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Mon, 11 Apr 2022 in Revista Antropolítica
GELL, Alfred. A antropologia do tempo: construções culturais de mapas e imagens temporais. Tradução de Vera Joscelyne. Petrópolis/RJ: Vozes, 2014. 327p
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Alfred Gell nasceu em 12 de junho de 1945 e faleceu em 28 de janeiro de 1997, aos cinquenta e um anos. Formou-se em Antropologia Social pela Cambridge University em 1968 e doutorou-se na mesma disciplina em 1973, pela London School of Economics. Ganhou notoriedade internacional com sua obra póstuma, Art and agency: an anthropological theory, publicada em 1998. Alguns anos antes, em 1992, publicara Anthropology of time: Cultural Constructions of Temporal Maps and Images, sem atrair as atenções de seus colegas ingleses ou europeus (Macfarlane, 2003). Vinte e dois anos depois, Antropologia do Tempo é apresentada em língua portuguesa ao público brasileiro, com tradução de Vera Joscelyne.
Esta tradução do livro de Alfred Gell deve reter a atenção dos antropólogos lusófonos. Em primeiro lugar, pela tese: em Gell, o tempo é uma categoria de entendimento. O aparato cognitivo humano não tem acesso ao mundo real, de maneira que a categoria tempo opera de forma lógica e necessária, constituindo a percepção humana desse mundo real. Porém, o caráter categórico do tempo não inviabiliza a comparação das diferentes maneiras que os grupos humanos o mapeiam ou o representam culturalmente. A ênfase de Gell recai nesse aspecto, ressaltando a importância dos estudos antropológicos comparativos.
Uma segunda razão para o interesse pela obra consiste em conhecer melhor o autor de Art and Agency. Neste livro sobre o tempo, Alfred Gell apresenta suas filiações epistemológicas (fenomenologia, cognitivismo, kantismo) e reitera sua pretensão de superar as aporias do relativismo cultural e, sobretudo, do projeto sociológico durkheimiano visando a equiparar categorias metafísicas como tempo e espaço com representações coletivas. Sob esse duplo ponto de vista, o livro de Alfred Gell apresenta-se no tom polêmico, que é próprio do autor, abrindo caminho para análises críticas da prática antropológica.
A veia crítica e polêmica de Alfred Gell apresenta-se desde os primeiros capítulos do livro, que visam ao trabalho de autores consagrados como Edward Evans-Pritchard, Claude Lévi-Strauss, Edmund Leach, Clifford Geertz. Sobre o primeiro autor da lista, Alfred Gell inicia o Capítulo 2 disparando: a declaração de Evans-Pritchard de que as “‘percepções de tempo, em nossa opinião, são funções do cômputo do tempo e são, portanto, determinadas pela sociedade’ (...) exemplifica perfeitamente o desejo insistente, pós-durkheimiano, de se fazer afirmações metafísicas desnecessariamente abrangentes.” (p. 23). Por um lado, sugere Gell, a abordagem do tempo em Os Nuer é uma “demonstração brilhante das conexões entre fatores sociais e temporalidade” (p. 23). Por outro, nada disso reitera a hipótese de que a percepção cognitiva do tempo varie de uma cultura a outra. Na verdade, segundo Gell, o que Evans-Pritchard descreve é um sistema de classificações que se apoia nas capacidades cognitivas universais (kantianas) e se aplica a variações ecológicas - por exemplo, o “relógio do gado” -, genealógicas e políticas. Um mapa cultural, portanto.
Para Lévi-Strauss, Alfred Gell reserva a crítica do filosofismo: no que se refere ao tempo, o antropólogo francês ficou conhecido pela distinção entre sociedades quentes e frias, que derivaria de um interesse “nem no tempo ‘real’ nem dos conceitos indígenas de tempo, mas sim no tempo dos modelos antropológicos abstratos” (p. 30) - uma espécie de abuso dos conceitos de sincronia e diacronia saussurianos. Gell segue a sua crítica mostrando que a má filosofia fez com que Lévi-Strauss confundisse a categoria tempo através do contraste entre “modelos e realidade, estrutura e eventos, essência e acidente” (p. 31).
A crítica direcionada à Leach visa ao mito do eterno retorno; isto é, a suposição de que há culturas humanas onde, através de práticas rituais, inverte-se a linearidade temporal. Em seu tom polêmico, Gell escreve: “não creio (...) que tais ‘inversões de rituais’ sejam realmente evidências da presença de um tempo que retrocede na mente de qualquer pessoa, a não ser na do antropólogo” (p. 39). As inversões rituais que circunscrevem um retorno a origens ou conformam ciclos a partir da alternância de oposições (noite/ dia, inverno/verão) são instituições coletivas. Representa elementos da vida social - e não reconstituem cognitivamente a experiência temporal. Afirma Gell: “se a topologia do tempo assumisse essa forma [cíclica], nunca seria possível distinguir a ocorrência de um evento e, a partir do mesmo evento e, na próxima rodada do ciclo. (...). Haveria apenas um verão porque o evento ‘verão’ ocorreria apenas uma vez em todo o tempo” (p. 40).
No que se refere a Geertz, a crítica de Alfred Gell se impõe apenas após a apresentação de seus próprios dados etnográficos sobre os umeda a fim de desmistificar a ideia da reversibilidade do tempo em diferentes culturas (cap. 5). Ele se apoia, ainda, em uma crítica dos riscos do relativismo cultural no tratamento do tempo em Lévy-Bruhl (cap. 6) e Georges Gurvich (cap. 7). Em linhas gerais, o que Gell pretende é reiterar o argumento segundo o qual os antropólogos devem se ater a descrições e compreensões de mapas e imagens culturais que guiam a ação - entre eles, as de caráter temporal -, abstendo-se da pretensão de relativizar o caráter categórico da percepção do tempo. Para isso, ele insiste na desatenção de Geertz quanto à importância dos calendários para os balineses e do desinteresse do mesmo grupo no que se refere aos efeitos cumulativos do tempo histórico.
Nos capítulos 9 e 10, Alfred Gell retoma o ensaio de Maurice Bloch intitulado The past and the present in the present. Bloch ataca abertamente o relativismo cultural que guia as análises de Clifford Geertz sobre tempo e pessoa em Bali e propõe que as representações de um tempo cíclico são exclusivas de processos rituais e de sociedades hierárquicas (no sentido dumontiano). Isso porque, segundo Bloch, o tempo cognitivo ou universal produz-se necessariamente pelas interações dos seres humanos com a natureza, enquanto que o tempo cíclico derivaria de estratégias de institucionalização e legitimação da estratificação social e das relações de poder em uma dada sociedade - normalmente, as tradicionais. Para Gell, essa posição não se sustenta. Seja por exemplos etnográficos ou porque a recorrência e a sucessão são, antes de tudo, fenômenos cognitivos. Ou seja: não faz sentido atribuir à institucionalização social a responsabilidade pela construção de mapas e representações do tempo cíclicas: essas e aqueles são viáveis porque há um substrato cognitivo que reconhece as recorrências e sucessões no universo ou na natureza.
Ao longo dos capítulos 10, 11, 12, 13, 14 e 15, Alfred Gell realiza um trabalho notável de sistematização de estudos sobre a cognição do tempo através da psicologia experimental e da linguística. Tratam-se de capítulos densos, que exigem uma certa familiaridade do leitor com essas áreas de conhecimento. Na avaliação do autor desta resenha, que é antropólogo e psicólogo, esses capítulos contribuem decisivamente para a aceitação da tese do autor de que a percepção do tempo é, antes de tudo, uma categoria de entendimento. Mas, para além disso, o que importa destacar aqui é o quanto essa compreensão categórica da experiência temporal não enclausura os estudos antropológicos, comparativos ou não, sobre os mapas e representações temporais.
Tomando como exemplo a análise crítica que Gell faz da psicologia do desenvolvimento de Jean Piaget: ao propor que a percepção de tempo organiza-se em termos evolutivos, o psicólogo francês esclarece algumas etapas que atentam para a construção processual das noções de ordenação de atividades, coordenação de atividades e experiência de duração. Na teoria piagetiana, esses processos correspondem a etapas universais do desenvolvimento infantil que não se sucedem em termos de superação. Isto é, não é porque um determinado indivíduo humano é capaz de ordenar/coordenar logicamente e cronologicamente suas experiências que ele o faz automaticamente em todas as situações posteriores. Um exemplo disso é o caso do agricultor dito primitivo, que não organiza suas safras através de uma contagem objetiva ou racional do tempo (pp. 108-109); ou, ainda, o do menino Lin entrevistado pela equipe de Piaget, que não cai necessariamente em contradição porque afirma que, correndo ou não, chegará em 10 minutos em sua casa após o colégio (pp. 112-113).
No que se refere as argumentos linguísticos para a universalidade cognitiva do tempo, Gell discute o papel dos adverbiais de tempo, dos tempos verbais, do aspecto (forma temporal ou contorno dos eventos) e da modalidade (marcação epistemológica da frase, se ela é provavelmente verdadeira ou não; se é prescritiva; etc.) na elaboração de mapas e representações temporais. Em linhas gerais, o argumento de Gell é que as línguas são mapas culturais e suas transformações ao longo do tempo, indicativos de “mudanças nos padrões de pensamento, nas maneiras gerais de compreender o mundo e seus significados, à medida em que esses mudam na história” (p. 124). Portanto, se há interesse de um antropólogo ou de um psicolinguista pela gramática e pelo uso competente dela por um determinado grupo ou indivíduo, as suas descobertas mais significativas não se localizariam tanto no “surgimento de uma construção gramatical específica” (p. 128), mas nas intenções do grupo ou indivíduo em utilizar tal ou tal construção gramatical. São essas descobertas que, segundo Gell, fundamentam um ponto de vista comparativo e explicativo de como as culturas organizam seus mapas e representações do tempo.
Após quinze capítulos e cento e quarenta páginas de problematização e refutação de asserções de diferentes autores sobre o tempo, Alfred Gell começa a definir seu próprio marco epistemológico no tratamento do tempo como um problema antropológico. Ao longo dos capítulo 16, 17 e 18, o autor apresenta as séries A e B que resumem as formas pelas quais o tempo é discutido na filosofia e que serão assumidas por Gell como fundadoras de uma antropologia do tempo.
Série-A e série-B são rótulos que Gell recupera dos filósofos Richard Gale e John McTaggart. Em linhas gerais, a série-A corresponde à experiência de que o tempo passa, é dinâmico e se organiza em passado, presente e futuro. Pode ser chamada de experiência fenomenológica ou subjetiva do tempo. A série-B, por sua vez, baseia-se na suposição de que o tempo é coextensivo à matéria. Ou, mais precisamente, que a experiência de mudança e duração (tempo subjetivo) ocorre em virtude da experiência de sucessão. O tempo-B não é dinâmico, de maneira que não se apresenta em termos de passado, presente ou futuro. A experiência de mudança depende da constatação cognitiva de “uma variação concomitante entre as qualidades de uma coisa e a data [momento] em que essas qualidades são manifestadas por aquela coisa” (p. 150). O tempo-B é o território da experiência cognitiva.
A ideia que parece fundamental para este autor é que a série-B confunde-se com a matéria e a série-A, com a experiência subjetiva. Se Alfred Gell afirma que a série-B depende da série-A, isso se explica logicamente: para que haja uma ideia de série-B, a experiência subjetiva é necessária. Posto que a experiência subjetiva depende de mapas culturais, nem todas as culturas ou indivíduos organizam uma representação do tempo do tipo série-B. Em geral, é a série-A que predomina, podendo se desdobrar em diferentes representações da duração: linear, cumulativa, cíclica, progressiva, etc. Não obstante, Gell argumenta que a série-B é necessária para a compreensão do tempo em termos categoriais - e, sobretudo, que é através dessa compreensão que se torna possível estabelecer a comparação entre mapas e representações culturais sem se cair em compreensões ingênuas, subjetivistas ou relativistas do tempo.
Uma vez definido seu marco epistemológico no tratamento do tempo, Alfred Gell aventura-se a reler produções de diferentes áreas do conhecimento a fim de demonstrar o caráter profícuo de seu ponto de vista. O capítulo 19 é dedicado à economia e aos processos decisórios; o 20 à geografia e aos ritmos sociais; o capítulo 21, sobre os custos de oportunidade e a teoria da firma; o capítulo 22 sobre mundos alternativos e à fatalidade da existência; e os capítulos 23 e 24 sobre a fenomenologia husserliana e os limites e possibilidades de uma explicação geral sobre a cognição do tempo.
Ao longo dos capítulos supracitados, Gell fundamenta um entendimento evolutivo, no sentido biológico, sobre a capacidade cognitiva humana de constituir o tempo. Tudo se passa como se a recuperação de experiências (passado) e a projeção de mundos possíveis (futuro) fossem vantagens competitivas para a coordenação de atividades humanas nos diferentes ambientes em que elas se escrevem. A “modalização” e a “contrafatualidade” dos “mapas do tempo”, conforme os termos utilizados pelo autor, conformam (ou são produtos) de uma estratégia cognitiva (e de sobrevivência) que constitui uma “rede de mundos possíveis” (p. 225). Essa rede opera na formulação de caminhos alternativos frente a problemas práticos. Como diz o autor,
“Nós nunca temos apenas um objetivo prioritário que tem que ser atingido, seja como for, mas (...) um grande número de objetivos conflitantes em mente simultaneamente, e esperamos realizar esses objetivos de tal maneira que o alcance de qualquer um dos objetivos não elimine o alcance de muitos outros” (Gell, 2014, p. 241).
O último movimento de Alfred Gell neste livro sobre o tempo consiste em contrapor seu marco epistemológico em sua pretensão universalista à prática. Ou, como diz o próprio autor, sair de um modelo “abstrato para adentrar no tempo concreto e engastado do sujeito” (p. 245). Para isso, ele retoma as análises de Pierre Bourdieu em “Esboço de uma teoria da prática”. Entre os capítulos 27 e 29, Gell apresenta sua leitura de Bourdieu, acatando notadamente as conclusões do sociólogo francês no que se refere ao desencaixe entre o tempo prático, o presente longo dos kabyle, e o tempo representado ou objetificado do acúmulo e das decisões racionais. Discorda, porém, de que esse desencaixe seja próprio à distinção entre sociedades pré-modernas e modernas, entre uma forma de solidariedade mecânica contraposta à outra, orgânica. Ao final de sua argumentação, Gell acusa Bourdieu de silenciar quanto à “conjunção entre calendários, tempo e poder”, tratando os calendários como “marcos” - e não como sistemas de conhecimento ou mapas culturais.
Na conclusão, o autor retoma sua tese geral de que o tempo é uma categoria de entendimento e que, por extensão, “não há nenhum mundo encantado em que as pessoas vivenciam o tempo de uma maneira acentuadamente diferente de que nós próprios o fazemos” (p.292). Retoma, ainda, o diálogo com algumas das ideias previamente refutadas por ele ao longo do texto, insistindo no papel que caberia à antropologia do tempo: não o da divagação metafísica, mas o de “representar, imparcial e criticamente, as inúmeras maneiras em que o tempo se torna relevante nos negócios humanos” (p. 292).
Apreciando retrospectivamente a leitura deste livro de Alfred Gell, importa sublinhar o seu caráter desafiador. Como sugerido na abertura desta resenha, o livro apresenta-se como uma vitrine das convicções kantianas, cognitivistas e fenomenológicas do autor. Bem entendido, kantismo, cognitivismo e fenomenologia configuram campos de estudo extensos, cada qual requerendo um grau de especialização que poucos cientistas sociais e filósofos dispõem - ao menos simultaneamente. Ao mesmo tempo, a obra de Gell é uma coletânea de sistematizações e formulações originais sobre o tema ao qual o autor se propõe. Destacam-se, nesse sentido, os diversos esquemas visuais por ele montados, em particular os que ocupam os capítulos 19, 20 e 21 do livro. Por si só, a discussão desses esquemas abre uma série de possibilidades de reflexões e pesquisas antropológicas relacionando ritmos, sucessões e formas de coordenação de atividades humanas.
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Author
Lucas Graeff