Apresentação
Keywords:
ApresentaçãoAbstract
APRESENTAÇÃO
A Guerra Clássica…e as “Novas” Guerras
"A guerra é o fracasso organizado da política e o sucesso desorganizado da agressividade humana."
Gaston Bouthoul
Especialistas consideram que a guerra é um dos fenómenos mais complexo e intrigante da sociedade. Entre estes especialistas, Gaston Bouthoul (1896-1980) elevou mesmo a Guerra à condição de “Ciência” e deu corpo a um conjunto hermético de definições e conceitos que conhecemos por “Polemologia”, ou seja, o estudo científico, analítico e sistemático da Guerra. A obra de Gaston Bouthoul, inicialmente alicerçada numa vertente mais social e sociológica voltou a ganhar especial atenção e relevo nas últimas décadas, nomeadamente com o surgimento das novas formas e conceitos de guerra - híbridas, cibernéticas e informacionais; que o autor já antecipava de certa forma como fenómenos muito mais complexos e relevantes, e que transitaram para uma esfera global, sendo por esse motivo objeto e instrumento de análise das Relações Internacionais e dos Estudos Estratégicos.
Neste contexto, encontramos na literatura moderna todo um corpo de normativos conceptuais e doutrinários, que vão também no âmbito dos estudos da Ciência Política, das Relações Internacionais, da Geopolítica e da Geoestratégia, indo ainda desde a Economia (Economia de Guerra), passando pela Sociologia (Sociologia Militar), para não falar nos múltiplos vetores das técnicas e das tecnologias (de Defesa). A guerra é, por esse motivo, um elemento perene na relação entre atores do Sistema Político Internacional, e um instrumento de coação, negociação, pressão, e de afirmação do Poder na sua forma mais militarista, como defendia Colin S. Grey (1943-2020).
A guerra como fenómeno social resulta eminentemente de um desacordo substancial, de uma competição feroz ou da tentativa de salvaguarda da condição, do status quo e dos privilégios obtidos…são eminentemente actos racionais, sociais, dinâmicos e reflexivos, que envolvem elevados recursos e que mobilizam substanciais meios humanos, materiais e financeiros.
A guerra pode também ser entendida como a continuação da política por outros meios, como refere Carl von Clausewitz, sendo ampliada na condição de último rácio na defesa da pátria, dos ideais, valores e da soberania. São também por essa via entendidos como instrumentos geopolíticos e geoestratégicos dos Estados e das Organizações, ou de atores que não se enquadrando no normativo criado pelas Escolas de Guerra, sendo comumente apelidados de híbridos ou transnacionais. Por esse motivo, as guerras ideológicas, religiosas, intestinais ou “de sangue” são razão e consequência da vontade do Ser Humano na sua lógica mais profunda, e afirma-se na convicção moral e na defesa dos valores, das crenças e dos seus interesses perenes, pois segundo a visão de Clausewitz a guerra é apresentada como “…um ato de violência para compelir o oponente a fazer a nossa vontade…”, e estas são as guerras que confluem e colocam em presença, cada vez mais, um choque de civilizações na verdadeira assunção do pensamento de Samuel P. Huntington (1927-2008).
Por este motivo, este paradigma implica, em larga medida, que a guerra seja entendida, não apenas como um fenómeno social, mas como um conjunto de fenómenos intrassociais e intersociais, e que importa, cada vez mais, estudar, analisar, debater e especialmente no atual contexto global onde a guerra está presente e condiciona as nossas vidas, fazermos uma reflexão académica sobre a Guerra Clássica e as “novas” Guerras.
Assim, procurando cumprir este desiderato, este número especial da Revista Hoplos possibilita-nos, por meio de um conjunto heterogéneo, multidisciplinar e consolidado, de nove artigos científicos sobre a problemática em questão, a possibilidade de deambularmos em torno de reflexões académicas, ora mais numa vertente histórica e de Relações Internacionais, ora mais filosóficas e sociológicas ou em áreas das tecnologias de defesa e das técnicas militares, onde a temática da guerra é central.
Para início de reflexão importa saber se as temáticas das guerras consubstanciam no âmbito científico uma matéria relevante e no contexto académico um assunto pertinente? E se será relevante alinhar o passado com o futuro e descortinar se foi a guerra que evoluiu ou foi o seu conceito mais polemológico que se alterou? Ou ainda se em termos científicos a guerra ajuda-nos a perceber e a descortinar novas ameaças, novos desafios e a prever o futuro em termos de análise estratégica? Vejamos então o conceito da Guerra na sua dimensão mais evolucionista e paradigmática, e procuremos alinhar alguns conceitos e ideias para que os leitores possam apreciar e contextualizar melhor o tema da 16ª Edição da Revista Hoplos, que têm entre mãos, e que dedicamos a “Pensar e Fazer a Guerra: A Contemporaneidade dos Clássicos”.
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Se analisarmos a guerra tradicional e as novas formas de conflito e pretendermos fazer um olhar sobre as guerras do século XXI verificamos que a guerra sempre acompanhou a história da humanidade e a história das sociedades, moldando fronteiras, sociedades e principalmente mentalidades, convicções e dogmas. No entanto, a sua natureza e dinâmica têm passado por transformações significativas nas últimas décadas. Enquanto os conflitos armados clássicos eram caracterizados pelo confronto direto entre Estados com forças regulares, os conflitos contemporâneos apresentam-nos novos atores, inovadoras estratégias e tecnologias emergentes, configurando o que muitos autores denominam de “Novas Guerras”. Esta edição especial da Revista Hoplos pretende discutir a transição das guerras tradicionais para as novas formas de conflito - híbrido, cibernético, informacional e cultural - procurando compreender as suas implicações para a geopolítica, geoestratégia, a soberania e a segurança global, e principalmente, descortinar se existe um nexo entre as “novas” guerras e a guerra clássica.
Até ao século XX, as guerras eram predominantemente travadas entre Estados-nação, e tinham como protagonistas grandes exércitos regulares e uniformizados (normalmente ao serviço desse Estado com vínculos profissionalizados) que desenvolviam o combate em extensos campos de batalha físicos e de acessível percepção táctica, estando alinhados por objetivos políticos ou territoriais definidos, e normalmente empregando regras de engajamento explícitas (em parte influenciadas pelo Direito Internacional Humanitário). Estas guerras constituíam uma doutrina no aspeto militar que derivavam do pensamento estratégico de Sun-Tzu, Clausewitz, Liddell Hart (e outros) e que são ainda estudados nas Escolas e Academias Militares um pouco por todo o mundo.
Os exemplos mais clássicos constituem, entre outras, as Guerras Napoleónicas (1799-1815), a Iª e a IIª Guerra Mundial, e os múltiplos conflitos regionais com impacto global como a Guerra do Vietname (1955-1975) e, mais recentemente, a Guerra Irão-Iraque (1980-1988). Esses conflitos, ainda que brutais e desconexos, seguiam uma lógica interestatal relativamente clara e estavam articulados segundo as características que abordamos no parágrafo anterior…eram as designadas “Guerras Clássicas”.
Por outro lado, desde o final da Guerra Fria, observamos uma mudança profunda na natureza dos conflitos e na conflitualidade. As guerras tornaram-se menos frequentes entre Estados (interestatais) e mais comuns em contextos internos (intraestatais), gerando conflitos (e não necessariamente guerras) assimétricos e mais prolongados. Conflitos que envolvem novos atores, novas capacidades e novas táticas e técnicas de combate. Mary Kaldor (1946) foi uma das primeiras especialistas a cunhar o termo “novas guerras” para descrever a presença de atores não estatais, como milícias, grupos terroristas e empresas militares privadas. Estes estavam associados à fragmentação da autoridade soberana dentro dos Estados e à utilização de tecnologias emergentes, como satélites, drones e ferramentas de vigilância digital, transportando a conflitualidade e as guerras para a dimensão do espaço e do ciberespaço.
Neste contexto, surgiu o conceito de “guerra híbrida” que se refere essencialmente à integração de múltiplas formas de conflito num único teatro operacional que passou a ter cinco dimensões (mar, terra, ar, espaço e ciberespaço). Estes conflitos combinam conflito convencional (militar direto), guerra irregular (uso de táticas de guerrilha e sabotagem), os ciberataques e as campanhas de desinformação (guerra da informação). Aborda ainda uma maior interferência política e económica sobre a guerra, tendo os líderes militares passado a “responsabilidade” das decisões militares para o nível estratégico-político, passando a guerra a ser planeada, coordenada e executada a partir do nível politico-estratégico e não do estratégico-operacional. Um exemplo notório é o conflito na Ucrânia iniciado em 2014 com a ocupação da Crimeia, onde a Rússia foi acusada de usar forças regulares sem identificação, designados por “little green men”, além de fomentar campanhas de desinformação nas redes sociais e ciberataques contra infraestruturas críticas ucranianas que permitiram moldar e operacionalizar a campanha ofensiva soviética sobre a Ucrânia iniciada em 24 de fevereiro de 2022.
Mas quais são as dimensões e as características estruturais das “Novas Guerras”?
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As “novas guerras” caracterizam-se pelo elevado emprego de meios operacionais nas novas dimensões espaço e ciberespaço e noutra medida também o uso diferenciado das tradicionais dimensões: mar, terra e ar. Um exemplo é a guerra cibernética onde a digitalização da guerra, também com recurso à inteligência artificial, permitiu a emergência do ciberespaço como campo de batalha. Neste novo cenário, os alvos não são apenas militares, mas também civis, tais como bancos, hospitais, redes elétricas e plataformas de comunicação, e as fronteiras do conflito são indecifráveis. A guerra cibernética caracteriza-se assim por uma maior dificuldade em atribuir autoria dos acontecimentos e em identificar quem é o inimigo ou qual é o teor da ameaça. Por outro lado, assiste-se ao emprego de meios, tecnologias e equipamentos de baixo custo e de fácil aquisição, estando ao alcance de grupos pequenos e atores menos relevantes e, ainda porque o tempo de resposta é quase nulo e os efeitos podem ser massivos.
Neste domínio, e mais na vertente do ar, as novas guerras caracterizam-se pela introdução no campo de batalha de meios tecnologicamente evoluídos, relativamente baratos e de fácil operação, que não só alteraram as técnicas, táticas e procedimentos operacionais, como alteraram e condicionaram o uso do campo de batalha…estamos a referirmo-nos ao uso massivo de drones e às múltiplas missões que lhe estão atribuídas, podendo ser uma arma de reconhecimento e segurança, ou atuar em operações ofensivas onde o poder destrutivo e letal é muito significativo.
Outra vertente das novas guerras prende-se com a designada guerra informacional (guerra da informação) onde a disputa por determinadas narrativas e perceções tornou-se central nas guerras contemporâneas, essencialmente nas operações de moldagem e na comunicação estratégica (STRATCOM). Neste contexto, governos e grupos armados usam as redes sociais para espalhar propaganda e fazer passar uma narrativa que se constitui relevante na vertente da opinião publica e dos grupos de pressão e decisão. Por outro lado, procura retirar legitimidade aos adversários, desacreditando-o no seu propósito por via da desinformação e da criação de boatos ou noticias falsas (fake news). E numa vertente mais político-estratégica procura influenciar eleições e decisões políticas ou levar à mobilização ou desmobilização das populações. Esta guerra não se faz com equipamento militar convencional, mas sim com recurso à persuasão, o que substitui a coerção física e a guerra na vertente mais belicista.
Mais recentemente, tem surgido o inovador conceito de “guerra cultural”, associada a valores e símbolos que paralelamente aos conflitos armados conduz a disputas culturais (por identidade ou territorialidade) que atuam focados no plano simbólico, religioso e identitário. A chamada “guerra cultural” envolve confrontos em torno de identidade nacional e dos direitos civis e políticas de inclusão, a temática de género e a sexualidade e muito em voga as narrativas históricas (e revisionistas) que conduzem ao reacender de conflitos e ao extremar de conflitos latentes ou congelados. Esta forma de guerra manifesta-se na interação social e na repressão social, tendo muitas vezes presente os direitos das minorias, da religião e o direito a existir, e sustenta-se muitas vezes no embate entre uma globalização crescente e a defesa da soberania.
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As novas guerras desafiam os marcos legais e éticos tradicionais e consubstanciam uma mudança que é vetorial na globalização e que afeta as Organizações, Estados e a sociedade em geral. Esta dinâmica aposta num bi-multilateralismo efetivo de cooperação estratégica para operar nas novas guerras, pois para problemas complexos são exigidas soluções integradas, e as novas guerras são problemas muito complexos que envolvem múltiplos atores exigindo soluções integradas.
Assistimos, neste paradigma quase que a uma “desumanização da guerra”, pois com o uso crescente de drones e inteligência artificial, o distanciamento entre o executor e o alvo aumentou e o risco é a efetiva desumanização do ato de matar, transformando a guerra numa simulação computacional - o que levanta questões morais profundas sobre o teor das novas guerras e a semelhança (ou não) com episódios da guerra clássica.
Pensamos que as próximas décadas deverão consolidar e ampliar essas tendências e as novas guerras vão trazer mais desafios, maior complexidade ao fenómeno que deixou de ser perfeitamente compreendido pela polemologia. Destes novos paradigmas que caraterizam as guerras modernas, salienta-se o uso massivo de armas autónomas letais, ao uso de inteligência artificial estratégica, sendo capaz de planear, induzir e prever cenários de guerra. E ainda a conflitualidade pelo controle de dados (acesso à informação nos data centers e aos cabos submarinos) e a inteligência geoespacial. Por outro lado, as novas “guerras climáticas”, provocadas por escassez de recursos e deslocamentos populacionais que originam fluxo massivo de refugiados ou deslocados e que associa a guerra à perda de segurança humana nas suas múltiplas dimensões serão uma realidade crescente no futuro.
A guerra contemporânea é um fenómeno complexo, multifacetado e em constante mutação. Ao ultrapassar os limites do confronto físico, ela perpassa o mundo digital, simbólico e psicológico - o que exige novos instrumentos teóricos e práticos para sua compreensão e gestão. Se no passado a guerra clássica era declarada com trombetas e tratada com tratados, atualmente a guerra insinua-se silenciosamente nos nossos dados, nos nossos feeds e nas nossas crenças, ideologias e religiões. Entendê-la, comparando-a com a guerra clássica é talvez o primeiro passo para procurar evitá-las.
Boa Leitura…
Luís Bernardino é mestre em Estratégia e doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Lisboa. Coronel na Reserva do Exército Português e Professor convidado no Instituto Universitário Militar (IUM). Atualmente, é Professor Auxiliar no Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa (UAL) e Investigador Integrado no Centro de Estudos Internacionais (CEI-ISCTE) e no OBSERVARE.
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