Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
SIMONI, Joana Cruz de. Relações urbano-rurais e espacialidades pandêmicas: reflexões preliminares partir do caso fluminense. Revista
Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 7, nº 13, pp. 57-68, janeiro-abril de 2021.
Submissão em: 19/01/2021. Aceito em: 19/03/2021.
ISSN: 2316-8544
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RELAÇÕES URBANO-RURAIS E ESPACIALIDADES PANDÊMICAS
1
:
reflexões preliminares a partir do caso fluminense
URBAN-RURAL RELATIONS AND PANDEMIC SPACIALITIES:
preliminary reflections on the case of Rio de Janeiro
Joana Cruz de Simoni
2
PUC-Rio
joana.simoni@gmail.com
Resumo
O artigo tem como objetivo refletir sobre as primeiras evidências de transformações nas relações urbano-rurais
aceleradas e intensificadas pela mobilidade capital-interior que ocorre em decorrência dos efeitos da pandemia de
Covid-19. Observa-se o estabelecimento de uma relação da sociedade com o espaço urbano marcada pelo
distanciamento, isolamento e medo produzindo novas espacialidades que enfatizam antigas assimetrias. Com
foco no caso fluminense, reflete-se sobre os elementos que compõem uma “fuga para o campo para aqueles com
acesso à “hipermobilidade”, ao passo em que a frágil mobilidade (ou, ao revés: a obrigação de mover-se sob o
risco de contágio) segue ainda como norma para muitos.
Palavras-chave: Relações urbano-rurais; Pandemia de Covid-19; mobilidade urbano-rural.
Abstract
This article aims to present some evidence and reflections on the accelerating and intensifying transformation of
urban-rural relations in Rio de Janeiro by focusing on capital-interior mobility motivated by the effects of the
Covid-19 pandemic. Another relationship with urban space can be seen -- social distancing, isolation, and fear are
producing new spatialities that emphasize old asymmetries. This article analyzes some elements that make up an
“escape to the countryside” for those with access to “hypermobility,” while fragile mobility (or, in reverse: the
obligation to move under the risk of contagion) is still the norm for most.
Keywords: Urban-rural relations; Covid-19 pandemic; urban-rural mobility.
Introdução
Em trabalho anterior, investigou-se as distintas representações da vida cotidiana atreladas
aos espaços rurais e urbanos (SIMONI, 2019). Foi possível observar, com foco nas localidades
rurais de Nova Friburgo, na Região Serrana do Rio de Janeiro, a intensificação de um processo
1
O trabalho foi apresentado originalmente no II SEMAGEO: Re-arranjos Geográficos sob a influência da
Pandemia da COVID-19 que ocorreu de forma remota em outubro de 2020.
2
Pesquisadora Pós-doc do Programa de Pós-Graduação em Geografia da PUC-Rio, associada ao Grupo de
Pesquisa de Estudos Urbanos e Rurais (URAIS).
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Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 7, nº 13, pp. 57-68, janeiro-abril de 2021.
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de metropolização do espaço (LENCIONI, 2013; 2015) a partir do qual se constrói uma
dinâmica contraditória nas relações urbano-rurais: a busca pela diferença (o cotidiano do outro)
produzindo a homogeneização, ainda que nunca sem enfrentar resistências, e mantendo ou
produzindo novas desigualdades. De fato, nota-se como o espaço rural, enquanto commodity
a ser consumida por uma elite urbana, conforme nos aponta McCarthy (2008), “importa” as
contradições e a segregação espacial típicas do espaço urbano, além da “pressão sobre os
recursos naturais e a busca de ‘qualidade de vida’ que territorializa a distinção social”
(GAITÁN; RAINER, 2013, p. 575, grifo dos autores)
3
.
A presença e a relação com as tecnologias de informação e comunicação (TICs) foram o
vetor a partir do qual se analisou essas transformações. Com base em uma análise da técnica e
sua ação multiescalar, em uma perspectiva miltoniana (SANTOS, 1996), examinou-se o
complexo processo que se desenvolve no contexto metropolitano, onde entrecruzam-se
urbanidades e ruralidades. As técnicas de comunicação e informação intensificam e aceleram
um processo de inserção do lugar rural na escala global, através da sua midiatização, seu
modelamento para o consumo (como uma representação de espaço de lazer e turismo
“antiurbano”, porém, permeado de urbanidades) e sua apropriação por empresas globais
(destaca-se, no âmbito de tal pesquisa, a análise da presença do Airbnb como ator na produção
do espaço). Assim, o espaço se integra e, ao mesmo tempo em que se eliminam dicotomias
anteriormente existentes, reafirmam-se assimetrias entre os espaços. Neste sentido, a
abordagem das urbanidades no rural (RUA, 2006; 2011) colabora para a compreensão deste
processo, ao analisar esse entrecruzamento sob uma perspectiva multiescalar e assimétrica.
A hipótese sob a qual refletiremos no presente artigo gira em torno de uma dinâmica de
aceleração, intensificação e transformação nas relações urbano-rurais que se desenvolvem a
partir de uma migração capital-interior motivada pelos efeitos da pandemia de Covid-19, a qual
atravessamos. O ritmo e características de disseminação da doença, que levaram à imposição
de um distanciamento e/ou isolamento social, modificaram, ainda que temporariamente, a
relação com o espaço urbano. A perspectiva deste enquanto espaço do encontro e da festa deu
3
Tradução livre, do original: (...) aumento de edificaciones que trasladan al espacio rural las contradicciones y
segregación social del espacio urbano, presión sobre los recursos naturales, búsqueda de “calidad de vida” que
territorializa la distinción social” (GAITAN; RAINER, 2013, p. 575).
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lugar a uma geografia do medo este último visto enquanto elemento geográfico, uma vez que
produz (ou induz a produção de) espacialidades. Ora, importa destacar que as possibilidades de
evitar, enfrentar ou superar aquilo que se teme são bastante diferentes e irão mudar de acordo
com “o grau de emancipação pessoal, o poder aquisitivo, o contexto familiar e as redes de apoio
que configuram o entorno [de determinada população], as quais permitem a adoção de mais ou
menos estratégicas para enfrentar suas emoções” (OLIVER-FRAUCA, 2006, p. 377).
As espacialidades fruto do momento da pandemia são reflexos cristalinos desta
afirmação: o medo do contágio e a sensação de incerteza transformam o espaço urbano num
espaço inimigo
4
, numa “paisagem do medo” (TUAN, 2005). Se o isolamento e a exclusão da
vida comunitária representam a “negação da cidade” (OLIVER-FRAUCA, 2006) e se, por outro
lado, estes mecanismos parecem ser a maneira mais eficaz de (sobre)viver a estes tempos
pandêmicos; coloca-se a questão tão bem sintetizada por Haesbaert (2020, p. 3): que tipo de
dinâmicas de contenção territorial são plausíveis em realidades periférico-coloniais como as
do continente mais desigual do planeta, a América Latina?”
Contenção territorial, a casa percebida e vivenciada como espaço de segurança, ou, ainda
de conforto, o são possibilidades ao alcance de todos, muito menos de forma equitativa. A
noção de “qualidade de vida”, intimamente ligada às condições do lugar onde se vive, passa a
receber novos contornos. Para aqueles com acesso à “hipermobilidade”, facilitada pelas
tecnologias da comunicação e do transporte, são possíveis adaptações mesmo que em um
contexto de mobilidade restringida. Para outros, a imobilidade, a frágil mobilidade (ou, ao
revés: a obrigação de mover-se sob o risco constante de contágio) segue como norma em um
cotidiano marcado pela precariedade e vulnerabilidade.
Neste contexto, a mobilidade urbano-rural a ocupação da segunda residência (rural ou
periurbana), o aluguel por temporada ou em longa duração ou a aquisição de uma nova
residência rural apresenta-se como uma saída, ou uma fuga, da “cidade quarentenada”. Para
alguns, a circunstância específica que a pandemia impõe sobretudo, pela instalação do
teletrabalho e do tele-ensino, combinados com uma cidade cujos atrativos (a alta oferta de
serviços) estão em suspensão traz consigo um impulso à vida (idealizada) rural. Isso, é claro,
4
Conforme nos lembra Souza (2020, p. 96): [...] alguns espaços têm despertado nossa topofobia nesses tempos
pandêmicos” – sobretudo no contexto urbano.
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para aqueles que podem “concretizar” tal impulso ou “fuga”. Para estes o “sonho de ‘casa no
campo’ vira real com home office”, como apontam Almeida e Batista (2020).
Assim, o artigo tem como objetivo apresentar uma discussão acerca dessa dinâmica
contraditória que se delineia a partir das transformações nas relações urbano-rurais em
decorrência da pandemia do novo coronavírus, que acarreta na produção de outras
espacialidades. Para isso, apresenta, em um momento inicial, as primeiras evidências e
reflexões sobre a aceleração e intensificação da mobilidade capital-interior motivada pelos
efeitos da pandemia, com foco no caso do estado do Rio de Janeiro, a partir de matérias
jornalísticas e dados do setor imobiliário. Em seguida, traça um debate acerca das assimetrias
que marcam as relações urbano-rurais, fortalecidas em decorrência da referida mobilidade.
Fugere urbem em uma metrópole quarentenada: primeiras evidências a partir do caso
fluminense
As afirmações apresentadas na introdução deste artigo vão ao encontro das novas
tendências de consumo apontadas por alguns economistas. No ramo imobiliário aponta-se que
o nicho de consumidores que se consolidava no mercado mundial de imóveis no período
anterior à pandemia “era de um perfil jovem, [...] buscando imóveis compactos, bem localizados
(próximos a estações do metrô e centros de emprego e com boa infraestrutura urbana), com
uma tendência a aproveitar o espaço urbano de maneira bastante intensa” (DATAZAP, 2020,
p. 41). Os primeiros relatórios indicam, no entanto, que o cenário da pandemia e o
distanciamento social por ela imposto trarão, necessariamente, mudanças nesse perfil de
consumo (DATAZAP, 2020).
Dados preliminares evidenciam que, dentre os possíveis desdobramentos, a mudança para
espaços rurais ou periurbanos é um processo que está em curso (MARTINS, 2020; ALMEIDA
e BATISTA, 2020; ZANATTA, 2020). Ainda não é possível afirmar, porém, se é uma
ocorrência definitiva ou se corresponde, exclusivamente, a um fenômeno de nicho (como
apontam as tendências)
5
. Alguns desses dados, veiculados em jornais de alta circulação,
5
“Mesmo reunidas as primeiras evidências, Ana Maria Castelo, coordenadora de projetos da construção do
Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV), diz que é cedo para falar em tendências
definitivas. Um dos motivos que impulsionou a oferta de imóveis menores foi a renda, então a movimentação é
um fenômeno de nicho", diz a economista’” (MARTINS, 2020).
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chamam a atenção para: i) uma ampliação de 300% na procura, durante a quarentena, de
aluguéis de longa duração em imóveis na Região Serrana do Rio; ii) um aumento de cinco vezes
na média de venda de imóveis de alto padrão em Itaipava, reduto turístico da mesma região
(ALMEIDA; BATISTA, 2020).
Uma pandemia como a de Covid-19 incorre em transformações na nossa relação com o
espaço, das mais diversas maneiras. Entre as “paisagens do medo” (TUAN, 2005), o isolamento
“voluntário” (para aqueles cuja dinâmica de vida permite), o fechamento de fronteiras e a queda
brusca na mobilidade e fluidez das cidades uma interrupção na geografia da hipermobilidade,
conforme destaca Dumont (2020
6
) os padrões de concentração e valorização de diferentes
áreas das cidades, e fora delas, também será transformado.
Como apontado, essas mudanças são percebidas no mercado imobiliário, onde [...]
se vive uma nova movimentação em decorrência da pandemia do novo coronavírus. Com as
seguidas prorrogações da quarentena, cada vez mais pessoas procuram comprar ou alugar
imóveis em regiões afastadas dos grandes centros urbanos” (ZANATTA, 2020). Neste sentido,
assinala-se que “chácaras e condomínios longe de metrópoles são buscados para passar
temporada na quarentena e também em definitivo, que home office pode ser tendência pós-
covid-19” (ZANATTA, 2020). A mesma autora destaca que, entre os principais atributos desses
imóveis, estão o tamanho (imóveis maiores), a proximidade de áreas verdes e o bom acesso à
internet.
Alguns especialistas na área de bens imóveis avaliam que, com o fim da quarentena, a
tendência é que haja um retorno à moradia na metrópole, ainda que se busque manter um imóvel
com os referidos atributos como uma segunda residência. De uma forma ou de outra, é inegável
que houve um processo de “migração da capital”
7
, que se espelha, inclusive, na “interiorização”
da disseminação do novo coronavírus. Dados do Ministério da Saúde que apontam um
6
A interrupção da hipermobilidade e, mesmo, da mobilidade em geral, engendra um incremento inédito do
teletrabalho como se, sob a coerção do vírus, a preferência pela proximidade prevalecesse sobre a mobilidade. A
geografia da mobilidade encontra-se reduzida ao seu mínimo vital, tal como podemos atestar pelos milhares de
hotéis e restaurantes fechados. Mais ainda, pela disposição de milhares de quartos de hotéis desocupados aos
profissionais da saúde cujos domicílios são distantes de seus trabalhos” (DUMONT, 2020, p. 5).
7
Para nos focarmos no caso da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), destacamos a afirmação de
Rodrigo Mello, dono da imobiliária Morabilidade, na Região Serrana do Rio, que [...] diz que a procura aumentou
300% na quarentena, principalmente por contratos de aluguel mais longos, como um teste para futura moradia”
(ALMEIDA; BATISTA, 2020).
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percentual de infectados de 42% nas capitais e 58% no interior do país conforme nos indica
Menezes (2020)
8
ajudam a confirmar essa hipótese.
No estado do Rio de Janeiro, o processo parece refletir o da escala nacional. O diretor
da Santa Casa do município de Bom Jardim, na região serrana do Rio, “atesta que, como
indicam os números gerais, os casos no município aumentaram. Para ele, o fato de muitos
moradores da capital terem optado por períodos temporários ou mesmo pela mudança para
cidades pequenas explica o aumento” (MENEZES, 2020).
Segundo Almeida e Batista (2020), a tecnologia é um fator essencial na decisão de
mudar para o interior, uma vez que a necessidade de infraestrutura para o trabalho via
internet. Nesse contexto, é importante destacar o crescimento de cerca de 600% na quantidade
de pessoas trabalhando em regime de home office em decorrência das medidas de combate à
disseminação do novo coronavírus (ALMEIDA; BATISTA, 2020)
9
. Assim, a possibilidade de
manter o emprego sem precisar enfrentar o trânsito dos grandes centros e com maior
proximidade a espaços ambientalmente saudáveis coloca-se como um novo fator motivacional
na escolha do lugar de moradia.
Todos esses aspectos (relacionados à possibilidade de mobilidade em meio a um
contexto de pandemia, onde as normas do “jogo” mudam subitamente) colocam a questão,
anteriormente levantada por Bauman (1999) ou Lanquar (2007): mover-se é somente mudar de
lugar, ou indica também mudança (ou afirmação) de diferentes posições sociais? Ao movermo-
nos (no espaço, pelo espaço), que transformações causamos, seja no lugar de origem, no
caminho, no lugar de chegada?
Essas indagações colocam-se quando analisamos as especificidades relativas às
mobilidades urbano-rurais. Neste sentido, se apontamos até aqui as primeiras evidências de
uma intensificação na referida mobilidade, devemos destacar algumas reflexões que giram em
torno das transformações nas relações urbano-rurais, em geral, e dos lugares rurais, em
específico.
8
Dados de julho de 2020.
9
Os autores afirmam que: [...] segundo o IBGE, a tecnologia permitiu que, com o distanciamento social, 8,9
milhões de pessoas no país permanecessem trabalhando em casa. um ano, havia 1,2 milhão nessa condição”
(ALMEIDA; BATISTA, 2020).
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As assimétricas relações urbano-rurais: uma reflexão necessária
Deve-se destacar, em primeiro lugar, a clara relação entre especulação imobiliária (e
reestruturação imobiliária), a comodificação da natureza (HARVEY, 2005) e a transformação
do espaço rural. A ocorrência do turismo em áreas rurais em busca do idílico, da “natureza
intocada” e da migração por amenidades, seja temporária (muito aludida nos estudos teóricos
como segunda residência e vilegiatura) ou fixa (primeira ou principal residência), não é produto
da contemporaneidade
10
. No entanto, esses processos estão se transformando no que tange à
intensidade, velocidade e condição, quando consideramos as mudanças materiais e imateriais
que acompanham o “novo clico do urbano”. As primeiras reações às novas condições impostas
pelo novo coronavírus parecem acelerar e incluir novas variáveis neste processo.
Ao avaliar esta dinâmica (a neorruralidade, a “volta à terra”, ou uma intensificação das
migrações urbano-rurais, a depender da perspectiva de análise), alguns autores advogam que se
trataria de um revigorar da ruralidade. Por outro lado, argumenta-se, na verdade, que estes
processos são indicativos de uma expansão da vida urbano-metropolitana (dos discursos,
prioridades e códigos) nos espaços ditos rurais. De fato, observa-se um espraiamento (não
linear) dos modos urbano-metropolitanos de (re)produção do espaço, nas suas formas-
conteúdo, levando a transformações nos espaços rurais, sem que isso enseje no desaparecimento
de algumas de suas especificidades. Rural e urbano são compreendidos, portanto, em suas
dinâmicas complexas e relacionais, concordando com a perspectiva trazida por muitos autores
(FERREIRA et al, 2014; RUA, 2006; 2014; SORBAZO, 2006) em que o urbano se estenderia
para além das cidades. Demonstrar-se-ia, assim, a emergência de urbanidades no rural, ao passo
em que ruralidades são também ressignificadas no espaço urbano.
Assim, trataremos aqui desta complexa questão a partir de duas principais reflexões. A
primeira trata do mercado imobiliário metropolitano, da geração de riquezas através da terra
que, portanto, exige que “novas terras” sejam valorizadas. Essa discussão muito se faz no
âmbito da cidade dispersa. Os espaços ditos rurais, no entanto, também precisam ser
ressignificados, de modo que possam ser reservas para o capital; afinal, como propõe Harvey
10
Veja-se, por exemplo, os trabalhos realizados por Arrais (2013); Hidalgo; Arenas, Santana (2016); Gaitán;
Rainer (2013).
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(2011, p. 137): “a produção do espaço em geral e da urbanização em particular tornou-se um
grande negócio no capitalismo. É um dos principais meios de absorver os excessos de capital”.
Neste sentido, Rua (2014) ao tratar da relação rural-urbana na contemporaneidade,
lembra-nos que o preço da terra (a especulação imobiliária e o aumento do preço da terra em
espaços ditos rurais) é uma das maiores expressões de urbanidades no rural. Se levarmos em
consideração a afirmação trazida por Harvey (2011) e as avaliações propostas por Rua em seu
trabalho, não podemos negar que se produz novos espaços (novas possibilidades de reprodução
do capital), através da consolidação de representações de uma “utopia urbana da anticidade”
(HIDALGO; ARENAS; SANTANA, 2016, p. 30). Tal utopia, embora se construa através de
uma visão negativa da cidade (a antinatureza, o espaço caótico, violento e poluído e, agora,
lócus de contaminação), somente consolida-se carregando consigo “as comodidades que
derivam da vida urbana” (HIDALGO; ARENAS; SANTANA, 2016, p. 30).
Ocorre que essa “invenção” ou seja, esta representação do espaço rural transformado
em utopia tem consequências que podem levar à sua distopia, conforme evidenciam os autores
citados. Ao estudar o caso do litoral chileno, os geógrafos demonstram como, através deste
processo de difusão da lógica metropolitana a espaços rurais, pelo meio da valorização da
residência ou turismo em ditos locais, criam-se também, fenômenos de “elitização, exclusão,
segregação e degradação ambiental” (HIDALGO; ARENAS; SANTANA, 2016, p. 28). Assim,
os autores argumentam que a criação de uma representação do rural como utopia (fazendo
emergir um imaginário de utópolis) cria, em verdade, sua antinomia: uma distópolis dispersão
de novas (e velhas) formas de segregação e elitização dos espaços. Ao se debruçar sobre o caso
do litoral cearense, Assis (2012, p. 42) analisa que uma “elite móvelpara quem “morar e
viajar são termos relativos que remetem a práticas cotidianas multilocalizadas e redefinem os
sentidos de migrante-turista e morador-migrante”.
Assim, gestada nas cidades, a demanda pelo espaço rural (transformado em utopia)
acaba por imprimir nele características cada vez mais “metropolizadas”, seja do ponto de vista
da morfologia e organização do território, seja do ponto de vista das práticas sociais. Resta, no
entanto, não observar estas transformações de forma também dicotômica (como costumamos
fazê-lo no que tange ao par urbano e rural), ou seja, de forma em que haja, “unicamente, uma
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valoração (positiva ou negativa) sobre as influências do ‘global’ sobre o ‘rural’”, como propõem
Gaitán e Rainer (2013, p. 575).
Considerações finais
Se observamos um processo de mobilidade do urbano para o rural (ou periurbano),
motivado pelas condições (socioespaciais) impostas pela pandemia, devemos nos perguntar:
que transformações este movimento aportará para as relações urbano-rurais? Por outro lado,
quais são as representações (de urbano, de rural; das relações entre espaço e bem viver) que
determinam tais movimentos? Como estes atuam como desigualizadores do espaço geográfico
(por exemplo, a partir da vivência desigual das escalas)? Quais diferenças reafirmam e quais
anulam?
Estas questões apontam para um “espaço pós-pandêmico” transformado do ponto de vista
de sua materialidade, sua organização; mas também de suas dimensões simbólicas e subjetivas
todas estas co-determinadas e intrinsecamente relacionadas. Se não podemos negar que
atravessamos um momento de crise, de mudanças, de incertezas e também de novidades, a
ciência geográfica tem papel irrefutável na compreensão e análise de tais processos. O espaço
concebido, percebido, vivido, conforme nos aponta Lefebvre (2006) se transforma e,
portanto, transforma-se a vida cotidiana. O inverso, certamente, também é verdadeiro: porque
a vida cotidiana se transforma (alguns irão falar em um cotidiano em suspensão), concebem-se,
percebem-se e vivem-se outro(s) espaço(s) e, portanto, outras relações entre rural e urbano.
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imóveis fora dos grandes centros. O Globo, 28 de julho de 2020. Disponível em:
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Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
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