Chamada de artigos para integrar o Dossiê 29: Narrar: gesto metodológico e indagação epistemológica
Tema: Narrar: gesto metodológico e indagação epistemológica
Organizadoras: Ana Cabral (UFF), Daniele Caron (UFRGS), Flavia Araújo (UFAL).
Observação geral: O dossiê integrará a edição de março de 2025, e o prazo para envio das colaborações é até 28 de fevereiro de 2025, através do site da revista http://periodicos.uff.br/pragmatizes/
Destacamos que as normas editoriais do periódico indicam a necessidade dos artigos serem de autoria de pesquisadores doutores, ao menos um dos autores, e que todos os autores e coautores estejam cadastrados na plataforma https://orcid.org/, e que a identificação deve constar nos dados cadastrados na plataforma da revista. As diretrizes para autores(as) encontram-se no seguinte link: https://periodicos.uff.br/pragmatizes/about/submissions
Apresentação da temática:
Desde a força e pertinência de letramentos até então elididos das práticas de escrita e construção do conhecimento científico, a presença de metodologias narrativas têm ganhado relevo nos debates epistêmicos em diversos campos do conhecimento e suas transversalidades. Um movimento que, ainda que mais evidente nos últimos anos, sustenta-se em décadas de embates, análises e construções acadêmicas exigidas e realizadas junto aos movimentos sociais, num pensamento ancorado em epistemologias decoloniais e/ou contracoloniais, fundamentado em cosmopercepções ancestrais afrodiaspóricas, dos Povos Originários e da Floresta.
Além das epistemologias feministas, particularmente do feminismo negro, que fundamentam a perspectiva interseccional enquanto metodologia de análise (Akotirene, 2019). Estas contribuem para a dissolução de estruturas colonialistas como o machismo, patriarcado e cisheteronormatividade. E corroboram para a ideia de que o futuro pode vir a ser feminino, regido pela perspectiva matriarcal (Federici, 2018), com a valorização de tecnologias do cuidado e afeto, tal como muitos povos ancestrais (Le Guin, 2021). No Brasil, intelectuais indígenas, negros, quilombolas, periféricos, tais como: Conceição Evaristo, Maria Carolina de Jesus, Djamila Ribeiro, Carla Akotirene, Nego Bispo, Ailton Krenak, Davi Kopenawa, Lelia Gonzalez e Leda Maria Martins, entre muitos outros, são valorizados por suas contribuições, que relacionam arte, ciência e filosofia, e que sinalizam caminhos investigativos e de urgência, por desenvolvimentos metodológicos do “saber-fazer” do cotidiano, como ensina Nego Bispo, em conjunções e tensionamentos com os fazeres acadêmicos.
Assim, a presença das narrativas como modo de fazer e como questão nas pesquisas e publicações fala de uma radicalidade na retirada de consequência do que e com quem se fala, evidenciando novos fôlegos e pertinências nas apostas em outras plásticas do texto acadêmico como parte inerente à investigação (Cusicanqui, 2021, Moraes, Tsallis, 2016; Haraway, 1995; Ingold, 2015; Araujo, Cabral, Araújo et al. 2016). O que aponta para uma não dissociação entre conteúdo e forma, aciona uma indissociabilidade entre estética e política, e, igualmente, convoca um projeto ético que se contrapõe aos ideais da neutralidade científica e à violência da objetificação dos que coexistem nos processos de construção de uma pesquisa.
O chamado para este dossiê é, portanto, parte de um esforço crítico-analítico e experimental-ensaístico desde os diversos lugares de fala pelos quais operamos nossos ferramentários na produção do conhecimento e fazemos comparecer a narrativa como questão e/ou método nos estudos com as culturas e territórios. Ao assumir o interesse pelas transversalidades disciplinares, o convite para este Dossiê é uma estratégia de coletivização e escuta sobre os modos de sustentação das presenças e discursividades, no texto e no cotidiano dos processos de pesquisa e extensão. Convoca também a aposta nas simetrias epistêmicas, no compartilhamento de expertises, e como, diante delas, nos posicionamos, nos descentramos, tomamos lugar. E ainda, o desafio de um processo-escrita no qual o rigor não pode ser confundido com a rigidez, e sim como um esforço conceitual e metodológico com que se tem acionado a palavra narrativa nesses mesmos estudos.
Pois, efetivamente, narrativa é uma palavra tão corriqueira quanto exigente, um conceito vulgar, comum, ao alcance de todos. No entanto, compreendemos que a irreflexão com que a palavra "narrar" pode ser rapidamente tomada, estetizada e utilizada, escasseia aquilo mesmo que carregaria de mais auspicioso, e que poderia se expressar em indagações como: O que se faz quando se narra? Que lugar se ocupa quando se narra? O que acontece quando se narraCOM? Entre tantas outras que conduzem o pensamento pelo recolhimento de consequências ético-estético-políticas nos processos de pesquisa. Um gesto fundamental para se deixar de tomar as "narrativas" como elementos a serem coletados e interpretados por pessoas que, desde uma posição privilegiada, podem fazer as perguntas. E que, quando decifradas em dados, correm o risco de ingressar também, na lógica moderna da escalabilidade (Tsing, 2016), eliminando-se assim o gesto que depende invariavelmente “das circunstâncias, dos encontros, das criações de relação” (Stengers, 2023, p. 13) para um conhecer/pensar/fazer situado.
Assim, o dossiê convida a pensar a narrativa como abertura epistemológica capaz de reconhecer heterogeneidades que compõem culturas, experiências e territórios; abertura capaz de acolher práticas e discursividades instauradas a partir de confrontos e encontros, perturbações, conflitos, parcerias, desvios e mundos diversos que coexistem. Se - conforme a pensadora maori Linda Smith aponta criticamente - “a pesquisa [enquanto prática e instituição] tem sido o encontro entre o Ocidente e o Outro” (Smith, 2018, p. 19), narrar, como gesto de pesquisa, pode ser um exercício articulado às demandas por alianças decoloniais e contra-coloniais, formas de dizer e sustentar projetos societários que escapam daqueles moldados pelo capitalismo, projetos de mundo desejáveis e por se pensar, problemas e perguntas que estão por se formular.
Nessa perspectiva, fazer pesquisa exige reconhecermos as distâncias e pertencimentos, conexões e coexistências, implicados em relação às vidas e às lutas pautadas por processos colonialistas: exploratórios, racistas, capacitistas, patriarcais, cis-heteronormativos. O movimento comporta uma radicalidade que a antropóloga Rita Segato (2020) demarca: não mais olhar o outro para conhecê-lo, senão conhecer a nós mesmos no olhar do outro; um fazer pesquisa que aceita ser perguntado, aceita o caminhar tateante e o método, ele mesmo, como desvio (Gagnebin, 1999). O que desse gesto e exercício resta é pensar com Isabelle Stengers (2023) uma racionalidade não mais acionada pela ideia de avanço/progresso, propagada pela ciência moderna e compartimentada, mas sim como experiência de aprendizagem compartilhada.
Buscamos, portanto, reunir textos que, diante de um contexto social, ambiental, político e planetário tão problemático, coloquem práticas e processos investigativos acionados pela narrativa em perspectiva, no sentido de aportar conhecimento teórico-prático ao campo dos estudos culturais em interface com os distintos campos do saber, em um viés multidisciplinar e situado. Além de fazer comparecer gestos e falas nascidos de territorialidades histórica e sistematicamente ameaçadas que emergem do experimento do encontro (Stengers, 2023), e de novas alianças em processos de pesquisa.
Referências:
CUSICANQUI, Silvia Rivera. Ch’ixinakax utxiwa: uma reflexão sobre práticas e discursos descolonizadores. São Paulo: N-1 Edições, 1ª ed. 2021. 128 p.
FEDERICI, Silvia. O Calibã e a bruxa. São Paulo: Editora Elefante, 2018.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e Narração em Walter Benjamin. 1999.
HARAWAY, Donna. Ficar com o problema: fazer parentes no Chthluceno. São Paulo: N-1 edições, 2023.
______. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, n. 5, p. 7-41, 2009.
KRENAK, Ailton. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras. 2022.
LE GUIN, Ursula K. A teoria da bolsa da ficção. Disponível em: https://bandarra.medium.com/a-teoria-da-sacola-aplicada-%C3%A0-fic%C3%A7%C3 %A3o-a4a7dd5866e . Acesso em 24 de maio de 2024.
MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.
MORAES, Marcia; TSALLIS, Alexandra C.. Contar histórias, povoar o mundo: a escrita acadêmica e o feminino na ciência. Rev. Polis Psique, Porto Alegre , v. 6, n. spe, p. 39-51, jan. 2016.
OLIVEIRA, Joana C. de. Prefácio: Um encontro com O cogumelo no fim do mundo. In: TSING, 2022b.
OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. Visualizing the Body: Western Theories and African Subjects. In: COETZEE, Peter H.; ROUX, Abraham P.J. (eds). The African Philosophy Reader. New York: Routledge, 2002, p. 391-415. Disponível em: https://filosofia-africana.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/oy%C3%A8r%C3%B3nk%E1%BA%B9%CC%81_oy%C4%9Bw%C3%B9m%C3%AD_-_visualizando_o_corpo.pdf. Acesso em: 10 abr 2023.
SANTOS, Antônio Bispo. A Terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu Editora/Piseagrama, 2023.
SEGATO, Rita. Cenas de um pensamento incômodo. Gênero, cárcere e cultura em uma visada decolonial. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022.
SMITH, Linda. T. Descolonizando metodologias: pesquisas e povos indígenas. Curitiba: Editora UFPR, 2018.
STENGERS, Isabelle. Uma outra ciência é possível: manifesto por uma desaceleração das ciências. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2023.
TSING, Anna Lowenhaupt. Margens Insubordinadas: Cogumelos como Espécies Companheiras, Noosfera, 2016.
_______. O cogumelo no fim do mundo: sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo. São Paulo: n-1 edições, 2022.
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