contribuindo para a inserção cidadã no Mundo do Trabalho; e) Formando Cidadãos, Trabalhadores, Sujeitos de Direitos em sua Diversidade; f) Fundamentada na Pedagogia do Trabalho (BAHIA, 2008).
Segundo informações oficiais da própria Superintendência, o Estado aproveitou estruturas desocupadas existentes na rede estadual de ensino e recursos federais do Programa Brasil Profissionalizado para adequar e modernizar várias unidades escolares, o que incluiu reforma e ampliação, instalação de laboratórios e montagem do acervo bibliográfico (BAHIA, 2011). Assim, em um curto espaço de tempo o atendimento alcançou 123 municípios baianos, como mostra a figura abaixo:
Figura 1 - Distribuição Espacial da Rede de Educação Profissional - 2006 e 2014.1
Fonte: SEC/Suprof
Outro importante marco na estruturação da política foi a instituição dos Centros Estaduais de Educação Profissional - CEEP e dos Centros Territoriais de Educação Profissional - CETEP. A diferenciação dessas instituições não é apenas de terminologia, tem a ver com a abrangência das mesmas. O CETEP visa atender às demandas consideradas relevantes da região ou Territórios de Identidade, onde se encontra situado, podendo ofertar cursos de Eixos Tecnológicos diversos. O CEEP se caracteriza pela especialidade em uma área ou Eixo Tecnológico.
Uma diretriz importante para o processo de gestão democrática dos Centros foi a instituição do Conselho Escolar, como órgão colegiado de caráter deliberativo, com o objetivo de ampliar e garantir a participação da comunidade, visando à qualidade dos cursos ofertados e o fortalecimento do projeto político-pedagógico
desenvolvido. Os Conselhos devem ser compostos por segmentos da comunidade escolar e da comunidade local e entidades representativas. Todavia, Silva (2013) afirma que:
No tocante ao exercício da gestão democrática nos Centros de Educação Profissional da Bahia é possível observar que isto ainda não se concretizou plenamente em virtude da ampliação de representatividade nos conselhos escolares e da dificuldade destes em se reunirem (SILVA, 2013, p. 79-80).
Além dos Centros, a Rede Estadual de EP é também composta por unidades escolares de ensino médio que ofertam cursos de educação profissional e por escolas conveniadas4. Conforme informações divulgadas pela Suprof, em 2013 havia: 32 Centros Territoriais; 34 Centros Estaduais; 89 unidades compartilhadas e 2 escolas conveniadas. As formas de articulação ofertadas pela Rede de Educação Profissional estão expostas no quadro a seguir:
Quadro 1 - Formas de Articulação da Rede Estadual de Educação Profissional da Bahia.
Curso | Nível | Duração |
Educação Profissional Integrada | Técnico | 4 anos |
Educação Profissional Técnica de Nível Médio Concomitante | Técnico | Variável (conforme o curso |
Educação Profissional Técnica de Nível Médio Subsequente (Prosub); | Técnico | 2 anos |
PROEJA Médio | Técnico | 2 anos e meio |
PROEJA Fundamental, em Regime de alternância | Técnico | * |
PROJOVEM | Básico | 6 meses |
PRONATEC – FIT | Básico | 4 meses (em média) |
PRONATEC – TEC | Técnico | 1 ano |
* informação não encontrada Fonte: Suprof. Elaboração própria.
4 Escolas conveniadas são instituições privadas que mantém convênios com o Estado para a oferta de educação profissional. De acordo com informações de funcionários da SEC, as escolas conveniadas de educação profissional funcionaram até dezembro de 2014. Depois desta data, as escolas passaram a funcionar como as demais, com a responsabilidade exclusiva do Estado.
A oferta dos cursos ocorreu de acordo com as necessidades por qualificação e formação profissional nos Territórios de Identidade, apontadas por diferentes atores sociais e no Plano Plurianual Participativo - PPA do Governo. O preenchimento das vagas para os cursos técnicos subsequentes é feito por meio de sorteio eletrônico, com isso a Suprof pretendeu enfrentar a questão da meritocracia. Os demais cursos atendem à forma clássica de preenchimento de vagas ofertadas pela rede estadual de ensino, ou seja, reserva de vagas para os alunos da rede e ordem de chegada para os novos.
A expansão da rede pública de educação profissional da Bahia entre 2007 e 2014 foi bastante significativa. Trata-se de um crescimento de 1.661% de acordo conforme informações da Suprof. As matrículas de cursos de educação profissional alcançavam a marca de 4.016 em 2006 e saltou para 70.754 em 2014, marca que fez a Bahia alcançar, já em 2013, o posto de segunda maior rede estadual de educação profissional do país.
Dois aspectos são relevantes nesta expansão, o primeiro diz respeito a capilaridade da oferta, ou seja, a sua interiorização para o alcance de todos os territórios baianos, e o segundo envolve a distribuição das matrículas por formas de articulação, informação contida no gráfico a seguir:
Gráfico 1 - Matrículas na Rede Estadual de Educação Profissional por Forma de Articulação
Fonte: Secretaria de Educação do Estado da Bahia/ Superintendência de Educação Profissional
Os cursos da Educação Profissional Integrada e do PROEJA respondem pela maior parte das matrículas, o que significa o cumprimento do disposto no Programa Brasil Profissionalizado, que determina atenção prioritária à forma de articulação integrada. Com relação a oferta dos cursos do PRONATEC, a Superintendência informou que em 2014 foram 7.759 matrículas nos Cursos FIC e
3.595 nos Cursos TEC, totalizando 11.354 matrículas ofertadas em parecerias com entidades do Sistema S e dos Institutos Federais (BAHIA, 2014).
Três princípios norteiam a política de EP na Bahia: 1) Formação Integral; 2) Trabalho como Princípio Educativo e 3) Intervenção Social como Princípio Pedagógico. Pela adoção de tais princípios percebemos, do ponto de vista da intencionalidade, o compromisso com a formação integral da classe trabalhadora. Contudo, da forma como foram expostos, notamos a presença de elementos da Pedagogia das Competências, propagada na década de 1990. O texto oficial diz o seguinte:
A Educação Profissional está articulada às diferentes formas de educação, trabalho, ciência e tecnologia. Está voltada, também, ao permanente desenvolvimento da capacidade dos estudantes de adaptar-se, com criatividade e inovação, às condições das ocupações e às exigências posteriores de aperfeiçoamento e de especialização profissional (BAHIA, 2013, grifo nosso).
A ideia de uma educação voltada “ao permanente desenvolvimento da capacidade dos estudantes em adaptar-se, com criatividade e inovação, às condições das ocupações” remete às noções de flexibilidade e formação por competências, as quais são opostas a noção de formação integral. Nesse sentido, entendemos que há uma tendência de associação direta da formação profissional com o mercado de trabalho e com o empreendedorismo, o que marca um posicionamento recorrente nas políticas de EP.
Contudo, ressalta-se que o Governo do Estado ofereceu três Cursos de Especialização aos docentes da Rede, fundamentados na Pedagogia Histórico- Crítica. Os cursos foram: Metodologia de Ensino para Educação Profissional; Gestão da Educação Profissional e Trabalho Educação e Desenvolvimento para Gestão em Educação Profissional (UFRB). Sendo que 1.500 docentes concluíram os cursos.
A matriz curricular dos cursos de Educação Profissional Integrada é formada por componentes curriculares de três áreas: (1) Base Nacional Comum (BNC); (2) Formação Técnica Específica (FTE) e (3) Formação Técnica Geral (FTG). Os cursos têm duração de 4 anos, com carga horária total de 4.680 horas, incluindo a carga horária de estágio. Mesmo diante de alguns limites de contradições entendemos que a proposta curricular apresentada pode possibilitar uma formação integral. Para analisar a materialização da proposta adentramos no cotidiano do Centro Territorial de Educação Profissional da Região Metropolitana de Salvador.
O CETEP-RMS é uma instituição da rede pública estadual de ensino que se dedica exclusivamente a oferta da educação profissional em suas diversas formas de articulação. O Centro está localizado em Camaçari, um dos treze municípios que compõe a Região Metropolitana de Salvador, também denominada de Território de Identidade 26.
Em 2014, encontravam-se matriculados no Centro 956 estudantes distribuídos nos três turnos, 20% nos Cursos de Educação Profissional Integrada, 55% nos Cursos Técnicos Subsequente, e os demais, em Cursos do PROEJA Médio (13%) e do PRONATEC (12%). Situação que denota certo descolamento do que propôs o Programa Brasil Profissionalizado, no que concerne à priorização da oferta de matrículas da Educação Profissional Integrada. Embora se tenha verificado que no conjunto do estado, a oferta da EPI supera as demais modalidades.
O CETEP-RMS ocupa uma área situada no centro de Camaçari e está instalado em um prédio de dois andares e dois pavimentos, com 10 salas de aulas, cantina, espaços de convivência e 10 laboratórios instalados conforme indicação do Catálogo Nacional dos Cursos Técnicos - CNCT. A infraestrutura do Centro é avaliada pela comunidade escolar como boa ou ótima, mas os estudantes reclamam da falta de uma quadra de esportes e da pouca utilização dos laboratórios para aulas práticas.
Os professores reconheceram que utilizam pouco os laboratórios e alegam que isso ocorre pela ausência de um técnico de laboratório na instituição para dar
suporte e pelo pouco tempo de aula que dificulta a realização de aulas práticas. Entendemos que a ausência de uma quadra de esportes e a pouca utilização dos laboratórios compromete bastante a proposta de uma educação integral.
O quadro dos servidores do CETEP-RMS estava formado por 49 profissionais, dos quais 20 eram de professores, sendo: 07 efetivos, 04 contratados pelo Regime Especial de Direito Administrativo - REDA e 09 por Prestação de Serviço Temporário - PST. Entre os demais servidores, a maioria (24) era contratada por tempo determinado ou por empresas terceirizadas, com exceção da diretora, dos vice-diretores e de uma secretária que fazia parte do pessoal efetivo. Segundo a equipe gestora, a rotatividade dos profissionais que atuam na instituição é alta. A remuneração e as condições de trabalho oferecidas aos profissionais contratados são apontadas pelos professores como motivos para o não preenchimento das vagas existentes, como apontou um dos professores
participante da pesquisa.
“Enquanto um professor efetivo com regime de 20h deve dar 13h em sala de aula, dispondo das outras horas para planejamento/correção de trabalhos, o contratado através do PST tem que assumir até 18h em sala de aula. Isso para ganhar menos que a metade de um professor efetivo”. (PROFESSOR CETEP- RMS).
As formas precarizadas de contratação de professores e funcionários é um problema da rede estadual de educação em geral, e que atinge a educação profissional de forma particular pela necessidade de contratação de professores especializados para as disciplinas técnicas. Sabemos que o déficit de professores para a educação profissional e tecnológica é uma realidade em todo Brasil, como apontou Oliveira (2005). Mas, esperávamos que o Governo da Bahia cumprisse com o compromisso assumido de tornar a EP como política de Estado com a realização de concursos para contratação de funcionários e professores efetivos da rede.
O desconhecimento dos estudantes sobre a proposta da Educação Profissional Integrada foi apontado pela equipe gestora e pelos professores como um dos entraves para o sucesso da proposta. Dos 71 estudantes que participaram da pesquisa, 46% afirmaram desconhecerem o curso antes da matrícula. Tal desconhecimento leva os estudantes a questionarem a necessidade dos 4 anos de duração do curso e das disciplinas da Base Nacional Comum na matriz curricular.
“Os alunos questionam muito a presença das disciplinas da Base Nacional Comum no currículo. Eles questionam: ‘Por que Sociologia?’ Eles querem um curso técnico direcionado. Queixam- se porque tem Intervenção Social e Pesquisa” (VICE-DIRETORA PEDAGÓGICA CETEP-RMS).
Verificamos que o desconhecimento tem gerado problemas sérios, uma vez que provoca um descompromisso por parte dos estudantes em relação ao curso. Por outro lado, alguns professores assumiram que não gostam de dar aulas nas turmas de EPI, pelo fato dos estudantes serem mais jovens, segundo eles “inexperientes e mais indisciplinados” em relação aos dos cursos subsequente e Proeja. A nosso ver, estes comentários também refletem certo desconhecimento dos professores em relação a proposta, pois diziam: “a minha matemática é aquela do segundo grau”; “falta neles (estudantes da EPI) uma postura profissional”. O que reflete uma visão estritamente profissionalizante da proposta. No CETEP-RMS dois professores e um membro da equipe gestora concluíram os cursos de especialização em metodologia da EP, ofertado pelo Estado, o que proporcionalmente é muito pouco.
O compromisso da EPI é com a formação do estudante em todas as suas dimensões. Nesse sentido, é necessário que aconteça a articulação entre arte, cultura, tecnologia e trabalho na formação. Essa articulação, muitas vezes é o ponto nevrálgico dessa proposta. A matriz curricular desenvolvida prevê os Estudos Interdisciplinares com carga horária semanal como forma de promover essa integração.
A frequência em que se desenvolvem atividades ou projetos interdisciplinares nos Cursos de EPI foi uma questão direcionada aos estudantes. Dos quais 90% afirmaram que raramente foram realizados trabalhos ou projetos interdisciplinares durante o curso. Sabemos que atividades interdisciplinares não garantem a integração, entretanto tal proposta requer uma intersecção de saberes e conhecimentos e, em geral, atividades de natureza interdisciplinar são as que mais se aproximam dos princípios da integração, uma vez que requerem práticas contextualizadas e articuladas com as questões sociais mais amplas da sociedade em geral e da comunidade em que a escola está inserida.
Aos professores também foram perguntados sobre a frequência com que realiza atividades interdisciplinares e as respostas dadas pelos 07 professores ratificam o que disseram os alunos. Apenas uma professora admitiu que realiza atividades interdisciplinares 04 vezes ao ano, outros 05 afirmaram que fazem semestralmente um trabalho dessa natureza, e um professor admitiu não fazê-lo.
Em meio às dificuldades, no Centro pôde se observar, em alguns momentos, a materialização da proposta de educação integral e dos princípios que embasam a política de educação profissional da Bahia. Momentos que se concretizaram também pelo esforço coletivo de professores e estudantes que sentiram a necessidade de significar pela contextualização as questões que impactam o lugar onde vivem e se relacionam.
Em uma das atividades a professora de Filosofia, Ética e Direito do Trabalho juntamente com o Professor de Língua Portuguesa propuseram que os estudantes organizassem um seminário sobre o livro “O Cortiço” de Aloísio de Azevedo, observando as relações de trabalho estabelecidas no romance e fazendo um paralelo com as relações de trabalho contemporâneas. Essa atividade reafirma a proposta da formação integrada, que de acordo com Ramos (2014):
[...] não somente possibilita o acesso a conhecimentos científicos, mas também promove a reflexão crítica sobre os padrões culturais que se constituem normas de conduta de um grupo social, assim como a apropriação de referências e tendências estéticas que se manifestam em tempos e espaços históricos, os quais expressam concepções, problemas, crises e potenciais de uma sociedade, que se vê traduzida e/ou questionada nas manifestações e obras artísticas (RAMOS, 2014, p.90).
Os estudantes, em equipes, apresentaram seminários nos quais foi possível observar a integração no mais completo sentido do termo: integração de um conteúdo clássico da literatura brasileira com o um conteúdo da ética do trabalho; análise de uma realidade do século XIX em paralelo com a análise das condições sociais atuais dos trabalhadores no Município de Camaçari; integração de saberes profissionais, saberes científicos e saberes culturais. E principalmente, uma análise crítica sobre a realidade social do Brasil nos dias atuais.
Outra atividade observada foi a Feira Tecnológica, evento que acontece anualmente no Centro. A atividade funciona como uma espécie de preparação para as Feiras Estaduais de Educação Profissional. Nessas feiras, os estudantes apresentam resultados de pesquisa realizada, sob a orientação dos professores. Foi possível observar nas pesquisas apresentadas um viés intervencionista, voltado para as questões da comunidade e um amplo envolvimento dos estudantes. Entretanto percebemos que a articulação entre trabalho, ciência e cultura, um dos pilares principais da Educação Profissional Integrada, é algo vivenciado em atividades pontuais no Centro, quando na verdade deveria ser o eixo condutor das ações.
São constantes os protestos e reivindicações da comunidade do CETEP- RMS em relação a proposta da Educação Profissional Integrada ao Ensino Médio. Gestores, professores e estudantes apontam falhas e equívocos, mas também defendem a continuidade da política por considerar importante e necessária para formação dos jovens. A comunidade em geral faz referência aos investimentos, a proposta dos cursos e a necessidade de resolução dos problemas apontados. Alguns estudantes registraram apreciações a respeito da experiência:
“A estrutura do CETEP-RMS para uma instituição técnica é diferenciada, é muito boa, na verdade é ótima. Precisamos de mais estímulo dos docentes, é o dever deles nos passar as informações da realidade em sala de aula e nos fazer profissionais” (ESTUDANTE, EPI, SEGURANÇA DO TRABALHO 4º ANO);
“Este curso, inicialmente seria uma proposta de estudo ideal. Ao longo desses quatro anos, muitas experiências boas foram vividas, porém com baixa frequência (constância), sendo abafados pelos
problemas e precariedades que a instituição apresenta e mascara” (ESTUDANTE, EPI, CONTROLE AMBIENTAL 4º ANO).
A grande maioria dos estudantes que participaram da pesquisa afirma que pretende prosseguir os estudos no ensino superior ou cursar outro curso técnico. A preocupação com o futuro profissional era algo bastante perceptível entre os estudantes. Sentimento que os faziam cobrar dos professores a contextualização dos conteúdos, algo que os aproximassem mais das questões por eles vivenciadas.
Gestores e professores do CETEP-RMS também se manifestaram a favor da continuidade da política, mas apontaram a necessidade da realização de concurso público para provimento dos cargos de professores para a educação profissional no Estado. Entendemos que mesmo com infraestrutura adequada e proposta curricular consoante com o princípio da educação integral, foi possível verificar também a existência de mais um desafio para a efetivação da proposta de integração: o desafio pedagógico. Para Lima, 2011:
A resolução de nenhum destes desafios prescinde de um ator destinado a ser protagonista, mas que tem assumido ultimamente "papéis baratos": os trabalhadores, que devem assumir a cena, o roteiro e a direção na construção de uma nova política de educação profissional no Brasil (LIMA, 2011, p.18).
O caminho para que a classe trabalhadora assuma um papel preponderante na construção da política pública de EP é a garantia do direito a uma educação pública, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada, que se resume na defesa de uma educação integral.
Entendemos que proposta da educação profissional integrada se constitui como uma tentativa de construção um “novo” ensino médio, anterior a atual Reforma imposta inicialmente pela Medida Provisória n.746/2016 e regulamentada pela Lei n. 13.415/2017. Reforma que desconhece todo esforço empreendido nacionalmente, de forma democrática, para construção de caminhos para o ensino médio e, de forma subliminar anuncia a descontinuidade da política de integração, fere frontalmente o princípio da educação básica e legitima uma educação dualista (FRIGOTTO, 2016; FARIA FILHO, 2016).
A experiência do CETEP-RMS mostrou que na prática a proposta da educação profissional integrada enfrenta alguns entraves, como a questão dos vínculos precários de contratação dos profissionais do Centro, o desconhecimento da proposta por parte de estudantes e professores, e ainda, as dificuldades para articulação entre trabalho, ciência, cultura e tecnologia. Entretanto, mostrou também a materialização de experiências que abrem “espaços de esperança” e nos fazem acreditar na integração enquanto mediadora da tão sonhada formação integral para classe trabalhadora.
A compreensão da EPI como desafios: epistemológico, histórico, político e pedagógico torna-se imprescindível para o reconhecimento das dimensões dos embates que deverão ser enfrentados para sua concretização. O momento atual aponta para a importância de resistirmos na defesa de um ensino médio público, gratuito e que garanta uma formação completa e/ou integral para classe trabalhadora, visto que historicamente esta é a mais prejudicada com as Reformas Educacionais.
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Recebido em: 23 de março de 2018. Aprovado em: 10 de maio de 2018. Publicado em: 21 de novembro de 2018.
Nina Isabel Soalheiro2 Danúbiah Mendes-Pereira3
O artigo apresenta os resultados de um estudo sobre o papel da Educação Profissional em Saúde/EPS no contexto da qualificação do trabalhador com escolarização de nível médio. O nosso campo de pesquisa foi o Curso de Qualificação Profissional em Saúde Mental da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/EPSJV/Fiocruz, onde analisamos o projeto pedagógico e o impacto do processo formativo na prática profissional dos alunos egressos. Os resultados apontam mudanças qualitativas no processo de trabalho, fortalecimento do seu papel na equipe e ampliação da visão política do campo da saúde mental.
This article presents the results of a study about the role of Professional Education in Health / EPS in the context of the qualification of workers with high school education. Our field of research was the Professional Qualification Course in Mental Health of the Polytechnic School of Health Joaquim Venâncio-EPSJV / Fiocruz, in which we analyzed the pedagogical project and the impact of the formative process on the professional practice of the graduate students. The results point to qualitative changes in the work process, strengthening of its role in the team, and broadening the political vision of the field of mental health.
A pesquisa que dá origem a este artigo foi realizada no âmbito da iniciação científica, dentro do conjunto de trabalhos acadêmicos do Grupo de Pesquisa
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i30.p10096
2 Doutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP). Professora Pesquisadora na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV FIOCRUZ/). E-mail: ninasoalheiro@fiocruz.br
3 Bolsista de Iniciação Científica na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/FIOCRUZ). Graduanda de Psicologia no Centro Universitário UNIABEU. E-
mail: danubiahmendes@gmail.com
“Desinstitucionalização, Políticas Públicas e Cuidado” da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz. O grupo reúne pesquisadores com produções inseridas no campo da Educação Profissional em Saúde voltadas para o fortalecimento das políticas públicas, defesa de direitos e cuidado integral em saúde mental.
Somos um grupo de trabalho em saúde mental (GTSM) inserido no Laboratório de Educação Profissional em Atenção em Saúde (LABORAT), que desenvolve atividades de ensino e pesquisa direcionadas à qualificação profissional para a atenção em saúde. Nossos estudos sobre o processo de trabalho, prioritariamente dos trabalhadores de nível médio e técnico, são integrados aos vários processos formativos, sendo um deles o objeto desse artigo.
Apresentamos aqui os resultados de uma pesquisa Pibic-CNPq/Fiocruz que discute o papel estratégico da Educação Profissional em Saúde/EPS na qualificação do trabalhador com escolarização de nível médio para as ações de saúde mental no SUS e na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Nosso campo de pesquisa foi o Curso de Qualificação Profissional em Saúde Mental da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/EPSJV/Fiocruz, onde investigamos o perfil dos alunos e analisamos os efeitos do processo formativo na sua relação com o trabalho, nas abordagens e práticas de atenção psicossocial, e na visão social e política do campo.
O histórico do curso remonta à criação, ainda em 1995, de um curso de saúde mental - Curso Básico de Acompanhamento Domiciliar em Saúde Mental (CEBAD) – que foi pioneiro em seu objetivo de acolhimento a uma demanda crescente de formação para a Reforma Psiquiátrica. O CEBAD tinha como projeto pedagógico a qualificação de acompanhantes domiciliares para atuar como facilitadores na relação entre o paciente com demanda de atenção diária e a família, e entre estes e a comunidade. Uma experiência exitosa de formação desenvolvida regularmente entre os anos de 1995 e 2006 (BELMONTE, 1996).
Após reformulação do currículo e público alvo, a partir de 2009, foi implementado o Curso de Especialização Técnica em Saúde Mental (CETESM), depois renomeado como Curso de Qualificação em Saúde Mental. Este é o foco do nosso estudo: um curso realizado anualmente, com carga horária de 300
horas, e que formou sua oitava turma no ano de 2017. Seu projeto político/ pedagógico é formar trabalhadores de nível médio capazes de atuar e refletir criticamente sobre projetos, redes e instituições de saúde mental, dentro de uma perspectiva de educação profissional pautada pela formação ética, política e técnica (EPSJV, 2012).
A pesquisa investiga o perfil dos alunos, o processo formativo do curso e seus efeitos na prática dos egressos que trabalham na rede de saúde e saúde mental. Sem ter como objetivo formal desenvolver uma pesquisa avaliativa do curso, nosso estudo é direcionado para a visão dos alunos sobre os efeitos do processo formativo, sistematizada a partir da análise de narrativas por escrito. O desenho metodológico inclui a análise documental dos registros do curso para identificar o perfil dos alunos egressos, revisão bibliográfica qualitativa de conceitos básicos do campo da formação para o trabalho em saúde, e uma análise de conteúdo temática de um dos relatórios de final de curso.
Foram sistematizados os dados dos relatórios escritos pelos alunos das cinco turmas estudadas, sendo estes organizados em eixos temáticos e analisados de modo dialógico com os autores de referência. Os resultados encontrados permitem mapear a experiência formativa dos alunos/profissionais de nível médio em termos de mobilização de conhecimentos, efeitos da formação e mudanças nas práticas orientadas para a desinstitucionalização. Esta que continua sendo um dos maiores desafios para a reforma psiquiátrica.
Para isso procuramos caracterizar o contexto da Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB), relacionando-o com o campo da Educação Profissional em Saúde (EPS) naquilo que concerne aos princípios e conceitos básicos que orientam a formação de trabalhadores. Os resultados trazem reflexões sobre as carências e características pertinentes ao profissional com escolarização de nível médio: o caráter ao mesmo tempo vulnerável e estratégico desse profissional; a necessidade da democratização dos processos formativos e sua adequação à saúde mental como um campo em permanente transformação; a importância de investir em novos cursos e fomentar temas de formação voltados para as novas abordagens e práticas psicossociais.
Na primeira fase da pesquisa foi realizada uma análise documental dos registros escolares para identificar os perfis dos alunos egressos, a partir de um recorte temporal de 2009 a 2013. Foram coletados os dados considerados de relevância para nossa investigação: sexo, idade, função/ocupação, vínculo institucional, município onde trabalham. As informações sistematizadas configuram um perfil dos egressos das cinco turmas, totalizando nesta fase 150 sujeitos da pesquisa.
Para o desenvolvimento da análise proposta realizamos uma revisão bibliográfica qualitativa de conceitos básicos do campo da formação para o trabalho em saúde e saúde mental. A escolha pela revisão narrativa se justifica por ser uma metodologia de busca bibliográfica de característica mais ampla e adequada aos estudos do tipo “estado da arte” de determinado tema. Além disso, sob o ponto de vista teórico e conceitual, permite a inclusão de diferentes tipos de fontes (ROTHER, 2007). Dessa forma, a revisão bibliográfica precede e norteia todo o trabalho de análise, incluindo documentos oficiais, livros e artigos selecionados a partir de obras e autores considerados de referência para os dois campos.
Na última etapa foi realizada a análise de conteúdo temática de um dos relatórios que integra o conjunto das avaliações finais dos alunos, num total de 46 relatos escritos. Os relatórios analisados consistem em textos individuais nos quais o aluno responde voluntariamente a uma questão aberta e de forma discursiva sobre os aspectos do curso que proporcionaram oportunidades de aprendizagem e tiveram impacto na relação com o trabalho, na sua prática profissional e perspectiva de futuro. Os relatórios analisados constituem um conjunto representativo das cinco turmas, sendo incluídos todos aqueles entregues e em condições de serem digitalizados para análise com uso de Software.
No desenvolvimento desse trabalho utilizamos o OpenLogos, um software gerenciador de dados textuais e de acesso aberto. Criado com o objetivo de auxiliar pesquisadores no processo de sistematização de dados, o uso do software se mostrou muito útil para nossas análises do material textual, estas de
natureza essencialmente qualitativas. O OpenLogos tem sido usado basicamente em projetos na área da saúde que utilizam um volume considerável de dados textuais a serem analisados via codificação e categorização temática (CAMARGO JR., 2000).
Foram sistematizadas 5 (cinco) categorias temáticas a partir das narrativas dos alunos, as quais descrevem os principais aspectos identificados por eles como efeitos do processo formativo: qualificação da escuta e construção do vínculo com os usuários; qualificação das abordagens e práticas; empoderamento e tomada de consciência do seu papel estratégico na equipe; projetos de continuidade da formação; ampliação da visão política e social. Os conteúdos organizados por eixos temáticos foram analisados de modo dialógico com os autores de referência, orientando a apresentação e discussão dos resultados.
Conforme apresentado na metodologia iniciamos por uma análise documental dos registros escolares dos alunos egressos para compor seu perfil. É importante ressaltar que o curso trabalha com demanda espontânea e os candidatos passam por um processo de seleção que consiste em análise de currículos e entrevistas em grupo. São formadas turmas anuais de 30 (trinta) alunos em média, sendo que a prioridade absoluta é para trabalhadores da saúde e saúde mental, com escolarização de nível médio. Para a inscrição é exigido como pré-requisito a liberação dos mesmos pelos gestores das suas instituições de origem. As aulas acontecem duas vezes por semana em horário integral, totalizando 300 (trezentas) horas aulas distribuídas em cinco meses.
Uma primeira característica que consideramos relevante no perfil dos alunos é a predominância do sexo feminino, com a porcentagem do sexo masculino nunca ultrapassando 28%, sendo que uma das turmas estudadas foi integralmente composta por mulheres. Encontramos na literatura uma discussão importante sobre a visão tradicional de cuidado identificada a um modelo familista. Baseado no pressuposto de que a família seria responsável por suprir as
necessidades de cuidado dos seus membros vulneráveis, esse modelo pode ser aplicado tanto à crianças e idosos, como a pessoas com algum tipo de dependência. Desse ponto de vista, o cuidado é entendido como um problema da vida privada, próprio do contexto familiar e ligado essencialmente a características encontradas no sexo feminino.
Essa visão da mulher como a cuidadora natural dentro da família sustenta historicamente a divisão sexual do trabalho e vem respaldando a desresponsabilização do Estado na formulação de políticas de cuidado. A problematização dessa concepção se dá a partir das mudanças do papel da mulher e sua entrada no mundo do trabalho, trazendo à tona as relações entre gênero e poder na sociedade. A partir disso iniciamos a lenta construção de uma outra perspectiva, na qual a responsabilidade sobre os cuidados pode e deve ser compartilhada entre indivíduos, família, sociedade e Estado (GROISMAN, 2017 e PASSOS, 2016).
Outro aspecto importante diz respeito ao campo profissional de origem dos alunos que foi progressivamente se ampliando ao longo dos anos. A primeira turma teve 66 % dos alunos oriundos da área da enfermagem, sendo essa porcentagem diminuída lentamente, chegando a 30 % na última turma estudada. Concomitantemente, respeitando o pré-requisito de conclusão do ensino médio, vai se ampliando o espectro de profissões dos alunos: agentes comunitários de saúde, cuidadores, oficineiros, profissionais da área administrativa, e outros tipos de trabalhadores sociais. O número mais expressivo é de agentes comunitários de saúde e cuidadores, o que determina um perfil cada vez menos “técnico”.
Admitimos uma pequena porcentagem de profissionais com formação de nível superior, restrita aos casos que desenvolvam trabalhos estratégicos na rede ou sejam inseridos em áreas de conexão com a saúde mental, como por exemplo a justiça, educação, cultura, dentre outras. A pluralidade das categorias profissionais é uma característica considerada positiva, na medida em que possibilita trocas interdisciplinares, reproduzindo a complexidade do processo de trabalho em saúde, construído histórica e socialmente na interação de diferentes saberes.
Trabalhamos com uma concepção de processo de trabalho em saúde na qual este é estruturado a partir de várias formas de organização dos serviços e
necessitaria sempre da participação de profissionais com múltiplas formações. As ações produzidas no cuidado constituem um trabalho em grande parte coletivo, que envolve diferentes saberes, e onde o mais importante será o compromisso ético efetivo dos profissionais com os usuários e suas necessidades (NOGUEIRA & PONTES, 2017). Essa diversidade presente entre os alunos favorece a percepção por parte dos mesmos da natureza complexa do trabalho em equipe e da potência dessa pluralidade.
Quando trabalhamos especificamente com formação do profissional de nível médio são muitos os desafios para a integração deste no conjunto da equipe. Na realidade do sistema de saúde é comum os profissionais atuarem numa mesma unidade desenvolvendo ações de cuidado de forma não coletivizada, muitas vezes tensionadas pela hierarquização dos diferentes saberes e categorias profissionais. Como veremos adiante essa é uma observação recorrente nas narrativas dos alunos, quando relatam sentir-se submetidos a uma condição inferior no conjunto da equipe. No processo pedagógico do curso procuramos desconstruir um entendimento generalizado de que os profissionais com escolaridade de nível médio devem se restringir à atividades práticas e de apoio, apenas necessitando de processos formativos em serviço para aprendizagem de conteúdos programáticos e atividades prescritivas (MOROSINI, 2010).
As instituições de origem dos nossos alunos são muito diversas, incluindo hospitais psiquiátricos, centros de atenção psicossocial, unidades básicas de saúde e saúde da família, hospitais gerais, unidades de emergências em saúde mental, dentre outras. São unidades de saúde da cidade do rio de janeiro e também de municípios vizinhos, principalmente da região metropolitana. As demandas de outros municípios são acolhidas na medida do possível, sendo que, no período estudado, elas representaram em média 30 por cento dos alunos. Já foram comtemplados trabalhadores de Niterói, Belford Roxo, São João de Meriti, Queimados, Paracambi, Petrópolis, Teresópolis, Mesquita, Magé, dentre outras.
Mesmo os alunos que trabalham na cidade do Rio de Janeiro, por seu perfil de baixa renda, são em sua maioria moradores de bairros periféricos ou cidades do entorno, frequentemente enfrentando dificuldades para custeio do transporte. Quanto à faixa etária variam desde os muito jovens até antigos trabalhadores da
área, sendo comum estarem afastados da experiência escolar há vários anos. Os alunos de faixa etária mais alta costumam apresentar mais dificuldades - especialmente de expressão pela escrita - mas também são aqueles que demonstram especial entusiasmo na vivência de retorno à escola, como veremos mais adiante.
Outro aspecto relevante é uma forte religiosidade manifestada permanentemente no discurso e no contexto acadêmico. Em função disso trabalhamos no curso com a perspectiva que identifica a escola como um lugar de aprendizagem e troca de conhecimentos, sempre reforçando a importância de preservá-la como espaço laico. A forte vulnerabilidade desse grupo social à influência de igrejas fundamentalistas leva-nos a inibir manifestações ou ritos religiosos que possam causar constrangimentos aos outros, mas sempre protegendo a liberdade de crenças.
Ao final dos cinco meses de curso os alunos estabelecem fortes laços afetivos, sendo muito comum ações de solidariedade entre eles diante de dificuldades eventuais. Em todas as turmas há formação de grupos que preservam formas virtuais permanentes de comunicação. Essa característica do prolongamento do contato após o término do curso tem sido favorecida pelo aumento progressivo de acesso aos múltiplos recursos da internet. Durante o desenvolvimento dos cursos, cada vez mais, são criadas formas de comunicação rápidas e eficientes para troca de informações e materiais didáticos disponíveis na rede.
A partir de 2013, passamos a realizar anualmente o Seminário de Saúde Mental da Escola Politécnica/Fiocruz, evento regular criado com o objetivo de reunir alunos egressos, trabalhadores do SUS e a comunidade acadêmica em torno de um debate sempre atualizado sobre os desafios da reforma psiquiátrica.
O curso se estrutura a partir da perspectiva de uma Educação Profissional em Saúde/EPS pautada por uma concepção de formação como necessidade e direito do trabalhador, aliada a uma concepção de Saúde Mental entendida como campo teórico/técnico, mas também de luta política. Premissa que se atualiza e
justifica na atual conjuntura política, onde a superação de um modelo asilar violento e excludente operada pelo nosso campo ao longo de décadas, encontra- se ameaçada.
A lei nacional aprovada em 2001 consolidou as conquistas do movimento pela Reforma Psiquiátrica Brasileira/RPB, regulamentando a reorientação do modelo assistencial através de uma redução planejada de leitos e da construção de projetos e processos de desinstitucionalização. Foram anos decisivos para a implantação e expansão de uma rede territorial de serviços de atenção psicossocial (RAPS), além da construção de políticas inclusivas no campo do trabalho, moradia, lazer e cultura. Uma política nacional consolidada que se encontra neste momento em risco, diante de um contexto de retrocessos no sistema de saúde como um todo.
A proposta pedagógica do curso se alinha com o conjunto de processos formativos da EPSJV/Fiocruz, dentro de uma perspectiva de educação profissional orientada para uma formação ética, política e técnica de trabalhadores do SUS. Como ressaltam Pereira e Ramos (2006), historicamente, as concepções de educação profissional para os trabalhadores da saúde tem se constituído por projetos contraditórios e conflitantes, estando em permanente disputa os diferentes modos de conceber a saúde e as relações entre trabalho e educação.
Como demonstram Lima e Braga (2006), apesar das grandes conquistas do movimento sanitário na constituinte e seus desdobramentos na construção do SUS, a educação profissional de nível médio no Brasil continuou não sendo prioridade. Num contexto de expansão do modelo de saúde privatista, o lugar destinado aos trabalhadores técnicos na divisão social do trabalho continua sendo aquele do executor de tarefas e objeto de treinamentos.
Saviani (2003), discutindo os fundamentos de uma educação politécnica, ressalta que é uma formação desenvolvida a partir do próprio trabalho social, incorporando a compreensão das suas bases, funcionamento e organização no conjunto da sociedade. Uma proposta pedagógica que necessariamente problematiza as relações entre trabalho intelectual e trabalho manual. Nesse sentido, incluiria uma dimensão teórica, mas seria, sobretudo, um processo em que se aprende praticando. Uma prática na qual é intencionalmente estimulada a
compreensão de forma aprofundada dos princípios científicos implicados nas bases sociais do trabalho.
Dentro desta perspectiva, o curso tem como objetivo atender uma demanda crescente do campo da saúde mental de uma formação qualificada e crítica para seus trabalhadores, diante dos desafios permanentes colocados para o processo da Reforma Psiquiátrica Brasileira. A diversidade de estratégias de cuidado e organização de serviços exige um processo de trabalho em equipe, para o qual se torna fundamental uma formação ao mesmo tempo clínica e política. Os alunos egressos do curso devem estar aptos a integrar estas equipes e atuar na rede de serviços de saúde junto às pessoas que sofrem de transtornos mentais, à família e comunidade, incentivando autonomias e promovendo inclusão social. Em suma, uma prática de ensino voltada para o profissional de nível médio, que seja integral e incorpore a diversidade conceitual e temática do campo da atenção psicossocial.
Lobosque (2017) ressalta a importância de uma formação em saúde mental que inclua os principais campos conceituais que dialogam com uma clínica antimanicomial e comprometida com o avanço da luta política. Para a autora, a proximidade com as experiências práticas seria uma condição, por propiciar contato com a riqueza e os desafios desse fazer próprio da atenção psicossocial. Reforça a importância dos alunos serem os protagonistas da sua própria formação, com liberdade para questionar, acrescentar novas perguntas ou formulá-las de maneira diversa, num engajamento que seria indispensável para a formação de novas gerações de trabalhadores.
Coelho et al (2017), ao sistematizar uma experiência de formação em saúde mental a nível de residência trazem reflexões importantes para a educação profissional de trabalhadores do campo da atenção psicossocial. Afirmam que a ampliação das abordagens e convivência com o fenômeno da loucura exigiria um perfil de trabalhador que tenha competência clínica e política, e que também seja articulador entre pessoas, coletivos e instituições. Para isso deve de fato formar para uma atenção integral, oferecendo elementos que desenvolvam a capacidade de diálogo com os subsetores da saúde e também com outros setores como a educação, assistência social e justiça.
Os autores reforçam que a educação de trabalhadores para a atenção psicossocial deve ter como perspectiva intervenções interdisciplinares de caráter crítico, investigativo, criativo e propositivo. A multiplicidade de experiências no campo da saúde mental envolve necessariamente integração e diálogo entre diferentes formas de conhecimento, sem que haja dominação ou hierarquização dos saberes e categorias profissionais.
Ramos (2009), por sua vez, ressalta a relevância das determinações de ordem econômica e política para a saúde, alertando para a importância de não atribuirmos apenas ao trabalhador a responsabilidade pelas transformações das práticas de trabalho. E aponta também para a importância de não esperarmos do trabalhador práticas de integralidade numa realidade em que a divisão social e técnica do trabalho seria determinante. A autora propõe que, ao princípio da integralidade na atenção, teria que corresponder um princípio da integralidade na formação.
A concepção de formação de trabalhadores em saúde como um direito e uma necessidade social implica a ruptura com um modelo dualista de educação, no qual o trabalhador tem acesso apenas a saberes instrumentais que lhe permitam desempenhar tecnicamente suas funções. Buscando essa coerência, o curso se propõe a trabalhar conteúdos e conectar saberes que possibilitem ao aluno construir uma compreensão crítica do campo da saúde mental, entendendo sua história, as políticas, suas práticas e a relevância do seu próprio papel na constituição desse cenário.
Para o desenvolvimento da proposta pedagógica do curso, sua estrutura curricular se divide em quatro módulos. No primeiro módulo abordamos a história da visão social sobre a loucura, cidadania, direitos civis, políticos e sociais. Um conteúdo introdutório para a discussão da Reforma Sanitária e do SUS. No segundo módulo abordamos as bases conceituais e o grande marcos históricos da RPB, além de introduzir as bases do processo de trabalho em saúde, e em especial o papel estratégico dos trabalhadores de nível médio. O terceiro módulo é dedicado aos principais temas clínicos pertinentes ao campo da atenção psicossocial: psicopatologias, estratégias terapêuticas e farmacológicas, práticas de acolhimento e cuidado, estratégias de inclusão social. O último módulo
consiste na prática profissional, a qual será objeto de análise crítica no trabalho de conclusão de curso (TCC).
No decorrer do processo são realizadas algumas oficinas específicas e com diferentes objetivos. A Oficina de informática visa propiciar ao aluno conhecimentos básicos de uso da internet para pesquisa, conhecer fontes de dados e fazer busca bibliográfica. Foi incorporada ao currículo com o objetivo de fornecer ferramentas para estimular a busca de novos conhecimentos. A Oficina de Produção Textual foi criada com o objetivo de trabalhar de forma criativa diferentes tipos de texto, ampliando as habilidades expressivas dos alunos em textos escritos e desenvolvendo o interesse pelo seu aperfeiçoamento. Essa oficina é coordenada por professores da área de letras, que também oferecem um apoio pedagógico na escrita dos relatórios finais e outros trabalhos obrigatórios.
Outra atividade pedagógica importante é a vivência por parte dos alunos de uma roda de Terapia Comunitária, que tem como objetivo facilitar a expressão e elaboração de questões que emergem no grupo, fortalecendo vínculos entre todos. A inclusão da literatura entre os conteúdos curriculares tem sido outra experiência positiva. Ministram as aulas um professor com formação na área de letras em parceria com outro da área de saúde mental. Trabalha-se o tema da literatura e saúde mental, através de obras de referência e autores que dialogam com questões do campo. São lidos e discutidos textos literários, sejam relatos autobiográficos ou ficcionais, que tratam criticamente o tema da loucura, do poder da ciência e do papel social da psiquiatria.
O curso parte da concepção de atenção psicossocial como um campo interdisciplinar que soma diferentes olhares e saberes, conectando aspectos subjetivos e sociais das experiências de sofrimento psíquico. Por isso o corpo docente é muito diversificado incluindo profissionais qualificados tanto da área acadêmica como do campo da assistência. Profissionais com diferentes inserções na rede são convidados a falar de trabalhos relevantes como, por exemplo, projetos de cultura, lazer e geração de renda. Essa diversidade possibilita o acesso a diferentes linguagens como a arte, literatura, psicanálise, e também a diferentes metodologias de ensino.
A coordenação do curso trabalha no sentido do estímulo a essas diversidades temáticas, porém com uma orientação geral ao corpo docente
quanto ao uso de linguagem acessível, mas sem perder a complexidade própria aos temas da saúde mental. Apesar de um perfil alinhado ao campo progressista da reforma psiquiátrica, os professores trazem sempre diferentes inserções e referências, sendo boa parte com longo histórico de militância e/ou exercício de importantes funções públicas.
Durante o curso são realizados trabalhos em grupo, seminários e atividades coletivas com o objetivo de criar uma ambiência que promova a interação e troca de experiências entre os alunos. Uma dessas atividades é a chamada prática profissional coletiva que consiste numa atividade externa, geralmente uma visita à rede de saúde mental de um dos municípios dos alunos participantes do curso naquele ano. A prática coletiva visa proporcionar uma visão geral e contato com profissionais de diferentes instituições, os quais sempre nos recebem nos diferentes serviços e depois em uma roda de conversa onde compartilham dificuldades e desafios.
Finalmente, são também incorporados ao curso os desafios da conjuntura política do momento, a partir dos quais são programadas atividades militantes como participação em debates, manifestações, audiências públicas estratégicas para a saúde mental ou as tradicionais comemorações do Dia Nacional da Luta Antimanicomial.
Conforme descrito na metodologia, através da análise dos relatórios foram identificadas e sistematizadas as seguintes categorias temáticas: qualificação da escuta e construção do vínculo com os usuários; qualificação das abordagens e práticas; empoderamento e tomada de consciência do seu papel estratégico na equipe; projetos de continuidade da formação; ampliação da visão política e social. Dessa forma, os conteúdos organizados por eixos temáticos serão descritos a seguir, de forma a fazer dialogar as falas emblemáticas dos alunos com os autores de referência.
- Qualificação da escuta e construção do vínculo com os usuários: referências feitas pelos alunos à disponibilidade de aproximação e
reconhecimento do sofrimento psíquico, além de uma melhora na qualidade da escuta e acolhimento.
Dentro de uma concepção de saúde como direito e defesa da vida torna-se fundamental a compreensão do processo de trabalho como essencialmente relacional e dependente de uma qualidade na escuta e construção de vínculos entre profissionais e usuários. Os alunos referem-se, de forma recorrente, à sua experiência no curso como algo que produziu mudanças nessa relação: “mudou meu modo de ver e agir com os pacientes de saúde mental” (A. 5)3; “comecei a perceber que estava enganado quanto ao meu modo de enxergar o portador de transtornos mentais” (A. 20); “Vi que posso ouvir mais e falar menos” (A.10).
Amarante e Brasil (2008) ressaltam a importância de uma concepção de formação em saúde mental que inclua reflexões mais amplas e problematizadoras da complexidade da experiência humana. Defendem a necessidade de induzir essas reflexões no trabalhador para fortalecer a sua própria percepção como sujeito no processo e não apenas “técnico”. Para os autores, o protagonismo dos profissionais e outros agentes sociais como os usuários e familiares, resulta na sua consciência como sujeitos coletivos, processo fundamental para que resistam à tendência de anulação de suas identidades.
As narrativas dos alunos evidenciam esse tipo de reflexão quando trazem relatos de mudanças subjetivas: “... aprendi que os ditos loucos são pessoas complexas e fascinantes, que tem um universo de possibilidades na maioria das vezes latente, necessitando apenas de um olhar desprovido de preconceitos.” (A.12); “Este curso que realizei ao longo desses cinco meses foi de grande importância para maior conhecimento em uma área da saúde muito complexa que é a mente humana”. (A.25); “as aulas provocaram em mim uma transformação radical”. (A.13)
Santos e Nunes (2017) num estudo sobre os Agentes Comunitários de Saúde ressaltam que, mesmo diante da incipiência de investimento na formação desses profissionais, eles seguem afirmando o desejo de saber lidar com o adoecimento, de abordar o sujeito em sofrimento mental e sua família. Para os autores esse desejo de conhecimento vem diretamente das situações vivenciadas
3 O conjunto de relatórios foi nomeado com a letra A (aluno) e numerados até o total de 46, obedecendo à uma ordem cronológica (2009 a 2013).
no trabalho, das quais se origina um saber orientado pelo seu repertório de competências e habilidades, um saber construído no próprio exercício do fazer em saúde mental.
Os alunos trazem essa questão como fonte de angústia, mas ao final associam a vivência do curso a um processo que possibilita autoconhecimento e mudanças pessoais: “a angústia de atuar em saúde mental deu espaço a maior segurança na realização desse desafio”. (A.21); “Todo conhecimento adquirido foi uma grande experiência de autoconhecimento, com o decorrer dos conteúdos fui me avaliando”. (A.23); “... mudança de crenças e atitudes para que tenhamos maior chance de alcançar melhorias em ações que visem as estratégias de prevenção e reabilitação para usuários.” (A.3);
Entendemos que os processos de qualificação na saúde devem partir da problematização do próprio processo de trabalho, visando a transformação das práticas profissionais e da organização do trabalho, sempre tomando como referência as necessidades de saúde das pessoas e das populações. As práticas educativas devem ser construídas a partir da conexão entre os saberes formais dos especialistas e os saberes operadores das realidades. E para que sejam verdadeiramente apropriadas pelos profissionais torna-se essencial que sejam sempre revistas em seu papel de produzir autoanálise e auto-gestão (Ceccim, 2005).
Os alunos/profissionais falam desse entrecruzamento de saberes: “Precisava ir à procura de novos conhecimentos que pudessem somar com meus conhecimentos práticos, do meu trabalho no Consultório na Rua onde atuo como Redutor de Danos” (A. 46); “Trabalho num Caps como oficineira há quase um ano e desconhecia completamente a saúde mental..., era totalmente preconceituosa, tinha medo de pacientes com transtorno psiquiátrico, era totalmente leiga nesse assunto.” (A.15)
Dantas Coelho et al (2017) ressaltam a importância para o campo da saúde mental da aprendizagem de atitudes, posicionamentos políticos e habilidades
para lidar com suas especificidades, e em especial de uma delicadeza necessária para as intervenções na história e nos espaços de vida das pessoas. Amarante e Brasil, por sua vez, apontam para a necessidade de construção de novos saberes e de novas práticas sociais, o que exigiria uma formação complexa e crítica, que supere o modelo de educação baseada em treinamento, adestramento ou otimização de recursos humanos. Afirmam que, para além da visão errônea do processo formativo como transferência de conhecimentos, estes são processos que envolvem emancipação, potências, projetos e perspectiva crítica (Amarante e Brasil, 2008).
Os alunos relatam a descoberta dessas especificidades do trabalho na saúde mental: “Compreendi através do curso que, diferentemente de outros setores da saúde em que atuei, a saúde mental é definida por paciência, tomada de responsabilidade a fim de garantir assistência integral e continuidade” (A.4). Referem-se a experiências subjetivas e novas aprendizagens: “Após esse curso vou rever muita coisa na minha vida.” (A.52); “Estava aprendendo a olhar para o outro de uma forma mais humana. Aprendi que o mais importante de tudo é ouvir o que o outro tem a dizer” (A.32); “Foi muito importante escutar experiências de diferentes atores... O conhecimento precisa de espaços como esse, democrático.” (A. 29).
Ao mesmo tempo em que relatam a descoberta de um campo novo, afirmam a expansão de perspectivas para a saúde mental em seu próprio trabalho: “o campo novo em que piso possui trilhas seguras em que a loucura passa a ser um processo tão natural, quanto a diabetes ou a hipertensão, a vida e a morte, passíveis portanto da intervenção de um técnico da Estratégia Saúde da Família.” (A .3)
Por isso a nossa concepção de saúde mental para formação de trabalhadores inclui compreendê-la não como mais uma especialidade que demanda ações específicas, mas como um campo de saber que pode ajudar as equipes de saúde a ressignificar o que já fazem. A saúde mental nos ensina a compartilhar dificuldades e experiências para lidar com o adoecimento em sua dimensão de sofrimento, mas também de riqueza na relação com o outro (Rotelli, 2008).
Assim, o curso pretende fomentar a construção de práticas nos mais diversos níveis de atenção, para melhorar as condições de vida e saúde dos usuários que apresentam sofrimento psíquico mais ou menos intenso ou formas muito próprias de viver que desafiam nossos valores culturais e sociais. (SOALHEIRO, 2017).
Santos e Nunes (2014) referem-se a uma carência de ações educativas que efetivamente auxiliem os profissionais da saúde no cuidado integral à pessoa em sofrimento mental. Reforçam a necessidade de valorizar as relações entre Reforma Psiquiátrica e Reforma Sanitária e a necessidade de processos formativos que superem a perspectiva dos treinamentos, cursos e jornadas pontuais. Coelho et all (2017), em outro contexto, pontuam a importância de espaços no processo de trabalho que funcionem como lugares de acolhimento para situações de intenso sofrimento psíquico dos trabalhadores, mas também de aprendizagem e empoderamento.
Os alunos relatam de forma recorrente os efeitos da formação relacionados ao aumento da autonomia, maior participação na equipe, e empoderamento através do conhecimento: “Tenho certeza que estou saindo desse curso mais capacitada para contribuir com a equipe do Caps” (A.15); “Espero que no futuro todo esse conhecimento seja colocado em prática, como já iniciei na minha, juntamente com a psicóloga estaremos iniciando um grupo terapêutico”(A.16); “tive a oportunidade de passar conhecimento do que eu aprendi para os profissionais que trabalham comigo”(A.25); “sou cuidadora de idosos domiciliar e me será de extrema importância o aprendizado em Saúde Mental, porque posso não apenas cuidar de idosos e sim cuidar de pessoas”(A.43)
Saviani (2003), referindo-se à educação continuada, aponta riscos e apresenta críticas a uma concepção de ensino focada na formação de trabalhadores para executar com eficiência tarefas demandadas pelo mercado de trabalho. Para o autor tal concepção deve ser superada porque implica no
pressuposto da divisão social do trabalho. Uma separação entre os que concebem e controlam o processo de trabalho, e aqueles que o executam.
No relato dos alunos encontramos a vivência dessa hierarquização: “Percebo que no meu local de trabalho a enfermagem [referindo-se ao técnico de enfermagem] costuma não ocupar o seu lugar nas reuniões de equipe com relação à discussão dos casos dos pacientes, ficando presa aos cuidados de rotina... Agora me sinto com mais responsabilidade e fico encorajado a participar das mesmas, ser mais um a ocupar o meu lugar na equipe.” (A.2); “O curso nos fomenta o protagonismo a todo o momento... permitiu ter outro lugar no meu trabalho diante da minha equipe, ganhando potência” (A.27)” Estou vários anos sem estudar e tive algumas dificuldades... Este curso é muito valioso para os profissionais técnicos” (A.26)
Para Saviani (2011), a educação profissional seria, ao mesmo tempo, uma exigência do trabalho e um processo de trabalho. O autor situa essa concepção como uma pedagogia histórico-crítica, cujo ponto de referência e compromisso é a superação da divisão técnica e social do trabalho e, no limite, a transformação da sociedade. Os alunos evidenciam a importância de dar visibilidade às especificidades da sua condição: “O profissional de ensino médio muita das vezes não tem a oportunidade de ter essas informações teóricas como as equipes de trabalho. Vai aprendendo a lidar com os casos no próprio dia a dia, adquirindo a prática.” (A.14); “E apesar de todas as dificuldades que cada um teve, estamos conseguindo realizar mais uma conquista” (A.4); “Vínhamos de plantões cansados e nunca houve uma repreensão... foi muito bom, aprendi muito e se tiver condições não pararei aqui.” (A.6); “Penso que este curso deveria sempre ser prioridade para os profissionais da saúde de nível médio” (A.30);
Pereira e Ramos (2006) ressaltam que as práticas instituídas nunca são neutras, sendo sempre fundamentadas filosófica e ideologicamente por uma concepção de mundo e por um projeto de sociedade. Para as autoras, a perspectiva da pedagogia histórico-crítica rompe com a ideia de formação
pautada pela fragmentação do conhecimento e pelo reducionismo da prática profissional enquanto tarefa a ser executada. A educação tem o papel de possibilitar a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos do trabalho e a educação profissional em saúde não pode ser instrumento de ajustamento dos trabalhadores às condições injustas e desiguais do trabalho na sociedade capitalista.
Os alunos identificam a realização do curso à ideia de conquista, superação, oportunidade, ressaltando seu potencial de estímulo à busca de novos conhecimentos e expansão de horizontes profissionais. “O curso deve ser aberto aos menos favorecidos em conhecimentos... minha perspectiva de futuro é ter oportunidade de crescer nessa área” (A.37); “apesar de já trabalhar na saúde mental há muito tempo, não conhecia como funcionava” (A.19); “O curso surge em um momento de muita reflexão na minha prática profissional, proporcionando- me com os conhecimentos adquiridos a renovação técnica e uma visão ampliada e mais profunda da saúde mental e seus desafios” (A.11).
São recorrentes as falas que se referem à determinação de dar continuidade à formação e a projetos de fazer graduação na área de saúde e saúde mental: “minha perspectiva para o futuro próximo... iniciarei o curso acadêmico de Psicologia” (A 43); “Meu objetivo é me especializar cada vez mais nessa área, e dar prosseguimento na área de Psiquiatria.” (A.10); “Um novo mundo se abriu para mim, é assim que inicio meu relatório final. Tal qual um véu que cobria meus olhos, eu pude me perceber e aos outros”. (A.28). “A saúde mental sensibilizou- me, me tornando um ser humano melhor, o curso me deu base para discussão, ambos entraram na minha vida como um divisor de águas, contribuindo com meu crescimento pessoal e profissional; Saberes que levo para a vida. O curioso é que mesmo assim, continua não sendo o bastante para mim” (A.20);
Yasui (2010) enfatiza que a reforma psiquiátrica não deve ser entendida apenas como uma reorganização da estrutura dos serviços de saúde ou mudança
nas instituições. A Reforma Psiquiátrica Brasileira transforma a visão social da loucura, amplia a concepção de cuidado em saúde, e, dialogando com a perspectiva histórica, se associa a mudanças ligadas ao próprio processo civilizatório. Parte do encontro cotidiano com o sofrimento para criar novas formas de cuidar, dando visibilidade a diferentes sociabilidades e mantendo viva a utopia de outro mundo possível.
São muitos os relatos dos alunos que evidenciam mudanças na visão das relações entre sociedade e loucura, e uma ampliação na percepção política do lugar social da saúde mental: “Conhecer a evolução e a história da saúde mental no Brasil, os fundamentos da reforma da psiquiatria, ...faz-me pensar o quanto foi importante buscar conhecimentos.” (A.18); “A Reforma Psiquiátrica está acontecendo aos poucos, pois toda mudança requer tempo e disposição. E está ligada a sensibilidade, atenção, saber ouvir o outro e a coragem por parte dos profissionais da área em meio a tantas dificuldades sociais e econômicas” (A.2); “O que eu queria era saber falar sobre a saúde mental, sobre sinais e sintomas, diagnósticos. Não sabia como a política foi importante para o acontecimento da saúde”. (A.20); “foi possível visualizar a partir daí que não são caminhos fáceis”. (A.31)
Rotelli (2008) aponta que, para além do trabalho cotidiano de cuidado, é essencial que os profissionais lutem para que as políticas públicas respondam às necessidades de casa, de sociabilidade, de afetividade e de trabalho dos seus pacientes. Para o autor, a nossa luta deve ser por uma organização social que não seja feita apenas para os fortes.
Uma luta que reconhecemos no relato dos alunos quando falam do seu exercício de autocrítica e a descoberta da política: “Eu não entendia porque havia o movimento antimanicomial...hoje acredito que fora do convívio social os doentes mentais só pioram e deixam de viver mesmo estando vivos”. (A.4); “o meu preconceito existia sim, era involuntário... eu era mais uma vítima de padrões de uma cultura equivocada”. (A.26); “Hoje tenho uma nova visão da saúde no Brasil”. (A.5); “Entendi o quanto posso contribuir para que as internações se tornem uma realidade distante. Conheci a história da psiquiatria no Brasil.” (A.7); “Reforma psiquiátrica e desinstintucionalização já passou a ser minha bandeira de luta, como também um desejo.” (A.28).
A importância dos trabalhadores como protagonistas dos processos de reforma psiquiátrica no Brasil está presente desde a sua origem. Em 1978, uma série de denúncias de violação dos direitos humanos, incluindo violência e mortes de pacientes nos hospitais psiquiátricos, foram feitas pelos próprios funcionários da Divisão Nacional de Saúde Mental (Dinsam). A reação imediata do Ministério da Saúde, através da demissão dos trabalhadores envolvidos, suscitou mais protestos e uma greve histórica que daria origem ao Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM).
A partir daí os trabalhadores se tornam agentes de um movimento nacional que conduziu debates e propostas de luta pelas transformações da assistência psiquiátrica. O MTSM desencadeia a mobilização política necessária para a urgente reforma dos hospitais psiquiátricos como produtores de violência. Para além dos muros, fazem também uma crítica contundente à função social da psiquiatria. Dessa forma, o MTSM se amplia como movimento social para dar origem ao Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLA) que impulsiona as grandes transformações da política nacional de saúde mental nas décadas seguintes (Amarante, 2013).
A narrativa dos alunos egressos do curso e também profissionais inseridos nas ações e serviços de saúde enuncia uma aproximação entre o seu processo de trabalho e a militância política como um dos efeitos da formação. Yasui (2010) ressalta esse aspecto quando afirma que, desde a sua origem, o protagonismo dos trabalhadores na luta pela reforma da assistência vai se ampliando para um movimento pela transformação da sociedade e suas estratégias de exclusão. Para o autor, a reforma psiquiátrica envolve toda a sociedade, sendo sempre articulada ao tempo histórico e dependente de ações políticas para sua continuidade.
Para Lima e Pereira (2008) a educação profissional tem por principal função contribuir para a emancipação e o empoderamento dos trabalhadores em relação a uma ordem social e econômica excludente que transforma a saúde e a educação em mercadoria. Os autores ressaltam a importância da defesa da
escola e do estímulo à escolarização como política pública, em especial para a formação dos trabalhadores técnicos em saúde. A isso se somaria a luta pela democratização dos processos formativos e o estímulo à autonomia do profissional frente ao seu cenário de atuação.
Como vimos, essa é uma questão muito presente nos relatos dos alunos, onde encontramos inúmeras formas de expressão de mudanças na percepção do valor social do trabalho, empoderamento na equipe, planos de formação continuada e projetos pessoais de aumento do grau de escolaridade.
Torrenté (2017), discutindo a formação de trabalhadores em Saúde Mental para a Reforma Psiquiátrica, diz que esta deve ser pautada em uma ética da implicação, construída a partir do exercício crítico. Para a autora atuar na área de Saúde Mental exigiria entusiasmo na forma de trabalhar, coragem no enfrentamento das dificuldades inerentes ao convívio com sofrimentos emocionais intensos, num contexto em que se somam desigualdade social e miséria humana. O que, por sua vez, exigiria uma pedagogia exercitada no cotidiano e que produza processos formativos criativos e flexíveis. Formar para a saúde mental implica estimular posturas sensíveis, dialógicas, acolhedoras dos conflitos e irracionalidades do humano. Mas também contemplar momentos de acolhimento das angústias e desafios do cotidiano, além de espaços de militância integrados aos espaços de produção de conhecimentos científicos.
Como vimos, os alunos trazem essas várias dimensões do processo formativo quando se referem a ele como divisor de águas, disparador de processos reflexivos sobre as suas práticas, espaço de autoconhecimento, compartilhamento de angústias, e também de revisão de valores pessoais. Alguns relatam que antes do curso trabalhavam sem conhecer o campo da saúde mental, outros dizem que achavam que estavam fazendo o que tinha que ser feito, mas descobrem no decorrer do processo que precisam mudar muito. Enfim, são muitas as falas contundentes em relação às mudanças no processo de trabalho.
A nossa perspectiva de formação para a reforma psiquiátrica é, sobretudo, pensada a partir da desinstitucionalização, na verdade um construto teórico que designa um conjunto de estratégias para desconstruir saberes e práticas que estariam institucionalizadas e produzindo novas institucionalizações (SOALHEIRO, 2017). A desinstitucionalização não pode ser entendida como uma
técnica, uma fórmula ou um conjunto de normas, mas sim como uma perspectiva que visa potencializar as energias internas da instituição para desmontá-la e transformá-la. Um trabalho homeopático que visa transformar espaços, técnicas, estruturas administrativas, hábitos e linguagens. E que implica numa ideia de a posteriori, de um futuro a ser construído permanentemente no cotidiano da instituição. (LEONARDIS; MAURI & ROTELLI, 1990).
Concordamos com Rotelli (2008) quando afirma que no contexto de processos formativos não comporta satisfazer a ânsia dos alunos em aprender modelos ou adquirir competências. Para ele, criar novas instituições, espaços e projetos coletivos significa dar respostas as necessidades e intervir na realidade. De fato, encontramos essa expectativa dos alunos em relação ao curso como um espaço de aprendizagem de técnicas, ou mesmo relatos de estranhamento de um suposto excesso de conteúdos referentes à política. Mas, como vimos, são expectativas que se encaminham para uma percepção da importância do estudo das políticas de saúde mental e do SUS e a incorporação destas na sua visão sobre o próprio trabalho.
O cenário atual de desmonte das políticas públicas - em especial da política de saúde mental – num contexto nacional de ameaça à democracia, o caso do Rio de Janeiro torna-se especialmente emblemático. Vasconcelos (2010) ao sistematizar os desafios políticos para a reforma psiquiátrica brasileira já apontava a gravidade da situação local. A precarização dos vínculos de trabalho e a gestão baseada em metas inspiradas no modelo privatista deixam de lado os indicadores associados as políticas sociais universais e ao próprio SUS. Nessa conjuntura, o avanço das conquistas na saúde passa a depender fundamentalmente da potência dos movimentos, atores e forças sociais. O que para nós reafirma a importância da política nos conteúdos curriculares, numa integração necessária entre formação e luta política.
Os resultados da pesquisa evidenciam importantes desafios para o campo da formação de trabalhadores para a reforma psiquiátrica. A experiência dos alunos e as dificuldades inerentes à sua formação nos apontam a necessidade de democratização dos processos formativos. Neste sentido, o nosso estudo pretendeu dar visibilidade às reflexões desses alunos-profissionais com escolarização de nível médio, considerando seu caráter estratégico para o
processo de trabalho em saúde e saúde mental. Narrativas que expressam a importância da formação para a sustentabilidade dos processos e projetos de des institucionalização em saúde mental.
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Recebido em: 09 de março de 2018. Aprovado em: 08 de maio de 2018. Publicado em: 21 de novembro de 2018.
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O trabalho focalizou práticas de formação profissional e de formação política organizadas e dirigidas por trabalhadores e militantes que se juntavam a eles, em uma trajetória de solidariedade e resistência no chão de fábrica e com uma história conhecida no meio operário.
A pesquisa foi desenvolvida com o objetivo de compreender e analisar processos de resistência, emancipação e formação de identidade política no movimento operário, nas décadas de 1970 e 1980, na região industrial de Belo Horizonte, Betim e Contagem, em Minas Gerais. Procuramos identificar e analisar as relações entre esse movimento e os moradores dos bairros da região industrial, o envolvimento das comunidades e a sua participação nas mobilizações daquele período.
Mais especificamente, procuramos analisar a experiência de educação/formação desenvolvida por trabalhadores e militantes de movimentos sociais, numa época em que a sociedade brasileira tratava de avançar na redemocratização do país. Objetivamos, ainda, discutir a relação entre formação profissional e formação política nas experiências educacionais dos trabalhadores e identificar o contexto em que as relações entre o movimento dos trabalhadores e a comunidade do bairro se constroem, se desenvolvem e consolidam práticas que se caracterizam como ação de um coletivo que mostra alguma continuidade no aprendizado ou na assimilação do fazer política. Finalmente, pretendemos discutir as relações entre as experiências de formação profissional e política e o movimento
¹ DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i30.p10101
sindical com a transição do fordismo e com as mudanças do mundo do trabalho nos anos 1980-90.
Desde o início desse estudo, a nossa intenção foi a de examinar criticamente as relações entre saber e poder, tendo como referência para descrição e análise a experiência desenvolvida pelos trabalhadores e militantes de movimentos sociais em duas escolas profissionalizantes, enquanto protagonistas, em Belo Horizonte e Betim, nos anos 1980. O acompanhamento e a participação que tivemos nessas experiências tornaram possível conhecer como se dava, naquele período, o processo de construção de sujeitos políticos através da aprendizagem para o trabalho. Ao longo de seis anos, do início de 1986 a 1992, realizamos entrevistas, recolhemos e pesquisamos documentação (jornais, cartas, contratos, declarações, atas de reuniões e assembleias, registros em cartórios, anotações de viagens e fotografias) e participamos de ações de capacitação promovidas por essas experiências das duas escolas, enquanto elas aconteciam. Mais de setenta horas de gravação foram realizadas no período. As práticas educativas e os processos de aprendizagem envolvidos nas experiências foram devidamente registrados e discutidos com os seus principais responsáveis. Estivemos, ainda, em reuniões de auto avaliação e entrevistamos ex-alunos e moradores dos bairros em que essas experiências se desenvolveram, uma vez que elas tiveram envolvimento com as comunidades em que se situavam. Essa relação vinha de ações anteriores às experiências de trabalho educativo dos protagonistas, pois eles tiveram participação em movimentos de bairro e nas greves do período de 1978 a 1981. Essas greves tinham notável interação com a Igreja Católica na região, com a Pastoral Operária e com uma imprensa local, como o Jornal dos Bairros e o Boletim da Pastoral, que davam capilaridade aos acontecimentos e visibilidade aos movimentos sociais. Tivemos acesso aos números desses jornais publicados na época daquelas greves e movimentos das comunidades, além de termos realizado levantamento em jornais da chamada grande imprensa, no contexto dos acontecimentos relativos ao movimento sindical e à classe trabalhadora. Os organizadores do CAT (Centro de Aperfeiçoamento do Trabalhador), de Betim, e da AST (Ação Social Técnica Escola de Produção Tio Beijo), no bairro Lindéia, em Belo Horizonte, foram, na sua maioria, trabalhadores que participaram daquelas greves.
Orientamos nossa observação e participação nas experiências através das concepções de hegemonia, do operário como sujeito educador e elaborador de sua própria cultura, além do espaço da fábrica como local de atividade política, de educação e de tomada de consciência. Foi fundamental trabalhar a perspectiva da educação do educador e a noção de práxis inerente à atividade pedagógica no espaço de trabalho. A narrativa de Thompson foi outra marca do trabalho, no sentido de que se tratou de experiências desenvolvidas por sujeitos com uma trajetória historicizada no contexto das lutas e mobilizações contra o regime ditatorial que o Brasil vivia no período.
É muito importante observar que essas experiências educativas, preocupadas com a formação de “sujeitos políticos”, não foram fatos isolados ou limitados à região industrial de Belo Horizonte. Quando realizamos pesquisa para a Organização Internacional do Trabalho, em 1991, registramos a existência de experiências dessa natureza em Recife, São Paulo, Rio de Janeiro além de outras duas em Minas Gerais (Contagem e Teófilo Otoni), bem como a fundação do Conselho de Escolas Operárias, no encontro realizado em 1989, no Rio de Janeiro. O Conselho passou a organizar os seminários subsequentes e a buscar um maior inter-relacionamento entre as experiências, além de buscar uma política de sustentação financeira global para as escolas.
Em 1997, ao coordenarmos pesquisa para o Projeto Integrar Nacional, da CNM/CUT, através da Rede Unitrabalho, sobre a Formação Profissional empresarial, pública e sindical para o setor metalúrgico, foi possível identificar um documento básico deste conselho, que então passava a se chamar Conselho de Escolas de Trabalhadores, a Plataforma de Educação para Cidadãos Trabalhadores, aprovada em 1995, pelo seu quinto seminário. Esse documento consolida uma proposta concreta do conselho, que é a de Centros Públicos para a Educação de Cidadãos Trabalhadores, com base na experiência acumulada em diversas das escolas de trabalhadores. O documento prioriza na educação a discussão do papel da tecnologia nas escolas, definindo parâmetros para a formação política, precisando áreas de conhecimento necessárias para uma educação cidadã, discutindo a questão pedagógica e as condições de sustentação das escolas de trabalhadores.
Consideramos essas experiências mais significativas do que as práticas e ações sindicais de formação profissional, pois a sua atividade revela uma proposta pedagógica mais avançada do que a das organizações patronais, como o SENAI e o SENAC, e mais crítica do que os cursos ministrados através dos sindicatos, que não mostravam uma preocupação que combinasse o desenvolvimento da capacidade criativa e da aprendizagem dos seus alunos com uma formação política voltada para a cidadania dos trabalhadores. O que chama a nossa atenção nessas experiências passa pela sua proposta de uma “educação operária” construindo um saber (e um poder) que se infiltra no processo de trabalho definido e articulado a partir do poder do patronato sobre os trabalhadores. Trata-se de um saber vivenciado pelos trabalhadores no seu cotidiano.
A dimensão político/ideológica presente nas relações de saber/poder que se constroem no cotidiano, no interior do processo produtivo, através da organização do processo de trabalho e da organização do espaço da produção, constitui um tema recorrente nas análises e discussões do Núcleo de Estudos sobre o Trabalho Humano da UFMG, desde o início de suas atividades. A pesquisa que realizamos na FIAT/MG, em 1982/84, junto com os colegas Michel Le Ven e Magda Neves, em 1984, desenvolveu uma abordagem dirigida ao cotidiano dos trabalhadores. Em entrevistas com operários daquela indústria foi observada a importância do saber do trabalhador no processo de trabalho da produção do automóvel e o quanto essa questão exigia um novo olhar de quem pretende estudar as relações de poder no mundo do trabalho. Naquela pesquisa, chamou nossa atenção o fato de que muitos trabalhadores têm, no seu cotidiano, a percepção das relações entre o saber e o poder e as formas ideológicas das quais essas relações se revestem. Dois anos mais tarde, ao iniciarmos as entrevistas para a realização deste estudo, as informações levantadas reforçaram essa constatação. Havia entrevistados que tinham criado novos mecanismos para acelerar a produção, bem como outros que, em momentos de luta pelos interesses dos operários, tinham sabido desacelerar a produção, utilizando para isto conhecimentos adquiridos no próprio trabalho, como forma de pressão política em defesa de suas posições. O que se consolidava como prática nessa política localizada é um diálogo mais completo, com sujeitos constituídos, onde a classe se afirma como interlocutor e passa a questionar um processo de trabalho e um sistema de produção
que lhe são impostos. Nesta linha de raciocínio, a pesquisa de que tratamos nesta tese procura mostrar uma experiência que trouxe para o cotidiano, tanto na fábrica quanto no bairro e na vida daqueles trabalhadores/educadores um sentido de construção de práxis, na medida em que a consciência de sua situação social se expressou em uma atuação na realidade voltada para a construção e fortalecimento de sua identidade política e de classe.
Quanto às modalidades de construção e aplicação de metodologias que se desenham no marco das formas de investigação-ação-participativa que procuramos utilizar nesta pesquisa, um ponto extremamente significativo a considerar diz respeito à discussão sobre uma referência mais abrangente, nos estudos e na produção de saber sobre a realidade de povos de países como o nosso. A discussão sobre a “colonialidade” do saber e das metodologias tem que se colocar como referência obrigatória, quando se trata de produzir um olhar sobre nossas realidades. Levar em conta que as universidades e demais centros de produção e transmissão de conhecimento desenvolvem uma trajetória de origem e pertencimento de classe que as remete também a relações tradicionais de dependência, a escolhas e inspirações modelares relativas a métodos e a lugares institucionais de organização do trabalho é inevitável, na medida em que a valorização de proposições teórico-metodológicas elaboradas nas tradições europeias e norte-americanas acompanhou sempre a formação dos pesquisadores latino-americanos.
Recebido em: 25 de março de 2018. Aprovado em: 1 de junho de 2018. Publicado em: 21 de novembro de 2018.
GOMES, Luiz Augusto de Oliveira¹. Jovens trabalhadores-estudantes: a construção da vontade coletiva em experiências de ocupação de escolas. Dissertação de mestrado em educação, do Programa de Pós-Graduação em Educação (Mestrado e Doutorado) da Faculdade de Educação, da Universidade Federal Fluminense – Niterói-RJ, 2018.
Educação é mais do que matemática, português essas matérias da escola. Vai, além disso. Eles te obrigam a aprender só o que eles querem. Pra mim educação também é cultura e tudo o que a gente faz a partir da nossa união. Descobri que o mundo é maior do que a gente imagina.2
O esforço de síntese aqui apresentado é fruto da trajetória de pesquisa realizada no Mestrado em Educação, da Faculdade de Educação, na Universidade Federal Fluminense. Nosso trabalho de investigação junto à ocupação de escolas no primeiro semestre de 2016, surge a partir da minha participação como professor de história, como voluntário, na Escola Estadual Compositor Luiz Carlos da Vila, no município do Rio de Janeiro, no período em que a instituição estava ocupada. Posteriormente, frequentei outras escolas em outros municípios e passei a acompanhar de perto os estudantes em reuniões, assembleias e na militância diária. Ao longo do trabalho de campo, foram realizadas entrevistas individuais e em grupo com estudantes e professores, considerando tanto o movimento de ocupação como de desocupação. Foram realizadas cerca de 20 entrevistas com os estudantes do Colégio Estadual Paulo Assis Ribeiro (CEPAR), Colégio Estadual David Capistrano e Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho (IEPIC), situados em Niterói. Em São Gonçalo, entrevistamos estudantes do Colégio Estadual Pandiá Calógeras e, no
1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i30.p10102
2 Jovem trabalhadora-estudante de 17 anos, do Colégio Estadual Pandiá Calógeras.
município do Rio de Janeiro, as entrevistas se deram com estudantes da Escola Estadual Compositor Luiz Carlos da Vila. A análise dessas experiências de ocupação de escolas foi à dissertação intitulada Jovens trabalhadores-estudantes: a construção da vontade coletiva em experiências de ocupação de escolas.
Entendemos por jovens trabalhadores-estudantes, os jovens que não abandonando os estudos, ajudam no rendimento mensal de suas casas, sustentam sozinhos seus lares, ou que praticam alguma atividade doméstica para seus responsáveis trabalharem fora. Estudam muitas vezes em condições precárias, são marginalizados pelo Estado e por seus aparelhos de repressão e experimentam a “superexploração” (MARINI, 1973) do trabalho pelo capital. O fato de estudarmos os jovens trabalhadores-estudantes das escolas ocupadas nos dá a responsabilidade de analisarmos suas realidades como trabalhadores e/ou filhos de trabalhadores e trabalhadoras.
O objetivo geral do trabalho foi buscar no cerne das ocupações a formação de um possível “germe” da vontade coletiva. Para refletir sobre as diversas formas de participação dos jovens trabalhadores-estudantes no movimento de ocupação, e, em particular, sua organização, formas de trabalho e construção da coletividade, buscamos compreender o contexto político, econômico e educacional em que ocorreram os processos de ocupação de escolas no Brasil. Esse esforço nos ajudou a entender que as ocupações de escolas não são acontecimentos caóticos e isolados. Há evidencias que indicam nexos entre os processos de ocupação das escolas cariocas com o restante do país e, também com outros países latino-americanos.
Uma das descobertas é que, no Brasil, a organização interna dos jovens contou com o auxílio do manual "Como Ocupar um Colégio”, de origem chilena e argentina, traduzida pelos estudantes paulistas. Para analisar o manual, buscamos elementos político-educativos nas obras de Gramsci (1999), Makarenko (2002), Pistrak (2011) e Shulgin, para os quais o trabalho ocupa papel central nos processos educativos. Os princípios pedagógicos exibidos por estes pedagogos socialistas foram postos a partir da necessidade da realização de uma teoria de caráter socialista na antiga União Soviética, entre 1918 e 1922. No pensamento pedagógico socialista, a categoria trabalho ocupa lugar de destaque, assim, para os autores, a ênfase no trabalho tem
como objetivo o crescimento e desenvolvimento do coletivo, por meio de um trabalho educativo-formativo vivido na escola e na comunidade.
Em relação as reivindicações, formas de protesto e de organização dos estudantes, consideramos a amplitude do movimento de ocupação de escolas em nível nacional e sua repercussão nas mídias sociais e imprensa “alternativa”. Nossas fontes secundárias foram as revistas “Carta Capital” e “Caros Amigos”, pelos jornais “A Nova Democracia”, “Brasil de Fato” e “GGN” e nas mídias sociais (Twiter, Facebook) das escolas e organizações de ocupação. O principal critério para definição destas fontes foi a evidência de que, jornalisticamente, os acontecimentos eram abordados por um viés crítico, distinto da grande imprensa e/ou da grande mídia. A partir de jornais e revistas, observamos que as noticiais de maior circulação sobre as reivindicações e formas de protestos nas ocupações teciam criticas ao Programa Escola Sem Partido, A Reforma do Ensino Médio e por último, o novo Regime Fiscal.
A escalada conservadora protagonizada pelo Programa Escola Sem Partido foi bastante debatida nas ocupações. A partir das fontes, compreendemos que o avanço da extrema direita brasileira é reflexo da atual conjuntura de crise política. O discurso moralista do programa serve para escamotear uma serie de retrocessos na educação, dentre eles o avanço do setor privado na educação pública. Além disso, busca desmobilizar estudantes e professores no que diz respeito às lutas por direitos.
Os jornais e revistas também assinalam que a Reforma do Ensino Médio e o Novo Regime Fiscal2 (famigerada PEC do fim do mundo), avanços das políticas neoliberais, eram questões amplamente debatidas nas ocupações. Alertavam que as medidas econômicas e educacionais representavam formas de retirar gradativamente os direitos da classe trabalhadora, e em curto prazo, os mais afetados com essas medidas seriam os jovens trabalhadores-estudantes.
No interior das ocupações, as reformas do Reforma do Ensino Médio e o Novo Regime Fiscal estiveram na pauta de discussão dos jovens trabalhadoresestudantes, principalmente na segunda metade de 2016. Uma das ferramentas que mais evidenciava essas questões foram às mídias sociais, em especial o Facebook. As
2 Emenda Constitucional (EC) nº 95/2016.
mídias foram extremamente importantes para organização interna (dentro da escola) e externa (diálogo com a sociedade) das ocupações. Elas aproximaram os estudantes de diversas escolas, e suas páginas tornaram-se espaços de relativa autonomia. A partir delas, reforçou-se a noção de horizontalidade, onde todos poderiam participar, ter voz e opinar. Contudo, o campo também nos revelou contradições importantes. Observamos que as mídias sociais se constituíram como ferramentas que amplificavam ações individuais, no entanto, muitas vezes, essa estratégia acabou tornando a participação de muitos estudantes menos presencial. Em nosso entender, a potencialização do individualismo nas mídias sociais ajuda a reforçar as vontades individuais e, muito pouco, a construção da vontade coletiva.
As condições materiais das escolas e a organização dos estudantes no pós- ocupação, foi decisivo para o desenvolvimento da luta. Vale destacar que em várias escolas esteve presente um movimento conservador autointitulado
“desocupa”, que agia de forma truculenta. Perguntando-nos porque algumas ocupações de escolas duraram um tempo mais curto que as outras, indicamos como possibilidade a existência de práticas de negação dos partidos políticos e do apoio dos movimentos organizados. Em outras palavras, entendemos que a pouca relação dos estudantes como as entidades organizadas pode ter contribuído para a fragilização do movimento.
Muitos estudantes alertavam para o fato do movimento de ocupação debater questões que não diziam respeito estritamente à escola, ou seja, estavam para além da escola. A ideia da construção de uma nova sociedade era compartilhada por muitos estudantes, no entanto, é importante destacar a existência de muitas falas discordantes.
A pesquisa possibilitou a compreensão de que a organização do trabalho no interior das escolas - o de limpar, cozinhar, promover atividades culturais, cuidar do ambiente e da segurança etc - foi fundamental para o aprendizado e criação, ainda que de forma limitada, de um sentimento de coletividade entre jovens trabalhadores- estudantes. Esse aprendizado nos reafirma a premissa do princípio educativo do trabalho, o qual se constituiu como mediação no “fazer-se” (THOMPSON, 1987) desses jovens como classe trabalhadora.
No século 21, no momento conturbado que o Brasil se encontra, onde o neoliberalismo avança a passos largos com uma série de retrocessos políticos e sociais para a classe trabalhadora, é de extrema relevância um movimento que preze pela coletividade e busque alternativas concretas para mudanças reais na sociedade. As experiências da ocupação, sejam na forma de auto-organização ou no autogoverno, podem ajudar a transformar as vontades individuais em vontades coletivas. Se não podemos nos referir à construção de uma “vontade coletiva”, no sentido pleno atribuído por Gramsci, melhor seria utilizar a expressão “germes da vontade coletiva”, dado que os movimentos sociais populares, enquanto experiências coletivas podem potencializar a articulação e unificação das vontades individuais que existem no seu interior.
Acreditamos que o movimento de ocupação de escolas deixou marcas no movimento estudantil brasileiro. Estudantes, professores, pais e comunidades do entorno das escolas viveram experiências ímpares, com práticas educativas comuns, cujo objetivo dizia respeito à defesa intransigente da escola pública.
Lutar, ocupar, resistir...
Recebido em: 29 de março de 2018. Aprovado em: 1 de junho de 2018. Publicado em: 21 de novembro de 2018.
Francisco José da Silveira Lobo Neto (NEDDATE/UFF; EPSJV/Fiocruz)
Ao encaminhar, em 15 de março de 1964, a Mensagem ao Congresso Nacional sobre as Reformas de Base, o Presidente João Goulart, argumentava a partir dos esforços do seu governo na execução, por meio do Ministério da Educação, do “programa para a democratização da escola de grau médio e sua adaptação às necessidades de habilitação da juventude para as tarefas do desenvolvimento” cujo objetivo era “possibilitar a instalação, em todos os municípios brasileiros, de escolas de ensino de grau médio, voltadas todas no sentido da educação para o trabalho” (apud LOBO NETO, 2014).
Certamente, o Presidente da República pensava também na Campanha para Formação Intensiva da Mão de Obra Industrial, culminada pelo Decreto n. 53.324, de 18 de dezembro de 1963, criando o Programa Intensivo de Preparação Intensiva de Mão de Obra Industrial. Abaixo da assinatura de João Goulart, está a
do Ministro Interino da Educação, Júlio Furquim Sambaqui, em substituição a Paulo de Tarso Santos.
Formado em ciências contábeis, desde a sua nomeação como inspetor do ensino comercial, em 1935, pelo Ministro da Educação e da Saúde Gustavo Capanema, Júlio Sambaqui esteve sempre envolvido com a educação profissional.
Importante notar que o Ministério da Educação, seja vinculado a uma repartição encarregada do ensino médio, seja como órgão de sua estrutura, a partir de sua criação, sempre contou com um departamento, divisão ou seção que tratasse do ensino, educação, formação profissional. E, no entanto, contam-se inúmeras campanhas de incentivo, programas emergenciais, projetos específicos.
O PIPMO, nascido como “programa intensivo de preparação de mão de obra industrial”, depois estendido para outros setores (Decreto n. 70.882, de 27 de julho de 1972), teve uma duração de quase vinte anos, sendo extinto pelo Decreto n. 87.795, de 11 de novembro de 1982.
Em seu Art. 2º, o Decreto de criação responsabilizou a Diretoria de Ensino Industrial do Ministério da Educação e Cultura pelo Programa. Através da Portaria Ministerial nº 46/1964, “baixada dois meses antes do golpe de Estado” (CUNHA, 2000, pág. 11) pelo Ministro Sambaqui, ficaram estabelecidos os seguintes objetivos: “a) especializar, retreinar e aperfeiçoar o pessoal empregado na indústria; b) habilitar novos profissionais para a indústria; c) preparar pessoal docente, técnico e administrativo para o ensino industrial, bem como instrutores e encarregados de treinamento de pessoal na indústria” (CUNHA, 2000, pág.11).
Através do Art. 1º, o Decreto nº 53.324/1963 dispõe que o PIPMO será executado com a participação “das escolas de ensino técnico-industrial, de associações estudantis, de empresas industriais, de entidades públicas e de entidades classistas de empregados e empregadores”.
Quando, em 1972, através do Decreto nº 70.882, alarga-se para além do setor da indústria, o PIPMO, definido como “mecanismo especial de natureza transitória”, ganha “autonomia administrativa e financeira”, sendo dotado de uma estrutura própria composta de uma Comissão Nacional e Comissões Estaduais (pelo Decreto nº 53.324/1924 eram apenas Coordenações Nacional e Estaduais). O Coordenador e os membros da Comissão Nacional são designados pelo Ministro da Educação e Cultura, que também indica como componentes da
Comissão dois representantes do Departamento de Ensino Médio, um do Departamento do Ensino Fundamental e um outro do Departamento Ensino Complementar.
O Programa, pelo Art. 1º do Decreto de 1972, é vinculado ao Departamento do Ensino Médio, contudo, o Art. 10º determina que: “Para efeito de supervisão, o PIPMO é vinculado à Secretaria-Geral do Ministério da Educação e Cultura”.
Enquanto o Decreto de criação foi assinado pelo Presidente da República e o Ministro da Educação, o disposto nesse documento normativo vem assinado, além do Presidente da República, Emílio Garrastazu Médici, e o Secretário-Geral do Ministério da Educação, Confúcio Pamplona, no exercício de Ministro Interino (substituindo Jarbas Passarinho), também pelo Ministro do Trabalho e Previdência Social, Júlio Barata, assim como o Ministro do Planejamento e Coordenação Geral, João Paulo dos Reis Velloso. Talvez, em razão do Art. 11, que determina: “Fica criado um Grupo de Trabalho, coordenado pelo Ministério da Educação e Cultura, integrado por representantes do Ministério do Planejamento e Coordenação Geral, Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) e Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC) (ambos vinculados também ao Ministério do Trabalho), com o objetivo de: a - propor o estabelecimento de uma divisão nítida de trabalho entre o PIPMO, SENAI e SENAC; b - examinar a conveniência de criação de órgão federal, com poderes para exercer coordenação operacional dos programas existentes nesse setor”.
Em 1974, por força do Decreto nº 75.081, de 12 de dezembro, o PIPMO passa a vincular-se à Secretaria de Mão de Obra do Ministério do Trabalho. Com a ressalva do Parágrafo Único que determina: “As atividades pertinentes à qualificação e habilitação profissionais a que se refere a Lei nº. 5.692, de 11 de agosto de 1971, continuarão a ser exercidas pelo Ministério da Educação e Cultura, através do Departamento de Ensino Supletivo”.
Talvez, como Luiz Antonio Cunha deixa transparecer em seu texto, duas razões podem estar presentes nesta decisão de transferência do Ministério da Educação para o Ministério do Trabalho. A primeira razão porque, neste mesmo ano, SENAI e SENAC “tiveram sua vinculação ministerial transferida da Educação para o Trabalho” (CUNHA, 2000, p. 11, nota 7). A segunda razão porque o Programa Intensivo de Preparação de Mão de Obra, embora mencionasse e “fosse executado pelas instituições existentes de formação profissional ... estava
voltado para o mero adestramento imediato dos trabalhadores, realizado numa fração do tempo empregado por elas e abarcando um conteúdo muito reduzido” (CUNHA, 2000, pág. 11-12).
O PIPMO, durante sua trajetória de quase 20 anos, já que foi extinto pelo Decreto nº 87.795 de 11 de novembro de 1982, teve como concluintes de seus cursos 2,6 milhões. Contudo, foi no biênio de 1976 e 1977 que se concentraram cerca de um milhão de concluintes (CUNHA, 2000, p.12).
O Decreto de extinção destina o patrimônio e o corpo de servidores ao Serviço Nacional de Aprendizagem Rural – SENAR, garantindo que se tornem efetivos através de concurso a ser realizado em, no máximo dois anos (BRASIL, 1982, Art. 3º). Evidentemente, o Art. 5º dispõe que “Os encargos decorrentes do disposto no artigo 3º serão atendidos mediante transferência dos recursos provenientes da dotação orçamentária do Ministério do Trabalho, destinados ao Programa Intensivo de Preparação de Mão de Obra – PIPMO”.
Obviamente, ao nomear esta introdução ao Decreto, assinado pelo Presidente João Goulart em 1963, como “contexto normativo”, não se está menosprezando que a normatividade existe como derivação de um contexto mais amplo de sociedade brasileira em um mundo - cada vez mais - refém de um modo de produção da existência em que o primado da barbárie vem prevalecendo.
Como argumentou Anésia Maria da Silva Barradas, em 1986, “o PIPMO, projetado inicialmente para funcionar durante 20 meses para o setor secundário, mas teve a duração aproximada de 19 anos - foi, antes de tudo, um instrumento do Estado no sentido de fazer avançar o capital. Para tanto, revestiu-se das mais diversas funções e inseriu-se em quase todos os segmentos ligados à formação profissional da classe trabalhadora (BARRADAS, 1986, pág. 1).”
Golpeado em 31 de março de 1964, tornou-se maleável instrumento dos caminhos que, na prática, a “teoria do capital humano” ia traçando (e continua traçando) nos arroubos autoritários federais, estaduais e municipais relacionados à “preparação de mão de obra”.
Nem me é permitido concluir sem antes repetir o afirmado no “movimento conclusivo” de minha tese em 2006: “a construção de propostas que levem em conta a educação profissional como formação humana e como práxis transformadora das relações trabalho – tecnologia –profissão - educação na especificidade concreta de cada situação e no conjunto das situações. Um
primeiro aspecto para caracterizar o plenamente público é muito óbvio e muito esquecido: o interesse da maioria trabalhadora. O fato de não poder cair na ingenuidade de esquecer que estamos em uma sociedade de classes em que a minoria detém o poder hegemônico, não me exime de buscar a nitidez dos interesses da maioria, nesta especificidade educacional que lhe diz diretamente respeito. E, mesmo quando constato contradições e esmaecimentos desta nitidez, é preciso evidenciá-las e oferecer instrumentos de análise e discussão” (LOBO NETO, 2006, pág. 183).
No caso específico do PIPMO, fico com as palavras de Anésia Barradas: “Isto significa reafirmar que o PIPMO - como também os múltiplos programas de formação profissional, sem querer entrar no âmbito da educação formal - na verdade, não se coloca dentro de uma perspectiva de uma democratização real. São programas que nasceram da necessidade de se induzir o processo de desenvolvimento no Brasil, e fazem parte de um processo mais global de acumulação, concentração e centralização do capital” (BARRADAS, 1986, pág. 165).
BARRADAS, A. M. da S. “Fábrica PIPMO”: uma discussão sobre política de treinamento de mão de obra no período 1963 - 82. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: IESAE/FGV, 1986.
BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Decreto nº 53.324, de 18 de
. Decreto nº 70.882, de 27 de julho de 1972. Dispõe sobre o Programa Intensivo de Preparação de Mão-de-Obra - PIPMO e dá outras providências. Disponível em http://legis.senado.gov.br/legislacao/DetalhaSigen.action?id=497721 . Acesso em maio de 2018.
. Decreto nº 75.081, de 12 de dezembro de 1974. Vincula ao Ministério do Trabalho o Programa Intensivo de Preparação de Mão de Obra - PIPMO, aprovado pelo Decreto nº. 53.324, de 18 de dezembro de 1963, e dá outras providências. Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1970-1979/decreto-70882-27-julho- 1972-419201-publicacaooriginal-1-pe.html . Acesso em maio de 2018.
. Decreto nº 87.795, de 11 de novembro de 1982. Extingue o Programa Intensivo de Preparação de Mão-de-Obra-PIPMO, e dá outras providências. Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1980- 1987/decreto-87795-11-novembro-1982-437704-publicacaooriginal-1-pe.html . Acesso em maio de 2018.
CUNHA, L. A. O ensino industrial da irradiação do industrialismo. São Paulo: Editora UNESP, Brasília, DF: Flacso, 2000.
LOBO NETO, F. J. da S. Educação – Reforma de Base: Cinqüentenário de uma Proposta Golpeada. IN: Trabalho Necessário, FEUFF, Niterói, 2014. Disponível em http://www.uff.br/trabalhonecessario/images/TN_18_-
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. O discurso sobre tecnologia na “tecnologia” do discurso: discussão e formulação normativa da educação profissional no quadro da Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996. Tese de Doutorado. Niterói: Faculdade de Educação, UFF, 2006. Disponível em http://www.floboneto.pro.br/_pdf/trabalhoeduc/4.01%20tese_tecnoltrabedu.pdf . Acesso em maio de 2018.
Recebido em: 23 de abril de 2018. Aprovado em: 6 de junho de 2018. Publicado em: 21 de novembro de 2018.