Corpo, Violência e Trauma nas dobras do Sul Global

2021-06-22

Em artigo recente, Vladimir Safatle (2021) alerta para o fato de que o marco inaugural do século
XXI não teria sido o 11 de setembro, mas sim a autoimolação de Mohamed Bouazizi, na Tunísia, em 2010. Para Safatle, o gesto de Bouazizi teria inaugurado uma revolução molecular centrada no corpo, o que, segundo o filósofo brasileiro, é já uma das marcas do século que hoje atravessamos. O dossiê Corpo, Violência e Trauma nas dobras do Sul Global toma como mote este episódio individual e particular protagonizado pelo feirante tunisiano – que também teria desencadeado a Primavera Árabe – com o objetivo de colocar em pauta a discussão sobre estratégias e táticas que temos encontrado para habitar o século XXI. A partir da tríade corpo/violência/trauma, nossa sugestão é pensar essa revolução molecular, que tem assombrado e transformado a geopolítica mundial, como territorialmente localizada nas dobras do Sul Global, chamando atenção para o que tem se tornado visível nos campos das artes e das imagens. Nossa indagação diz respeito aos modos como essas práticas e intervenções midiáticas e artísticas têm gerado espaços de confronto em relação ao que Suely Rolnik (2019) chama de “inconsciente colonial-capitalístico”.

A sugestão de pensar a partir das “dobras” do Sul Global tem como princípio a ideia de que, enquanto território, o Sul de que falamos não é um bloco monolítico. Em sua condição “ex-cêntrica” (Comaroff & Comaroff, 2012), o Sul Global é, antes de tudo, o que se apresenta fora das dominâncias e das centralidades do poder, sendo, portanto, o que acontece nas dobras, ou nas territorialidades, que ele próprio produz. Um traço comum que une o que podemos chamar de “sul” é a expropriação e objetificação dos corpos, dispositivos que serviram (e ainda servem) à lógica de implementação das colonialidades do poder. Sob essa perspectiva, queremos pensar com Mombaça: “o corpo negro” – e também podemos considerar o indígena e/ou os corpos hoje ainda inventados como subalternos – “é uma máquina do tempo”. Ele remonta, conta, produz histórias; ele evoca narrativas nas quais se entrelaçam os presentes, os passados e os futuros.

Sob este viés, admitimos também que os projetos colonizadores, como forma de poder constitutiva da modernidade, desencadearam alucinações incalculáveis, inseparáveis do acúmulo de capital que, ainda hoje, ao referendar a despossessão política e jurídica dos corpos, encena violências. Em outras palavras, o colonialismo adquire sua materialidade histórica não apenas através da violência física, mas também da representação, da linguagem, dos valores que esfacelam corpos, produzindo esvaziamentos e coisificações. Assim, de forma paradoxal, se estamos falando das violências que devastam signos, ideias e imagens, estamos também falando das potências e da produção de subjetividades que trazem à tona outras ordens que redistribuem as violências (Mombaça, 2016). O trauma, outro dos componentes que perfaz a tríade sugerida neste dossiê, aparece assim como efeito do colonialismo que, de acordo Grada Kilomba (2019), é uma “ferida aberta”. Esse aspecto reforça o foco do dossiê na centralidade das experiências do presente, pois é nelas que o trauma, em suas formas físicas, também se constrói, através das visualidades e dos gestos de linguagem que, de modos diversos, se contrapõem às dores de viver  o contemporâneo.

Dessa forma, este dossiê busca compreender a economia política da violência e do trauma na
contemporaneidade como uma linguagem corpórea, ressignificada nas e pelas práticas artísticas e visualidades midiático-comunicacionais, que atuam como formas de (cor)responder ao complexo estrutural colonial-capitalístico que produz modos de ser nas territorialidades do sul (global). Interessa-nos, assim, acolher contribuições bibliográficas e não bibliográficas, ensaísticas e/ou visuais que interroguem a comunicação e a arte em sua potência de encenar e perturbar a violência do aparato jurídico-político do estado moderno-colonial ocidental, levando em conta sua gênese na história das pilhagens e dos genocídios que o estruturam. Tendo em vista as abordagens transdisciplinares, este dossiê abarca os campos da comunicação e das artes em suas diversas linguagens: mídia, literatura, cinema, artes visuais, artes performativas, entre outras.  Convidamos e encorajamos visões analíticas, reflexões teóricas e propostas metodológicas transdisciplinares a partir dos eixos abaixo elencados (mas não somente):

1) Enfrentamentos territoriais: modos de ser e poder nos territórios do Sul (Global)
2) Raça, gênero, sexualidade: interseccionalidades, dispositivos e contradispositivos  
3) Perspectivas críticas decoloniais: pensar o sul a partir das mídias
4) O corpo como território de poder: geografias e territorialidades do Sul (Global)
5) Práticas e representações midiáticas e artísticas do Sul (Global)
6) Imagem da violência e violência da imagem
7) Negociações entre opacidade e transparência na arte e nas práticas midiáticas
8) Trauma, memória e cultura visual: arquivos e repertórios
9) Pensamento Abolicionista, Capitalismo racial e a persistência do valor
10) Virada afetiva, virada pós-humanista: pistas para estancar o inconsciente colonial

Cronograma:
Divulgação Chamada de Trabalhos: 18 de junho de 2021
Submissão de artigos: 1 de julho a 1 de novembro de 2021
Lançamento do Dossiê: abril de 2022


Editores convidades:
Fernando Resende (UFF)
Michelle Sales (UFRJ e PPG Multimeios Unicamp)
Pablo Costa (UFC)
Gaia Giuliani (CES, Universidade de Coimbra)