PRORROGAÇÃO Chamada para o Dossiê “Atmosferas e antropologia”

2023-04-04

Apresentação e justificativa

A antropologia tem vivido desde o início do século uma ampla "virada material" (Hicks, 2010), hoje composta por diversas escolas e problemas de pesquisa. Comum a todas elas têm sido o interesse em superar ou complementar modelos representacionalistas, centrados nos paradigmas linguístico e discursivo, que orientaram a disciplina em suas vertentes simbólica, interpretativa e pós-moderna (Bachmann-Medick, 2016).  Reclama-se assim de maneira renovada o lugar do corpo, dos sentidos, dos afetos e dos artefatos e objetos na constituição compartilhada da realidade, incluindo agentes e componentes mais que humanos tidos como irredutíveis à oposição secular-moderna hegemônica entre natureza e cultura (Descola, 2005) ou intersubjetividade e interobjetividade (Latour, 1996).

Mais recentemente, o conceito de atmosferas, cujas potencialidades teóricas foram exploradas de modo pioneiro pela fenomenologia e estética alemãs (Tellenbach 1981, Schmitz 2011, Böhme 2007, Gumbrecht 2014), tem ganho protagonismo na virada material na antropologia (Stewart 2011; Bilie, Bjerregaard, & Sørensen, 2015; Riedel 2015; Eisenlohr 2018, 2019; Reinhardt 2020, 2021; Gregersen 2021, De  Abreu 2021; Espírito Santo 2021), indicando uma guinada que caraterizaríamos como ecológica, em sentido lato, dado seu interesse por fenômenos humano-ambientais (eventualmente extra-humanos) difusos, irredutíveis aos conceitos inerentemente circunscritos de objeto ou de artefato. Atmosferas envolvem sobretudo a experiência de imersão em fluxos elementais constitutivos, embora excessivos (materiais contra materialidade, no sentido de Tim Ingold, 2012). Elas são dotadas de propriedades a um só tempo meteorológicas, intensivas e morais (ou seja, humorais), carregadas de intencionalidades difíceis de serem reduzidas a um foco de agência e decisão soberana, o que as torna um fenômeno privilegiado para se repensar a questão da agência (agency) e, sobretudo, da mediação e do medium.

De acordo com Kathleen Stewart, afinamentos ou sintonizações atmosféricas são “processos composicionais de habitação dos espaços, capazes de transportar, gesticular, gestar mundos” (2011: 445). Operando entre sujeito e objeto, atmosferas "fazem" ou “coproduzem” natureza, e sua medialidade originária se manifesta de modo privilegiado pela ênfase que dão a componentes do sensorium, como os aromas, gostos e sons (Howes e Classen, 2014). Mesmo do ponto de vista tátil (háptico), atmosferas têm uma qualidade difusa. Seus elementos são submetidos ao jogo de luz e sombra (Meyer e Stolow 2020), de “limiares intensivos” (DeLanda, 2005) ao invés de serem dotados de fronteiras extensivas, e também são dotados de qualidades incipientes como ritmo, força e movimento: "em cada experiência objetiva, assim como pessoal, há um excedente não expresso. Esse excedente, que está além do fato atual da experiência, mas que sentimos como pertencente a ela, é o que chamamos de atmosfera.” (Tellenbach 1981: 227).

Para Tellenbach, atmosferas são meios de contato elemental, prérreflexivo e préverbal, com o ambiente e o outro. Elas dotam relações sociais de coloração ou tonalidade afetiva, razão pela qual, nessa perspectiva, tornar-se um ser social é aprender tanto a discernir quanto a emanar atmosferas (que convidam ou afastam). “Desde o início, a criança é embebida na aura da atmosfera familiar, que se torna sua, como o cheiro do ninho que gruda no pássaro bebê” (1981: 229). Para Schmitz, a ubiquidade e não-opcionalidade das atmosferas revelam que os sentimentos não são estados internos (e nem categorias culturais externas ou meramente inteligíveis), mas modos de encontro com o mundo e com outro encapsulados em “quase-objetos”, assim como o clima, o vento, sentimentos de calor e frio, dor, tonalidades vocais ou figuras musicais: "emoções são atmosferas derramadas espacialmente que movem o corpo sensitivo (não o material)” (2011: 247). Do ponto de vista das atmosferas, mesmo as coisas não são objetos enclausurados, encerrados em si, mas são abertas para fora, dotadas portanto de propriedades “extáticas” (Bohme, 2017: 11) e produto e produtoras de “ressonâncias” (Rosa, 2018). Sob essa ótica, a um só tempo anti-mentalista, anti-materialista e antirrepresentacionista, “sentir” significa literalmente mover-se e ser movido, as atmosferas se atualizando justamente através de “sugestões de movimento” (Schmitz 2011, Einsenlohr 2018). Assim, elas também aliam processos de encorporação [embodiment] e excorporação, fazendo-se se sentir “no ar”, num modo de existência situado entre e ao mesmo tempo irredutível às categorias de sujeito e objeto, da coisa-no-mundo e da representação-na-mente. O mesmo se aplica à sua temporalidade, marcadamente não-linear e imersa na duração: atmosferas podem tornar o presente prenhe de expectativas (um já-não ainda aqui e agora), engendrando uma tonalidade afetiva ansiogênica, ou fazer ressoar o passado no aqui-agora via reminiscências sensoriais-volitivas-afetivas (como nas famosas cenas de Marcel Proust), efetuando uma tonalidade afetiva nostálgica e saudosista.

Os elementos viscerais das atmosferas englobam a técnica e a tecnologia e tornam-se fenômenos privilegiados para se debater a relação entre o espontâneo, o natural, o imediato e o construído, manipulado, projetado, já que toda meteorologia social é também uma sócio-técnica e um conjunto de competências ou habilidades (Reinhardt 2020). Atmosferas são media (plural de medium) elementares, mesmo quando expandem o ambiente via infraestruturas mecânicas, elétricas ou digitais (Durham Peters 2015). Atmosferas propícias são condições de felicidade para toda e qualquer ação ritual eficaz, e são sujeitas a cálculos, prognósticos e instrumentalizações interessadas em controlar (e governar através de) seu potencial de "fazer fazer” (Latour, 2006), de persuasão, cativação, sedução e convite. Ler, invocar e orquestrar atmosferas são “tecnologias do encanto” (Gell 1988) e competências adquiridas. Caçadores, xamãs, pastores, gurus, músicos, atores, diretores, arquitetos, publicitários, políticos, "influencers" e designers hábeis são mestres nestas ecologias ambientais e humorais. Se as próprias atmosferas são soberanas, e não aqueles que as propiciam, essa arte indica uma modalidade singular de poder e autoridade que merece maior atenção analítica.

O presente dossiê convida autores potenciais a mobilizar o conceito de atmosferas de modo teórico e etnográfico, explorando seu rendimento analítico e sensibilizador em práticas das mais variadas - artísticas, políticas, econômicas, religiosas, científicas, incluindo os seus diversos cruzamentos. Destacamos três eixos de investigação: a) o estudo das técnicas e tecnologias atmosféricas e suas economias da agência e influência; b) teorias etnográficas preocupadas não em responder diretamente “o que são atmosferas?”, mas sobretudo em (re)traçar empiricamente, através de “observações de segunda ordem” (Luhmann 1993), como essas forças e suas agências são definidas, distribuídas e embrenhadas nos e pelos atores em modos particulares de fazer-mundos (políticos, sociais, etc.); c) a relação entre o moral e o humoral em uma ecologia social inquieta e em crise de discernimento, em que o medium atmosférico é habitado por viralizações, bolhas (informacionais) e regimes de exceção (anti-democráticos) imanentes e eminentes.

Referências

Bachmann-Medick, Doris (2016), Cultural Turns. New Orientations in the Study of Culture. Berlin: De Gruyter.

Bille, M., Bjerregaard, P., & Sørensen, T. F. 2015. "Staging atmospheres: Materiality, culture, and the texture of the in-between". Emotion, Space and Society, 15, 31–38.

Bille, M. 2019. Homely Atmosphere and lighting Technologies in Denmark: Living with Light.
London: Bloomsbury.

Böhme, G. 2017. The aesthetics of atmospheres. New York: Routledge.

Böhme, G. 2017. A atmosfera como o conceito fundamental da nova estética. In Blog do Labemus. https://blogdolabemus.com/2017/09/14/a-atmosfera-como-o-conceito-fundamental-da-nova-estetica-por-gernot-bohme/

De Abreu, M. J. 2021. The Charismatic Gymnasium: Breath, Media, and Religious Revivalism in Contemporary Brazil. Duke University Press.

DeLanda, M. 2005. “Space: Extensive and Intensive, Actual and Virtual”. In: BUCHANAN, I.; LAMBERT, G. (eds.). Deleuze and Space. Edinburgh University Press: Edimburgo.

Descola, P. 2005. Par-delà nature et culture Paris, Gallimard, coll. Folio essais.

Durham Peters, J. 2015. The Marvelous Clouds: Toward a Philosophy of Elemental Media, Chicago, IL: University of Chicago Press.

Eisenlohr, P. 2018. "Suggestions of Movement: Voice and Sonic Atmospheres in Mauritian Muslim Devotional Practices." Cultural Anthropology, 33: 32-57.

____. 2019. Sounding Islam Voice, Media, and Sonic Atmospheres in an Indian Ocean World. Berkeley:  University of California Press.

Espirito Santo, D. 2021. "Spectral technologies, sonic motility, and the paranormal in Chile". Ethnography, 22(2):226-245.

Gregersen, A. M. 2021. "Exploring the Atmosphere Inside a Liturgical Laboratory”. Material Religion, [online first] DOI: 10.1080/17432200.2021.1945990

 Gumbrecht, H. U. 2014. Atmosfera, ambiência, Stimmung: sobre um potencial oculto da literaturaRio de Janeiro: Contraponto, Ed. PUC-Rio.

Hicks, D. 2010. The material-cultural turn: event and effect. In D. Hicks and M.C. Beaudry (eds) The Oxford Handbook of Material Culture Studies. Oxford: Oxford University Press, pp. 25-98.

Howes, D. & Classen, C. 2014. Ways of sensing : understanding the senses in society. New York, Routledge.

Ingold, T. 2012. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. Horizontes Antropológicos [online]. 2012, v. 18, n. 37 [Acessado 31 Agosto 2021] , pp. 25-44.

Luhmann, Niklas. 1993. “Deconstruction as second-order observing”, in New Literary History, 24: 763–782.

Latour, B. 1996. “On interobjectivity” In Mind, Culture, and Activity, Vol.3, n°4, pp.228-245 & 246-269.

Latour B. 2006. Changer de société. Refaire de la sociologie, Paris, La Dévouverte.

Meyer, B. & J. Stolow. 2020. "Light Mediations: Introduction," Material Religion, 16:1, 1-8.

Reinhardt, B. 2020. ”Atmospheric Presence: Reflections on "Mediation" in the Anthropology of Religion and Technology." Anthropological Quarterly, 93(1): 1523-155.

____.  2021 "Desagregando a mediação: tecnologias e atmosferas religiosas". Mana, v. 26(2): 1-30.

Riedel, F. 2015. "Music as atmosphere: Lines of becoming in congregational worship”. Lebenswelt, 6: 80–111.

Rosa, H. 2018. Résonance. Une sociologie de la relation au monde, Paris, La Découverte.

Tellenbach, H. 1981. "Tasting and smelling-taste and atmosphere-atmosphere and trust". Journal of Phenomenological Psychology, 12(2): 221–230.

Schmitz, H. 2011. "Emotions outside the box—the new phenomenology of feeling and corporeality.”. Phenomenology and Cognitive Sciences 10: 241–259.

Stewart, Kathleen. 2011. “Atmospheric Attunements”. Environment and Planning D: Society and Space, 29:445- 453

O dossiê será composto de 6 artigos mais a apresentação. Assim, considerando os critérios de avaliação imposto às revistas científicas, poderão ser selecionados 3 artigos de doutorandos, os demais artigos devem ter autoria de, ao menos, um doutor. Todos os artigos submetidos serão submetidos à avaliação às cegas de pareceristas externos, atendendo à política da revista. Para dar conta da diversidade de abordagens teóricas e metodológicas dos diferentes campos empíricos e problemáticas a serem debatidos, serão aceitos, preferencialmente, artigos das áreas de Antropologia e Ciências Sociais, observados os parâmetros de exogenia em relação à UFF.

Organizadores: Bruno Reinhardt (UFSC) e Diogo Silva Corrêa (UVV).

Prazo estendido: 04/08/2023.

OBS: Como temos mais de uma chamada aberta, faz-se obrigatório indicar no campo ‘Comentários aos editores’ que a submissão é para o Dossiê “Atmosferas e antropologia”.

As contribuições podem ser enviadas até 04 de agosto de 2023 pelo sistema eletrônico da revista: https://periodicos.uff.br/antropolitica/about/submissions#onlineSubmissions

As normas para submissão dos textos são as mesmas válidas para artigos e encontram-se disponíveis em: https://periodicos.uff.br/antropolitica/about/submissions#onlineSubmissions