Chamada para o Dossiê “Patrimônios em disputa: agendas, agentes e agenciamentos patrimoniais”

2025-07-04

A literatura antropológica sobre patrimônios e museus tem crescido em volume e diversidade temática nos últimos anos. Esse crescimento tem implicado mudanças significativas nos modelos teóricos adotados para analisar os bens patrimonializados e seus processos de patrimonialização. Situado a partir da antropologia, um investimento intelectual renovado tem assumido a noção de diferença como uma categoria central para os debates sobre patrimônio atualmente. Regina Abreu (2015) tem se ocupado desse processo de expansão do patrimônio a partir daquilo que ela tem chamado de “patrimonialização das diferenças” (Abreu, 2015). L’Estoile (2022), em trabalho recente de revisão sobre as tendências desse campo de estudos, avalia que o processo de “patrimonialização das diferenças” tem desencadeado uma nova agenda de pesquisas no debate patrimonial, ancorada no que ele chamou de “diferenciação dos patrimônios” (L’Estoile, 2022).

Esta “diferenciação dos patrimônios” tem se expressado em um mosaico de novos repertórios patrimoniais: patrimônios afro-brasileiros, patrimônios indígenas, patrimônios urbanos, patrimônios LGBTQIAPN+, museus indígenas, museus memoriais e museus comunitários. Estes são o resultado de formas de agenciamento de coletivos cujos corpos, práticas e memórias são marcadas pela ausência nas narrativas patrimoniais hegemônicas. A complexificação da arena de disputas no campo dos patrimônios têm não somente ampliado o “vocabulário do patrimônio” (Gonçalves, 2012), mas levado pesquisadoras e pesquisadores a interagir com outros campos de conhecimento e teorias críticas, como as decoloniais, crítica feminista, teoria queer e interseccionalidades. Nesse cenário, perspectivas de análise, como a decolonial, têm assumido um caráter operacional estratégico na gramática de lutas que esses coletivos têm operado e vem sendo incorporadas como formas de encarar e analisar museus e práticas patrimoniais também dentro da academia. Novos suportes de memória têm sido reivindicados na perspetiva de denunciar os perigos da “história única”, em expressão de Adichie (2009). De fato, a memória tem se tornado um campo de batalhas importante para a compreensão das sociedades contemporâneas. 

O surgimento desses novos suportes de memória faz parte daquilo que Sodaro (2019) definiu como “boom da memória”. Para essa autora, o século XX se viu em meio a uma mudança substancial do paradigma da memorialização. Se no século XIX, o interesse pela memória esteve relacionado à consagração do Estado-nação (com sua feição branca, católica e cisheteronormativa), no século seguinte os processos de rememoração carregam um sentido de “ajuste de contas” com um passado marcado por violências e formas de opressão (Sodaro, 2019). Faz sentido, então, perceber o crescimento expressivo nos últimos anos de arquivos, lugares de memória e museus referidos às denúncias de violação de direitos humanos como parte desse novo contexto.

De acordo com Santos (2021), no Brasil, esse movimento parece ter tomado corpo a partir do fim da ditadura militar e a retomada do regime democrático. Ao analisar a trajetória dessas políticas de memória, a autora avalia como conflituosa a relação do Estado Brasileiro com a construção da memória do período pós-ditadura. As tensões entre diferentes setores do governo, sobretudo militares, na condução de ações de “desarquivamento do passado” impõe limites importantes a efetivação dessas políticas. Importante destacar também a ausência de grupos historicamente marginalizados como indígenas, camponeses e LGBTQIAPN+ nos processos de reparação e na participação na construção dessas ações. Todos esses conflitos se tornaram ainda mais intensos com a ascensão de discursos e práticas ultraconservadoras como aquelas que garantiram a vitória de Jair Bolsonaro nas urnas, em 2018.   

As estratégias de “falsificação do passado” operadas por esses discursos acentuaram a necessidade de adensar a relação entre memória, patrimônios e cidadania. Frente a esse contexto, rememorar o passado tornou-se estratégia política estratégica para coletivos historicamente silenciados. As disputas contra o esquecimento assumiram a forma de luta por justiça (Yerushalmi, 1996 apud Santos, 2021). É a partir desse contexto que situamos a necessidade de refletir sobre as diferentes agendas, agentes e estratégias de agenciamento que envolvem a contestação de narrativas patrimoniais canônicas. Convidamos para esse dossiê, artigos que, a partir de abordagens etnográficas, ajudem a adensar as reflexões sobre patrimônios insurgentes e incômodos, contramemórias e memórias sensíveis, a fim de promover um debate produtivo sobre patrimônios, direitos humanos e exercício da cidadania.

 

Referências:

ABREU, Regina. A patrimonialização das diferenças e os novos sujeitos de direito coletivo no Brasil. In: TARDY, Céline; DODEBEI (org.). Memória e novos patrimônios. Brasil: OpenEdition Press, 2015. p. 67-93.

GONÇALVES, José Reginaldo Santos. As transformações do patrimônio: da retórica da perda à reconstrução permanente. In: TAMASO, Izabela; LIMA FILHO, Manuel Ferreira (org.). Antropologia e Patrimônio Cultural: trajetórias e conceitos. Brasília: ABA, 2012. p. 59-74.

L’ESTOILE, Benoît de. Trinta anos de patrimônios e museus no Brasil: fragmentos de memórias subjetivas. In: CAVIGNAC, Julie; ABREU; Regina; VASSALLO, Simone (org.). Patrimônios e museus: inventando futuros. Brasília: ABA Publicações; Natal: EDUFRN, 2022. p. 11-33.

SODARO, Amy. Museus memoriais: a emergência de um novo modelo de museu. Revista PerCursos, Florianópolis, v. 20, n. 44, p. 207-231, 2019.

SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Memória e ditadura militar: lembrando as violações de direitos humanos. Tempo Social, São Paulo, v. 33, n. 02, p. 289-309, 2021.

 

Considerando os critérios de avaliação imposto às revistas científicas, poderão ser selecionados 50% artigos de doutorandos, os demais artigos devem ter autoria de, ao menos, um doutor. Todos os artigos submetidos serão submetidos à avaliação às cegas de pareceristas externos, atendendo à política da revista. Para dar conta da diversidade de abordagens teóricas e metodológicas dos diferentes campos empíricos e problemáticas a serem debatidos, serão aceitos, preferencialmente, artigos das áreas de Antropologia e Ciências Sociais, observados os parâmetros de exogenia em relação à UFF.

Organizadores: Thiago Soliva (UFSB-BA), Patrícia Lânes (UERJ-RJ) e Milton Ribeiro (UEPA-PA).

Prazo estendido: 03/11/2025.

OBS: Como temos mais de uma chamada aberta, faz-se obrigatório indicar no campo ‘Comentários aos editores’ que a submissão é para o Dossiê “Patrimônios em disputa”.

As contribuições podem ser enviadas até 03 de novembro de 2025 pelo sistema eletrônico da revista: https://periodicos.uff.br/antropolitica/about/submissions#onlineSubmissions