Entre porcos e homens: etnografia da “tranca” em um manicômio judiciário
DOI:
https://doi.org/10.22409/antropolitica2024.v56.i2.a56667Palavras-chave:
Afeto, Poder, Medida de segurança, Etnografia, Tranca.Resumo
Neste artigo pretendo explorar etnograficamente a forma como o cuidado e o poder se articulam no tratamento compulsório de um hospital de custódia e tratamento psiquiátrico (HCTP). Com esse intuito, em um primeiro momento, analisarei o “porquinho”, também conhecido como “tranca”. Ele é o espaço reservado aos indisciplinados pacientes que resistem a se engajar no tratamento fármaco-centrado do manicômio judiciário. No entanto, longe de ser um desvio, eu argumento que o “porquinho” é, ele mesmo, parte extralegal da medida de segurança, forma prevista em lei de substituição da pena privativa de liberdade para inimputáveis ou semi-imputáveis. Para analisarmos as dimensões políticas e afetivas dessa “figura”, foi preciso compreender como ela se inscreve no imaginário dos pacientes e funcionários envolvidos com a medida de segurança e o circuito de afetos que esse imaginário mobiliza. A descrição da maneira como trabalhadores e internos interpretam o “porquinho” remeteu-me às fronteiras da racionalidade burocrática. A partir desse limite, avalio o modo singular como o Estado desenha sua escritura, quando desafiado por eventos cujas delimitações do percebido e do imaginado são confusas. Em um segundo momento, descrevo a maneira como esse circuito afetivo configura o modo predominante de cuidado no manicômio judiciário, no qual confluem as lógicas, aparentemente distintas, da assistência e controle. Explorando os enquadramentos perceptivos e o circuito de afetos presentes na instituição, descrevo como diferentes interpretações sobre os internos alimentam distintos regimes de inteligibilidade que dão origem a modos variados de intervenção normativa sobre seus corpos.
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