Chamada para o Dossiê “Conflitos e relações de poder em contextos de trabalho de campo antropológico”

2024-04-15

O objetivo deste dossiê é refletir sobre os dilemas práticos e analíticos na realização de pesquisas empíricas em Antropologia, a partir especificamente da perspectiva de quando estar em campo é estar em risco. Muito tem sido escrito, especialmente em reflexões sobre metodologia e ética de pesquisa, sobre estratégias para a realização de pesquisas ou mesmo sobre os dilemas da escrita e da análise dos dados, mas nem sempre os relatos sobre experiências de violências vividas por pesquisadoras/es durante o trabalho de campo têm ultrapassado as conversas informais sobre os bastidores da pesquisa e se tornado objetos de reflexão em disciplinas ou em publicações. Isto porque o ato de tornar públicas algumas das ocorrências de campo vem, no geral, cercado de interditos, silêncios e incertezas, na medida em que pode suscitar questionamentos sobre o próprio profissionalismo da/o pesquisador/a.  

Desde o hoje já clássico “Rape in the field”, de Eva Moreno (1994), algo marcante é a dificuldade de publicizar experiências de violência e risco, na medida em que isso traz impactos para a carreira acadêmica, em especial às mulheres antropólogas. No caso de Moreno, estuprada em campo por seu assistente de pesquisa, até mesmo seus orientadores a desencorajam a tornar público o estupro. Isso demonstra, por um lado, o quanto ainda há um despreparo institucional para lidar com situações como esta, além da limitação apresentada pelos protocolos desenvolvidos pelas universidades e agências de financiamento, especialmente por desprezarem o fator da imprevisibilidade e dos conflitos inerentes a toda pesquisa de campo. 

No entanto, como vem sendo demonstrado sobretudo por produções feministas e decoloniais (Page, 2017; Schneider, 2020; Berry et al, 2017; ​​Zonjić 2021; Markowitz 2019; Hanson and Richards 2019; Miller 2015; Kovats-Bernat 2002), é impossível descartar de nossas experiências de pesquisa o fator da imprevisibilidade e das relações de poder que trazem consigo os riscos e as posições de vulnerabilidade que determinados corpos ocupam quando estão em trabalho de campo. Tal debate se alinha às discussões sobre posicionalidade no fazer científico (Haraway 2009), cuja ênfase recai na reflexão sobre como posições corporificadas de desigualdades atravessam o próprio ato de produção do conhecimento, e, neste sentido, busca abrir espaço para partilhas de experiências e análises sobre os desdobramentos metodológicos, teóricos e epistêmicos de situações de campo marcadamente conflitivas.

A proposta deste dossiê é relevante em muitas direções. A primeira delas é trazer para o debate público e amplo questões que normalmente são relegadas ao silêncio, aos bastidores ou a notas rápidas de rodapé de dissertações, teses e artigos. Além disso, temos como propósito contribuir com debates metodológicos e éticos ao problematizar os desafios que as/os próprias/os pesquisadoras/es enfrentam em campo. Como afirmamos anteriormente, isso não é algo totalmente novo na Antropologia, mas chama a atenção o quanto ainda há tabus e interditos quando falamos em risco e violência na prática da pesquisa. Acreditamos, no entanto, que este é um tema fundamental dentro das políticas etnográficas. 

Desse modo, pretendemos aqui reunir trabalhos que abordem temas como: formas como marcadores sociais da diferença (gênero, sexualidade, raça, classe social) atuam no posicionamento da pesquisadora/or em campo; efeitos das situações de risco e violência na escrita e no desenvolvimento de investigações; ampliação do debate sobre ética de pesquisa incluindo-se, reciprocamente, formas de proteção às/aos pesquisadoras/es em situações de risco e violência; imprevisibilidades, ameaças e violações de direitos contra cientistas sociais em campo; protocolos de segurança e institucionalização de redes de proteção à pesquisadoras/es; desigualdades e impactos das situações de riscos e adversidades na produção do conhecimento e na carreira acadêmica; dilemas de escrita e formas de narrativas na publicização de experiências de risco, abuso e violências em campo.

Referências bibliográficas

Dragojlovic, Anna and Annemarie Samuels. 2021. “Tracing silences: Towards an anthropology of the unspoken and unspeakable”. History and Anthropology. https://doi.org/10.1080/02757206.2021.1954634

Hanson, Rebecca and Patricia Richards. 2019. Harassed. Gender, bodies, and ethnographic research. Oakland: University of California Press

Haraway, Donna. 2009. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, (5), 7–41.

Kovats-Bernat, J. Christopher. 2002. “Negotiating Dangerous Fields: Pragmatic Strategies for Fieldwork Amid Violence and Terror”. American Anthropologist 104(1), 208-22.

Moreno, Eva. 1994. “Rape in the field”. In Taboo: Sex, Identity, and Erotic Subjectivity in Anthropological Fieldwork.Edited by Don Kulick & Margaret Wilson. London/New York: Taylor.

Markowitz, Ariana. 2019. “The Better to Break and Bleed With: Research, Violence, and Trauma”. Geopolitics 26(1), 94-117. https://doi.org/10.1080/14650045.2019.1612880

Miller, Theresa. 2015. “‘Listen to your mother’: Negotiating gender-based safe spaces during fieldwork”. Journal of the Anthropological Society of Oxford 7(1): 80–87. 

Parreiras, Carolina. 2021. Vulnerabilities and the dilemmas of writing: gender-based violence in the field, In: LOVA Special Issue – Harassment in the field, n. 42. 

Zonjic, Maja. 2021. “Framing violence: The politics of representing embodied trauma

in feminist geographic film”. Area 53, 543-552. https://doi.org/10.1111/area.12711

 

Considerando os critérios de avaliação imposto às revistas científicas, poderão ser selecionados 50% artigos de doutorandos, os demais artigos devem ter autoria de, ao menos, um doutor. Todos os artigos submetidos serão submetidos à avaliação às cegas de pareceristas externos, atendendo à política da revista. Para dar conta da diversidade de abordagens teóricas e metodológicas dos diferentes campos empíricos e problemáticas a serem debatidos, serão aceitos, preferencialmente, artigos das áreas de Antropologia e Ciências Sociais, observados os parâmetros de exogenia em relação à UFF.

Organizadoras: Carolina Parreiras (USP) e Michele Escoura (UFPA).

Prazo: 15/07/2024.

OBS: Como temos mais de uma chamada aberta, faz-se obrigatório indicar no campo ‘Comentários aos editores’ que a submissão é para o Dossiê “Conflitos e relações de poder em contextos de trabalho de campo antropológico”.

As contribuições podem ser enviadas até 15 de julho de 2024 pelo sistema eletrônico da revista: https://periodicos.uff.br/antropolitica/about/submissions#onlineSubmissions