Chamada para o Dossiê “Transações e controvérsias com maconha”
O tema e título propostos para este dossiê ecoam a denominação da sessão temática que os organizadores desta proposta coordenaram no IX Congresso Internacional da Associação Brasileira de Estudos Multidisciplinares sobre Drogas (ABRAMD) realizado em Brasília, de 15 a 18 de novembro de 2023. Além disso, as transações e controvérsias com maconha são objeto de diversas comunicações que vêm sendo apresentadas nas atividades que os proponentes do dossiê animam em suas respectivas associações profissionais, assim como em reuniões científicas de caráter internacional. No mesmo ano de 2023, no 21o Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), Marcílio Dantas Brandão foi um dos coordenadores do GT03 (Drogas e Sociabilidades); enquanto Frederico Policarpo e Florencia Corbelle coordenaram o GT49 (Drogas, Saberes e Direitos) na XIV Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM), e o Simpósio 63 (Ações coletivas, estratégias de regulamentação e demandas pelo acesso legal à maconha na América Latina) no VII Congreso de la Asociación Latinoamericana de Antropología (ALA) em Rosário (Argentina) no ano seguinte. Em todas estas experiências, a discussão de transações e controvérsias com maconha tem contribuído para consolidar um campo de reflexão interdisciplinar que abrange diferentes áreas científicas e práticas profissionais como a saúde pública, o direito, a psicologia, a educação, a assistência social e, claro, a segurança pública com base nos direitos humanos. Neste campo, temos percebido que a complexidade do problema impõe urgência do enfoque acadêmico de variadas disciplinas sobre o tema e percebemos que cientistas sociais de diferentes partes do país vêm respondendo tal urgência por meio de estudos muito diversos.
A cannabis, popularmente conhecida no Brasil como maconha, é a substância psicoativa proscrita mais utilizada no mundo (UNODC, 2016); sobre ela pesa uma grande demanda pela liberalização de usos diversos. As Marchas da Maconha (Global Marijuana March), cuja primeira edição ocorreu em Nova Iorque em 1998 (Brandão, 2017), são eventos de alcance mundial que ocorrem em várias cidades no mundo demandando a regulamentação legal de transações com esta substância e exercendo uma forte pressão social sobre parlamentos e poderes executivos que eleva o Movimento Marcha da Maconha à condição de ator de destaque do ativismo canábico internacional. Além das Marchas, o movimento social e o ativismo canábico, que apresenta um desenvolvimento desigual em nível regional (Fusero; Corda, 2016), ganhou relevo recente nos campos profissionais da medicina e do direito devido ao grande potencial terapêutico que vem sendo redescoberto nesta planta (Policarpo, 2020). Porém, persistem reações nas mesmas áreas, há atores políticos manifestando sua contrariedade às transações com maconha e há também uma grande profusão de controvérsias nas áreas científicas em que o tema se destaca.
No Brasil, os estudos sobre os ciclos de atenção à maconha atestam que as controvérsias se estendem há mais de um século (Brandão, 2014a, 2014b, 2016) e a antropologia tem sido um dos principais campos da controvérsia sobre este tema. Desde os primórdios do século passado, quando o estudioso dos costumes afrobrasileiros Manuel Querino (1916) contestou as afirmações do médico Rodrigues Dória (1915) sobre maconha no Brasil, podemos dizer que a controvérsia invadiu o campo de uma antropologia pré-institucionalizada em nosso país. De lá para cá, foram muitos estudiosos dos costumes (como Freyre, 1933, 1937 e 1960) e antropólogos de diferentes estirpes, como Gilberto Velho no Rio de Janeiro dos anos 1970, Edward MacRae e Júlio de Assis Simões em São Paulo na década seguinte, Bruno Cavalcanti em Pernambuco na mesma época e Luiz Mott se somando – a partir da Bahia – a alguns companheiros de profissão para reforçar a importância do tema no âmbito da já devidamente instituída Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Assim, o debate sobre maconha é um velho conhecido deste domínio disciplinar e continua ainda bastante frequente em nossas discussões, como atesta a afluência de trabalhos sobre o tema nas últimas reuniões da ABA. Deste modo, a antropologia tem sido um ator coletivo importante para fazer das transações com maconha no Brasil contemporâneo um foco de investigação e ação. Além disso, em países vizinhos latino-americanos as contribuições a este campo de estudos cresceram exponencialmente nos últimos anos (Corbelle, 2018, 2023; Diaz, 2018, 2020; Romero, Aguilar Avendaño, 2020; entre outros), enriquecendo o debate e fomentando o intercâmbio regional.
O dossiê aqui proposto visa reunir uma amostra significativa da produção antropológica sobre o tema na América do Sul. Pela afluência de antropólogos nas referidas reuniões da ABA, da ABRAMD, da RAM, da ALA e até da SBS, estamos seguros de que poderemos contar com a submissão de um significativo volume de propostas de artigos e, consequentemente, poderemos produzir um número da Revista Antropolítica que seja bastante rico e representativo da pluralidade de enfoques sobre o tema. De acordo com a trajetória dos coordenadores, priorizaremos trabalhos que focalizem o estudo de mobilizações por mudanças de normas relativas ao tema, mas estimularemos também a proposição de artigos sobre quaisquer aspectos que envolvem transações com cannabis. Deste modo, os objetivos deste dossiê visam a aprofundar o debate sobre controvérsias relativas ao tema, contribuir com a identificação de convergências e a consolidação de um campo de investigações antropológicas que congregue estudiosos de instituições diversas que desenvolvem trabalhos igualmente relevantes para a produção de conhecimento acerca da cannabis.
Referências:
BRANDÃO, Marcílio Dantas. O problema público da maconha no Brasil: anotações sobre quatro ciclos de atores, interesses e controvérsias. Dilemas, v. 7, p. 703-740, 2014a.
BRANDÃO, Marcílio Dantas. Ciclos de atenção à maconha no Brasil. Revista da Biologia, v. 13, p. 1-10, 2014.
BRANDÃO, Marcílio Dantas. Os ciclos de atenção à maconha e a emergência de um problema público no Brasil. In: MACRAE, Edward; ALVES, Wagner Coutinho. (Org.). Fumo de Angola: canabis, racismo, resistência cultural e espiritualidade. Salvador: EDUFBA, p. 103-132, 2016.
BRANDÃO, Marcílio Dantas. Dito, feito e percebido: controvérsias, performances e mudanças na arena da maconha. Tese [Doutorado em Sociologia / Doctorat en Sciences Sociales]. Recife/Paris: UFPE, EHESS, 2017.
CORBELLE, Florencia. El activismo político de los usuarios de drogas: de la clandestinidad al Congreso Nacional. Buenos Aires: Teseo Press, 2018.
CORBELLE, Florencia. Surgimento, desenvolvimento e consolidação do ativismo cannábico na Argentina, 20 anos de militância. In: POLICARPO, Frederico; VERÍSSIMO, Marcos; MOTTA, Yuri; MARTINS, Luana (org.). Maconha: erva boa para pensar. Rio de Janeiro: Editora Autografia, p. 89-126, 2023.
DIAZ, María Cecilia. Haciendo camino al andar: notas etnográficas sobre seminarios y jornadas de uso medicinal de cannabis en argentina (2015-2017). Revista Pensamiento Penal, 2018. Disponível em: https://www.pensamientopenal.com.ar/doctrina/46213-haciendo-camino-al-andar-notas-etnograficas-sobre-seminarios-y-jornadas-uso-medicinal. Acesso em: 29 set. 2023.
DIAZ, María Cecilia. Convertirse en especialista en cultivo y uso terapéutico de cannabis. Contextos, conocimientos y formas de asesoramiento entre activistas cannábicos en Argentina. Redes, Redes, v. 26, n. 50, p. 209-233, 2020.
DÓRIA, José Rodrigues da Costa. Os fumadores de maconha: effeitos e males do vício. Trabalho apresentado no II Pan American Scientif Congress, Washington, 27 dez. 1915.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala. 48a ed. São Paulo: Global Editora, 2003. [1933]
FREYRE, Gilberto. Nordeste. Rio de Janeiro: José Olympio, 1937.
FREYRE, Gilberto. Sugestões em torno do Museu de Antropologia no Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. Recife: Imprensa Universitária, 1960.
FUSERO, Mariano; CORDA, Alejandro. De la Punición a la Regulación: Políticas de cannabis en América Latina y el Caribe. Informe sobre políticas de drogas, 48. Amsterdam: Transnational Institute, 2016.
GONGORA, Andrés. Farmacopea Política: una etnografía del antiprohibicionismo y de la lucha por la liberación de la marihuana en Colombia. Outros Tempos, v. 14, n. 24, p. 228-246, 2017.
POLICARPO, Frederico. Dignidade, doença e remédio. Uma análise da construção médico-jurídica da maconha medicinal. Antropolítica, v. 1, p. 143-166, 2020.
QUERINO, Manuel Raimundo. A raça africana e os seus costumes na Bahia. In: Annaes do 5o Congresso Brazileiro de Geografia, 1916. v.2. Salvador: Imprensa Official do Estado, 1916.
ROMERO, Lucía; AGUILAR AVENDAÑO, Oscar. Interacciones entre cultivadores, usuarios e investigadores en torno a los usos medicinales de cannabis en argentina. Redes, v. 26, n. 50, p. 235-263, 2020.
UNODC – United Nations Office for Drugs and Crime. World Drug Report 2016. Vienna: UNODC, 2016.
Considerando os critérios de avaliação imposto às revistas científicas, poderão ser selecionados 50% artigos de doutorandos, os demais artigos devem ter autoria de, ao menos, um doutor. Todos os artigos submetidos serão submetidos à avaliação às cegas de pareceristas externos, atendendo à política da revista. Para dar conta da diversidade de abordagens teóricas e metodológicas dos diferentes campos empíricos e problemáticas a serem debatidos, serão aceitos, preferencialmente, artigos das áreas de Antropologia e Ciências Sociais, observados os parâmetros de exogenia em relação à UFF.
Organizadores: Frederico Policarpo (UFF, RJ), Marcílio Dantas Brandão (Univasf / UFPE, PE) e Florencia Corbelle (ICA-UBA/CONICET, Argentina).
Prazo: 07/07/2025.
OBS: Como temos mais de uma chamada aberta, faz-se obrigatório indicar no campo ‘Comentários aos editores’ que a submissão é para o Dossiê “Transações e controvérsias com maconha”.
As contribuições podem ser enviadas até 07 de julho de 2025 pelo sistema eletrônico da revista: https://periodicos.uff.br/antropolitica/about/submissions#onlineSubmissions