PAULO FREIRE E PIERRE FURTER: ENCONTROS COM O PENSAMENTO UTÓPICO
DOI:
https://doi.org/10.22409/7pvnn052Abstract
A reflexão sobre a educação, em nossa época, se caracteriza, consideravelmente, pela ênfase nas
abordagens psicopedagógicas. Também percebe-se um fascínio com o advento das novas tecnologias,
principalmente em torno da preocupação com as consequências do rápido desenvolvimento da
Inteligência Artificial. O espanto diante do surgimento de tantas mudanças significativas no hoje,
engendra um repertório de respostas que, muitas vezes, revelam mais atitudes de adaptação às
narrativas condicionantes do presente, num clima fatalista de aceitação do status quo, enquanto
esvaziam-se as capacidades de conjecturar alternativas humanizadoras para além do agora. Ou seja,
as discussões pedagógicas perderam a capacidade de sonhar, imaginar, pensar o inédito, como se esta
atitude fosse inútil e desnecessária perante o repertório de narrativas condicionantes e imediatistas
desta época.
Isso não significa que a atenção intelectual em torno da urgência dos variados temas que
emergiram nas últimas décadas deva ser ignorada. Apenas constata-se que houve uma dispersão da
atenção intelectual a respeito das questões centrais, as quais, defende-se aqui, precisam sempre ser
revisitadas e rediscutidas em perspectiva com os desafios atuais, portanto, não podem jamais ser
esquecidas.
Sobre isto, Charlot (2020) nos lembra que a pedagogia contemporânea deixou de lado uma
questão originária que sustente, sob bases sólidas, qualquer discussão no âmbito educacional. Trata-
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se da pergunta: “o que é o homem?”, ou melhor, “o que é o ser humano?”. Esta ausência antropológica
na problematização sobre as propostas educacionais de nosso tempo, revelam uma lacuna central,
sintoma de uma crise originária, pois, sem uma sólida concepção sobre os elementos fundantes da
condição humana, não podemos prospectar as bases de sua própria formação. Neste cenário, é preciso
voltar aos fundamentos, sem os quais não se pode avançar na construção de uma proposta educativa
genuína, para além de qualquer reducionismo meramente tecnocrático e profissionalizante.
Assim, a retomada do pensamento dos filósofos e educadores Paulo Freire [1922-1997] e Pierre
Furter [1931-2020] se faz muito oportuna. Ambos assumiram, sem reservas, a centralidade da utopia
em suas reflexões epistêmicas sobre educação e pedagogia. Desde seu primeiro encontro no nordeste
brasileiro na década de 1960, percebe-se que exerceram influências recíprocas em suas concepções
teórico-metodológicas sobre pedagogia, antropologia, educação e formação humana. Suas posições
teórico-práticas, nitidamente embasadas no pensamento utópico, foram muito influentes no campo
educacional latino-americano e ainda se apresentam muito oportunas para desafiar a imaginação
criadora e a criatividade inovadora dos educadores nos dias atuais, para além da atmosfera imediatista
que encerra o pensamento numa adaptação determinista aos problemas do tempo presente.
Também, procuraremos compreender os aspectos e nuances de como cada um destes autores se
apropria do discurso utópico, dando-lhe características peculiares, marcadas pela forma como cada
um articulava suas reflexões pedagógicas. Pierre Furter, zeloso pelo alto grau de erudição e rigor
analítico na exposição conceitual e crítico da utopia, em diálogo permanente com os pensadores da
tradição utópica, principalmente na interpretação minuciosa de sua principal referência, Ernst Bloch.
Já, Paulo Freire, revela um caráter profético e carismático na apropriação das diretrizes fundantes do
pensamento utópico sem se preocupar, necessariamente, em citar ou mencionar os autores da tradição
utópica, uma espécie de visionário que tem profunda clareza da viabilidade do sonho que anuncia,
como se estivesse convocando seus leitores a participar com ousadia da projeção de ações inéditas,
sem temer o risco de buscar viabilizá-las. Se Paulo Freire ficou conhecido como o “andarilho da
utopia”, alguém que irradiava e exalava sua convicção de mudar o mundo para superar toda e qualquer
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situação de desumanização, Pierre Furter pode ser considerado um “catedrático da utopia”, alguém
que se dedicou sistematicamente a estudar a tradição utópica e seus respectivos pensadores, a
compreender sua complexidade e a defender a necessidade de sua permanente atualização para o devir
da contemporaneidade.
De qualquer forma, os dois mantiveram-se profundamente sintonizados com as exigências da
transformação radical da realidade no horizonte do sonho acordado, na denúncia contumaz às
estruturas desumanizantes e no anúncio permanente da educação libertadora como processo de
humanização