Chamada para o Dossiê “Antropologia das políticas públicas: etnografias entre agentes, usuários e serviços”
Nas últimas décadas, se consolidou a ideia de que os modelos de desenho, implementação e avaliação de políticas públicas baseados somente em indicadores e dados quantitativos são insuficientes para dar conta das complexidades e contradições presentes nos cenários para os quais uma série de programas governamentais e não-governamentais são pensados. Desde 1980, na literatura da Ciência Política, Michael Lipsky (2019) ressalta o papel crucial dos “burocratas de nível de rua” para o sucesso ou fracasso de determinados serviços. Mais recentemente, uma série de especialistas das áreas de Saúde Coletiva, Administração Pública, Economia, Direito e outras ciências sociais aplicadas vem aprimorando teorias e metodologias nesse campo de pesquisa, de modo a sofisticar cada vez mais o debate sobre o tema.
De modo genérico, esse conjunto de autores afirma que é preciso compreender e levar em consideração as lógicas, valores morais, necessidades e motivações daqueles que se encontram propriamente implicados na situação sobre a qual se deseja intervir. Nessa perspectiva, a “ida a campo” é tida como basilar e indispensável, posto que somente através desse modo de aproximação é possível conhecer profundamente a realidade cotidiana dos sujeitos e, com isso, elaborar ações e projetos que sejam ao mesmo tempo menos dispendiosos e mais eficazes. Exemplos de propostas desse tipo são encontrados em obras como as do historiador Marcos Cueto (2007) acerca da implementação do programa de erradicação da malária no México; e a dos vencedores do Prêmio Nobel de Economia Abhijit V. Banerjee e Esther Duflo (2020), que defendem o trabalho de campo como etapa imprescindível no processo de concepção e execução de planos econômicos, bem como na definição dos gastos públicos.
Ainda que idealizadas para um determinado fim, não raras são as situações em que o público-alvo de um programa social ou de uma ação governamental se apropria das ferramentas, recursos e tecnologias de formas criativas e não antecipadas pelos especialistas em políticas públicas. Tais episódios de perplexidade diante da utilização e/ou resultado inesperados de um dado instrumento são recorrentes entre aqueles que trabalham com iniciativas como as de transferência de renda – os quais ficam surpresos quando os sujeitos empregam o dinheiro recebido na compra do que consideram “supérfluos” e não de itens daquilo que veem como “necessidade básica” –; e também entre os gestores de outros setores do planejamento, como, por exemplo, os responsáveis por elaborar as diretrizes para o uso racional de medicamentos adquiridos com verba pública, que precisam estar atentos às maneiras mais diversas e inventivas com que as pessoas recorrem e fazem o manuseio de certas medicações.
O que se nota contemporaneamente é que a efetivação de uma política pública de cunho generalista sempre encontrará certos obstáculos e dilemas em contextos particulares – como, por exemplo, as dificuldades enfrentadas na elaboração de um cadastro de usuários por meio de um aplicativo de celular em uma região em que mais da metade das pessoas não possui acesso regular à internet (Fonseca, Scalco e Castro, 2018; Bachtold, 2016). Tais entraves se devem, por um lado, às condições sociais, culturais e de infraestrutura que caracterizam os territórios e/ou populações a que se destinam um dado projeto – muitas vezes desconhecidas pelos especialistas em formulação e implementação de políticas públicas; e, por outro, ao fato de que as pessoas não são seres autômatos que respondem todos igualmente a um certo estímulo e que reagem sempre de um mesmo modo. Isto é, toda e qualquer política pública tem de lidar com um elemento que é essencialmente humano, cujos comportamentos, reações e sentimentos não podem ser previstos de maneira precisa.
Na área da Antropologia, os autores têm contribuído para desestabilizar e questionar ideias consolidadas em outras disciplinas de que as políticas públicas apenas respondem aos interesses de uma coletividade que é encarada como o somatório de indivíduos racionais que agem sempre a partir de determinada avaliação de custos e benefícios, tal como discutido por Antonio Carlos de Souza Lima e João Paulo Macedo e Castro (2015). A partir do seu ferramental clássico e de seus pressupostos práticos e epistemológicos, antropólogos buscam ressaltar que os processos de formulação e implementação das políticas públicas são marcados por complexidades, nuances e contradições variadas. Além disso, ao focar no “ponto de vista nativo” e na forma como as pessoas experimentam as políticas no seu cotidiano – desde o desenho até os seus efeitos –, a antropologia visa compreender o que uma política pública “quer dizer” para aqueles que a acessam (ou que são impedidos de acessar) e/ou são seus clientes/usuários (Shore, 2010). Ressalta ainda como o Estado é repensado, atualizado e questionado nas práticas cotidianas e criativas das pessoas que com ele dialogam, apostam e lutam (Das e Poole, 2004; Borges, 2005; Ahlert, 2022).
Levando isso em consideração, o dossiê pretende reunir artigos de pesquisadores que adotem uma abordagem antropológica/etnográfica na investigação e discussão do Estado e das suas formas práticas de atuação que caracterizam as políticas públicas. Nossa ideia é evidenciar como o arcabouço teórico e metodológico a respeito da realização de trabalho de campo – em especial o trabalho de campo de caráter etnográfico – pode ser aplicado não só ao estudo, mas, sobretudo aos processos de construção de agendas, de formulação, implementação e análise de políticas públicas. Com isso, queremos congregar autores que trabalhem com políticas em distintas áreas da administração estatal: renda, saúde, ações afirmativas, transporte, infraestrutura urbana, segurança pública etc. A ideia central que orienta nossa proposta é a de que a etnografia possui uma elevada capacidade de caracterizar detalhada e contextualmente como se configuram os chamados “problemas públicos”, os atores implicados, as correlações de força, as disputas internas e externas, entre outras questões envolvidas na temática. Além disso, pretendemos também trazer textos que destaquem a participação de antropólogos em pesquisas aplicadas no campo das políticas e seu auxílio na produção de soluções mais eficazes, responsivas e comprometidas com as reais necessidades das pessoas. Por fim, nos interessamos pelos desafios que a interlocução e a aproximação com as políticas públicas podem trazer à antropologia.
Referências
AHLERT, Martina. Precisão e política: algumas considerações etnográficas a partir de Codó (Maranhão). Civitas, Porto Alegre, n. 22, p. 1-12, 2022.
BANERJEE, Abhijit; DUFLO, Esther. Boa economia para tempos difíceis. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
BACHTOLD, Isabele. Quando o Estado encontra suas margens: considerações etnográficas sobre um mutirão da estratégia de Busca Ativa no estado do Pará. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 22, n. 46, p. 273-301, 2016.
BORGES, Antonádia. Sobre pessoas e variáveis: etnografia de uma crença política. Mana, Rio de Janeiro, n. 11, v. 1, p. 67-93, 2005.
CUETO, Marcos. Cold war, deadly fevers: malaria eradication in Mexico, 1955-1975. Washington: Woodrow Wilson Center Press, 2007.
DAS, Venna. POOLE, Deborah (ed.). Anthropology in the Margins of the State. Santa Fe: School of American Research Press, 2004.
FONSECA, Claudia. SCALCO, Lúcia. CASTRO, Helisa Canfield de. Etnografia de uma política pública: controle social pela mobilização popular. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 24, n. 50, p. 271-303, 2018.
LIPSKY, Michael. Burocracia de nível de rua: dilemas do indivíduo nos serviços públicos. Brasília: Enap, 2019.
SHORE, Cris. La antropología y el estudio de la política pública: reflexiones sobre la ‘formulación’ de las políticas. Antípoda, [s. l.], n. 10, p. 21-49, 2010.
SOUZA LIMA, Antonio Carlos de; CASTRO, João Paulo Macedo e. Notas para uma abordagem antropológica da(s) Política(s) Pública(s). Anthropológicas, [s. l.], v. 26, n. 2, p. 17-54, 2015.
Organizadores: Lucas Freire (UERJ) e Martina Ahlert (UFMA)
Prazo: 16/12/2025.
OBS: Como temos mais de uma chamada aberta, faz-se obrigatório indicar no campo ‘Comentários aos editores’ que a submissão é para o Dossiê “Antropologia das políticas públicas”.
As contribuições podem ser enviadas até 16 de dezembro de 2025 pelo sistema eletrônico da revista: https://periodicos.uff.br/antropolitica/about/submissions#onlineSubmissions