Prorrogação para a Chamada para o Dossiê “Memórias ambíguas: processos e narrativas de desestabilização de políticas de reconhecimento e preservação”

2024-08-05

Neste dossiê propomos reunir etnografias que analisem as ambiguidades dos processos e narrativas memorialistas operados durante a construção de políticas de reconhecimento social e preservação cultural de eventos históricos, em especial os relacionados a experiências coletivas tidas como sensíveis, violentas ou críticas. Desejamos compreender, em particular, os atores, estratégias, discursos, controvérsias e mecanismos produtores de novos significados em torno do eixo passado-presente-futuro que explicitam os tensionamentos entre as lógicas dos direitos humanos, das dinâmicas locais e da mercantilização cultural.

Desde os anos 80, um rearranjo global trouxe à tona inquietações sobre as formas das sociedades lidarem com as memórias de eventos sensíveis, violentos e críticos, como os relacionados ao Holocausto, às ditaduras latino-americanas, às comissões de verdade e reconciliação na África pós-apartheid, ao racismo e à xenofobia, entre outros. Nesse contexto, se difundiram práticas e discursos de preservação cultural que buscavam dar conta da comunicação e do reconhecimento público das diversas experiências dolorosas. Processos que, ao mobilizarem aspectos ao mesmo tempo materiais e linguísticos, conduziram a normatividade das narrativas memorialistas (Sarlo, 2007; Jelin, 2012; Wieviorka, 2013; Huyssen, 2014; Ledoux, 2016; Butler; Spivak, 2009; Butler; Athanasiou, 2013).

Desde então, multiplicam-se na arena pública os efeitos contraditórios dessas iniciativas de produção e preservação de memórias coletivas. Isso porque elas operam inevitavelmente com registros discursivos sobre verdade, autenticidade e tradição, muitas vezes postos em xeque por outros sistemas valorativos. Além disso, os atravessamentos entre as lógicas dos direitos humanos, das políticas governamentais locais e de toda sorte de mercantilização cultural têm promovido experiências coletivas difíceis de definir. Assim, arriscamos mesmo a dizer que não apenas as políticas de memória têm se apresentado ambíguas, insubmissas e contestadas: os próprios sentidos fragmentados dos nossos tempos parecem não se assentar muito bem em grandes narrativas e interpretações totalizantes (Rosaldo, 1993; Yúdice, 2013; Castro, 2014; Guimarães, 2016; Berliner, 2018; Marques, 2020; Guimarães, Castro, 2023). 

A partir dessas premissas, lançamos então algumas perguntas: com a profusão de sítios históricos, patrimônios culturais, testemunhos, biografias, filmes históricos e demais modos de comunicar experiências coletivas dolorosas, estaríamos caminhando para um reconhecimento amplo da diversidade humana? Ou estaríamos estimulando o entretenimento e a acomodação de conflitos? E, de acordo com o contexto político, não seria mesmo conveniente esquecer determinados eventos e experiências?

Em meio à variedade de experiências e à multiplicação de agentes e canais de promoção de narrativas, cabe-nos observar de perto os fenômenos, confirmando a contribuição da antropologia aos estudos das dinâmicas políticas e da plasticidade das criações humanas. Desse modo, estimulamos o envio de artigos de caráter etnográfico dedicados à compreensão de processos e narrativas de cunho memorialista que visem superar limites de ação e/ou realçar fissuras de representação. Pretendemos receber artigos sobre os seguintes eixos de fenômenos: 

1) As dinâmicas e procedimentos que se desenvolvem de forma multiescalar entre movimentos sociais, administradores públicos e agentes privados durante os processos de formação, consolidação e gestão de memórias coletivas;

2) As operações e seleções de narrativas memorialistas que, ao valorizarem determinados atributos sociais e culturais como “autênticos ou tradicionais”, colocam à margem experiências liminares, não indexadas, ambíguas ou indesejadas; 

3) As intrincadas negociações travadas no interior das coletividades em torno de sua representação pública, que sentidos e significados são produzidos, como avaliam suas demandas por reconhecimento e reparação e constroem consensos discursivos provisórios. 

Com esse escopo de investigação, buscamos um entendimento amplo sobre os processos enfrentados por diferentes coletividades no percurso de afirmação de suas presenças no espaço público. O intuito é realçar as tensões e ambiguidades que perpassam processos de reconhecimento e preservação de experiências e desestabilizam as políticas de memória.

 

Referências bibliográficas

BERLINER, David. 2018. Perdre sa culture. Bruxelles: Zone Sensibles. 

BUTLER, Judith; SPIVAK, Gayatri. 2009. ¿Quién le canta al estado-nación? Lenguaje, política, pertenencia. Buenos Aires:Paidós. 

BUTLER, Judith; ATHANASIOU, Athena. 2013. Dispossession. The performative in the political. Cambridge: Polity.

CASTRO, João Paulo Macedo e. 2014. Ritos da memória: trajetórias e experiências sobre a ditadura militar. Mana, 20(1): 7-38. 

GUIMARÃES, Roberta Sampaio. 2016. Patrimônios e conflitos de um afoxé na reurbanização da região portuária carioca. Mana, 22: 311-340. 

GUIMARÃES, Roberta Sampaio; CASTRO, João Paulo Macedo e. 2023. A gestão empresarial das memórias sensíveis: poderes, sentidos e práticas em torno do Cais do Valongo no Rio de Janeiro. Tempo Social, 35(2): 63-82.

HUYSSEN, Andreas. 2014. Culturas do passado-presente. Modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto.

JELIN, Elizabeth. 2012 (2002). Los trabajos de la memoria. Lima: Instituto de Estudios Peruanos.

LEDOUX, Sébastien. 2016. Le devoir de mémoire. Une formule et son histoire. Paris, CNRS.

MARQUES, Roberto. 2020. Problemas de patrimônio como problemas de gênero: disjunções entre feminismo e cultura popular na Festa de Santo Antônio em Barbalha (CE). Interseções, 22 (3).

ROSALDO, Renato. 1993 (1989). Culture & Truth. The remaking of social analysis. Boston: Beacon Press.

SARLO, Beatriz. 2007 (2005). Tempo passado. Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo; Minas Gerais: Cia das Letras; Ed. UFMG.

WIEVIORKA, Annette. 2013 (1998). L’Ère du témoin. Paris: Plon.

YÚDICE, George. 2013. A conveniência da cultura. Usos da cultura na era global. Belo Horizonte: UFMG.

 

Considerando os critérios de avaliação imposto às revistas científicas, poderão ser selecionados 50% artigos de doutorandos, os demais artigos devem ter autoria de, ao menos, um doutor. Todos os artigos serão submetidos à avaliação às cegas de pareceristas externos, atendendo à política da revista. Para dar conta da diversidade de abordagens teóricas e metodológicas dos diferentes campos empíricos e problemáticas a serem debatidos, serão aceitos, preferencialmente, artigos das áreas de Antropologia e Ciências Sociais, observados os parâmetros de exogenia em relação à UFF.

Organizadores: Roberta Sampaio Guimarães (UFRJ/Brasil); Roberto Marques (UECE/Brasil); João Paulo Macedo e Castro (UNIRIO/Brasil).

Prazo estendido: 05/12/2024.

 OBS: Como temos mais de uma chamada aberta, faz-se obrigatório indicar no campo ‘Comentários aos editores’ que a submissão é para o Dossiê “Memórias ambíguas: processos e narrativas de desestabilização de políticas de reconhecimento e preservação”.

 As contribuições podem ser enviadas até 05 de dezembro de 2024 pelo sistema eletrônico da revista: https://periodicos.uff.br/antropolitica/about/submissions#onlineSubmissions