Entre a provocação injusta e a violenta emoção: a produção de gênero nos júris populares de feminicídio
DOI:
https://doi.org/10.22409/antropolitica2024.v56.i3.a62606Palavras-chave:
Feminicídio, Tribunal do Júri, Antropologia das Emoções, Violência de Gênero.Resumo
Este artigo se insere no debate do recurso às emoções como aspecto central da construção da narrativa jurídica do feminicídio. Dessa forma, o objetivo é discutir como o comportamento violento, especificamente a violência interpessoal cometida contra mulheres em âmbito doméstico, é associado pelos operadores do direito a estados emocionais específicos ligados a marcadores da diferença de gênero na cultura. Partimos de um recorte composto pelas sustentações de acusação e defesa a respeito de dois casos de feminicídio, ambos julgados em setembro de 2021 nas varas criminais do júri do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, caracterizados como “clássicos”, ou seja, tipos ideais. Em ambos havia relação íntima e uso excessivo da força no curso do ato violento (overkill), tendo o “ciúmes” ou o desejo de deixar a relação como motivos apresentados no júri. Sendo assim, analisamos como os discursos dos operadores do direito fornecem chaves interpretativas para a compreensão e a produção do “feminino” e do “masculino” na constituição da verdade jurídica. A abordagem penal centra-se nas emoções, atribuindo às mulheres o papel de vítimas passivas e justificando os crimes como rupturas momentâneas de racionalidade nos homens. Essa perspectiva dissimula o caráter estrutural da violência de gênero, reduzindo-a a histórias singulares que não refletem a complexidade do feminicídio.
Downloads
Referências
ABU-LUGHOD, Lila; LUTZ, Catherine. Introduction: emotion, discourse and politics of everyday life. In: ABU-LUGHOD, Lila; LUTZ, Catherine. Language and politics of emotion. New York: Cambridge University, 1990. p. 1-23.
ÁLVAREZ, Santiago. La distancia en el discurso profesional de la justicia argentina: la representación de la criminalidad en la justicia penal ante la ‘nueva ola’ de violencia delictiva. In: GAYOL, Sandra; KESSLER, Gabriel (org.). Violencias, delitos y justicias en la Argentina. Buenos Aires: Editorial Manantial; Universidad de General Sarmiento, 2002. p. 113-124.
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Sequência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, v. 26, n. 50, p. 71-102, 2005.
BOURDIEU, Pierre. A distinção. São Paulo: Edusp, 2017.
BRASIL. Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. Altera o art. 121 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos. Brasília: Presidência da República, 2015. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13104.htm. Acesso em: 22 abr. 2024.
BISPO, Raphael; COELHO, Maria Claudia. Emoções, Gênero e Sexualidade: apontamentos sobre conceitos e temáticas no campo da Antropologia das Emoções. Cadernos de Campo (São Paulo-1991), v. 28, n. 2, p. 186-197, 2019.
BRUNATTI, Olga; RIFOTIS, Theophilos; CASTELNUOVO, Natalia. La judicialización de los conflictos intrafamiliares en el fuero penal bonaerense. Modelos interpretativos de violencia familiar y nociones nativas de la categoría víctima. In: RIFOTIS, Theophilos; CASTELNUOVO, Natalia (comp.). Antropología, violencia y justicia. Repensando matrices de la sociabilidad contemporánea en el campo del género y de la familia. Buenos Aires, Antropofagia, 2011. p. 125-154.
CAMPOS, Carmen Hein. Feminicídio no Brasil: uma análise crítico-feminista. Sistema Penal & Violência, v. 7, n. 1, p. 103-115, 2015. Disponível em: https://doi.org/10.15448/2177-6784.2015.1.20275. Acesso em: 8. out. 2024.
CARCOVA, Carlos Maria. Direito, política e magistratura. São Paulo: Ltr, 1996.
COELHO, Maria Claudia; REZENDE, Claudia. Antropologia das emoções. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.
COELHO, Maria Claudia; REZENDE, Claudia. Cultura e sentimentos. Rio de Janeiro: Contracapa, 2011.
CORRÊA, Mariza. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Porto Alegre: Editora Graal, 1983.
DÍAZ-BENÍTEZ, María Elvira. O gênero da humilhação. Afetos, relações e complexos emocionais. Horizontes antropológicos, v. 25, n. 54, p. 51-78, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-71832019000200003. Acesso em: 8. out. 2024.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002.
GARCÍA-VILLEGAS, Mauricio. La eficacia simbólica del derecho: examen de situaciones colombianas. Bogotá, DC: Ediciones Uniandes, 1993.
HABERMAS, Jürgen. Reason and the rationalization of society. Boston: Beacon Press, 1983. (The theory of communicative action, v.1).
HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2016. v. 10.
JIMENO, Myriam. Crimen pasional: contribución a una antropología de las emociones. Univ. Nacional de Colombia, 2004.
KANT DE LIMA, Roberto. Da inquirição ao júri, do trial by jury a plea bargaining: modelos para a produção da verdade e a negociação da culpa em uma perspectiva comparada Brasil/Estados Unidos. 1995. Tese (Professor Titular em Antropologia) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1995.
KATZ, Jack. Massacre justo. In: COELHO, Maria Claudia. Estudos sobre interação: textos escolhidos. Rio de Janeiro: EdUerj, 2013. p. 211-284.
LAGARDE, Marcela. Antropología, feminismo y política: violencia feminicida y derechos
humanos de las mujeres. In: BULLEN, Margaret Louise; MINTEGUI, María Carmen Díez (coord.). Retos teóricos y nuevas prácticas. Cidade do México: Ankulegi, 2008. p. 209-240.
LUTZ, Catherine. Unnatural Emotions: everyday sentiments on a Micronesian Atoll and their challenge in western theory. Chicago: The University Chicago Press, 1988.
LUTZ, Catherine. Engendered emotion: gender, power, and the rhetoric of emotional control in American discourse. In: ABU-LUGHOD; Lila; LUTZ, Catherine. Language and politics of emotion. New York: Cambridge University, 1990. p. 63-71.
MATOS, Maria Izilda Santos; SOIHET, Rachel (ed.). O corpo feminino em debate. Unesp, 2003.
OACNUDH [Escritório Regional para a América Central do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos]. Modelo de protocolo latino-americano para investigação de mortes violentas de mulheres (femicídios/feminicídios). Brasília: OACNUDH, 2014.
RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. Michel Foucault. Uma trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
RADFORD, Jill; RUSSELL, Diana. (org.). Femicide: the politics of woman killing. Woodbridge: Twayne Publishers, 1992.
SEGATO, Rita. Território, soberania e crimes de segundo Estado: a escritura nos corpos das mulheres de Ciudad Juarez. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 13, n. 2, p. 265-285, 2005.
SENTO-SÉ, Isadora Vianna. “Quero te apagar de mim”: abordagens e significados do Feminicídio no sistema de justiça criminal do Rio de Janeiro. 2023. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPCIS) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2023.
VIANNA, Adriana; LOWENKRON, Laura. O duplo fazer do gênero e do Estado: interconexões, materialidades e linguagens. Cadernos Pagu, n. 51, p. e175101, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1590/18094449201700510001. Acesso em: 8. out. 2024.
ZARA, Georgia; GINO, Sarah. Intimate partner violence and its escalation into femicide. Frailty thy name is “Violence Against Women”. Frontiers in psychology, [s. l.], v. 9, p. 1777, 2018. Disponível em: https://www.frontiersin.org/journals/psychology/articles/10.3389/fpsyg.2018.01777/full. Acesso em: 5 jun. 2024.
Publicado
Como Citar
Edição
Seção
Licença
Copyright (c) 2024 Isadora Vianna Sento-Sé, Eduardo Moura Pereira Oliveira
Este trabalho está licenciado sob uma licença Creative Commons Attribution 4.0 International License.
O conteúdo da revista Antropolítica, em sua totalidade, está licenciado sob uma Licença Creative Commons de atribuição CC-BY (http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt).
De acordo com a licença os seguintes direitos são concedidos:
- Compartilhar – copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato;
- Adaptar – remixar, transformar, e criar a partir do material para qualquer fim, mesmo que comercial;
- O licenciante não pode revogar estes direitos desde que você respeite os termos da licença.
De acordo com os termos seguintes:
- Atribuição – Você deve informar o crédito adequado, fornecer um link para a licença e indicar se alterações foram feitas. Você deve fazê-lo em qualquer maneira razoável, mas de modo algo que sugira que o licenciante o apoia ou aprova seu uso;
- Sem restrições adicionais — Você não pode aplicar termos jurídicos ou medidas de caráter tecnológico que restrinjam legalmente outros de fazerem algo que a licença permita.