Chamada para o Dossiê “Memórias do exílio na antropologia”

2025-09-15

É conhecida a referência de Edward Saïd ao exílio como uma experiência que “nos compele estranhamente a pensar”, embora terrível de se viver, fratura incurável. Para o autor, em suas “Reflexões sobre o Exílio” (Saïd, 2003), a diferença entre os exilados de outrora e os do nosso tempo é de escala. Vivemos, a partir do século XX, a era dos deslocamentos em massa.

No entanto, quando se altera a dimensão do fenômeno no cenário internacional no segundo pós-guerra, mudam as formas de nomeá-lo e, assim, de inscrevê-lo em categorias que lhe deem inteligibilidade. A partir de 1950, o recém fundado ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), parte da Organização das Nações Unidas (ONU), estabelece a missão de fornecer proteção e assistência aos “refugiados”. Um ano depois, com a celebração da Convenção de Genebra, o direito internacional dos refugiados possibilitou a inscrição dos deslocamentos humanos no marco da gramática humanitária. O tratado criou as bases legais de definição de quem é refugiado e quem não, bem como seus direitos e deveres, mas se limitou aos sujeitos provenientes da Europa. Com o Protocolo de 1967, ampliou-se o estatuto, eliminando suas fronteiras geográficas e temporais e finalmente em 1995, a Assembleia Geral da ONU designou o ACNUR como responsável pela proteção e assistência dos refugiados em todo o mundo.

Esse acontecimento de impacto global não impediu a permanência, difusão e circulação de outras linguagens sociais mobilizadas para definir aquilo que Avtar Brah (1996) chamou de “espaços de diáspora” - onde se interceptam a fissura e a fusão entre culturas, ensejando a redefinição de identidades e fronteiras, simultaneamente locais e globais. “Diásporas”, “(i)migrações”, “expulsões”, “deslocamentos” assim como “refúgios”, passam a constituir diferentes significantes da experiência do desterro, não só nas organizações de direitos humanos, mas também em movimentos sociais, políticas públicas, mídia e no discurso cotidiano. Foi, portanto, através de diferentes domínios discursivos e institucionais que a noção de “refugiado” e/ou “estar no exílio” foram constituídas (Malki, 1995).

A noção de “exílio”, apesar de sua antiga origem greco-latina e judaico-cristã, destaca-se em contextos mais recentes relativos ao século XX, como as ditaduras militares latino-americanas e outros cenários de violência de Estado, guerras e conflitos. Estranhamente, entre os estudos antropológicos voltados para os deslocamentos que marcam em nível global a contemporaneidade, o exílio, emblema do desterro, é pouco ou secundariamente referido. Se, como propôs Didier Fassin (2011), o humanitarismo e o estatuto de “refugiados” teriam contribuído para a despolitização das experiências de desterro, com ênfase em uma “compaixão” que levaria à indiferença, o mesmo não pode ser dito das experiências nomeadas “exílio” no período referido; ao contrário, por sua própria inscrição naquilo que é entendido por “política”, elas se relacionam a distintos processos de construção social da “vítima” e formas de categorizar a “violência”. Assim, ao colocar o “exílio” no centro do debate, este dossiê propõe-se a reunir estudos antropológicos que, em contextos etnográficos diversos, busquem apreender os sentidos de suas formas de classificação, as experiências e trajetórias do/as “exilado/as”, bem como sua inscrição em diferentes regimes de memória. 

A presente proposta surge no âmbito de nossas próprias pesquisas em curso e do amadurecimento das discussões que vêm sendo realizadas por seus proponentes no campo de pesquisas das memórias do exílio durante as ditaduras militares latino-americanas. Desse modo, nossa própria inserção nesse debate parte desse período histórico, em que a experiência do exílio foi um ponto fundamental de inflexão entre os valores revolucionários e humanitários. A incorporação de novos repertórios, como o feminismo, e novas formas de ação política, como a expressão testemunhal, são exemplares desse cenário. Além disso, espera-se que o dossiê possa receber artigos relativos a outros contextos históricos e etnográficos, como ditaduras na África, Europa e Ásia, assim como situações de conflitos armados e genocídios, tendo a figura antropológica do “exílio” como centro da reflexão.

Marcando os 60 anos do Golpe Militar no Brasil em 2024, convidamos autoras e autores a interrogar a ausência, ou presença nebulosa da categoria exílio na antropologia; bem como a apresentar análises sobre os modos como o exílio se inscreve nas vidas de pessoas e coletividades, e enseja memórias. Nessa perspectiva, buscamos reunir trabalhos que se orientem a compreender as formas que assumem as práticas de deslocamento forçado nas sociedades contemporâneas; modos, linguagens e circunstâncias em que as experiências de exílio se expressam; especificidades geracionais nas formas de experimentar o exílio; e diferenças e particularidades em relação ao retorno ou não ao território de origem. Esperamos que as fontes das pesquisas sejam heterogêneas, incluindo materiais literários, artísticos e audiovisuais, entrevistas e trabalho de campo etnográfico.

 

Bibliografia

BRAH, Avtar. Cartographies of diaspora. Contesting identities. London: Routledge, 1996.

FASSIN, Didier. Humanitarian Reason: A Moral History of the Present. Berkeley: University of California Press, 2011.

MALKKI, Liisa.  Refugees and Exile: From ‘Refugee Studies’ to the National Order of Things. Annual Review of Anthropology, [s. l.], v. 24, p. 495-523, 1995.

SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio. In: SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p.46-60.

 

Organizadores: Cynthia Sarti (UNIFESP), Felipe Magaldi (UNC/CONICET), Liliana Sanjurjo (UERJ) e Aline Lopes Murillo (UNIFESP).

Prazo: 16/12/2025.

 

OBS: Como temos mais de uma chamada aberta, faz-se obrigatório indicar no campo ‘Comentários aos editores’ que a submissão é para o Dossiê “Memórias do exílio”.

As contribuições podem ser enviadas até 16 de dezembro de 2025 pelo sistema eletrônico da revista: https://periodicos.uff.br/antropolitica/about/submissions#onlineSubmissions