Chamada para Dossiê “O certo é saber que o certo é certo” ou “o inferno são os outros”: conflitos (d)e representações em um mundo dividido

2021-07-07

A compreensão do conflito como constitutivo da vida em sociedade acompanha o pensamento social, em geral, e a perspectiva antropológica, em particular, desde há muito. Das abordagens pioneiras de Marx e Weber, passando pelas reflexões de Simmel e seus desdobramentos na Escola de Chicago, aos trabalhos desenvolvidos por Gluckman e Leach no âmbito da Escola Britânica de Antropologia Social, múltiplos foram os esforços no sentido de deslocar o conflito da condição de fenômeno disruptivo ou disfuncional para a de elemento construtivo, logo, inerente às ações, interações e relações sociais. Um dos ganhos evidentes de tal deslocamento foi o progressivo refinamento da teoria social dedicada ao tema e a concomitante superação de um sem-número de dicotomias equivocadas, tais como as que opõem ordem a desordem, integração a ruptura, estabilidade a mudança, consenso a dissenso, dentre outras. O questionamento de perspectivas esquemáticas (como, por exemplo, a estrutural-funcionalista) possibilitou que, enquanto problema sociológico, o conflito pouco a pouco se desvencilhasse das amarras e armadilhas do pensamento dualista. O mesmo, contudo, não pode ser dito das práticas e representações que o consubstanciam como problema social, sobretudo, nos dias que seguem. Pelo contrário. Na atual conjuntura, antagonismos sociais avultam com considerável frequência, fazendo-se notar de forma ainda mais pronunciada quando os objetos de controvérsia dizem respeito a temáticas candentes, tais como: relações interétnicas, fluxos migratórios, estilos de vida, orientação sexual, religiosa, identidade de gênero, etc. Num contexto como esse, no qual, tanto no plano global quanto local, entrechoques envolvendo distintas ordens de valores, crenças e interesses tornaram-se recorrentes, expressões que evocam tempos pretéritos (como esquerda, direita, conservadores, progressistas, cidadãos de bem, vagabundos, comunistas, fascistas etc.), vêm a ser constantemente mobilizadas como categorias de auto e heteroidentificação, plasmando polarizações no interior das quais operam como elementos representacionais de um mundo dividido. 

Urdida a partir dos mais variados engajamentos políticos e coletivismos dogmáticos, tal configuração tem relação direta com importantes transformações contemporâneas, dentre as quais cabe mencionar o advento das modernas tecnologias e métodos de comunicação, com destaque para as mídias digitais, cujos impactos se fazem sentir tanto no estabelecimento de novas modalidades de transmissão, recepção e fixação de conteúdos informativos quanto no engendramento de novos padrões de interação e relacionamento sociais. Se o desenvolvimento das mídias tradicionais (rádio, televisão, jornais impressos, etc.) já havia trazido significativas mudanças nos fluxos de comunicação e nos processos interativos (que foram progressivamente deslocados no espaço e no tempo), com o avanço das tecnologias digitais, esse quadro se acentuou sensivelmente, a ponto de, hoje, os indivíduos poderem se relacionar com múltiplos outros, inclusive de forma síncrona, sem que para isso necessariamente partilhem contextos de co-presença. Um dos efeitos de tais mudanças tem sido o de que, tal qual se verifica em outros espaços, a ocorrência de conflitos dos mais diferentes matizes (étnicos, religiosos, ideológicos, ambientais, etc.) tornou-se algo corriqueiro nos contextos de interação mediada, como deixa ver, por exemplo, a profusão de narrativas veiculadas nas redes sociais nas quais, em nome de uma posição ou convicção, se atacam ou defendem ardorosamente ideias, pessoas e/ou instituições.

Num mundo em que polarizações dão a tônica desde os ambientes político-institucionais até os debates sociais mais amplos, espaço e esfera públicos acabaram por se tornar palco de acirradas disputas em torno daquilo que Bourdieu chama de visão legítima do mundo. Nessas disputas, que têm por objetivo a imposição da definição dominante da realidade social, as representações ocupam lugar de indelével centralidade, não só no que concerne à determinação da ordem de importância dos fenômenos sociais como, também, de suas formas de expressão. Conforme assinala Machado da Silva, representações são descrições seletivas do real, construções simbólicas que orientam práticas racionais com relação a fins, baseadas na definição, pelos atores envolvidos, de suas respectivas situações de interesses. Em outras palavras isso significa que as representações não são, nem podem ser axiologicamente neutras. Em maior ou menor grau, elas serão sempre parciais, comprometidas, interessadas, razão pela qual não podem ser encaradas como meros reflexos da realidade, mas, sim, como elementos que participam efetivamente da sua construção. Destarte, desde que tomadas na sua dupla condição de produto/produtoras do mundo social, as representações podem se constituir em valioso instrumento para a compreensão dos atuais modos de relacionar-se entre si e com o(s) outro(s), convidando-nos, inclusive, a revisitar uma problemática central da abordagem antropológica: o diálogo com a diferença.

Assim sendo, este dossiê temático tem por objetivo reunir discussões teóricas e etnográficas que enfoquem situações conflitivas ocorridas em diferentes contextos empíricos, seja no Brasil ou no Exterior. Pretende-se, com isso, coligir trabalhos que se dediquem a não só compreender a natureza dos fenômenos em tela, mas também suas respectivas formas de manifestação, administração, publicização e/ou (in)visibilização; trabalhos que descrevam e analisem os processos de produção de representações acerca das disputas em jogo, as estratégias mobilizadas para se sagrar vencedor, assim como os efeitos práticos e simbólicos que se lhes acompanham enquanto expressão daquilo que se convencionou chamar construção social da realidade. Outrossim, serão priorizados artigos que se ocupem de questões relativas a tópicos como: 1) estrutura e mudança social; 2) modernidade e “crises de sentido”; 3) interação mediada e conflitos digitais; 4); fluxos e tensões em contextos de fronteira; 5) relações de poder e produção de verdades; 6) moralidades e sentidos de justiça; 7) desigualdade e mobilizações coletivas; 8) sistemas de crença e pensamento; 9) liberdades individuais e direitos coletivos; e 10) juventude e estilos de vida. 

Os artigos devem ter autoria de, ao menos, um doutor e serão submetidos à avaliação às cegas de pareceristas externos, atendendo à política da revista. Para dar conta da diversidade de abordagens teóricas e metodológicas dos diferentes campos empíricos e problemáticas a serem debatidos, serão aceitos, preferencialmente, artigos das áreas de Antropologia e Ciências Sociais, observados os parâmetros de exogenia em relação à Universidade Federal Fluminense (UFF).

Organizadores: Edilson Márcio Almeida da Silva (UFF) e Emanuel Freitas da Silva (UECE).

OBS: indicar nos comentários aos editores que a submissão é para o Dossiê.

As contribuições podem ser enviadas até 20 de outubro de 2021 pelo sistema eletrônico da revista: https://periodicos.uff.br/antropolitica/about/submissions#onlineSubmissions

As normas para submissão dos textos são as mesmas válidas para artigos e encontram-se disponíveis em: https://periodicos.uff.br/antropolitica/about/submissions#onlineSubmissions